TRABALHO DOMÉSTICO E DESIGUALDADE SOCIAL DOMESTIC WORK AND SOCIAL INEQUALITY Maria Angela Gemaque Álvaro1 Resumo O serviço doméstico remunerado é uma atividade que tem apresentado persistência e arregimenta grande contingente de mão de obra feminina em todo o mundo. Ainda assim, essas trabalhadoras carecem de uma visibilidade que é essencial à transformação das suas condições de trabalho, em geral precárias. Tendo por base essa preocupação, este artigo acompanhou as estatísticas produzidas pela Pnad-IBGE de 1992 a 2009, focalizando persistências e mudanças no perfil das trabalhadoras domésticas da Região Metropolitana de Belém – RMB, assim como aspectos cruciais na definição das possibilidades que a atividade oferece, como renda e formalização. O objetivo foi detectar tendências que favoreçam a compreensão do trabalho precário e o seu combate. Palavras-chave: trabalho doméstico, desigualdade social, gênero e trabalho, perfil das trabalhadoras domésticas, ocupações precárias. Abstract Paid domestic work is a persistent share of the work force in Brazil and continues to recruit women in the whole of the world. Nevertheless, these workers still need to gain visibility essential to transform poor work conditions. This study has followed data produced by PNAD-IBGE between 1992 and 2009, focusing on patterns of continuity and change on the profile on such domestic workers in Belem Metropolitan Area. It also observes crucial aspects on the definition of the possibilities that this type of occupation offers, such as income and legality. The study has identified trends which favour understanding and the fight against poor working conditions. Key words: domestic work, social inequality, gender and labour, profile of domestic work, poor working conditions. 1 Mestre em Ciências Sociais pela UFPA e tecnologista em Informações Geográficas e Estatísticas do IBGE. Área de pesquisa: estatísticas sociais, história e antropologia. 1. Introdução As mudanças ocorridas no curso da economia mundial nas últimas décadas, a partir da aceleração do progresso tecnológico e da globalização econômica, afetaram tanto a natureza da oferta quanto da demanda por trabalho. Um aspecto amplamente citado na literatura sobre o tema é a associação entre o surgimento de novos modelos econômicos e o ingresso maciço da mulher no mercado, fato que poderia ser considerado como um indicador de eficiência social desses modelos, pois encaminharia para uma maior igualdade social e de gênero. No entanto, estudos sobre o trabalho da mulher mostram que sua inserção tem sido realizada em condições desvantajosas em face dos homens, como pode ser visto, por exemplo, através de dados sobre renda e distribuição ocupacional. As mulheres ganham menos e estão associadas a ocupações com menores possibilidades de ascensão ou de obtenção de capacitação profissional. Por outro lado, o aumento da participação da mulher no mercado não tem contribuído para a correção do problema da desigualdade social em contextos em que ela se faz fortemente presente, como é o caso do Brasil. O maior grau de empregabilidade apresentado pelas mulheres com nível instrucional superior e um aumento do rendimento proporcional em nível de escolaridade favorecem a desigualdade na distribuição de renda (Lavinas, 2002; León, 2002, Bruschini, 2007). No Brasil, as mulheres com nível inferior de escolaridade, além de apresentarem taxas bem menores de participação no mercado, têm poucas opções na escolha de ocupações, restando-lhes assumir posições consideradas precárias, como é o caso do trabalho doméstico, do trabalho não remunerado ou do trabalho na produção para o próprio consumo (Bruschini & Lombardi, 2000; Olinto & Oliveira, 2004; Bruschini, 2007). Disto decorre que todas as três posições apresentam um forte caráter de gênero, expresso na alta representatividade feminina que nelas existe. Entretanto, entre elas, o trabalho doméstico é a posição que reúne um quantitativo mais significativo de mulheres, congregando 18,18% do contingente feminino ocupado no Brasil urbano2 em 2009 (Pnad-IBGE, 2009). A persistência de uma demanda expressiva por esse serviço em países como o Brasil, ao lado de seu papel absorvedor de mulheres de baixa renda, anuncia a relevância do seu estudo nas considerações sobre desigualdade social e de gênero. Partindo deste pressuposto, este artigo focaliza o serviço doméstico remunerado na 2 As referências de dados das pesquisas feitas neste texto referem-se à população com 10 anos ou mais de idade. Em 2009, no Brasil urbano, as mulheres correspondiam a 94,18% dos trabalhadores domésticos, totalizando um contingente de 6.086.103 trabalhadoras. ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 110 Região Metropolitana de Belém – RMB, acompanhando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad-IBGE) entre 1992 e 2009, a fim de detectar tendências que ajudem a compreender e a buscar alternativas para o combate ao trabalho precário. Este estudo irá se deter nas características das mulheres que vêm desempenhando tal atividade, tecendo comentários sobre o seu perfil a partir da literatura existente, procurando nesses elementos caracterizadores da mão de obra uma melhor compreensão da atividade e das opções de mercado abertas a mulheres de baixa renda. Focalizam-se modificações e persistências em referência ao perfil das trabalhadoras domésticas, mas também aspectos cruciais na definição das possibilidades que uma atividade oferece, como renda e formalização. Para chegar à discussão destes tópicos, adotam-se os seguintes pontos de partida: como tem sido a evolução dessa atividade enquanto absorvedora de mão de obra feminina? Qual tem sido a representatividade das trabalhadoras domésticas em face de outras posições na ocupação? 2. O trabalho doméstico na RMB Em 2009, havia na RMB3 85.875 mulheres ocupadas como trabalhadoras domésticas, o que representava 20,70% da população feminina ocupada de 10 anos ou mais de idade. Isto significa que uma em cada cinco mulheres ocupadas prestava serviço doméstico remunerado em dinheiro ou benefícios, em domicílios, atendendo a pessoas ou a famílias. Assim como em outros contextos, o serviço doméstico remunerado dentro dessa região metropolitana tem se caracterizado como uma atividade feminina, embora tenha ocorrido uma ampliação da representação masculina (Tabela 1). Tabela 1 – Distribuição dos trabalhadores domésticos segundo o sexo na RMB (1992-2001-2009) (%) Ano Sexo 1992 2001 2009 Mulheres 96,12 92,99 93,56 Homens 3,88 7,01 6,44 Fonte: Pnad – IBGE Este estudo considerou apenas os dados produzidos pela Pnad-IBGE para a zona urbana dessa região metropolitana, de modo a garantir a comparabilidade com os levantamentos anteriores a 2004, que não incluíam a zona rural dessa unidade geográfica. 3 ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 111 A forte correlação das mulheres ao trabalho doméstico remete à divisão sexual do trabalho, um dos locus das relações de gênero onde é definido o que é masculino e feminino. Entendido como uma extensão do serviço doméstico não remunerado, cuja incumbência tem sido atribuída e assumida pelas mulheres – concretamente e ideologicamente – essa ocupação recruta seus ocupantes entre elas, estando implícito que a condição de mulher já garante a perícia necessária para o desenvolvimento satisfatório das atividades. Não se julga, portanto, que o trabalho doméstico requeira treinamento e qualificação próprios, fato que contribui para sua depreciação (Chaney & Castro, 1989). Além disso, como se trata de um trabalho que é prestado a famílias e se desenvolve dentro do espaço doméstico privado, a oposição público/privado é acionada junto com os significados normalmente atribuídos aos gêneros, facilitando a inserção de uma personagem feminina. E esses significados tornam-se mais evidentes em função de algumas possibilidades ocupacionais ainda presentes no serviço doméstico remunerado, a exemplo da condição de empregada residente, que reforça a ideologia de que a empregada se insere na casa como se fosse um membro da família, e não como uma trabalhadora assalariada com direitos e deveres bem definidos. Em suma, trabalho doméstico e serviço doméstico são expressões concretas da divisão sexual do trabalho pautada em uma lógica cultural particular, que estabelece que a realização de afazeres dentro do espaço doméstico cabe naturalmente às mulheres e não a reconhece como uma contribuição socialmente importante para a reprodução da espécie (e da força de trabalho), tampouco para a garantia de seu bemestar. Perspectiva que vem sendo desafiada pela literatura sobre trabalho feminino produzida no Brasil em décadas recentes, que focaliza a articulação entre o espaço produtivo e o reprodutivo e busca dar visibilidade a formas de trabalho predominantemente assumidas por mulheres (Sanches, 2009; Bruschini, 2006). Esses trabalhos evidenciam a importância de desnaturalizar o emprego doméstico e situá-lo na categoria de uma profissão para poder garantir políticas e ações que teriam forte impacto na redução da pobreza e das desigualdades, já que esta categoria reúne milhões de trabalhadoras em todo o mundo. Entre 1992 e 2009, a representatividade do trabalho doméstico entre as mulheres ocupadas na RMB permaneceu alta, embora mostrasse oscilações, provavelmente associadas a fatores conjunturais. Os valores variaram de um máximo de 25,23% (1996) a um mínimo de 19,07% (2008), sendo que o período se iniciou com um percentual de 22,32% (1992) e terminou com 20,70% (2009). ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 112 No mesmo intervalo temporal, ocorreu um crescimento da proporção de mulheres inseridas no mercado de trabalho, já que a taxa de atividade da população feminina urbana aumentou de 50,06% para 57,07%. Esse crescimento tornou-se mais acentuado após 2001, estabelecendo-se certa distância entre a taxa de atividade feminina e a representatividade do trabalho doméstico entre as mulheres ocupadas, em vista dos maiores valores assumidos pela primeira em contraponto à segunda nos últimos anos (Gráfico 1). Fonte: Pnad – IBGE Diferentes autores têm enfatizado que o relativo declínio percentual das trabalhadoras domésticas, verificado para o Brasil, não é indicador da diminuição ou da eliminação desta categoria, pois ela vem crescendo significativamente em números absolutos, mantendo um peso muito expressivo no conjunto da força de trabalho feminina (Melo, 1998; Liberato, 1999; Bruschini & Lombardi, 2000; Bruschini, 2007). Sugerem que a queda na proporção das trabalhadoras domésticas pode estar relacionada ao fato de o aumento da atividade das mulheres estar sendo acompanhado por uma maior diversificação ocupacional, estimulada pelo aumento da escolaridade feminina. A persistência do trabalho doméstico nos países em desenvolvimento e o seu respectivo aumento nos países desenvolvidos, verificado nos últimos anos, mostram que a ocupação não está sendo eliminada com a introdução de novas formas de ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 113 produção, mas, ao contrário, vem convivendo e sendo alimentada por elas (Hirata, 2005; Sanches, 2009). Para isto contribui, do lado da demanda, o enfraquecimento do Estado Social nos países onde ele chegou a se consolidar como uma realidade; as mudanças na organização e na intensificação do trabalho, e também a nova realidade demográfica representada pelo envelhecimento da população. Do lado da oferta, o aumento – ou a persistência – da desigualdade e da pobreza tem conduzido muitas mulheres a entrarem no mercado de trabalho (Sanches, 2009). A evolução da distribuição das mulheres ocupadas na RMB por posição na ocupação, apresentada no gráfico a seguir (Gráfico 2), mostra que, ao longo de todo o período, as trabalhadoras domésticas apresentaram percentual próximo ao das trabalhadoras por conta própria, ainda que a última posição na ocupação seja aquela que apresentou maior crescimento entre todas. O aumento da representatividade das trabalhadoras por conta própria, do início ao fim do período, é de 7,32 pontos percentuais. As oscilações sofridas pelas diversas posições, assim como as assimetrias desse movimento quando se estabelece uma comparação entre elas, sugerem um trânsito entre posições por uma parcela da população feminina ocupada. Gráfico 2 – Distribuição das mulheres ocupadas por posição na ocupação RMB (1992 a 2009) 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 60 50 40 30 20 10 0 Empregado Trabalhador doméstico Conta-própria Empregador Trabalhador na produção p/ o próprio consumo Trabalhador na construção p/ o próprio uso Não remunerado Fonte: Pnad – IBGE ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 114 Em vista de a escolaridade ser um elemento muito importante na determinação da posição que um indivíduo ocupa no mercado de trabalho, pode-se dizer que o baixo perfil educacional apresentado pelas trabalhadoras domésticas (ver adiante) indica possibilidades restritas de trânsito entre posições na ocupação, circunscrevendo o movimento dessas mulheres dentro de um quadro de precariedade, no qual se inclui a posição de trabalhadoras na produção para o consumo próprio ou da unidade domiciliar, de trabalhadoras não remuneradas, empregadas sem carteira assinada e uma parcela significativa das trabalhadoras por conta própria.4 No caso brasileiro, os trabalhadores por conta própria formam um grupo bastante heterogêneo que, segundo Kon (2001), pode ser classificado em diferentes categorias de ocupação, segundo o nível de qualificação. No entanto, a maior parte dessas categorias vivencia situações de trabalho com baixa produtividade, em função de vários fatores, entre eles o baixo nível de qualificação profissional. Dados da PnadIBGE 1997 elaborados pela autora mostram que 30,30% das mulheres ocupadas como trabalhadoras por conta própria no Brasil naquele ano pertenciam ao grupo das trabalhadoras autônomas não qualificadas. Já os dados recentes sobre instrução (Pnad, 2009) indicam a existência de um alto percentual de mulheres com baixo nível educacional atuando como trabalhadoras por conta própria na RMB: 33,37% delas possuíam apenas nível fundamental incompleto. Destaca-se aqui que o baixo nível instrucional adicionais e a ausência de qualificações marcam ainda mais acentuadamente o perfil das trabalhadoras domésticas. Pode-se supor, portanto, que em resposta a mudanças conjunturais exista dentro da RMB uma parcela de mulheres economicamente ativas que, pelo perfil que possuem – especialmente em termos de instrução e qualificação – pode estar transitando entre posições precárias, nas quais se incluem as atividades de baixa produtividade assumidas pelas trabalhadoras por conta própria. 3. Quem são as trabalhadoras domésticas? As formas de ocupação, a estrutura salarial e a empregabilidade5 da mão de obra são aspectos frequentemente associados ao perfil dos trabalhadores, incluindo-se 4 Olinto e Oliveira (2004) realizaram um trabalho sobre categorias e posições ocupacionais de modo a identificar o quanto coortes de idade e de educação teriam interferência no esvaziamento de determinadas posições na ocupação consideradas precárias e que apresentam forte caráter de gênero em vista da sobrepresença feminina, como é o caso do trabalho doméstico, trabalho para o próprio consumo e trabalho não remunerado. Concluem pelo “esvaziamento progressivo e constante dessas ocupações, à medida que se sobe na hierarquia educacional” (:9). 5 O conceito de empregabilidade refere-se àquilo que possibilita ao trabalhador “sua participação no mercado de trabalho e condições de escapar do desemprego, mantendo sua capacidade de obter um emprego” (Lavinas & León, 2002:9). ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 115 aí características etárias, de raça e gênero, mas também aquelas que resultam da escolaridade, da experiência e de habilidades adquiridas através de qualificação profissional (Kon, 2001; Lavinas & León, 2002). Traçar o perfil da mão de obra é assim um elemento relevante para a compreensão do mercado de trabalho e das mudanças que nele se operam. Cabe, então, a pergunta: quem são as trabalhadoras domésticas da RMB? Para respondê-la, foi feito um acompanhamento temporal de algumas variáveis que informam sobre o perfil dessas trabalhadoras, como idade, cor, instrução, posição na família e condição de migração. 3.1 Instrução: a baixa escolaridade ainda é um fato Ocorreu um aumento significativo do nível instrucional das trabalhadoras domésticas inseridas na RMB, fato que acompanha uma tendência de melhoria nos padrões educacionais da população brasileira. As políticas de ampliação das oportunidades na área de educação por parte do Estado têm se traduzido num aumento dos anos de estudo, e esse resultado tem sido mais positivo entre a população feminina, cujo perfil educacional vem superando o dos homens. No entanto, uma comparação da evolução da instrução das trabalhadoras domésticas com a do conjunto da população feminina ocupada revela que, apesar dos ganhos educacionais expressivos obtidos pelas primeiras, elas ainda apresentavam um nível educacional bem abaixo daquele verificado para o último grupo. Enquanto encontramos entre a população feminina ocupada 51,75% de mulheres com 11 anos ou mais de estudo, o percentual de trabalhadoras domésticas que tinham 11 anos de estudo alcançava 19,04%, sendo que apenas 0,92% delas possuía escolaridade superior a esta. Por outro lado, nos níveis mais baixos de escolaridade (sem instrução e menos de um ano/nível fundamental incompleto), encontramos um percentual de 51,84% de trabalhadoras domésticas, enquanto para o conjunto das ocupadas o percentual era de 27,40% (Tabela 2). ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 116 Tabela 2 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo o nível de instrução – RMB (1992 – 2001 – 2009) (%) População feminina ocupada Trabalhadoras domésticas Nível de instrução 1992 2001 2009 1992 2001 2009 Sem instrução/menos de 1 ano 6,11 4,44 2,66 11,66 9,1 5,28 Nível fundamental incompleto 40,44 30,92 24,74 76,68 54,55 46,56 Nível fundamental completo 9,21 11,51 9,31 6,28 15,74 14,22 Nível médio incompleto 7,01 9,32 10,97 1,35 8,87 13,76 Nível médio completo 21,62 27,85 33,9 1,35 7,54 18,12 Superior 14,01 14,14 17,85 - 0,22 0,92 Sem declaração 1,60 1,81 0,57 2,68 3,98 1,14 Fonte: Pnad – IBGE A baixa escolaridade das empregadas domésticas é verificada em outros contextos dentro da América Latina, o que leva os estudiosos a considerarem o serviço doméstico remunerado como um bolsão de ocupação para as mulheres oriundas de famílias de baixa renda. A pobreza, a necessidade econômica e a falta de preparação para outros tipos de trabalho estariam agindo na orientação de tais mulheres para esta ocupação. Não se trata, portanto, de opção, mas de ausência de outras possibilidades de inserção no mercado de trabalho, do que resulta que o trabalho doméstico tenha forte orientação não apenas de gênero, mas também de raça e classe (Chaney & Castro, 1989; Ávila, 2008). A correlação entre atividades domésticas e os papéis atribuídos às mulheres, associada à especificidade do processo de trabalho (desenvolvido dentro do espaço doméstico e destinado ao consumo de seus membros), torna difícil aplicar ao serviço doméstico remunerado uma racionalidade que evidencie as vantagens de uma preparação para o exercício das atividades implícitas nesta ocupação. Disto resulta tanto a depreciação da atividade como a negação da possibilidade de as empregadas ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 117 domésticas adquirirem, durante o seu exercício, habilidades que as capacitem a assumir outras posições no mercado. Assim, a melhoria no nível educacional das empregadas domésticas parece ser explicada mais satisfatoriamente pelos investimentos em educação por parte do Estado do que por exigências relacionadas a mudanças no interior desta atividade. 3.2 O amadurecimento das trabalhadoras domésticas Nas últimas décadas, surgiu um novo padrão de participação feminina no mercado latino-americano forjado a partir de processos demográficos, culturais, educacionais e econômicos de longo prazo. O aumento da taxa de participação da mulher tem se concretizado paralelamente à consolidação do padrão de ambos os cônjuges no mercado de trabalho, preservando a população mais jovem de uma entrada precoce, a qual pode assim aproveitar as oportunidades educacionais que vêm sendo oferecidas pelo Estado. Essa opção pela esposa como segundo membro a entrar no mercado de trabalho tem favorecido mais as filhas do que os filhos, tendência confirmada pelos dados sobre educação no Brasil, já que a população feminina vem apresentando melhores indicadores instrucionais, superando o perfil educacional da população masculina (Lavinas, 2002). A distribuição etária das empregadas domésticas da RMB, em três anos intercalados (1992/2001/2009), mostra uma mudança em consonância com esse novo padrão delineado para a América Latina, reduzindo-se a proporção de empregadas mais jovens, em favor de um crescimento do percentual de mulheres situadas em faixas etárias mais elevadas (Gráfico 3). ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 118 Gráfico 3 – Distribuição etária das trabalhadoras domésticas na RMB (1992-2001-2009) (%) 30 25 20 2009 2001 15 1992 10 5 0 De 10 De 15 De 20 De 25 De 30 De 35 De 40 De 45 De 50 De 55 De 60 De 65 De 70 a 14 a 19 a 24 a 29 a 34 a 39 a 44 a 49 a 54 a 59 a 64 a 69 anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos ou mais Fonte: Pnad – IBGE A tabela 3 mostra a distribuição etária da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, nos três anos mencionados, considerando três grandes faixas: a primeira delas correspondente às mais jovens (10 a 24 anos), a segunda focaliza o intervalo de vida associado ao período reprodutivo e de cuidado de filhos menores (25 a 44 anos), e a terceira reúne as mulheres com idade situada entre o fim do ciclo reprodutivo e antes da aposentadoria (45 a 59 anos). Tabela 3 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo a faixa etária – RMB (1992 – 2001 – 2009) (%) População feminina ocupada Trabalhadoras domésticas Faixa etária De 10 a 24 anos De 25 a 44 anos De 45 a 59 anos Fonte: Pnad – IBGE 1992 2001 2009 1992 2001 2009 25,22 19,90 15,39 46,63 28,36 14,68 53,65 53,75 55,74 34,98 54,54 58,71 17,92 20,94 23,88 13,9 15,96 24,31 Ocorreu uma diminuição expressiva das trabalhadoras domésticas mais jovens (queda de 31,95 pontos percentuais), que foi acompanhada por um aumento das mulheres mais maduras, em especial daquelas situadas no período reprodutivo (aumento de 23,73 pontos percentuais). ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 119 A distribuição das mulheres ocupadas na RMB segundo a faixa etária, nesses três anos intercalados, mostra que aconteceu um amadurecimento da mão de obra feminina. No entanto, não se trata de uma mudança tão acentuada quanto aquela verificada entre as trabalhadoras domésticas, provavelmente porque a preservação da população feminina mais jovem de uma entrada precoce no mundo do trabalho atingiu fortemente um grupo populacional que vinha sendo absorvido com intensidade pelo serviço doméstico remunerado. Além disso, cabe destacar as políticas públicas de combate ao trabalho infantil e seu impacto sobre a redução de crianças nessa atividade, um reduto tradicional do trabalho infantil. No período em foco, ocorreu uma queda significativa de trabalhadoras domésticas na faixa entre 10 e 16 anos, pois enquanto elas representavam 16,59% das trabalhadoras domésticas da RMB em 1992, o registro de sua representatividade caiu para 0,92% em 2009. A modificação na distribuição etária das trabalhadoras domésticas ajuda a compreender o aumento ocorrido dentro desse grupo com respeito à proporção de trabalhadoras domésticas que, dentro da família, assumem a condição de pessoa de referência ou cônjuge.6 O percentual registrado para outras posições (filha, outro parente, agregada e empregada doméstica) tem diminuído (ver Tabela 4), sendo que a redução de representatividade foi maior quanto à condição de empregada doméstica (empregada moradora), que caiu de 25,5%, em 1992, para 3,21%, em 2009. Tabela 4 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo a condição na família - RMB (1992-2001-2009) (%) População feminina ocupada Condição na família Trabalhadoras domésticas 1992 2001 2009 1992 2001 2009 Pessoa de referência 26,22 37,17 39,84 26,90 39,03 51,38 Cônjuge 41,24 38,93 35,75 26,01 34,81 30,50 Outras posições 32,53 23,90 24,41 47,08 26,16 18,12 Fonte: Pnad – IBGE 6 A condição na família classifica as pessoas que fazem parte deste grupo em função da relação mantida com a pessoa de referência (pessoa considerada responsável pela família) ou com seu cônjuge. A Pnad-IBGE oferece as seguintes definições: pessoa de referência, cônjuge, filho, outro parente, agregado, pensionista, empregado doméstico e parente de empregado doméstico. Como é necessário preencher a condição de morador para ser considerado membro da família, o registro de empregado doméstico inclui apenas aqueles que ali residem, sem retornos para outro domicílio nos fins de semana. ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 120 Essa diminuição dos empregados residentes vem sendo registrada na literatura sobre o emprego doméstico na América Latina e tem sido relacionada a mudanças culturais (preservação da intimidade), a alterações nos locais de residência da unidade doméstica, que se tornam cada vez mais reduzidos, assim como à tendência de redução dos gastos familiares com os benefícios de alimentação e moradia providos às empregadas domésticas (Chaney & Castro, 1989; Bruschini & Lombardi, 2000). O grupo das empregadas domésticas moradoras não recobre exatamente o grupo das empregadas chamadas residentes, visto que, pela definição da Pnad, uma empregada doméstica só pode ser considerada como moradora na casa dos patrões quando ela não retorna regularmente para o domicílio onde vive sua família. Ainda assim, é possível traçar uma aproximação entre os dois grupos e interpretar a redução da condição de empregada doméstica no domicílio como uma diminuição da situação de trabalho que favorecia privilégios e opressões típicos das relações paternalistas que marcam a sociedade patriarcal brasileira (Chaney & Castro, 1989). Olinto e Oliveira (2004) enfatizam que a posição do indivíduo na família é um critério que precisa ser considerado nas análises direcionadas a apontar propostas de melhoria da qualidade do trabalho no Brasil, especialmente em se tratando do trabalho feminino. Os dados mostram que o amadurecimento da força de trabalho feminina tornou predominante a presença de mulheres que se definem como pessoa de referência entre as trabalhadoras domésticas (51,38%), seus rendimentos sendo fundamentais para o sustento desses grupos familiares. Este fato merece ser considerado em mais de um aspecto. Essa predominância relaciona-se a uma tendência de aumento da chefia feminina que vem sendo verificada em todo o país e que é um fenômeno tipicamente urbano. Este fato desencadeia processos geradores de maior autonomia e poder de decisão na família, maior participação no espaço público e, portanto, pode ser visto a partir da ótica de empoderamento feminino. No entanto, o perfil socioeconômico das mulheres provedoras mostra que a chefia cresceu principalmente entre as mulheres pobres, com baixa escolaridade e negras, o que indica o lado perverso dessa tendência. A situação de pobreza tem forçado um grupo crescente de mulheres a assumir a função de provedoras e a se lançar no mercado de trabalho, no qual elas são absorvidas em condições extremamente desvantajosas em vista de sua baixa qualificação e escolaridade. As desigualdades sociais, raciais e de gênero são reproduzidas e reforçadas num mercado ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 121 de trabalho que atribui a essas mulheres funções depreciadas, como as relativas ao serviço doméstico remunerado, com salário e proteção social baixos (Mendes, 2008). Um crescimento tão expressivo da chefia de família entre as trabalhadoras domésticas da RMB evidencia o lado negativo desse fenômeno, que é sua associação com um quadro de desigualdade e pobreza, fato que ganha maiores proporções quando se considera que essas trabalhadoras representam um quinto da mão de obra feminina dentro da RMB. 3.3 Naturais ou imigrantes? A literatura sobre trabalho doméstico na América Latina destaca como um importante aspecto do perfil das trabalhadoras engajadas nesta ocupação a sua condição de imigrantes, sendo o deslocamento geralmente feito de uma área rural para os principais centros urbanos. É um processo relacionado à tendência de urbanização crescente desses países, os quais têm tido sua população rural grandemente reduzida nas últimas décadas. O serviço doméstico remunerado seria exercido por mulheres imigrantes, recrutadas nas camadas mais pobres e com baixo nível instrucional, e funcionaria como porta de entrada no mundo do trabalho para jovens sem qualificação técnica e com poucos recursos sociais para lidar com o ambiente e o mercado de trabalho urbanos (Chaney & Castro, 1989; Melo, 1998). Nas situações em que esta atividade é assumida na condição de empregada residente – mais comum no passado – essas mulheres estariam garantindo não só uma fonte de renda, mas abrigo e proteção. Sua condição de imigrantes e de pertencentes às camadas mais pobres da população tem sido inclusive destacada como um aspecto que reforça estigmas aplicados ao serviço doméstico remunerado, dadas as distâncias entre patrões e empregadas, tanto em termos de hierarquia social como de aspectos culturais – revelados em hábitos, linguagem e vestimenta – ao lado das distinções raciais. As estatísticas da RMB mostram que o percentual de trabalhadoras domésticas que nasceram fora do município de moradia é grande em todo o período considerado, com registros variando entre 53,67% (2009) a 69,57% (1993). Os dados sobre a naturalidade em relação à Unidade da Federação revelam que de 8,03% (2009) a 19,57% (1993) dessas trabalhadoras provinham de fora do estado, dependendo do ano. Uma comparação com a situação de migração do conjunto da população feminina ocupada mostra que as imigrantes de fora do município se encontram em ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 122 maior proporção entre as trabalhadoras domésticas, já que os percentuais estão em média 12 pontos acima dos registros feitos para o primeiro grupo. Quanto à naturalidade em relação à Unidade da Federação, não se registram grandes diferenças entre os dois grupos, sendo possível concluir que existe de fato uma proporção maior de migrantes entre as empregadas domésticas, mas apenas quando se considera a naturalidade em relação ao município. Investigações sobre os mecanismos de contratação das empregadas domésticas ajudariam a esclarecer essas diferenças, levantando-se aqui a hipótese de que são utilizadas aproximações em dois níveis. Por um lado, a aproximação de mulheres de baixa renda (potenciais empregadas domésticas) com famílias de renda mais alta facilitaria sua inserção nesses domicílios na condição de empregada doméstica. Essa aproximação teria raízes históricas, remetendo inclusive ao sistema de apadrinhamento tão característico das relações patriarcais no Brasil. Por outro lado, é preciso considerar como as indicações feitas pelas próprias empregadas domésticas facilitam a entrada (ou a permanência) de outras mulheres nesta ocupação, sendo essas indicações direcionadas para sua rede de relações. Isto pode ter funcionado como um elemento facilitador da migração de mulheres de municípios próximos e sua introdução no serviço doméstico remunerado em áreas urbanas. 3.4 Cor ou raça Os dados sobre cor mostram que entre as trabalhadoras domésticas o percentual de pretas e pardas equivale a 79,36%, enquanto para o conjunto da população feminina ocupada esse percentual é de 72,80% (Tabela 5). Há, portanto, uma ênfase no recrutamento das empregadas domésticas entre as pessoas pretas e pardas, cujos indicadores de renda familiar e instrução são mais baixos que o da população branca. Tabela 5 – Distribuição das trabalhadoras domésticas e da população feminina ocupada na RMB, segundo a cor ou raça – (2009) (%) Raça ou cor Pop. Feminina Ocupada Trabalhadoras domésticas 27,11 20,41 Preta 6,65 9,40 Parda 65,43 69,96 Branca Fonte: Pnad – IBGE ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 123 Kuznesof (1989) faz uma análise histórica do serviço doméstico na América Espanhola (1492-1980), a partir da qual destaca que as trabalhadoras domésticas no período colonial provinham das camadas mais baixas do sistema de classe/casta/cor que dominava a sociedade hispano-americana, fato que estabeleceu uma distância entre empregadores e trabalhadores domésticos, assim como uma perda de status para a ocupação de serviço doméstico. Esta colocação vale também para o Brasil Colonial, marcado, como a sociedade hispano-americana, pelo regime de trabalho escravo e pela preeminência da família patriarcal como ordenadora das relações sociais. A existência de um maior percentual de pretas e pardas entre as trabalhadoras domésticas remete, portanto, a circunstâncias históricas que ajudam a compreender não apenas a composição racial dessas trabalhadoras, mas também a característica de servidão ainda associada a esta ocupação, ou seja, a subordinação e o desprestígio têm, além do componente de gênero, um componente racial e de classe. 4. Rendimentos, horas trabalhadas e formalização do serviço doméstico remunerado A análise dos indicadores econômicos normalmente associados aos rendimentos de trabalho como produtividade, horas trabalhadas e provisão necessária para a reprodução diária da força de trabalho revela a especificidade do trabalho doméstico. As trabalhadoras domésticas são definidas pela negativa, porque seu trabalho não gera valor, nem produz lucro. Além disso, têm um horário de trabalho difícil de precisar em se tratando de empregada residente, e têm parte de sua remuneração provida em benefícios (moradia, alimentação, vestuário, cuidados médicos etc.). Sanches (2009) discute a dificuldade em estabelecer um enquadramento produtivo adequado para a categoria das empregadas domésticas em vista de as definições correntes de trabalho e mercado de trabalho não incorporarem a esfera da reprodução como criadora de valor. Destaca que, embora o trabalho doméstico não gere produtos ou serviços diretamente para o mercado, ele permite a reprodução da força de trabalho que será vendida no mercado. E ainda que as trabalhadoras domésticas realizem seu trabalho em espaços privados (domicílios), seu ofício é público e sua força de trabalho é vendida no mercado de trabalho. A definição do trabalho doméstico pela negativa e a naturalização reforçam sua invisibilidade e desvalorização, elementos que impactam a questão salarial desta categoria. ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 124 Em 2009, os trabalhadores domésticos (homens e mulheres) apresentavam o mais baixo rendimento entre os ocupados, equivalendo a 62,93% do rendimento dos trabalhadores por conta própria, o grupo com o segundo menor rendimento médio mensal. As diferenças de rendimentos de acordo com o gênero são perceptíveis, estando as mulheres em situação desfavorável em quase todas as posições na ocupação, exceção feita àquelas que estavam inseridas no mercado de trabalho na condição de empregadoras (Tabela 6). Tabela 6 - Rendimento médio mensal do trabalho principal, de acordo com a posição na ocupação, da população ocupada na RMB (2009) Posição na Rend. médio Rend. Homens Rend. Mulheres ocupação (R$) (R$) (R$) Empregados 935,35 961,30 891,99 Trabalh.domésticos 362,45 476,88 354,58 Conta própria 575,93 680,83 433,40 Empregadores 2.557,58 2.528,48 2.617,53 Fonte: Pnad – IBGE Uma avaliação da evolução dos rendimentos por faixa salarial das mulheres ocupadas como empregadas domésticas, tomando por base três anos intercalados (1992/ 2001/ 2009), mostra que ocorreu uma melhoria entre os anos situados nos extremos (1992 e 2009). Mas entre 2001 e 2009 verifica-se a ocorrência de um aumento da proporção de empregadas situadas nas faixas de renda mais baixas (até um salário mínimo), enquanto diminuiu o percentual das que tinham rendimento acima de um salário mínimo (Tabela 7). O mesmo quadro é verificado quando se observa o rendimento das mulheres inseridas no serviço doméstico remunerado nas zonas urbanas do estado do Pará e no Brasil. ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 125 Tabela 7 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo a faixa de rendimento no trabalho principal – RMB (1992 – 2001 – 2009) (%) Faixa de rendimento no trabalho principal População feminina ocupada Trabalhadoras domésticas 1992 2001 2009 1992 2001 2009 8,71 4,06 4,37 4,93 1,11 0,46 Até ½ salário mínimo 20,62 8,66 16,48 47,53 10,20 24,31 Mais de ½ até 1 salário mínimo 24,33 30,05 36,23 36,33 60,31 61,01 Mais de 1 até 2 salários mínimos 24,22 30,37 23,88 11,20 25,72 11,47 Mais de 2 até 3 salários mínimos 5,71 8,72 5,89 - 2,00 0,23 Mais de 3 até 5 salários mínimos 9,01 8,88 5,08 - 0,44 - Mais de 5 até 10 salários mínimos 5,60 5,10 3,23 - - - Mais de 10 até 20 salários mínimos 1,20 2,58 0,76 - - - Mais de 20 salários mínimos 0,30 0,82 0,19 - - - Sem declaração 0,30 0,77 3,89 - 0,22 2,52 Sem rendimento Fonte: Pnad – IBGE Para o conjunto das mulheres ocupadas na RMB, as estatísticas de rendimento também apresentam um resultado mais favorável para o ano de 2001 (Tabela 7). Isto faz crer que o movimento salarial na categoria das empregadas domésticas acompanhou um processo conjuntural mais amplo de definição de rendimentos de trabalho no período em foco, devendo-se levar em conta a recuperação do valor de compra do salário mínimo nos últimos anos. Para entender o baixo custo salarial das trabalhadoras domésticas, é preciso levar em conta aspectos estruturais das sociedades latino-americanas, tanto com respeito às estruturas de classe, raça e gênero como também à forma de desenvolvimento do capitalismo na área. Entre os fatores estruturais que contribuiriam para o baixo preço do serviço doméstico estaria o reduzido número de alternativas de trabalho assalariado para os setores populares e o significado social do serviço doméstico no modelo de desenvolvimento e subdesenvolvimento dos países da América Latina. O baixo custo salarial das trabalhadoras domésticas ajuda a manter o estilo de vida das classes ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 126 média e média alta num contexto marcado pela inoperância do Estado em prover serviços urbanos coletivos (Castro, 1989). Oliveira (2003) afirma que a expansão do Setor Terciário no Brasil se fez de forma horizontal, com absorção crescente da força de trabalho mediante baixa remuneração, como forma de suprir a necessidade por serviços urbanos, posto que o desenvolvimento do setor mediante uma capitalização seria inviável num contexto onde os capitais se direcionavam para a indústria em crescimento. Com respeito aos serviços estritamente pessoais, como os que são prestados às famílias, o autor afirma que eles também revelam uma forma disfarçada de exploração que reforça a acumulação e a tendência à concentração de renda. O padrão de vida de uma família de classe média brasileira, em que se inclui a prestação desses serviços, seria sustentado pela exploração da mão de obra, sobretudo feminina. Como visto acima, as estatísticas da Pnad mostram uma melhoria salarial entre o início e o fim do período, quando se observa a distribuição das trabalhadoras por classe de rendimento. Este dado, associado a outros indicadores, como a redução de empregadas residentes, de crianças trabalhadoras, do número de horas trabalhadas, e a existência de carteira assinada, indicam que a atividade parece estar adquirindo algum grau de profissionalização. Essa melhoria, no entanto, não ajudou a combater de forma decisiva as desigualdades sociais, raciais e de gênero que a acompanham. Dentro da RMB, as empregadas domésticas trabalhavam em 2009 um número maior de horas que o conjunto da população feminina ocupada. Mas a tabela 8 mostra que esse total vem sendo reduzido, e hoje se encontra em 36,74 horas semanais, tempo um pouco abaixo das 44 horas semanais que são previstas na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, a qual, entretanto, não se aplica às trabalhadoras domésticas. Estas últimas são regidas por legislação própria, que não regulamenta o número de horas do trabalho. Tabela 8 – Média de horas semanais trabalhadas pelas trabalhadoras domésticas e pela população feminina ocupada – RMB (1992/ 2001/2009) Ano População Feminina Ocupada Trabalhadoras Domésticas 1992 39,05 47,70 2001 40,43 46,74 2009 34,74 36,74 Fonte: Pnad – IBGE ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 127 Cabe observar que a redução das horas trabalhadas ocorre nos dois grupos, porém é mais significativa entre as trabalhadoras domésticas, o que pode estar associado à redução do percentual que declara morar no domicílio do patrão. A formalização da atividade ainda é pequena e sofreu contínuas oscilações ao longo do período 1992-2009, que terminou com acréscimo de 4,01 pontos percentuais em relação à proporção de trabalhadoras domésticas que declararam possuir carteira em 1992. Uma comparação com a formalização das mulheres empregadas do setor privado reforça a precarização do trabalho doméstico, ainda que tenha diminuído o percentual de empregadas do setor privado com carteira de trabalho (Gráfico 4). 80 70 Gráfico 4 – Trabalhadoras domésticas e empregadas do setor 68.38privado que apresentavam vínculo de trabalho (1992-2001-2009) (%) 62.2 57.82 60 50 40 Trab alha 30 21.95 20 18.81 14.8 10 0 1992 2001 2009 Fonte: Pnad – IBGE O vínculo de trabalho mediante carteira assinada, além de garantir a comprovação de tempo para aposentadoria e o gozo de benefícios previdenciários, estabelece um patamar salarial mínimo. Assim, embora o rendimento médio das trabalhadoras domésticas na RMB tenha ficado em R$ 354,58, há uma distinção significativa de rendimentos de acordo com a existência de formalização deste trabalho, pois o rendimento médio para as trabalhadoras com carteira é de R$ 501,23 contra os R$ 320,61 de rendimento médio das que não possuíam carteira assinada. Para concluir, destaca-se que a Pnad registra as disparidades entre as Regiões Metropolitanas com respeito a esses indicadores, sendo que aquelas situadas no Norte e no Nordeste tendem a apresentar os piores resultados (Tabela 9). Este fato é mencionado no trabalho de Melo (1998) sobre o serviço doméstico remunerado no ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 128 Brasil, numa comparação que a autora estabelece entre as estatísticas das Grandes Regiões, e que demonstram a existência de um quadro mais perverso em relação às regiões brasileiras mais pobres (Norte e Nordeste). Tabela 9 - Rendimento médio mensal, horas semanais trabalhadas e existência de carteira assinada entre as trabalhadoras domésticas por Região Metropolitana - 2009 (%) Rendimento Médio Mensal Horas semanais trabalhadas Trabalhadoras domésticas com carteira de trabalho (%) Belém 354,58 36,74 18,81 Fortaleza 325,71 40,44 15,17 Recife 349,03 38,55 26,53 Salvador 338,68 37,54 29,53 Belo Horizonte 429,52 35,57 37,29 Rio de Janeiro 539,05 35,48 31,00 São Paulo 533,94 36,56 38,30 Curitiba 505,61 33,43 31,94 Porto Alegre 500,38 34,6 40,73 Região Metropolitana Fonte: Pnad – IBGE 5. Palavras finais O acompanhamento das estatísticas referentes ao serviço doméstico remunerado dentro da RMB sinaliza que as mudanças e as permanências verificadas estão de acordo com aquilo que é retratado pela literatura especializada tanto para o Brasil quanto para a América Latina. Embora já tenha sido considerada uma atividade fadada a desaparecer, o serviço doméstico remunerado vem demonstrando sua persistência e representatividade para a população feminina ocupada nos países da América Latina. Fato justificado por alguns autores pelo baixo nível da rede de serviços públicos e de apoio à família disponível na maioria desses países, associado a uma estrutura social, racial e de gênero marcada por forte desigualdade. A atividade apresenta uma orientação de gênero, mas é também atravessada por uma questão de classe, situando em polos opostos patroas e empregadas. A demanda continuada pelo serviço doméstico remunerado é um fato que acompanha a ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 129 crescente inserção no mercado de trabalho de mulheres oriundas de famílias de rendas médias e altas, garantindo o estilo de vida desses grupos. No entanto, a permanência da representatividade da categoria vem sendo acompanhada, também, por mudanças no perfil das trabalhadoras domésticas, assim como em indicadores econômicos como renda e formalização da atividade. Essas alterações parecem relacionar-se menos a mudanças internas à atividade, e mais a fatores externos, como processos demográficos, culturais, educacionais e econômicos de longo prazo. Se, por um lado, o acompanhamento dos indicadores econômicos revela alguma melhoria na profissionalização dessas trabalhadoras, por outro lado, o quadro final ainda se caracteriza por forte precariedade. Trabalhos recentes vêm destacando a dimensão e a importância desta ocupação no tratamento da questão das desigualdades sociais, raciais e de gênero. Indicam a necessidade de provisão de políticas públicas para esse contingente enorme de trabalhadoras e seu impacto na redução da desigualdade e da pobreza. É uma questão que tem diversas implicações, entre elas a necessidade de desnaturalizar a ocupação para poder conferir-lhe status profissional e a equiparação dos direitos. Não será resolvida unicamente através de mecanismos técnicos e legais, mas necessita também que se crie um ambiente de discussão, conscientização e transformação de aspectos culturais profundamente enraizados em sociedades como a brasileira. Um ponto de partida fundamental é dar visibilidade às trabalhadoras domésticas, mostrando as circunstâncias que cercam o exercício de seu ofício. Foi esta a contribuição que este artigo pretendeu dar. Referências bibliográficas ÁVILA, Maria Betânia. Algumas questões teóricas e políticas sobre o emprego doméstico. In: Ávila, Maria Betânia et allii (orgs.), Reflexões feministas sobre informalidade e trabalho doméstico. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2008. BRUSCHINI, Cristina. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não remunerado? 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