Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2009.002.01890 AGRAVANTE: BANCO SANTANDER S.A. AGRAVADO: TOGIL LANCHES LTDA. EPP E OUTRO RELATOR: DESEMBARGADOR ALEXANDRE FREITAS CÂMARA Direito empresarial. Recuperação judicial de empresa. Credor que se apresenta como proprietário fiduciário mas, na verdade, é credor pignoratício. Sujeição dos créditos garantidos por penhor ao processo de recuperação. Legitimidade da decisão judicial que autoriza o levantamento de metade dos recebíveis, liberando tais verbas do mecanismo conhecido como “trava bancária”. Aplicação dos princípios da preservação da empresa e da função social do contrato. Recurso a que se nega provimento. VISTOS, relatados e discutidos estes autos do Agravo de Instrumento n. 2009.002.01890, em que é agravante BANCO SANTANDER S.A. e agravados TOGIL LANCHES LTDA. EPP E OUTRO. ACORDAM, por unanimidade de votos, os Desembargadores que compõem a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em negar provimento ao recurso. ALEXANDRE FREITAS CÂMARA Desembargador Relator Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que, em processo de recuperação judicial de duas empresas, assim se pronunciou: “(…) Por fim, no tocante ao pedido de liberação dos recebíveis, vejo como indispensáveis para a continuação das atividades. Contudo, por se tratar de garantia real, existe o óbice noticiado pelo § 1°, do art. 50, daquele diploma. Neste sentido, objetivando adequar o proibitivo legal com a imperiosa necessidade de disponibilizar recursos para a reorganização empresarial, autorizo a liberação do equivalente a 50% (cinquenta por cento) dos recebíveis referentes á garantia de cada uma das instituições, devendo haver a recomposição no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, considerando que a continuação das atividades logrará resultados positivos no fluxo das empresas. Intimem-se”. Contra tal decisão, que autorizou às empresas em recuperação levantar metade dos recebíveis dados em garantia do pagamento de dívidas, uma das instituições credoras interpôs o recurso que ora se examina. Alegou, em síntese, que concedeu aos agravados o valor de R$ 795.000,00, tendo os agravados cedido, conforme contrato particular de cessão fiduciária em garantia de direitos creditórios os recebíveis que teriam, referentes às vendas feitas com cartão de crédito. Afirma, ainda, o agravante que é proprietário fiduciário do crédito cedido, sendo titular da propriedade resolúvel do crédito cedido, o que faria dele credor não Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível sujeito à recuperação judicial, na forma do disposto no art. 49, § 3°, da Lei n. 11.101/2005. Aduz que o contrato celebrado entre as partes prevê um mecanismo conhecido como “trava bancária”, que objetiva o pagamento dos valores liberados a título de empréstimo, e que não se enquadram na recuperação. Pede, então, a reforma da decisão. Pelo relator, foi deferido efeito suspensivo ao recurso, tendo em vista o fato de que o mesmo foi interposto contra decisão que autorizou levantamento de dinheiro sem prestação de caução, na forma do que dispõe o art. 558 do Código de Processo Civil. Os agravados, antes de oferecer suas contrarrazões, fizeram petição dirigida ao relator, apresentando alguns esclarecimentos e juntando documentos. Tais elementos levaram a que se proferisse nova decisão, a qual declarou que o pronunciamento que concedeu efeito suspensivo ao recurso operava ex nunc, o que teve por consequência legitimar a posse, pelos agravados, de verbas que chegaram a ser levantadas após a prolação da decisão agravada mas antes da atribuição de efeito suspensivo ao recurso. O juízo de primeiro grau ofereceu informações. Pelo agravado foram oferecidas contrarrazões impugnando a tese segundo a qual o crédito do agravante não estaria sujeito à recuperação judicial. Faz considerações sobre a função social do contrato e sobre os desideratos do processo de recuperação judicial. Afirma haver periculum in mora inverso, uma vez que a Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível reforma da decisão agravada inviabilizaria o futuro das empresas, aumentando os riscos de decretação da falência. Sustenta, ainda, que o agravante não é proprietário fiduciário do crédito dado em garantia mas, no máximo, seria um credor pignoratício. Alega, ainda, que a rigor nem credor pignoratício ele pode ser considerado, mas mero credor quirografário, já que o negócio jurídico celebrado entre as partes não atende aos requisitos formais exigidos pela lei civil para configuração do penhor. Prestigia, então, a decisão agravada. Pelo Ministério Público foi apresentado parecer, opinando pelo provimento do recurso. É o relatório. Passa-se ao voto. A questão a ser enfrentada neste julgamento, em síntese, consiste em determinar se o agravante é ou não credor sujeito à recuperação judicial. Caso a resposta seja positiva, seu recurso deverá ser improvido. Na hipótese contrária, devese dar provimento ao agravo. Isto se diz pelo fato de que o agravante afirma ser proprietário fiduciário do crédito objeto da decisão, o que – se for correto – atrairá a aplicação do disposto no art. 49, § 3°, da Lei n. 11.101/2005, cujo teor é o seguinte: Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. § 1°. Omissis § 2°. Omissis Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível § 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Pelo que se verifica pelo exame do citado dispositivo legal, caso se confirme a tese de que o agravante é proprietário fiduciário do crédito, estará ele, realmente, a salvo dos efeitos da recuperação. De outro lado, os agravados afirmam que o agravante é credor pignoratício, o que atrairia a incidência do disposto no § 5° do mesmo art. 49, cujo teor é o seguinte: § 5o Tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4o do art. 6o desta Lei. O teor deste dispositivo, combinado com o que consta do já mencionado caput do próprio art. 49, faz com que o credor pignoratício tenha de ser considerado como sujeito aos efeitos da recuperação judicial. É preciso, então, verificar qual a verdadeira situação jurídica do agravante. Advirta-se, desde logo, que – conforme reconhecem os próprios agravados em suas contrarrazões – não é este o momento processual adequado para se verificar se eventual contrato de penhor é ou não eficaz, e se o agravante pode ser mesmo considerado credor pignoratício ou se deve ser tido por credor quirografário. Esta é questão que não se enfrentará neste voto, e que só pode ser resolvida através de cognição mais ampla do que a autorizada pelo efeito devolutivo deste recurso, sujeito à regra tantum devolutum quantum appelatum. Impende reconhecer, então, que pelo sistema inaugurado pelo art. 49 da Lei n. 11.101/2005, a regra é que todo e qualquer credor esteja sujeito aos efeitos da recuperação judicial. Deste modo, a norma veiculada pelo § 3° do referido artigo é excepcional, já que afasta a incidência da regra em relação a alguns credores. Por conta disso, a interpretação dessa norma excepcional deve ser feita restritivamente, como se costuma fazer com as normas jurídicas dessa natureza. Deste modo, é preciso considerar que o proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis a que se refere o § 3° do art. 49 é aquele que se enquadra, com Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível absoluta precisão, no conceito de proprietário fiduciário reconhecido pelo Direito Civil, não se admitindo qualquer tentativa de aplicação extensiva ou analógica de tal conceito. A propriedade fiduciária é modalidade daquilo que a doutrina do Direito Civil costuma denominar “direitos reais de garantia” mas, ao mesmo tempo, é uma “nova roupagem do direito de propriedade” (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 5ª ed., 2008, p. 359). Nada mais é do que o direito real decorrente da celebração do contrato de alienação fiduciária (idem, ibidem). Deste modo, não se pode compreender a propriedade fiduciária senão a partir da alienação fiduciária. Para buscar tal compreensão, cite-se, então, uma vez mais, a autorizada lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (op. cit., pp. 359-360): “Como negócio jurídico bilateral, perfaz-se a alienação fiduciária quando o credor fiduciário adquire a propriedade resolúvel e a posse indireta de bem móvel (excepcionalmente de imóvel), em garantia de financiamento efetuado pelo devedor alienante – que se mantém na posse direta da coisa –, resolvendo-se o direito do credor fiduciário com o posterior adimplemento da dívida garantida”. “O objetivo da propriedade fiduciária é garantir uma obrigação assumida pelo alienante, em prol do adquirente. O credor fiduciário converte-se automaticamente em proprietário, tendo no valor do bem dado em garantia o eventual numerário para satisfazer-se na hipótese de inadimplemento do débito pelo devedor fiduciante”. Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível Dado relevantíssimo é que objeto do contrato de alienação fiduciária regido pelo Código Civil (e, por conseguinte, da propriedade fiduciária) só pode ser bem infungível (Farias e Rosenvald, op. cit., p. 361). Há, é certo, em legislação extravagante, a previsão de que a alienação fiduciária tenha por objeto outros tipos de bens, como títulos de crédito, mas isto depende de expressa previsão legal. Sobre o ponto, confira-se importante lição doutrinária do eminente Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, que ilustra este Egrégio Tribunal de Justiça (Marco Aurélio Bezerra de Melo, Direito das coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2ª ed., 2008, p. 471): “A alienação fiduciária se restringia aos bens móveis infungíveis (art. 1.361, caput, CCB), sendo sustentável com lógica o entendimento pelo qual somente podia ser celebrado quando instituição financeira figurasse como credora e o objetivo da constituição da garantia fosse a aquisição de um bem. Posteriormente, o entendimento da doutrina e jurisprudência foi se modificando e, hodiernamente, é possível alienação fiduciária em garantia sobre bens imóveis (Lei n° 9.514/97), moveis fungíveis (art. 66-B, Lei n° 4.728/65), com a instituição financeira figurando como credora (art. 8°-A do Dec.-lei n° 911/69) e também sem ela (arts. 1.361 e segs., CCB), não havendo sequer necessidade da existência de negócio jurídico subjacente de compra e venda de bens de consumo, fato que realça a natureza do instituto como direito real de garantia, a teor do Verbete Sumular n° 28 do Superior Tribunal de Justiça: ‘o contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor’”. Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível Verifica-se, assim, que a propriedade fiduciária só pode incidir sobre bens fungíveis na forma prevista expressamente em lei (art. 66-B da Lei n° 4.728/1965). O § 3° de tal dispositivo, que trata da matéria que aqui pode ter algum interesse, tem a seguinte redação: § 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada. Veja-se que, no dispositivo citado, fala-se em coisa fungível que pode ser vendida para, com o produto da alienação, pagar-se o credor fiduciário. Não se trata, então, e à evidência, de alienação fiduciária de dinheiro. No caso em exame, o negócio jurídico celebrado pelas partes é constituído de um “aditivo para constituição de penhor de direitos creditórios recebíveis de cartão de crédito”. Note-se, aliás, que foi o próprio agravante quem trouxe aos autos este instrumento (fls. 77 e seguintes). Nesse instrumento fala-se em Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível direitos empenhados, para se referir aos recebíveis. Fala-se, ainda, que no caso de inadimplemento do devedor poderá o agravante executar sua garantia. Usa-se, ainda, a expressão “excussão da garantia”. Todas essas são expressões típicas da figura jurídica do penhor, e não da alienação fiduciária. O que se tem, na hipótese, é um penhor de crédito (frise-se: penhor de crédito, mas não de título de crédito, razão pela qual não se aplica ao caso em exame o disposto no art. 1.458 do Código Civil). Como ensina, com a habitual percuciência, o Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, “o penhor de direitos se assemelha a uma cessão do crédito” (op. cit., p. 413). Afinal, cabe ao credor pignoratício cobrar o crédito dado em garantia e reter, da quantia recebida, o que lhe é devido. Isto nada mais é do que o mecanismo chamado de “trava bancária”. Basta ver a cláusula 13 do referido “aditivo para constituição de penhor de direitos creditórios recebíveis de cartão de crédito”, cujo teor é o seguinte: 13 – Outra utilização dos direitos empenhados – Conforme expressamente autorizado neste ato pelo CLIENTE e pelo(s) GARANTIDOR(ES), ainda que não tenha havido inadimplemento ou vencimento antecipado que autorizem a execução da presente garantia, o CLIENTE e/ou o(s) GARANTIDOR(ES) desde já autorizam e instruem o BANCO em caráter irrevogável e irretratável a utilizar qualquer montante oriundo dos DIREITOS EMPENHADOS e recebido pelo BANCO da VISANET e/ou da REDECARD, no pagamento dos vencimentos ordinários do INSTRUMENTO DE CRÉDITO. Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível Fica evidente, então, pelo exame dos autos, a natureza pignoratícia da garantia do credor, ora agravante. Daí se extrai, então, que a hipótese é regida pelo § 5°, e não pelo § 3° do art. 49 da Lei n° 11.101/2005. De tudo isso, a outra conclusão não se pode chegar: o crédito do agravante é, sim, sujeito à recuperação. A partir desta premissa, a decisão agravada se justifica. E isto porque a Lei n° 11.101/2005 consagra o princípio da recuperação da empresa, como se pode ver da literalidade de seu art. 47. Para que se preserve a empresa (o que, no caso em exame, significa preservar não só os empreendimentos mas, também, pelo menos oitenta e cinco empregos diretos), é perfeitamente possível que o juízo reveja os termos de uma relação contratual (como a existente entre as partes), de forma a adaptá-la às necessidades da empresa em recuperação. Ademais, a decisão agravada mostra-se em total consonância com o princípio da função social do contrato, expressamente previsto no Código Civil de 2002. É, pois, juridicamente adequada a decisão que autoriza o levantamento de metade dos recebíveis da empresa decorrentes de vendas feitas com cartão de crédito, liberando tais verbas da “trava bancária”. Assim, sem que se dê fim à garantia do credor pignoratício, aumentam-se as chances de recuperação da empresa devedora. Ademais, a determinação, contida na própria decisão agravada, de que em seis meses seja restaurada a garantia protege o interesse do credor, o que também se revela de acordo com o já mencionado art. 47 da Lei n° 11.101/2005. Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Segunda Segunda Câmara Cível Por todo o exposto, vota-se no sentido de se NEGAR PROVIMENTO ao recurso. Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 2009. Des. Alexandre Freitas Câmara Relator Certificado por DES. ALEXANDRE CAMARA A cópia impressa deste documento poderá ser conferida com o original eletrônico no endereço www.tjrj.jus.br. Data: 18/02/2009 18:03:12Local: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - Processo: 2009.002.01890 - Tot. Pag.: 12