COMUNICAÇÃO: Identidade e Fronteiras no estudo das Organizações Luiz Carlos Assis Iasbeck Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC/SP) Pesquisador Associado (FAC/UnB) Professor do PPG da FAC/UnB Introdução A identidade como pressuposição solidária A presente comunicação trata de parte de uma investigação semiótica aplicada ao estudo da administração da identidade empresarial, levado a termo na tese de doutoramento sobre comunicação e identidade nas organizações. Entendemos, como hipótese inicial de trabalho, que é possível administrar a identidade de uma empresa se localizarmos a gênese desse fenômeno no ponto de intersecção do discurso com sua recepção, entre a formulação dos textos discursivos e as contigências em que são recebidos num sistema produtivo-capitalista. De outra forma, mais genérica, podemos dizer que a identidade não é uma entidade de existência autônoma nem um conceito full, mas, conforme dizem Greimas e Courtês no seu Dicionário(tratado) de Semiótica, “um conceito que pode ser definido apenas por relação de pressuposição recíproca com o conceito de alteridade”. Se é a presença do outro (ou dos outros) que possibilida a constatação da diferença entre eu (nós) e ele (eles), entre algo e algo diverso e se tal condição de interrelação é que produz a identidade, podemos também dizer que no campo das atividades mercadológicas, a identidade de uma empresa só pode ser detectada quando comparada com outra empresa. Nesse caso, o que entra em comparação é tudo o que a torna expressiva, ou seja, o seu discurso latu-sensu, “...a totalidade dos fatos semióticos (relações, unidades, operações)” que formam “ o conjunto de práticas discursivas, linguísticas e não linguísticas” (Greimas e Courtês, 1989:125-126) que utiliza. Embora a identidade não possa prescindir das práticas discursivas, não se confunde com elas e nem pode ser determinada com precisão apenas com base na análise do discurso. Como o fenômeno se dá no contato, na relação, as contigências de toda ordem que atuam na recepção do discurso, o repertório do destinatário, as condições de reconhecimento e os diferentes níveis de interação comunicativa presentes no processo da comunicação são apenas alguns dos fatores que nos levam a entender que o enunciatário é, de fato, um recriador desse discurso (cfe Greimas e Courês 1985:150) e, consequentemente, elemento determinante na produção da identidade. Mas a questão não é tão simples quanto possa parecer. Eric Landowski levanta o problema de como se dá para o sujeito da identidade a percepção desse outro, desse enunciatário: “o que dá forma à minha própria identidade não é somente a maneira pela qual reflexivamente eu me defino, ou tento me definir, segundo a imagem que um outro informa de mim mesmo; é também a maneira como eu vejo a alteridade do outro e delineio um conteúdo específico à diferença que me separa dele”1 No caso das empresas, a idealização do cliente e do mercado é o elemento complicador na administração da identidade. Pesquisas mercadológicas, dados estatísticos quantitativos e qualitativos são os instrumentos mais comumente utilizados pelos serviços de marketing para aferir o que “o outro informa sobre mim mesmo”, ou como ingênua e irresponsavelmente afirmam os homens de marketing, a “imagem” pública que uma empresa possui no âmbito de sua atuação. Essa “imagem” construída por pesquisas, se entendida semioticamente, encaixa-se melhor no conceito de “simulacro”, pois não se trata de “uma unidade de manifestação auto-suficiente como um todo de significação, capaz de ser submetido à análise”2, mas de uma construção arbitrária e relativa de uma possibilidade de imagem, sujeita a oscilações no tempo e nos espaço e, portanto, sem condições de escorar, com um mínimo de segurança, o ponto-de-vista da alteridade para efeitos de circunscrição da identidade. Também esse novo dado nos preocupa: seria possível circunscrever a identidade a um espaço e a um tempo específicos, ou o fenômeno, no seu dinamismo, jamais se daria a conhecer por ser mutante e variável, como são mutantes e variáveis os elementos do discurso e as contigências da recepção? Nesse caso, apenas poderíamos estudar uma identidade qualquer ou tomarmos conhecimento de seus contornos promovendo um corte diacrônico no universo da 1 - Landowski, E. - L’un et le multiple: Quêtes d’identité, crises d’alterité, in Actas del III seminário internacional do Instituto de Semiótica Literaria e Teatral, Madrid, Visor Libros: 1994 2 - Greimas e Courtês, 1985:226. observação para, posteriormente promovermos uma tentativa de abordagem analógica na qual elementos significativos, naquele momento e lugar, interagiram para formar um aspecto fugaz de identidade. Seria, com certeza, muito esforço para pouco resultado. Para os efeitos mercadológicos, a identidade deveria ser administrada no seu dinamismo, pois é no tempo e no espaço que se dão as trocas econômicas, que capital, trabalho, bens, serviços e idéias são comprados e vendidos, ofertados e procurados. Apenas nesse cenário interessa manter o controle sobre a identidade, como forma de assegurar preferência e, consequentemente, o lucro que alimenta e movimenta o fluxo do modelo econômico do capitalismo. Porém, enquanto pesquisamos formas de deter o tempo ou delimitar espaço para tornarmos operacionalizável a identidade, outras estruturas de conhecimento e reconhecimento portanto, estruturas carregadas de identidade - se apresentam no mercado das trocas econômicas, muito embora não sejam exclusivas desse mercado. Algumas delas, por se caracterizarem por um discurso radical e apaixonado, escanacaram alguns dos mecanismos semióticos que intentamos estudar. Uma delas é o modelo econômico corporativista. Por isso optamos por tratá-lo especificamente nessa comunicação. A identidade corporativa O corporativismo é definido, numa bibliografia mínima da área da sociologia e da ciência política, como um conjunto de forças ou sistemas ordenados que reúnem crenças, dogmas, memória comum, mantendo coeso um determinado grupo de indivíduos na defesa de seus interesses, o que passa a identificá-lo e diferenciá-lo de outros grupos. Ou seja, é a existência de um conjunto comum de interesses que justifica a existência de grupamentos humanos, mas é ação desse grupo na defesa de seus interesses que passa a identificálo, tornando-o singular, único e identificável em relação aos demais grupos. Por ser facilmente identificável - ou seja, reconhecido por outros grupos ou indivíduos, como único, singular e peculiar - o corporativismo consegue ocupar lugar no mercado por mais tempo. A não ser que se promova mudança interna de regras e objetivos, os modelos corporativistas têm o benefício da permanência legitimado pela tradição e pela cristalização dos valores, atributos de grande importância nas atividades econômicas mais delicadas, aquelas que se dedicam a administrar o capital. Nos dias de hoje, entretanto, o corporativismo constitui problema pelo menos para o néoliberalismo que se instaurou nas principais economias mundiais. Isso acontece porque o corporativismo prima pela radicalidade na maneira de selecionar e disseminar informações, oferece dificuldades - de sabotagem a obstrução - a projetos que constituam ameaça à permanência do status quo, e inviabiliza métodos e técnicas que pretendam alterar o modo de funcionamento interno e externo das organizações, seja no âmbito das relações funcionais, seja no estabelecimento de regras, normas e na divisão do trabalho. Por outro lado, o corporativismo é responsável pela manutenção e coesão interna dos elementos de uma empresa, de um grupo - o sprit du corps - seja ele profissional, étnico, religioso, desportivo, acadêmico, etc. Traz como consequência direta o sentimento de solidariedade, o estreitamento dos laços de afinidade entre seus membros e, consequentemente, seu fortalecimento interno para enfrentamento das adversidades e das eventuais ameaças (declaradas ou veladas) de outros grupos corporativistas ou de outros interesses adversos. Nesse particular, confunde-se com o cooperativismo, doutrina econômica que prega a cooperação como base das relações econômicas: ambos apoiam-se no conceito de solidariedade expresso no dito popular “a união faz a força”. O estudo do corporativismo nas atividades econômicas serve aos nossos propósitos de investigar formas de administrar a identidade das empresas porque trata-se de um modelo organizacional cujo ponto de destaque são seus próprios traços de identidade, fortemente marcantes nos contextos em que interage. E ainda mais, parece-nos ser um modelo que se pauta numa identidade apaixonada e, por isso mesmo, radicalizada, mais aparente e reconhecível. Vejamos como tais características podem ser identificadas e explicadas historicamente. Breve histórico O corporativismo ocupou a cena política mundial na primeira metade do século, especialmente no período que antecedeu as duas grandes guerras, sendo praticamente abandonado com o advento da industrialização nos países do terceiro mundo, já na segunda metade do século. A idéia do corporativismo sempre esteve ligada aos grandes projetos nacionalistas - que hoje retornam à baila quando paradoxalmente aumenta a tendência à formação de blocos econômicos multinacionais - ao monopolismo estatal, à centralização dos poderes decisórios e à desconfiança em relação ao liberalismo e à livre iniciativa. Mihaïl Manoïlesco, economista rumeno e ex-ministro de estado, escreveu, nos anos 30, "O Século do Corporativismo" (1938:3-4), um tratado onde compilou aquilo que denominava a "doutrina do corporativismo integral e puro": "a idéia corporativista constitui, em nossa época, a fórmula ótima que o instinto profundo dos povos vai adotando, precisamente porque ela oferece a melhor solução para os problemas criados pela desagregação dos antigos sistemas, que não correspondem mais às exigências do bem social em nosso dias."(1938: 3) Manoïlesco referia-se diretamente à onda liberalista - e individualista - que varria o mundo com fortalecimento da democracia capitalista nas sociedades recém-industrializadas, apresentando a doutrina corporativista como "fórmula de salvação" capaz de alterar a "preponderância do capital pela ascendência do trabalho e da faculdade organizadora" (1938: XVIII). É importante ressaltar que o corporativismo do início do século - que criou as raízes do moderno corporativismo - desafiou a ordem econômica ao propor como elemento regulador da economia capitalista o princípio da organização, em lugar do conceito de lucro individual. Acreditava Manoïlesco que a ausência de uma organização econômica coletiva ensejaria, fatalmente, o "aparecimento de iniciativas individuais desorganizadas e anárquicas", fazendo com que a sociedade regredisse a um estado "primitivo", onde o interesse individual seria o único fator da vida econômica. Notamos aqui uma mudança estratégica no discurso econômico e que possui grande interesse semiótico: a identidade coletiva começou a ser ameaçada pela identidade individual, na medida em que o discurso econômico privilegiou a livre iniciativa, fortalecendo a autonomia dos indivíduos em detrimento das ações coletivas, cuja personalidade se dilui no conflito interno de interesses, tornando frágil a identidade das corporações. O fascismo italiano é o exemplo mais conhecido de organização corporativa do início do século. Resultante - assim como o nazismo - de um movimento nacionalista extremado, o fascismo encontrou na doutrina corporativista todos os elementos de que necessitava para obter aquilo que se denominou a "integração orgânica das forças nacionais": dissolveu lideranças isoladas, consolidou o controle absolutista do Estado, facilitou o policiamento ideológico e eliminou, pelo patrulhamento ostensivo, as possibilidades críticas de o próprio sistema se reestruturar dinamicamente. A origem mais remota das idéias de uma sociedade corporativa foi buscada por Paim Vieira ( 1933:27-59) nas Eutaipian gregas, organizações de escravos e de trabalhadores de baixa condição social, "privados do convívio das classes privilegiadas da sociedade", que se reuniam para comer e beber depois de terminado o trabalho diário. Se a organização corporativa por classes de trabalhadores teve origem espontânea, o mesmo não se pode dizer do uso político desse artifício de mistura e segregação social, tão habilmente executado por Numa Pompilio na Roma antiga, conforme relata Plutarco: "Para fazer desaparecer a grande divisão entre dois povos e fragmentála em partículas, Numa Pompilio distribuiu todo o povo em diversos corpos, separados cada um por interesses particulares. Ele os repartiu pelos diversos ofícios de músicos, ourives, carpinteiros, tintureiros, cardoeiros, curtidores, ferreiros e ceramistas. Reuniu, assim, em um só corpo todos os artífices de um mesmo ofício e instituiu festas e cerimônias religiosas convenientes a cada um dos corpos. Por isso, Numa foi o primeiro que baniu de Roma o espírito de partido, que fazia pensar e dizer a uns e a outros que eram Sabinos, Romanos, sujeitos de Tatius e súditos do rei Romulus. Assim, esta nova divisão operou realmente a mistura e, por assim dizer, o amálgama de todos os cidadãos juntos" ( in Vieira 1933: 28-29). Eric Landowski, em seu estudo sobre a identidade (L’un et le Multiple, quêtes d’identité, crises d’alterité) nos mostra o fenômeno da segregação como contraditório (no carré semiothique) ao da admissão, entendido este como conjuntivo e aquele como não-conjuntivo. No caso citado por Plutarco, o governante romano resolveu os problemas de identidade étnica criando novos sistemas identitários que diluíram o elemento diferencial que de inicio criava conflitos inadministráveis (a origem, a nacionalidade) pelo fato de grande parte dos imigrantes não se submeterem à autoridade central. Os novos sistemas corporativos por classe profissional passaram a admitir pessoas de diversas origens, desde que mantivessem entre si o traço comum da profissão. A assimilação ou inclusão nas corporações de quem anteriormente era excluído, ainda que por outros motivos que não o profissional, resolveu o problema institucional que fragilizava o estado romano, vulnerabilizando-o no caso de agressões externas. O corporativismo contribuiu para que houvesse um deslocamento do problema inicial - e mais grave - muito embora não tenha solucionado a questão da segregação: os que anteriormente eram excluídos pela nacionalidade, agora poderiam sê-lo por outras corporações profissionais que não a sua de origem. Mas o Estado se fortaleceu política e economicamente com a solução de Nuna Pompílio. O corporativismo profissinal, para se manter, necessitou ser estimulado por rituais e apresentar resultados para funcionar como um novo dado de identidade, capaz de não deixar ninguém sentir falta doa antigos guetos formados por etnias diferenciadas. O novo modelo de corporação criou, em substituição, um forte sentimento de organização classista, por afinidades profissionais, cujas representações, estimuladas pelo poder, cuidavam de proteger os seus associados contra agressões e ameaças de outras classes, trabalhando no sentido de preservar e conquistar novos direitos na sociedade. Era como se cada corporação se assumisse como um novo estado dentro do estado romano. A substituição trouxe, portanto, uma reconstrução do mesmo sistema de oposiçõpes entre o dentro e o fora, mantendo inalterados os mesmos prncípios que norteavam o sistema anterior. Os problemas, portanto, não cessaram, mas foram substituídos por outros problemas, mais eficientemente administráveis. Foi, porém, no período conhecido como Idade Média que as organizações corporativas, propriamente ditas, ganharam destaque e adquiriram as feições que até hoje as caracterizam. Segundo Paim Vieira (1933), elas tiveram origem nas atividades dos pequenos comerciantes do norte da Europa que se associaram para comprar grandes navios capazes de levar suas mercadorias a pontos mais distantes. O crescimento dessas associações deu origem às guildes, poderosas cooperativas que administravam enormes frotas, cais, armazéns, diques e inúmeras edificações urbanas. As guildes sofisticaram-se tanto na administração corporativista que se anunciavam como provedoras de todas as necessidades de seus sócios, "fossem elas morais, espirituais ou materiais" (Vieira 1933:37). Todo um arsenal simbólico foi instituído para marcar o poder das guildes: bandeiras, brasões, sinetes, escudos, rituais de admissão e expulsão, além de divisas, palavras de ordem e slogans que caracterizavam e distinguiam organizações diferentes. Esse equipamento simbólico servia claramente para pontuar espaços de atuação e estabelecer fronteiras com outros sistemas (de fora), reforçando os dados de identidade, ou seja, a diferença do sistema para com outros sistemas que atuavam no mesmo ramo. Entretanto, os fabricantes e demais produtores de mercadorias que se sentiam explorados pelas taxações cobradas pelas guildes resolveram unir-se na defesa de seus interesses em corporações organizadas nos mesmos moldes que as guildes, segundo a natureza de cada ofício. A disseminação dessas pequenas comunidades por toda a Europa teve total cobertura por parte dos governos, que viam facilitadas suas funções administrativas de controle e fiscalização das classes produtoras. Era, evidentemente, mais fácil administrar de forma descentralizada, desde que o governo central pudesse manter mecanismos confiáveis de controle dos seus tentáculos. Normalmente, o comando das corporações obedecia rigorosamente ao poder central, fiscalizava a aplicação das leis, arrecadava e repassava aos cofres públicos os tributos e demais impostos mercantis, proporcionava desde a instrução elementar aos filhos até assistência médica e hospitalar a todos os membros das famílias, mesmo os inválidos, e resolvia, inclusive, problemas jurídicos e legais, eximindo o Estado de muitas de suas obrigações. As corporações funcionavam, pois, como nações miniaturizadas, núcleos familiares onde os indivíduos, solidários por ofício e na defesa de seus próprios interesses, sentiam-se seguros e amparados. Os administradores das corporações exerciam rigorosa vigilância sobre o comportamento de seus associados e qualquer deslize era prontamente admoestado pelos superiores. Ou seja, a ameaça da sansão mantinha coeso e disciplinado todo o grupo. As corporações se especializaram e se fortaleceram a tal ponto que tornou-se quase impossível, em caso de conflitos entre elas, estabelecer acordos que satisfizessem inteiramente cada uma das partes de uma contenda. Vieira (1933:69) relata um estranho caso de uma "pendenga" que se arrastou por 226 anos entre as corporação dos "alfaiates de roupa nova" e dos "remendões" para o estabelecimento de um conceito capaz de distinguir uma roupa nova de uma roupa velha. Impasses dessa natureza começaram a ensejar a intervenções do governo, que temia a complexização das relações entre as corporações, e medidas repressivas aos denominados "abusos de poder" rechearam os compêndios jurídicos da França e da Inglaterra. Desprestigiadas pelos governos centrais, as corporações começaram a se fragilizar e foram mais fortemente castigadas com o início da revolução industrial, na Inglaterra: os donos de fábrica preferiram estabelecer-se no campo, para fugirem ao controle das corporações, que dominavam quase todas as grandes cidades. Com o avanço da instalação de fábricas, as corporações se reorganizaram em torno delas, mas não foram aceitas pelos primeiros industriais que pretendiam trabalhar com "liberdade", fora, portanto, do controle reivindicatório das corporações. A diferença entre o sistema de organização das primeiras fábricas e das corporações medievais estava no tipo de relação que se estabelecia entre o líder (no caso o dono ou os donos da fábrica) e os trabalhadores. Tratava-se de uma relação tipicamente trabalhista, cujos débitos ou déficts eram saldados peridodicamente pela remuneração aceita entre as partes. Dessa forma arbitrária, os trabalhadores não se comprometiam diretamente com o resultado final (a produção), mas apenas com o contrato. Nesse novo tipo de relação - que mais tarde consolidou o sistema capitalista - a identidade individual se sobrepõe à identidade coletiva, abrindo maiores espaços sociais para a exclusão e a segregação, ao mesmo tempo em que consolida a subjetividade como parâmetro de julgamento para selecionar o que deve pertencer e o que não deve pertencer a cada identidade individual. A nível sistêmico, esse foi o mecanismo de assunção do liberalismo econômico. É possível observar, nesse rápido panorama histórico, uma origem possível do antagonismo crônico entre a doutrina corporativista e o liberalismo ou, em outros termos, entre o nascente regime capitalista e o recorrente sistema protecionista socializante: uma aparente contradição que gerará inúmeras possibilidades híbridas de convivência, nunca pacíficas, entre interesses - e portanto identidades - individuais e coletivas. "Corporativismo" como paixão Hoje, quando uma organização, uma empresa ou uma classe profissional é acusada de exercer o corporativismo, isto é entendido como sintoma de choque de interesses e quer dizer, na maioria das vezes, que esse grupo está agindo em sua própria defesa, mas em dessintonia com os interesses da coletividade onde atua. Por esse motivo, o corporativismo é sempre entendido como algo essencialmente egoísta, uma espécie de "grupocentrismo" ou identidade exacerbada crônica que não consegue perceber o mundo além dos limites que ele próprio (o grupo) estabeleceu para atuar na sociedade. São classificados como "corporativistas", por exemplo, a classe dos professores, quando reivindica melhores salários e condições de trabalho, os militares e instituições do poder público, quando lutam para assegurar vantagens e “mordomias” adquiridas em outros tempos, os religiosos de quaisquer crenças que se juntam e se mantém unidos por convicções comuns, os partidos políticos, quando se enclausuram em seus próprios dogmas, estigmatizando as demais relações políticas que não fazem parte do "partido" os bancários, quando reivindicam salários, os metalúrgicos do ABC paulista, quando, em bloco, paralisam o trabalho em greves reivindicatórias e - até mesmo e principalmente - os sindicatos de classe, organizações que têm como finalidade precípua a defesa dos interesses dos trabalhadores. Assim, a luta pelos interesses do grupo, um dos aspectos que distinguiu o corporativismo no decorrer da história, acabou por assumir ele mesmo a competência de caracterizar todo o grupo, desde que seu discurso reivindicador tenha como característica principal a auto-referência. Ou seja, é corporativista qualquer grupo que se defenda referindo-se a si mesmo, aos seus valores, ao seu trabalho ou a sua parcela de contribuição para a sociedade. Estamos tratando, pois, de um problema gerado pelo excesso de identidade, ou seja, pelo excesso de referências aos valores que o grupo admite e, consequentemente, pelos desprezo e indiferença aos demais valores que são caros à sociedade onde esse grupo atua. Tais desníveis são comumente observados quando, em situações de conflito, os ânimos ficam mais exaltados. Essa exaltação emocionada talvez seja uma das decorrências mais inevitáveis e uma das características mais marcantes de um discurso apaixonado. Na introdução à “Semiótica das Paixões”, Greimas e Fontanille se referem aos exacerbamento das tensões e ao acirramento das polarizações como dificultadores do já difícil percurso entre emoção e razão, entre o sentir e conhecer: “Apenas as situações extremas e paradoxais estão em condições de evidenciar a especificidade e a irredutibilidade do fenômeno (das paixões (...) O desdobramento do sujeito em sujeito-que-pensa e sujeito-que-sente talvez um pouco “figurado” demais - pareceu-nos, no entanto, necessário para justificar os disfuncionamentos do discurso, os transes do sujeito, apropriando-se e metaforizando não apenas o mundo, mas também a existência por um fio tênue...que sustenta a veridicção discursiva” (Greimas e Fontanille, 1993: 19-20) Se, como acreditam os autores, é possível separar, no discurso da paixão, o sujeito-quepercebe do sujeito-que-sente - ainda que de forma caricata -, talvez seja possível manipular o discurso apaixonado do corporativismo, modulando-lhe o logocentrismo, recriando-lhe as metáforas e relativizando o excesso de subjetividade, característica marcante do discurso passional individual ou coletivo (institucional). Porém, alterada a essência do discurso, resultaria alterada, também, a identidade do enunciador. Mas como administrar essa alteração de forma a obter traços de identidade o mais próximos possível do desejável, ou seja, no nosso caso, evitar que um discurso reivindicatório não traga para si a pecha de corporativista? Uma interferência de tal porte no discurso, poderia ser entendida como mecanismo de administração da identidade, mas como ter alguma certeza da favorabilidade de tais mudanças, se a identidade apenas se consuma na relação com o outro? São esses os problemas que continuamos a pesquisar. Sabemos que - conforme visto na primeira parte dessa exposição - alterando um dos elementos ou pólos da identidade (a enunciação, no caso) teríamos apenas a certeza de estar influindo no resultado final da relação identitária entre enunciador e enunciatário, mas não poderíamos precisar a direção e o sentido dessas mudanças. Temos de considerar ainda que a expectativa quebrada pela mudança do discurso poderá produzir no outro (segundo elemento da presuposição recíproca) um estranhamento e consequente dificuldade de reconhecer a nova informação num desejado cenário de previsibilidades (redundâncias). Essas redundâncias não podem deixar de existir, muito embora Saussure tenha dito que é diferença que faz surgir o sentido. Porém, a diferença só pode ser reconhecida “sobre um fundo de semelhança que lhe sirva de suporte”, como dizem Greimas e Courtês (1985:122). Não há como reconhecer o que não se conhece e não há como conhecer algo novo se outro elemento já familiar não se juntar ao processo investigativo. Caso a retomada do discurso não seja realizada com muita perícia e sobretudo com grande cuidado semiótico, a alta redundância do discurso corporativo (ligada à manutenção da segurança e da estabilidade) ficará comprometida e denunciará a manipulação do discurso, inviabilizando, dessa forma, este mecanismo de administração da identidade. Manipulação e Administração da identidade Ressalvadas então nossas inseguranças quanto à possibilidade de sucesso na administração da identidade via discurso, podemos, finalmente, aventuar a possibilidade de utilizar os recursos que a semiótica greimasiana nos oferece. Ela nos nos diz que através dos artifícios de manipulação o destinador do discurso atribui ao destinatário a competência semântica e modal necessárias à ação que, no nosso caso, será a de identificar diferenças favoráveis ao destinador, num cenário de semelhanças já conhecidas (as do discurso corporativista). Pela brevidade do tempo e pela pouca pretensão do presente trabalho, não analisaremos aqui nenhum texto específico. Apenas enumeraremos alguns modos de manipular, tecendo pequenas considerações sobre cada um deles. E como o objetivo maior de nossa pesquisa conforme dito no início da exposição - é o de descobrir formas de administrar a identidade das empresas, interessa-nos sobremaneira estudar as formas mais ligadas à persuasão. Afinal todo nosso interesse pela identidade empresarial prende-se, finalmente, a sua preservação no mercado, a assegurar a preferência do público e a proporcionar retorno negocial. a) a tentação Aqui, basicamente, o discurso deve motivar o destinatário (manipulado) a ter uma atitude favorável ao que é reivindicado, anunciado ou simplesmente informado. Para tanto, deve-se oferecer ao outro (pressuposto da identidade) uma recompensa ou algo que equivalha, de tal forma que este perca a capacidade de exercer a sua liberdade e não saiba não fazer o que lhe é solicitado ou não aceitar o que lhe é oferecido. Em qualquer hipótese, o discurso deve abrir mão da autoreferência e contemplar valores do destinatário, reconhecendo-lhes o mérito. b) a intimidação A possibilidade da privação, sempre que possível sutil e apenas insinuada, pode levar o destinatário a adotar rapidamente o ponto-de-vista ou tomar prontamente a atitude que lhe são recomendados no discurso. Se na tentação o que era oferecido tinha o caráter positivo (e, portanto, irrecusável), aqui o que se oferece ao destinatário é uma ameaça. Em ambos os casos, é a modalidade do poder que autoriza a manipulação. c) a sedução Em sua grande maioria as empresas, as instituições, todo e qualquer grupo social desejam ser aceitos para interagir no seu meio de atuação. A sedução é talvez o mais ardiloso dos recursos de manipulação porque, fora da modalidade do poder, age regulando, na dimensão cognitiva, argumentos que valorizam (portanto, positivos) o acervo do destinatário. A pretensa aceitação incondicional do outro, de suas restrições e limitações transformadas em valores positivos, abre espaços para o diálogo, a aproximação e, portanto, facilita sobremaneira a interação. Nesse domínio, toda e qualquer diferença é percebida como valor, como matéria prima latente de um argumento persuasivo. d) a provocação O mecanismo aqui utilizado é o mesmo da sedução, porém movimenta valores negativos porque oferece ameaças capazes de estimular o destinatário a agir. Esse tipo de artifício de manipulação não se presta, por exemplo, para ser utilizado quando o destinatário é um grupo corporativista ou alguém que esteja ligado aos valores do conservadorismo. A provocação, para ser eficaz, deve movimentar o que está acomodado para provocar a resistência, uma espécie de contra-ofensiva eficaz para quem não quer sair da defensiva. A grosso modo, a aplicação desse tipo de interferência no discurso, por contemplar atitudes nunca passivas por parte do outro, deve produzir resultados dentro de um certos aspectos controlável e, portanto, administrável. Mas isso é assunto para um novo trabalho de semiótica aplicada a situações específicas do discurso empresarial. Bibliografia Barrros, Diana L.P. “Teoria Semiótica do Texto” (1990), Ed. Ática, São Paulo SP Fiorin, J. L., “Elementos de Análise do Discurso”(1992), Contexto, São Paulo SP Greimas e Courtés “Dicionário de Semiótica” (1985) Ed. Cultrix, São Paulo SP Greimas e Fontanille “Semiótica das Paixões”, (1993), Ed. Ática, São Paulo SP Landowski, E., “A Sociedade Refletida” (1992), Educ, Pontes, São Paulo SP Landowski, E., “Lún et le multiple: Quêtes d’identité, crises d’alterité”, in Actas del III Seminario Internacional del Instituto de Semiótica Literaria y Teatral (1994), Visor Libros, Madrid Manoïlesco, Mihaïl, "O Século do Corporativismo" (1938) Livraria José Olympio Editora : Rio de janeiro RJ. Pross, Harry, "Estructura Simbólica del Poder" (1980) Ed. Gustavo Gilli S.A.: Barcelona. Vieira, Paim, "Organização Profissional- Corporativismo e Representação de Classes" (1933) Empreza Graphica da revista dos Tribunaes: São Paulo SP.