CULTURA POPULAR SUBURBANA e RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: diálogos identitários no bojo do funk e do pagode no Rio de Janeiro MOUTINHO, Renan Ribeiro1 BORGES, Roberto Carlos da Silva2 RESUMO O presente trabalho objetiva discorrer sobre a terceira fase do trabalho de pesquisa em desenvolvimento no mestrado em Relações Étnico-Raciais, em andamento, sobre cultura popular no Rio de Janeiro (com recorte para o subúrbio delimitado entre a Zona Norte e Zona Oeste do Rio de Janeiro) e Educação. Neste momento do trabalho, discutimos a caracterização daquela que é considerada a cultura popular do subúrbio carioca ressaltando elementos como duas de suas principais manifestações musicais, o seu público-alvo, os processos de construção de suas marcas identitárias bem como o lugar que a mesma ocupa no vasto espectro cultural de manifestações musicais do Rio de Janeiro. Os referenciais teóricos sobre cultura negra (GOMES, 2003; MUNANGA, 2000; HALL, 2003), racismo (PEREIRA, 2006; GUIMARÃES, 2009; MUNANGA, 2004) e identidade (BAUMAN, 2005; MUNANGA, 2002; NOVAES, 2003) intermediam as discussões neste momento. Ademais, esta investigação compõe um dos trabalhos em desenvolvimento na Linha de Pesquisa Mídia e Repertórios culturais na construção de identidades etnicorraciais da mesma instituição. Palavras-chave: Funk; Pagode; Relações Étnico-raciais; Educação. I. Introdução O presente trabalho se caracteriza por reflexões decorrentes de pesquisa, a nível de mestrado, acerca de manifestações da cultura popular suburbana especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Por considerarmos a complexidade intrínseca à discussão da temática da Cultura, da Cultura Popular e de suas articulações com as Relações ÉtnicoRaciais em práticas pedagógicas que se relacionem efetivamente com políticas públicas como as Leis 10.639/2003, Lei 11.645/08 (as quais estabelecem a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira e indígena) e Lei 11.769/08 (a qual estabelece a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica), procederemos a breve discussão conceitual destas temáticas, seguiremos à um breve histórico das manifestações musicais que objetivamos discorrer e finalizaremos com algumas sugestões acerca da discussão destas no espectro cultural da cidade do Rio de Janeiro. 1 Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ Doutor em Estudos da Linguagem (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ 2 II. Diálogo de conceitos A partir do prisma das Ciências Sociais, consideramos a discussão no âmbito das Relações Étnico-raciais de que o termo “negro” está diretamente relacionado a noção de raça. Segundo BRASIL (2004: 5): “Raça é a construção social forjada nas tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente superado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras, para informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira. Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro que, em várias situações, o utiliza com um sentido político e de valorização do legado deixado pelos africanos”. Desta forma, “se os negros considerarem que as raças não existem, acabarão também por achar que eles não existem integralmente como pessoas, posto que é assim que são, em parte, percebidos e classificados por outros” (GUIMARÃES, 2009: 67). A Cultura negra, por sua vez, estaria diretamente relacionada ao empoderamento do ser negro promovido pela ênfase nas características que lhe atribuem especificidades: “A cultura negra pode ser vista como uma particularidade cultural construída historicamente por um grupo étnico/racial específico, não de maneira isolada, mas no contato com outros grupos e povos. Essa cultura faz-se presente no modo de vida do brasileiro, seja qual for o seu pertencimento étnico. Todavia, a sua predominância se dá entre os descendentes de africanos escravizados no Brasil, ou seja, o segmento negro da população” (GOMES, 2003, p. 77). Para além do objetivo de concluir o que vem a ser cultura com este trabalho, pretendemos dialogar com reflexões sobre este conceito e o seu caráter híbrido3. 3 Um termo que tem sido cada vez mais usado para caracterizar as culturas cada vez mais mistas e diaspóricas dessas comunidades é “hibridismo”. Contudo, seu sentido tem sido comumente malinterpretado. Hibridismo não é uma referência à composição racial mista de uma população. É realmente outro termo para a lógica cultural da tradução. Essa lógica se torna cada vez mais evidente nas diásporas Instigados pela premissa de Marilena Chauí de que “(...) todos os indivíduos e grupos são seres e sujeitos culturais” (1995: 81), consideramos a transversalidade do conceito de cultura dentre as muitas áreas do saber, sua pluralidade semântica, assim como sua relação direta com a atividade social humana. Nosso objetivo em conceber uma concepção não restritiva para cultura almeja permitir um diálogo para a valorização desta em consonância com o que fez Paulo Freire (1921-1997), o qual buscou: “desenvolver uma perspectiva curricular que, antecipando-se à influência posterior dos Estudos Culturais, apaga as fronteiras entre a cultura erudita e a cultura popular. Essa ampliação do que constitui cultura permite que se veja a chamada “cultura popular” como um conhecimento que legitimamente deve fazer parte do currículo. (SILVA, 2011: 137) Neste ponto, consideramos a necessidade de ratificar a articulação entre o “ser negro” com o conceito de identidade, especificamente com o de identidade negra. Isto se deve ao fato de coadunarmos com a premissa de Silvia Novaes (1993) de: “(...) perceber que o conceito de identidade deve ser investigado e analisado não porque os antropólogos decretaram sua importância (diferentemente do conceito de classe social, por exemplo), mas porque ele é um conceito vital para os grupos sociais contemporâneos que o reivindicam” (IBID: 24). A promulgação da lei 10.639/03, como supracitado, trata especificamente de uma reivindicação afirmativa de direitos de um grupo social que teve sua cultura e sua presença renegados e inferiorizados. A discussão sobre identidade, neste contexto, também pode desenvolver-se quando “um grupo reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (NOVAES,1993: 25). De acordo com Philip Gleason (1980), partimos da premissa de não existir uma resposta completa e definitiva sobre o que viria a ser identidade, apesar da extensão dos trabalhos feitos sobre o tema. Porém, destacamos a concepção de Kabengele Munanga: multiculturais e em outras comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial. [...] Ela define a lógica cultural composta e irregular pela qual a chamada “modernidade” ocidental tem afetado o resto do mundo desde o início do projeto globalizante da Europa (HALL, 2003: 71). “A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc.” (MUNANGA, 1994: 177178). Desta forma, pode ser representativo sublinhar os processos pelos quais os sujeitos sociais definem suas respectivas identidades sociais, apresentadas sob um “caráter fragmentado, instável, histórico e plural”. (LOURO, 2000: 72) Ao ampliar esta concepção para o processo de construção de uma identidade negra, entendemos que esta pode ser compreendida como “uma construção social, histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a partir da relação com o outro” (GOMES, 2005: 43). Em busca de um maior aprofundamento sobre estes processos, segundo os quais a cultura se confunde com o campo social, recorremos a dinamicidade da cultura, a partir de lógica própria, ressaltada por Roque de Barros Laraia (1986). A cultura não só condiciona a forma como os indivíduos enxergam as práticas de outros indivíduos como estas próprias práticas estão em constante mudança e interação: “Podemos agora afirmar que existem dois tipos de mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema cultural com um outro. (LARAIA, 1986: 98)”. O conceito de cultura popular que utilizamos neste trabalho é, portanto, aquele relacionado aos Estudos Culturais em uma perspectiva de questionamento do estabelecimento de “hierarquias entre formas e práticas culturais, estabelecidas a partir de oposições como cultura “alta” ou “superior” e “baixa” ou “inferior”. A cultura popular, proveniente do povo concebido em toda a sua multiplicidade, deve ser analisada tendo em vista as articulações destas práticas culturais com o seu meio social. Assim como foi dito, o recorte geográfico escolhido para esta pesquisa é o subúrbio carioca. A categoria subúrbio pode ser confundida como sinônimo de periferia. VIANNA (1987), por exemplo, refere-se ao funk como “música produzida na periferia dos grandes centros urbanos e consumida também por jovens urbanos” (ibid. p. 33); já BATISTA (2005) refere-se a mesma manifestação como “uma realidade no cotidiano dos subúrbios cariocas” (ibid, p.23). Neste trabalho, porém, partimos da seguinte concepção de subúrbio: “(...) o subúrbio (ou a hinterlândia, num sentido mais histórico e mais amplo) é, na atualidade, apenas um espaço que, pela dificuldade de transportes públicos e pela não conservação das vias, torna-se distante do grande centro econômico e do circuito cultural. E que, por isso, e por também não contar com infraestrutura de serviços públicos eficientes, é desprezada, como opção residencial, pelos mais abastados, e abandonada pelos que ascendem socialmente. Como lembra Vasconcellos (1991, p. 24), até 1937, quando a eletrificação dos trens da Central provocou o primeiro surto de explosão demográfica, a zona suburbana não era habitada exclusivamente por gente humilde, grosseira e inculta. Moravam na região também intelectuais, artistas, magistrados, militares e políticos, como podemos ver ao longo desta obra. E isso vem de encontro ao destaque dado por Lima Barreto, em sua obra, a alguns subúrbios reputados, em sua época, como chiques e elegantes, como a Boca do Mato e Jacarepaguá” (LOPES, 2012, p. 324). Dentre este contexto geográfico, seguiremos à análise de manifestações culturais que se caracterizam enquanto presentes neste espaço. III. “Não dá pra fugir dessa coisa de pele”: o pagode carioca “Podemos sorrir, nada mais nos impede Não dá pra fugir dessa coisa de pele Sentida por nós, desatando os nós Sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora É a nossa canção pelas ruas e bares Nos traz a razão, relembrando palmares Foi bom insistir, compor e ouvir Resiste quem pode à força dos nossos pagodes” (Jorge Aragão. Coisa de Pele) Nos dias de hoje, arriscamos a dizer que, no senso comum, a concepção do termo pagode restringe-se ao gênero musical conhecido e apreciado especificamente no subúrbio ou nas áreas de baixa renda de metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo. Porém, no âmbito da História da Música, o termo pagode possui uma longa trajetória de ressignificação e ampliação de seu sentido de origem. No Dicionário da Hinterlândia Carioca, de autoria de Nei Lopes (2012), o autor se debruça sobre a História do Subúrbio do Rio de Janeiro desde os primórdios de nossa colonização, adentrando em histórias suplantadas pelo progresso, revelando a história deste e de muitos outros termos utilizados corriqueiramente no linguajar suburbano. Especificamente sobre o conceito de pagode, o autor nos aponta para: “Termo que, originariamente designando divertimento, patuscada, ganhou, no Rio de Janeiro, a acepção de “reunião de sambistas” e, a partir da década de 1980, passou a denominar um estilo de interpretação do SAMBA, gênero de canção popular”. Como reunião musical festiva, o pagode está na história musical da cidade desde tempos imemoriais.” (ibid, p. 265). Neste contexto, PINTO (2013) aponta e reafirma a “enorme semelhança entre o caráter social do pagode e do samba antes de suas gêneses enquanto expressões ou gêneros musicais” (ibid, p. 8). TROTTA (2011), por sua vez, amplia este significado ao ressaltar que “aos poucos, o termo pagode passou a designar não apenas uma reunião informal, mas um jeito específico de fazer samba e, mais do que isso, a classificar um determinado grupo de sambistas no universo comercial” (ibid, p.126). Dada as históricas proximidades entre estes dois termos, existe certo consenso em afirmá-los enquanto fenômenos de produção coletiva, embora tenham adquirido particularidades e caminhos díspares com o tempo: “Os termos “samba” e “pagode são utilizados historicamente para fazer referência ao evento da roda. É somente a partir dos anos 1980 que o segundo passou a significar um determinado movimento musical. Na última década do século XX, como veremos, o termo “pagode” ficou associado pejorativamente à prática musical de alguns grupos de samba que obtiveram grande sucesso no mercado de música (ibid, p. 103)”. A origem do imbróglio acerca do “mito originário do samba” provém da dificuldade em classificar o samba enquanto “gênero puro”, com características absolutamente diferentes de gêneros que lhe eram contemporâneos, como o maxixe e a marcha. Segundo afirma MENEZES BASTOS (1996), “a discussão sobre a origem do samba é um clássico dos estudos musicais no Brasil e uma verdadeira paixão da sociedade”. De todo modo, TROTTA (2011), por sua vez, afirma: “É indiscutível, por exemplo, que o gênero samba esteve durante todo o século passado e até os dias de hoje estreitamente identificado como uma prática cultivada majoritariamente por negros. Neste caso, a identificação diz respeito às origens do gênero, aparecendo de maneira variada de acordo com a época, os autores e o pensamento de cada momento (ibid, p. 75)”. Dito isto, nos interessa neste trabalho destacar alguns fatos que contribuíram para a promoção da manifestação musical pagode como a conhecemos hoje. TROTTA (2011) especifica, dentre outras discussões, dois momentos centrais para o pagode que conhecemos hoje: a década de 1980 e a década de 1990. O primeiro parte de uma articulação do samba com outros gêneros à época, como foi dito, assim como em sua expansão estrutural para uma produção “mercadológica”. Esta expansão promoveu uma das maiores críticas que observamos empiricamente a partir da resistência de alguns segmentos de artistas ligados ao universo do samba em reivindicar uma suposta identidade “de raiz” para a sua prática cultural (TROTA, 2011). Os grupos de pagode do início da década de 1980 reúnem artistas ligados à rodas de samba que aconteciam no subúrbio carioca, como é o caso daquela ligada ao bloco Carnavalesco Cacique de Ramos. Destes, podemos destacar o grupo Fundo de Quintal, Agepê, Zeca Pagodinho, Almir Guineto e Jovelina Pérola Negra (TROTTA, 2011). O final da década de 1980 e início da década de 1990 assistem ao boom do denominado pagode romântico com grupos de projeção nacional, como Raça Negra, Negritude Júnior e Só Pra Contrariar. O seu público-alvo, majoritariamente composto pela juventude negra da época pertencente às classes menos abastadas da época, promoveria uma caracterização de roupas, acessórios e indumentários diversos que passarão a conferir uma identidade particular aos agora denominados por “pagodeiros”. Como veremos a seguir, este público possuirá uma articulação com os “funqueiros” no que se refere à preferência musical do subúrbio carioca. IV. Funk Carioca O funk, enquanto manifestação musical estritamente ligada ao cotidiano da cidade do Rio de Janeiro possui características que lhe conferem particularidades face ao funk norte-americano mundialmente conhecido (PALOMBINI, 2009; VIANNA, 1987) por personagens como James Brown e George Clinton. PAULA (2006) nos apresenta uma definição para este termo baseando-se em seu desenvolvimento histórico: “(...) tipo muito específico de música, que descende dos lamentos negros e rurais do blues, do posterior rhythm ‘n blues (quando o blues chega aos grandes centros e ganha marcação rítmica mais vigorosa) e da evolução do rhythm ‘n blues, o soul (quando o estilo ganha apuro melódico, emprestado das igrejas batistas, e esmero instrumental, tornando-se um lucrativo negócio para as gravadoras. Do soul, estilo representado por cantores como Sam Cooke, Otis Redding, Smokey Robinson, Marvin Gaye e Aretha Franklin, chegamos ao funk, redução do soul à sua percussividade mais básica” (ibid, p. 4) LOPES (2012), por sua vez, sublinha uma concepção de funk articulando-a com o Rio de Janeiro. O autor, notável pesquisador da hinterlândia carioca, ressalta aspectos técnico-musicais desta manifestação musical: “Denominação de uma modalidade musical variante do funk, surgida no Rio de Janeiro, na região focalizada nesta obra, e popularizada a partir da década de 1990, principalmente nas favelas de toda a cidade. A base rítmica de suas gravações – ao que consta, oriunda do estilo drum & bass (bateria e baixo) dos músicos latinos da Florida, e por isso também conhecida como “batidão” – situa a modalidade mais próxima da antiga marchinha carnavalesca do que propriamente do funk ou do rap” (LOPES, 2012, p. 321). Assim como o pagode, observamos empiricamente que o funk carioca é comumente relacionado a uma suposta “baixa cultura”, em detrimento à “alta cultura” ou “cultura das elites” especialmente nos espaços acadêmicos e historicamente ocupados por uma elite letrada. Desta forma, apesar do funk carioca ser considerado patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro desde 2009, este convive com associações baseadas meramente em um senso comum, como ressalta FORNACIARI (2011): “seja por alegação de apologia ao crime ou pela proibição de realização de bailes; pela criminalização da atividade do profissional funqueiro ou pela inexistência de proteção legal adequada; pela difícil inserção no mercado fonográfico por determinados estilos de funk e a constante evidência, por parte da mídia, de uma ligação entre funk e criminalidade nas favelas, tudo indica que o funk inevitavelmente ocupa, de uma forma ou de outra, um lugar estritamente relacionado com o “excluído”, o “marginal” e o “ilícito” na cultura brasileira” (ibid, p. 67). Apesar de toda a sorte de preconceitos que aquelas e aqueles “colocados à margem” precisam conviver cotidianamente, o universo funk conseguiu organizar-se dentre uma complexa estrutura que compreende artistas, produtores e o seu grande público, comumente denominados por funqueiros (PALOMBINI, 2009). As origens do funk carioca estão estritamente ligadas a manifestações musicais surgidas nos Estados Unidos assim como na articulação deste gênero com o cotidiano do Rio de Janeiro. Porém, é preciso diferenciar o funk carioca do funk norte-americano pois, segundo CÁCERES (et all, 2014), o primeiro: (...) começa a tomar corpo nos anos 1990 quando as faixas instrumentais desses discos passam a ser usadas como base para raps ou melôs locais nos chamados festivais ou concursos de galera. Boa parte dessas criações, entre elas algumas das mais conhecidas – os Raps “do Silva” (MC Bob Rum), “da felicidade” (MCs Cidinho e Doca), “do Salgueiro” (MCs Claudinho e Buchecha), “das armas” (MCs Cidinho e Doca)–, utiliza como base a faixa “808 Beatapella Mix”, do single 8 Volt Mix79. Esse disco, talvez a gravação mais influente da fase de formação do novo gênero, não vem da Flórida, mas de Los Angeles” (ibid, p. 182) As marcas identitárias que caracterizam o funqueiro variam de acordo com a localidade que o baile ou o conjunto de determinados artistas desenvolvem sua Arte. De forma a não finalizar a questão, reconhecemos empiricamente que a música funk carioca no Rio de Janeiro está associada à um público negro, jovem e ligado às classes menos abastadas assim como o pagode. Apesar das tentativas de tornar o funk mais palatável para outros públicos a partir de novas roupagens que tendem à “música pop”, uma simples volta pelo subúrbio nos finais-de-semana pode descrever a importância que estas manifestações ocupam no espectro cultural de manifestações musicais do Rio de Janeiro bem como na presença cotidiana desta na memória coletiva e afetiva de seus moradores. O funk é definido atualmente como “um movimento cultural e musical de caráter popular” por força de lei a partir de iniciativa dos parlamentares Marcelo Freixo e Wagner Montes. O projeto de lei nº 1671/2009 foi aprovado e promulgado como a lei nº 5.543 em 22 de setembro de 2009 no governo de Sérgio Cabral; o que acabaria por revogar a Lei 5.265/2008. Na defesa pela proposição desta lei, o relator valeu-se de elementos do manifesto “Funk é cultura”, redigido pela APAFUNK (FORNACIARI, 2011), o qual reproduzimos em seguida em virtude de seu valor histórico: “Funk é Cultura. O funk é hoje uma das maiores manifestações culturais de massa do nosso país e está diretamente relacionado aos estilos de vida e experiências da juventude de periferias e favelas. Para esta, além de diversão, o funk é também perspectiva de vida, pois assegura empregos direta e indiretamente, assim como o sonho de se ter um trabalho significativo e prazeroso. Além disso, o funk promove algo raro em nossa sociedade, atualmente, que é a aproximação entre classes sociais diferentes, entre asfalto e favela, estabelecendo vínculos culturais muito importantes, sobretudo em tempos de criminalização da pobreza. No entanto, apesar da indústria do funk movimentar grandes cifras e atingir milhões de pessoas, seus artistas e trabalhadores passam por uma série de dificuldades para reivindicarem seus direitos, são superexplorados, submetidos a contratos abusivos e, muitas vezes, roubados. O mais grave é que, sob o comando monopolizado de poucos empresários, a indústria funkeira tem uma dinâmica que suprime a diversidade das composições, estabelecendo uma espécie de censura no que diz respeito aos temas das músicas. Assim, no lugar da crítica social, a mesmice da chamada “putaria”, letras que têm como temática quase exclusiva a pornografia. Essa espécie de censura velada também vem de fora do movimento, com leis que criminalizam os bailes e impedimentos de realização de shows por ordens judiciais ou por vontade dos donos das casas de espetáculos. A despeito disso, MCs e DJs continuam a compor a poesia da favela – uma produção ampla e diversificada que hoje, por não ter espaço na grande mídia e nem nos bailes, vê seu potencial como meio de comunicação popular muito reduzido” (APAFUNK, 2008 apud FORNACIARI, 2011). O manifesto “Funk é Cultura” representa a voz de um grupo incontável de pessoas que convive diariamente com a manifestação do funk em suas vidas. No sentido de conceber que “a educação como direito e sua efetivação em práticas sociais se convertem em instrumento de redução das desigualdades” (CURY, 2002, p. 261), discorreremos brevemente sobre algumas possibilidades da presença do funk e do pagode em práticas pedagógicas. V. Possibilidades de articulação: novas perspectivas “(...) compreendo como currículos de gênero, sexualidades, masculinidades, raça e classe social, os espaços/ tempos onde sujeitos interagem, as ações escolares, as ações culturais e as tecnologias (arquitetura, livros didáticos, vestimentas, músicas, meios midiáticos etc.), significadas na cultura, ensinam e regulam o corpo produzindo subjetividades e arquitetando formas e configurações de viver em sociedade. Nesse contexto, o currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram lutas em torno de diferentes significados sobre o social e o político” (SILVA JÚNIOR, 2014, p.79). A empiria nos leva a afirmar que o descompasso entre o que os alunos trazem de conhecimento musical e a realidade das práticas pedagógicas que são desenvolvidos na sala-de-aula deixa escapar importante canal de diálogo entre as temáticas das canções de seu dia-a-dia. PENNA (2008) afirma que “o fato é que a música da mídia está presente no cotidiano de praticamente todos os cidadãos brasileiros, de modo que é mais produtivo trabalhar a partir da realidade de vida dos nossos alunos, procurando desenvolver o seu senso crítico (ibid, p. 89). Portanto, JUNQUEIRA (2011) sublinha: “O aporte da escola, com suas rotinas, regras, práticas e valores, a esse processo de normalização e ajustamento heterorreguladores e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual é crucial. Ali, o heterossexismo e a homofobia podem agir, de maneira sorrateira ou ostensiva, em todos os seus espaços” (JUNQUEIRA et all, 2011, p. 78). A afirmação supracitada pode dialogar com o que assinala a antropóloga e militante negra Nilma Bentes (1993) sobre como “a discriminação “cultural” vem a reboque do físico, pois os racistas acham que “tudo que vem de negro, de Preto” ou é inferior ou é maléfico (religião, ritmos, hábitos, etc)” (BENTES, 1993: 16). De todo modo, estas questões podem estar presentes na prática dos educadores: “Ao enfrentar tal questão, os educadores se deparam com um grande desafio que decorre da necessidade de se desfazer os equívocos que deturparam as culturas de origem africana nas áreas onde se desenvolveram relações de trabalho escravo. O desafio decorre, ainda, da urgência de se analisar os esquemas de violência que perpassam as relações entre os diferentes grupos da sociedade brasileira, de se estudar e de se vivenciar as culturas africanas e afro-descendentes como realidades dialéticas, dispostas no jogo social, permeadas por contradições e em constante processo de reinterpretação de si mesmas”. (PEREIRA, 2008: 10) A motivação para a escolha de conteúdos ligados à cultura afro-brasileira na Educação, pode dialogar com o que dizem Moreira e Candau (2003: 24), de que “a instituição escolar representa um microuniverso social, que se caracteriza pela diversidade social e cultural e por, muitas vezes, reproduz padrões de conduta que permeiam as relações sociais fora da escola”. “(...) significativas experiências têm sido desenvolvidas, tanto no âmbito das escolas como de outros espaços de educação não formal, propondo-se a transcender o pluralismo “benigno” de visões correntes de multiculturalismo e a afirmar as vozes e os pontos de vista de minorias étnicas e raciais marginalizadas e de homens e mulheres das camadas populares. Todavia, a despeito das conquistas e das contribuições dessas experiências, ainda não podemos considerar que uma orientação multicultural numa perspectiva emancipatória (Sousa Santos, 2003) costume nortear as práticas curriculares das escolas e esteja presente, de modo significativo, nos cursos que formam os docentes que nelas ensinam (ibid, p. 23-24)”. O presente trabalho, em virtude de seu caráter preliminar, buscou apresentar reflexões sobre três eixos principais. O primeiro, como foi dito, refere-se ao debate de conceitos que julgamos fundamentais para uma prática pedagógica assim como uma postura política e social que discuta efetivamente as manifestações culturais provenientes de seu povo. O segundo eixo se refere a um breve histórico e discussão sobre as manifestações culturais que estão alocadas no universo simbólico do Rio de Janeiro. Acreditamos que ressaltar esta cultura, por vezes posta à margem, é empoderar seus principais atores e personagens. O terceiro eixo, por sua vez, indica possíveis possibilidades de aproximação entre este tipo de conteúdo com práticas pedagógicas que possam ser utilizadas em salade-aula com ênfase para as possíveis invisibilizadas que o próprio universo escolar pode disseminar. Desta forma, acreditamos que este trabalho possa sugerir discussões, a partir de uma perspectiva multidisciplinar, de utilização de temáticas inerentes ao cotidiano dos alunos e de suas vivências sociais a partir das manifestações musicais que foram discutidas e evidenciadas neste trabalho. VI. Referências BATISTA, Rachel de Aguiar. Funk, cultura e Juventude carioca: Um estudo no morro da Mangueira. 2005. Dissertação de Mestrado. (Mestrado em Serviço Social) - UFF, Niterói, 2005. BENTES, R.N.M (1993). Negritando. Belém: Graphitte. BRASIL (2003). Lei nº 10639, de 9 de janeiro de 2003. 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