Walison Paulino de Araújo Costa Lingüística e Psicanálise: Murmuros do inconsciente Mercedes Vandondorno uma discussão sobre o sujeito na linguagem UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Área de Concentração: Lingüística e Língua Portuguesa Walison Paulino de Araújo Costa Lingüística e Psicanálise: uma discussão sobre o sujeito na linguagem João Pessoa – PB, 2006 Walison Paulino de Araújo Costa Lingüística e Psicanálise: uma discussão sobre o sujeito na linguagem DISSERTAÇÃO apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, linha de pesquisa: “Estrutura do Português: uma abordagem semântica, sintática e pragmática”; eixo temático: “Lingüística e Psicanálise, Saussure e Lacan: a constituição dos sentidos”, como requisito institucional para a obtenção do Título de MESTRE EM LETRAS. Orientadora: Profa. Dra. Mônica Nóbrega João Pessoa – PB, 2006 Walison Paulino de Araújo Costa Lingüística e Psicanálise: uma discussão sobre o sujeito na linguagem DISSERTAÇÃO apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, linha de pesquisa: “Estrutura do Português: uma abordagem semântica, sintática e pragmática”; eixo temático: “Lingüística e Psicanálise, Saussure e Lacan: a constituição dos sentidos”, como requisito institucional para a obtenção do Título de MESTRE EM LETRAS. Aprovado em ____/____/_____ BANCA EXAMINADORA: ______________________________________ Dra. Mônica Nóbrega Orientadora – UFPB ______________________________________ Dra. Ivone Tavares de Lucena Examinadora – UFPB ______________________________________ Dra. Marlene Teixeira Examinadora- UNISINOS/RS DEDICO... Aos meus familiares, tão numerosos, cuja história e particularidades determinam o meu jeito de pensar e agir diante dos fenômenos que me são apresentados quotidianamente; De maneira muitíssimo especial, à minha avó materna Maria Alves de Araújo, dona de casa, lavradora, professora do grupo escolar da ‘minha’ saudosa Beira do Rio (palco de tantas descobertas!) sem a qual, talvez, eu não tivesse sido seduzido, desde muito criança, pela belíssima e inigualável profissão que é a de educador; Ao meu avô materno Antônio Cipriano da Silva, lavrador, vaqueiro, que, mesmo sem ter a habilidade exigida pela escola institucionalizada, consegue ‘ler’ o dia-a-dia de uma maneira muito coerente, sabendo aceitar o que a vida lhe reservou, sem intolerância e com muita dignidade; À minha avó paterna Joana Batista da Costa, que, mesmo tendo ido embora muito jovem, marcou sua estória neste mundo por ter sido a mulher condolente, altruísta e reta que foi; À minha avó paterna e madrinha Raimunda Araújo Costa, que, na sua calma e paciência, soube conduzir a sua vida e a dos que a rodearam com bastante prontidão e doçura; Ao meu avô paterno Antônio Pereira da Costa, homem honesto e de decisões muito acertadas, por ter sido a estaca em que muitos puderam se agarrar em momentos difíceis; Aos meus pais Maria Nilma de Araújo Paulino e Joaquim Paulino Neto, meus tesouros, sem os quais a vida seria algo insignificante, a quem ofereço meu eterno agradecimento, por terem sempre me conduzido para o Bem; Ao meu irmão Walison Paulino de Araújo Costa, de quem herdei o mesmo nome, por ter sido o primeiro de nós e ter proporcionado a ‘mainha’ e ‘painho’ tanta felicidade, infelizmente, por tão pouco tempo; Ao meu irmão Wellington Paulino de Araújo Costa, que, mesmo sendo muito diferente de mim, consegue ser insubstituível, por ser muito mais forte do que eu e, às vezes, me mostrar, despretensiosamente, que a vida pode ser muito mais fácil, sem grandes ambições; À minha irmã Joana Emília Paulino de Araújo Costa com quem me identifico, embora discordemos tanto, por ser uma pessoa que busca sempre dar o melhor de si e não vê obstáculos para cumprir seus desígnios; Ao meu sobrinho, afilhado e ‘filho de alma’ Pedro Henrique Paulino Costa, em quem deposito todo o amor de um pai, por me dar tanta alegria e vontade de viver; À minha sobrinha Larissa Bianca Paulino de Araújo Ferreira, que, mesmo tendo enfrentado separações ainda tão bebê, parece já ser obstinada em relação ao seu futuro, pelo amor que tem aos livros e por ser, até agora, a minha grande esperança de outras descobertas; Ao meu sobrinho ‘bebezinho’ Gabriel Leite Paulino Costa, nosso mascote, por ser tão indefeso e se assemelhar tanto à figura de Deus Menino; À minha cunhada Maria de Lourdes Araújo Leite, pela delicadeza e respeito que dedica aos que tanto amo; Ao meu grande amigo e companheiro de tantas interações, sempre inesquecíveis, José Washington de Morais Medeiros, por representar um ‘modelo’ de retidão em minha vida e me fazer acreditar que sou capaz de ir adiante... Agradecimentos Àquele a quem chamam de Deus, de Jesus, de Javé, de Jeová, de Oxalá, de Alá, de Buda, Àquele poderoso, eterno e bom que tem força para os que clamam por Sua intervenção; à Virgem Santíssima, por ter sido a preceptora de Cristo e sempre trazer a consolação em momentos de agonia; à Venerada Senhora, Aquela que é Mãe, advogada, que jamais acusa, e sempre defende, por dar conforto aos que necessitam de um amparo; à Profa. Dra. Mônica Nóbrega, minha orientadora e, muito mais, pessoa íntegra e competente, de quem pude aprender ensinamentos dentro e fora da academia, com quem compartilho segredos e POSSO festejar cada etapa da vida; à Banca de Qualificação e de Defesa, que, com esmero, nas pessoas de Ivone Lucena, Marlene Teixeira e Mariane Cavalcanti, contribuíram bastante pela acessibilidade e pela leitura séria que empreenderam; a todos os meus professores, principalmente, Angelina, Ester, Félix, Genilda Azeredo, Iara, Lúcia Nobre, Luciene Espíndola, Maura Dourado, Eleida, Margarida, Michael Smith, Rosilda, de quem muito aprendi; à professora e coordenadora Elisalva Madruga e às secretárias do PPGL, que, muito gentilmente, sempre se mostraram prontas para ajudar nos meus interesse junto ao programa; aos meus companheiros da Pós: André Pedro, Cida, Fernanda, Flávio Benites, Isaías, Kalina, Jailma, João, Rachel, Renata, Vilma Pastor, Sílvia, Valéria , dentre tantos outros. aos meus amigos ‘da vida’, veteranos e calouros: Anna Líbia, Anne Pellicciotto, Auxiliadora Gomes de Lima (vulgo Dora, Edson ou Doriedson) Cristóvam Tadeu, Dalvaci Carneiro (vulgo Léa), Fernanda Martínez, Isabelle Vasconcelos, Lúcia Sobreira, Marinete Queirós, Roseanne Catão. A Eduardo Sérgio, recém chegado em minha vida, pelos momentos agradáveis que me proporciona e pelas indispensáveis sutilezas com que torna meus dias mais alegres. aos meus alunos, com quem aprendo mais do que ensino; aos meus companheiros de trabalho; a tudo e a todos aqueles que, de alguma maneira, pelo menos, tiveram a intenção de me ensinar algo. Resumo No contexto dos estudos sobre a linguagem, há muitos caminhos nos quais se pode pautar uma discussão. Este estudo prioriza enfocar a linguagem trafegando por concepções que atribuem ao sujeito um estatuto de fundamento para a sua compreensão. O sujeito, que é a razão de a língua existir, traz consigo uma idéia imanente de intersubjetividade, segundo a qual o dizer de um falante é sempre constituído por uma alteridade. Assim, tenta-se entender essa inclusão do outro no dizer do eu por conjunturas que contemplam o dialogismo, a interação, trazendo à cena um Outro elemento subjetivo: o sujeito do inconsciente, cuja atuação na linguagem é silenciosa e constante, via de regra, sendo materializada no discurso de um sujeito suposto saber, além dos contornos assumidos por um outro pequeno que, em função de uma relação imaginária, proporciona ao eu o embuste de que fala somente o que quer, quando, na verdade, fala mais do que supõe, ou fala algo totalmente diferente do que deseja. Em termos metodológicos, esta pesquisa de cunho exploratório se fundamenta na abordagem qualitativa, cujo método evidencia a construção de uma reflexão, conectando pontos categóricos para uma interpretação subsidiada pela força de princípios de verdade, isto é, argumentos lógicos. Tinha-se como objetivo geral estabelecer pontos de convergência entre a lingüística e a psicanálise, concretizados a partir do enfoque dado aos sujeitos envolvidos na interação verbal (eu e outro, mas que ora também é visto como um tu) e, principalmente, da emergência do inconsciente nesse circuito dialógico, através da noção lacaniana do Outro. Com os resultados alcançados, verificou-se que o Outro redefine, assim como o outro bakhtiniano e o outro pequeno da relação imaginária, a compreensão sobre o sujeito e seu lidar com a linguagem. Palavras-chaves: sujeito; intersubjetividade; linguagem; dialogismo; inconsciente. Abstract In the context of language studies, there are a lot of ways on which one can base a discussion. This study focuses on language through conceptions that attribute to the subject a status that is fundamental to its comprehension. The subject, who is the reason why language exists, brings up the innate idea of intersubjectivity, according to which the discourse of a speaker is always constituted by other-orientation. Thus, one tries to understand the inclusion of the ‘other’ into the I’s discourse by contemplating dialogism, interaction, the ‘Other’ as a subjective element: the subject of unconscious, whose acting in language is silent and constant, generally, being materialized in the discourse of the subject supposed to know everything, besides the participation of the ‘other’ that, owing to its imaginary relationship, makes the ‘I’ think that it says only what it wants to, when, in fact, it says more than supposes, or says something completely different from what wants to. Methodologically, this exploratory research is based on qualitative approach, whose method reflects by connecting categories for some interpretation subsidized by the strength of principles of truth, which one calls logic argument. It aimed at establishing convergent points between linguistics and psychoanalysis, taking into account the emphasis on the subjects involved in the verbal interaction (the ‘I’ and the ‘other’, which is sometimes seen as the ‘you’) and mainly considering the emergence of unconscious in the dialogical circuit through Lacan’s notion on the ‘Other’. With the results, one could see that the ‘Other’ redefines, like Bakhtin’s ‘other’ and the ‘other’ of the imaginary relationship, the comprehension on the subject and its dealing with language. Key words: subject; intersubjectivity; language; dialogism; unconscious. A psicanálise deveria ser a ciência da linguagem habitada pelo sujeito. Na perspectiva freudiana, o homem é o sujeito tomado e torturado pela linguagem. Jean Jacques Lacan Sumário 1 Abrindo as janelas para a noção de sujeito....................................................................... 11 2 Sobre a inter(subjetividade) na linguagem........................................................................ 22 2.1 Sujeito e linguagem................................................................................................................ 25 2.2 Enunciação e alteridade: o caráter intersubjetivo da linguagem............................................ 28 2.3 Linguagem e dialogismo......................................................................................................... 32 2.4 O subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato: uma proposta para o dialogismo?............................................................................................................................. Linguagem, alteridade e psicanálise....................................................................................... 43 2.5 52 3 Considerações sobre o sujeito lacaniano: para além de um outro da lingüística.............................................................................................................................. 69 4 Compreender o sujeito da linguagem atravessado pela psicanálise: uma tarefa possível?.................................................................................................................................. 90 5 Últimas considerações......................................................................................................... 102 Referências............................................................................................................................ 107 1 Abrindo as janelas para a noção de sujeito Mulher na janela (1822) – autor desconhecido Estou, com efeito, cada vez mais convencido de que o pensamento é algo sério demais para ser entregue às pessoas, a não ser a título excepcional. Jean-Claude Milner Lidar com a questão da subjetividade é tarefa já feita por alguns estudiosos, porém o intuito, neste estudo, é mostrar as possibilidades de interseccionar saberes distintos: a lingüística e a psicanálise lacaniana, encontrando pontos de ancoragem comuns, e até divergências, no trato do fenômeno abordado, no caso, a constituição do sujeito lacaniano e suas repercussões no tratamento da questão da interação na lingüística. Tenta-se, logo de início, enxergar como as duas áreas do saber, verdadeiros princípios norteadores com os quais se trabalha nesta investigação, posicionam-se frente ao conceito de ciência, tanto numa acepção dos antigos quanto numa acepção dos teóricos que orbitam os dias de hoje. Em um primeiro instante, falar em lingüística como ciência significa voltar-se no tempo, isto é, sabe-se que Saussure é o expoente que grandemente contribuiu para que a lingüística tivesse o status científico que tem hoje. Entretanto, esse status é bem diferente hoje do que tinha na época em que as discussões dele fizeram-se conhecidas através do Curso de Lingüística Geral (CLG). Sabe-se que a lingüística contemporânea cada vez mais se situa dentro de um quadro epistemológico que incita, embora seus limites sejam bem visíveis em termos de atuação e explicação de que cuida tal ciência, uma abordagem pluridisciplinar da comunicação humana. Por esse motivo, o papel da linguagem no processo da comunicação obriga a uma concepção de lingüística que não se ausenta, de maneira alguma, de um debate em que estejam presentes as marcas de outras disciplinas. Assim, a lingüística se ‘exterioriza’, sai de si e vem discutir com outras áreas do saber, não se limita ao interior de seus próprios domínios, isto é, esse debate nada mais é do que o lugar comum da linguagem na construção dos valores culturais ou na estruturação da vida social. É nesse momento que se acha cabível pensar numa lingüística que seja acessível para uma discussão com a psicanálise lacaniana. De acordo com Milner (1996), o epistemólogo francês Alexander Koyré afirma que há entre a episteme antiga e a ciência moderna um corte. A ciência moderna se refere à ciência feita aos moldes de Galileu, isto é, a física matematizada. Matematizando o seu objeto, a ciência galileana o despoja de suas qualidades sensíveis. E são exatamente essas qualidades sensíveis que interessam para as ciências humanas, onde existe espaço para a subjetividade. O conceito de ciência tem adquirido o status de algo inquestionável ao longo da história e se vê que o que resiste em prevalecer, de fato, com caráter científico, são basicamente os postulados das ciências naturais, como a matemática, física, química etc. Enquanto isso, as ciências humanas parecem ter sido relegadas para um segundo plano. Ciência não é necessariamente conhecimento. Aquele é mais específico do que este, pois delimita o objeto a ser estudado de maneira muito enfática. A ciência é uma espécie de conhecimento. Para a psicanálise lacaniana, também, a diferença entre ciência e conhecimento é fundamental. Na história do pensamento, a teoria do conhecimento, de diversas formas, parece preconizar o mesmo ideal, que é exatamente a junção do sujeito e do objeto. É como se o objeto se obrigasse naturalmente a um sujeito, de forma que de incognoscível passasse a cognoscível. De acordo com Miller (1999), a ciência teve sua origem no estudo da física-matemática, no século XVII, e, assim, por separar radicalmente o sujeito do objeto (dando ênfase, sobretudo ao objeto), vem a psicanálise contradizer essa estrutura na contemporaneidade, pois Freud introduziu em sua prática a questão da histeria, uma das teses mais vigorosas da epistemologia lacaniana no que toca aos pólos sujeito e objeto. Nesse sentido, a estrutura do discurso da ciência não deixa de se correlacionar ao discurso da histeria, embora que, de certo modo, dele se ausente, uma vez que o discurso científico tradicional se constitui a partir da construção de redes sistemáticas de elementos em si mesmos desprovidos de significação, mas coerentes entre si. Segundo Milner (1996), Lacan constrói uma equação, na qual é expressa a idéia de que o sujeito que se opera na psicanálise é o sujeito da ciência. Essa equação se desmembra nas três seguintes proposições: ‘não é o eu, por exemplo, que é operado pela psicanálise, mas o sujeito’; ‘há um sujeito da ciência’ e ‘estes dois sujeitos, o da psicanálise e o da ciência, constituem apenas um.’ Assim, é possível dizer que a psicanálise é um saber constituído em si mesma, porém o sujeito operado por ela é o mesmo da ciência, motivo pelo qual não se pode deixar de lado o discurso científico, embora se saiba que não faz sentido perguntar, em uma dada instância, em que condições a psicanálise seria uma ciência, pois a psicanálise organiza seu próprio campo epistemológico e permite que nele mesmo ela seja orientada. É como se saísse de uma praxis para a theoria, ou seja, todo arsenal argumentativo sobre o sujeito da psicanálise é, na verdade, evocada da sua praxis, mas como esse sujeito psicanalítico é o mesmo da ciência, não há como refutar a passagem da praxis para a theoria como pressuposto do discurso da ciência, pelo menos nesse trato sobre a questão do sujeito. Consoante Miller (1999), há um silêncio no mundo. Mesmo depois do advento da física-matemática, a ciência diz que existem significantes que não querem dizer nada para ninguém, assim não exigindo a figura do sujeito para lidar com o que esses significantes, por ventura, venham a dizer; é como se esses significantes não estivessem relacionados com um sujeito que se expressaria por seu intermédio. A autonomia desses significantes é fato incontroverso, porém com a entrada do componente subjetivo na cena, o sujeito passa a ser um efeito do funcionamento das leis significantes. Segundo Miller (1999, p.46), ‘por isso Lacan diz, e afinal a história parece confirmá-lo, que a psicanálise não era possível antes do advento do discurso da ciência.’ Parece que tirar a ênfase do sujeito dentro do quadro científico era uma espécie de estratégia, por parte de quem fazia a ciência, pois assim ela seria imutável, tornando célebre quem com ela lidava. O discurso da ciência, por muito tempo, rechaçou o sujeito, visto que ele podia (e pode) fraturar sua consistência (MILLER, 1999, p. 52). Todavia, o sujeito está aí, dizendo e sendo dito, ‘utilizando’ e sendo utilizado pela palavra. É esse mesmo sujeito que faz da ciência conhecimento legítimo e útil para toda a humanidade. Assim, o sujeito do inconsciente é o próprio sujeito do significante, ou o sujeito da ciência, com uma diferença apenas: ele é recuperado dentro de um esquema científico em que tem vez para falar. O inconsciente lacaniano não pode ser pensado como se estivesse no fundo e a linguagem na superfície, entendendo o fenômeno como se houvesse um lado direito e um avesso. Como diz Miller (1999), Lacan, através da Faixa do matemático Moebius, faz uma correlação, traduzindo o direito e o avesso numa idéia de continuidade. Assim, é possível visualizar o sujeito e o objeto numa relação bipolar, mas não distante. De acordo com essa topologia do discurso da ciência, Lacan procurou estruturar a experiência analítica, razão por que psicanálise, mesmo permeada por fenômenos paradoxais para o senso comum, não pode ser excluída do campo científico. O sujeito da psicanálise, o inconsciente, é aquele que advém sem estar preparado para um determinado fim, não planeja uma linguagem bonita, tampouco com intenções sedutoras; ele não purifica sua linguagem; pelo contrário, seu material está em completa desordem. O critério científico das ciências experimentais traz para si, via de regra, o componente objetivo. A psicanálise vai além, pois o conceito de objeto, em princípio, faz parte do discurso matemático. Porém, o conceito de cientificidade é muito mais complexo do que, pura e simplesmente, a idéia de objeto observado. Nesse tocante, o Hamlet shakespeariano diz a Horácio, personagem da mesma trama: ‘há mais coisas na ciência que o que crês, Horácio.’ A psicanálise lacaniana é crítica e epistemológica, a qual vai de encontro aos discursos obscurantistas do embuste psicoterapêutico. Um exemplo disso é a questão da linguagem verificada pela psicologia, em seus redutos laboratoriais. Por mais que haja semelhança entre homens e animais, é impossível fazer experimentos, envolvendo a linguagem, com estes sendo aplicados àqueles. A linguagem é o que diferencia os homens dos animais; pela linguagem, pode-se, por exemplo, prever a morte. É como diz Miller (1999, p. 33): “Isso traça, de qualquer modo, os limites da psicologia e, por inteligente que seja, o rato de Skinner não tem 70 expressões para nomear a desordem”. Considera-se o sujeito falante não como aquele que sabe o que diz, mas aquele que é utilizado pela própria língua; trata-se daquele que sempre diz mais do que quer e, ao mesmo tempo, diz sempre outra coisa. Por essa mesma razão, não se pode conceber a linguagem como aquela quantificada, cujos resultados são obtidos na tradição behaviorista. Quanto se trata de linguagem real, humana, não se deve ficar atrelado, por exemplo, à linguagem computacional ou animal; ela é inequívoca, mas a humana tem como traço fundamental o equívoco. Assim sendo, a língua real transcende a concepção positivista de que há palavras demais para se dizer tudo certinho e arrumado de maneira conveniente. “Há sempre palavras demais na língua, e ao mesmo tempo, singularmente, elas nunca são suficientes para dizer o que se quer dizer” (MILLER, 1999, p.32). Chomsky, por exemplo, fala de um par locutor-ouvinte ideal, que é pura ficção, pois não se pode falar em homogeneidade dentro de uma comunidade lingüística. Diferentemente dessa ótica positivista, o sujeito de que se cuida aqui é aquele que vacila com a linguagem. Desse modo, sob um olhar da psicanálise, a linguagem não é utilizada pelo homem, tampouco modificada por ele; ela, sim, transforma-o, afetando diretamente seu corpo em sua profundidade, seus desejos, suas necessidades, suas atitudes. Lacan tentou, a todo custo, atribuir à psicanálise um estatuto de ciência, até porque o sujeito de que cuida a primeira é o mesmo sujeito de que se incumbe a segunda. Para tal intento, chegou até a matematizar proposições para a sustentação de tal saber, como se assim ela pudesse ser mais visivelmente considerada como um saber/fazer de cunho científico. Quando se fala em ciência, remete-se instantaneamente a um ‘conjunto de conhecimentos’ passível de ser aplicado, além da remissão necessária a um conjunto de procedimentos de verificação e refutação, métodos de construção de modelos, processos de formulação de conceitos, dentre outros. Nessa concepção de ciência, a psicanálise, como campo de um saber constituído, não tem condição de ser incluída, visto que traz consigo uma de suas bases sólidas: a inclusão de um sujeito do inconsciente. Entretanto, esse inconsciente é apenas parte do todo subjetivo para a psicanálise. Assim, o sujeito em sua estrutura constituída pelo eu, pelo outro e, também, pelo sujeito do inconsciente é o mesmo sujeito de que trata a ciência, por mais que se negue. Segundo Lacan, a ciência exclui o sujeito de suas considerações, tenta desprezá-lo, mas não o consegue completamente (FINK,1998). Uma coisa não deveria excluir a outra, pois mesmo que a psicanálise contemple o inconsciente, não se deixa de falar em sujeito. Pelo contrário, o Outro, nessa acepção mais psicanalítica do termo, como sujeito, é o que existe de mais interno, mais guardado, mais profundo no sujeito; é aquilo de que não se tem consciência, mas que está lá presente e atuante no sujeito falante. Parece que o papel da ciência é trabalhar com conceitos “puros”, axiomatizar o que é extrínseco ao humano, mas será que isso é sempre possível? O extrínseco facilmente se matematiza quando se trata de uma ciência exata ou uma ciência que se aproxime dessa exatidão. Entretanto, quando se defende que a ciência seja um discurso e que, enquanto tal, busque suas formas de convencimento em relação ao que diz, a questão da exatidão parece desaparecer do centro da preocupação. No caso da psicanálise, procura-se trabalhar com uma forma de racionalidade, para o sujeito, própria do seu dizer. É como argumenta Fink (1998, p.171): “Cada discurso, ao buscar seus próprios fins e suas próprias molas mestras, tenta fazer com que sua forma de racionalidade prevaleça”. Pode-se pensar, por exemplo, como se tentará discutir, que o fenômeno da enunciação, no que concerne à atuação de outros sujeitos, seja mais complexo se se levar em conta os pressupostos da psicanálise lacaniana, no que diz respeito à constituição do sujeito, isto é, o outro (interlocutor) e o Outro (inconsciente) são atuantes na enunciação do sujeito falante. A psicanálise contribui, portanto, no sentido de trazer a concepção de um sujeito que se compõe por um eu, o qual é permanentemente constituído por um outro (interlocutor) e por um Outro (inconsciente). Com base nisso tudo, o princípio que norteia essa pesquisa articula as idéias de sujeito, intersubjetividade, dialogismo, inconsciente, interação, procurando fazer com que a concepção de alteridade seja entendida numa dimensão maior, mais complexa. Para isso, procura-se pensar essas noções à luz da concepção lacaniana de sujeito. O grande objetivo da investigação é estabelecer pontos de convergência entre a lingüística e a psicanálise, concretizados a partir do enfoque dado aos sujeitos envolvidos na interação verbal (eu e outro, mas que ora também é visto como um tu) e, principalmente, da emergência do inconsciente nesse circuito dialógico, através da noção lacaniana do Outro, o qual deverá modificar a compreensão dessa relação entre o eu e a alteridade. Para o desenvolvimento desta pesquisa, outros objetivos mais específicos empenham-se em: a) mostrar a atuação do Outro no eu, de forma constitutiva, de acordo com a psicanálise lacaniana; b) investigar as zonas limítrofes do dialogismo, uma vez que a interação verbal parece apenas contemplar o eu consciente e o tu como parceiros dessa relação dialógica; e c) buscar uma melhor compreensão da relação entre o eu, o outro e o Outro, via processo dialógico, uma vez que esse eu é constituído a partir, sobretudo, do Outro, materializando-se na cena enunciativa. Os procedimentos metodológicos da pesquisa estiveram correlacionados ao fenômeno e sua condição de existência no interior das teorias que embasam o estudo. Nesse processo, reconhece-se que a construção do saber, tomando por base os fundamentos constitutivos inerentes às ciências humanas, agrega elementos de sentidos tanto objetivos quanto subjetivos. Esse caráter alimenta, por sua vez, as especificidades do fazer científico, através do qual é superado o ranço positivista que põe sujeito e objeto em pólos extremamente antagônicos. Nas ciências humanas, no quadro lógico do método, lembrando as considerações de Richardson (1999), inserem-se componentes de significados que se fazem perceptíveis através do rompimento com a tradição quantitativa das ciências exatas e da natureza. Nesse sentido, componentes de significados elaboram referências de verdades imediatas que tornam possível a problematização, a pesquisa, a percepção, a reflexão, a afirmação ou mesmo a refutação sobre o fenômeno de estudo. Este estudo exclui de seus interesses os aspectos inerentes à abordagem quantitativa, além da compreensão que dualiza sujeito e objeto, colocando-os, assim, em pólos extremos. Entende-se que o olhar sobre o fenômeno em pauta só adquire componentes significativos se se considerar o estudo como sendo uma abordagem qualitativa. Nesse sentido, estudar o inconsciente que é estruturado como uma linguagem minimiza concepções tradicionais acerca do que é linguagem e acentua uma epistemologia alicerçada na relação interpretativa e lógica para a construção do conhecimento sobre um sujeito não-pleno, o que o separa muito do sujeito cartesiano. Dessa maneira, o quadro de postulados metodológicos define um plano de pesquisa através do qual são eleitas categorias analíticas, partindo de categorias centrais, advindas das teorias de Benveniste, Lacan e Bakhtin. Este estudo desdobra seus matizes enquanto pesquisa classificada como teórica de cunho exploratório, entendendo esse tipo de pesquisa como uma forma metodológica e qualitativa de associar e aprofundar pontos categóricos, podendo suscitar concepções que não se diriam inovadoras, mas esclarecedoras, entre pontos teóricos, para o que se recorreu a outros autores, como é o caso de Flores (1999), de Authier-Revuz (2004) e de Teixeira (2000), dentre outros. Com o intuito de melhor guiar a atenção do leitor, logo agora se mostrará como será construída esta dissertação: a introdução, cuja leitura está já se ultimando, é ponto de partida; tem o fim de situar a leitura, isto é, oferece ao leitor uma idéia de onde partem as reflexões feitas ao longo de todos os capítulos, especificando/delimitando dizeres no tocante, principalmente, à questão do sujeito frente aos saberes científicos constituídos pela lingüística e pela psicanálise. Em seguida, vem o segundo capítulo. Ele serve de porta de entrada para a lógica dedutiva do texto, visto que se percorrem estas categorias eleitas para servirem de pilares, a saber: subjetividade e intersubjetividade como constituintes da linguagem, alteridade, sujeito dialógico, noção de Outro enquanto sujeito. Como a finalidade é desenvolver uma discussão acerca do sujeito dentro da linguagem, pelo viés da psicanálise, procuram-se contemplar as contribuições benvenistianas, bakhtinianas e lacanianas. De Benveniste, tenta-se trazer a noção de subjetividade e intersubjetividade; de Bakhtin, ampliar a idéia de alteridade através do dialogismo; e de Lacan, embora que parafraseado, ainda discutir a subjetividade, intersubjetividade e interação, porém imprimindo a idéia do Outro que permeia a cena dialógica. O terceiro capítulo tratará da questão do sujeito e, mais especificamente, da interação, tentando melhor discutir as pertinências (pontos de encontro) entre a teoria lacaniana do sujeito do inconsciente e os outros componentes que formam o arcabouço subjetivo, isto é, o eu, o outro e o Outro, sempre que necessário, remetendo ao dialogismo bakhtiniano. O último capítulo tem o caráter de um palco, onde são performados os conceitos e categorias vistas no segundo capítulo e no terceiro. Nas últimas considerações, ao mesmo tempo em que se discutem, ainda, algumas noções teóricas, tenta-se chegar a conclusões parciais, e não finais, pois se vê que não é possível esgotar toda a matéria, mas a partir daí alçar vôos mais altos. 2 Sobre a inter(subjetividade) na linguagem O enlace da subjetividade (S/A, S/D) Falar ao outro não implica, de modo algum, saber o que se diz. Somente o Outro é quem pode ensiná-lo a nós, e por isso falamos uns aos outros. Jacques-Alain Miller Somente depois do corte saussureano, a questão do sujeito passou a ser interesse dos estudos sobre a linguagem. Entretanto, alguns estudiosos já haviam se dedicado a tal assunto, como por exemplo: Humboldt e Bréal. Embora na sua época a língua fosse pensada como produto, Humboldt a concebe como atividade mental, através da qual o homem expressa seu pensamento. Essa é a razão de ele pensar na existência do sujeito da atividade de linguagem. Pouco tempo depois, vem Bréal, segundo o qual a fala não objetiva apenas descrever, narrar ou agir desinteressadamente, mas expressar desejos, dar ordens ou ostentar o poder exercido sobre as pessoas e coisas existentes. Assim sendo, não é possível excluir o elemento subjetivo do centro da questão sobre a língua. Pelo contrário, este deve desfilar como parte essencial (RIBEIRO, 2003). Fruto do corte saussuriano e de um longo e produtivo período no qual os estudos sobre linguagem estavam imersos na estrutura, mas, ao mesmo tempo, distanciando-se das amarras dessa estrutura, surge o trio que reintroduz a discussão sobre subjetividade na linguagem: Bühler, Bally, Benveniste. Aquele se opôs ao pensamento de que a língua, enquanto sistema de signos, serve apenas para o intercâmbio de idéias. Para ele, além do aspecto intelectual da linguagem, há também o não-intelectual. Partindo daí, ele trouxe duas outras funções para complementar as funções representativas da linguagem: a expressiva e a apelativa. O segundo diz que todo o enunciado está prenhe de elementos expressivos, atribuindo tal fato aos afetos. Segundo esse mesmo estudioso, o enunciado jamais é um ato que cuida de veicular a comunicação de uma idéia exclusivamente. Já Benveniste empreende a entrada definitiva da subjetividade e intersubjetividade como formas de conceber da língua. Jakobson, com o trabalho sobre shifters, Benveniste, falando sobre a categoria de pessoa e Austin, com os performativos, inserem-se em um quadro que inicia as teorias enunciativas, visto que cada um desses trabalhos não exclui o elemento ‘subjetividade’ de suas preocupações; muito pelo contrário, para eles não se pode dissociar o sujeito da língua. Não se pode esquecer Kerbrat-Orecchioni, visto que ela também defende o elemento subjetivo na linguagem. Ela tenta ampliar o aparelho formal da enunciação de Benveniste através de outras categorias da língua, como: substantivos, adjetivos, verbos e advérbios. Além disso, ela discorda da perspectiva monológica que se desenvolve sobre o sujeito, trazendo para o centro da discussão a interação, consoante o que preleciona Bakhtin. Segundo esse autor, a linguagem é dialógica porque é essencialmente de natureza social. Bakhtin diz que para tratar do fenômeno lingüístico não se pode ficar preso aos componentes físico, fisiológico e psicológico (BAKHTIN,1997). Deve-se, sim, considerar a porção social, isto é, é necessário observar a linguagem dentro das relações sociais, situando os interlocutores em seu meio. Este capítulo, portanto, dedica-se à subjetividade na linguagem, a partir do ponto de vista do dialogismo e, por conseguinte, da intersubjetividade. Dessa forma, nada mais cabível do que trazer categorias teóricas para o centro das discussões, como: dialogismo, intersubjetividade, enunciação, interação. Assim, na primeira subdivisão, a questão subjetiva como constitutiva da linguagem será explorada, sobretudo apoiada em Benveniste. No segundo momento, chega a vez de contemplar o intersubjetivo, querendo mostrar qual é o papel do outro na constituição da fala do sujeito. No terceiro momento, fala-se de uma espécie de alteridade mais pautada no dialogismo bakhtiniano. Por fim, introduzem-se estudos que discutem a relação entre lingüística e psicanálise na análise da questão da subjetividade. Discutir-se-á uma um tipo de lingüística em que o elemento subjetivo ‘rouba a cena’, colocando-se em sua parte central, uma vez que ele será o foco da discussão do fenômeno lingüístico aqui abordado. Assim, ao longo do trabalho, quando se falar em lingüística, tenha-se em mente a veia teórica que envolve, pelo menos, ‘um falante para um ouvinte’, sem os quais não é possível conceber a idéia de alteridade e interação dentro da linguagem. Neste capítulo, portanto, optou-se por trabalhar com concepções teóricas que, embora estejam separadas pela linha divisória do tempo e de vanguardas, parecem, até para o olhar de um leitor desavisado, compartilhar, em certos aspectos, a noção de sujeito enquanto vivificador da linguagem, ou seja, a língua só terá razão de ser se for operada, instrumentada, usada, posta em uso (como se queira!) pelo sujeito, que ao falar, não prescinde do outro para que a enunciação aconteça (essa enunciação pode ser considerada como o ato de pôr em funcionamento a língua por um falante que a utiliza); seja um sujeito que tem um lugar na metaenunciação (FLORES, 1999), segundo a qual a semântica que estuda a questão da subjetividade é um amálgama da articulação entre a lingüística e a psicanálise, razão por que implica uma redefinição do sujeito lingüístico marcado pelo inconsciente numa dimensão constitutiva: seja um sujeito histórico que é considerado essencialmente dialógico, seja o sujeito não pleno, mas marcado pela heterogeneidade, o qual pertence à ótica psicanalítica. 2.1 Sujeito e linguagem Poder-se-ia referir-se à linguagem como sendo a responsável pela constituição do sujeito. A linguagem faz parte do próprio homem, em outras palavras, diz-se que a constituição do homem como sujeito só é possível na/pela linguagem. Esta investigação parte, pois, de um conceito de linguagem que ultrapassa a noção de instrumento. A linguagem está para o sujeito, assim como o sujeito está para a linguagem como condição sine qua non de existência. Para Benveniste (1988), a linguagem é mais que a simples feição instrumental que muitos defendem. Ela é inata ao homem e indissociável dele. Na verdade, ele não a cria; ela é imanente à sua própria essência. Assim, é ratificado tal pensamento na seguinte passagem: “Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca, inventando-a” (BENVENISTE, idem, p. 285). Além de a linguagem não ter simplesmente esse caráter instrumental, ela pode (e deve) ainda ser concebida, substancialmente, dentro de uma interação. Nessa perspectiva, diz o já citado autor: “É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem” (BENVENISTE, idem, p.286). Portanto, é mister considerar que esse eu que fala por meio da linguagem traz em si a necessidade de um tu para que se torne eu de fato, ou seja, é na interlocução que o eu se constitui como tal, pois vê no seu alocutário um complemento de si, ora o eu sendo eu, ora mudando de pólo, virando um tu e cedendo, conseqüentemente, o lugar de eu para o tu. Assim, entra em cena o papel de tu para o eu, isto é, o que fala (eu) precisa de um tu para que se torne real. Sem um alocutário, o eu nada mais é do que uma expectativa de vir a ser; é virtual. Entretanto, toda essa necessidade do tu por parte do eu, segundo Benveniste, acontece no plano da consciência. A consciência apresenta um papel fundamental para a subjetividade, visto que esse eu que fala é um sujeito controlado, consciente da sua participação na interação com o outro. Nesse jogo interativo, percebe-se a relação de pertença entre o eu e seu interlocutor, ou seja, “eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior a ‘mim’, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu” (BENVENISTE, 1988, p. 286). Ou, ainda, “essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez designa por eu” (ibdem, idem). É em função dessa relação de imanência e oposição entre o eu e o tu que se descobre o fundamento lingüístico da subjetividade. Não é concebível que haja uma língua que seja por si só suficiente e “veiculável”; a expressão da pessoa no reduto lingüístico é indispensável. A subjetividade, portanto, fundamenta-se na língua em atividade, em exercício. E é através desse ato de mobilizar a língua que o locutor se apropria dela por entre o tecido das instâncias do discurso, instaurando-se com o eu. De fato, o eu refere-se ao ato discursivo do indivíduo, quando este lança mão da enunciação, deixando assim claro quem é o locutor. Daí a se dizer que é na enunciação que o locutor, como sujeito, vem à baila. Mas o conceito de enunciação não pode ser pensado apenas a partir de um indivíduo, pois ele é ‘compelido’ por um outro a enunciar, motivo por que não é errôneo dizer que a enunciação não repousa sobre um único enunciador; o efeito que a interação causa é o ponto de partida de mais preponderância para se conceber o fenômeno enunciativo. Desse modo, “a instância de discurso é assim constitutiva de todas as coordenadas que definem o sujeito e das quais apenas designamos sumariamente as mais aparentes” (BENVENISTE, 1988, p. 289). 2.2 Enunciação e alteridade: o caráter intersubjetivo da linguagem Podemos dizer, então, que o outro, numa interação dialógica, é claramente determinante, uma vez que esse outro encerra na relação com o eu o plano da alteridade. O outro é, portanto, o componente indispensável para a manutenção do esquema dialógico. Esses participantes do jogo dialógico estão inseridos num ‘consenso pragmático’ segundo o qual cada locutor vem a ser um co-locutor. Esse consenso pragmático nada mais é do que um acordo tácito e, ao mesmo tempo, inato entre falantes de uma língua, o qual permite a troca constante de papéis ‘falante versus ouvinte’, isto é, um falante é ouvinte, e um ouvinte, um falante, bastando para isso o câmbio de pólos, por meio dos quais os elementos subjetivos assumirão, mesmo que de forma co-participativa, um status de enunciador (BENVENISTE, 1989). No dizer de Benveniste (1989), o outro também pode ser visto como parceiro, haja vista a implicação deste diretamente na relação discursiva. Diferentemente da idéia de “outro” polifônico ducrotiano, segundo a qual a alteridade marca o discurso do enunciador em função das muitas vozes nele presentes, Benveniste vê esse alocutário não como um sujeito sobre o qual o enunciador tenta lançar seu próprio convencimento, mas como um ente considerado útil para que o indivíduo que se apropria da língua se torne refletido no seu parceiro. Em outra citação, Benveniste (idem, p.84) deixa este ponto mais claro: “[...] desde que ele se declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro”. Na cena enunciativa, o parceiro enunciador é tido como origem; ao passo que o parceiro enunciatário é considerado o fim. Nessa mesma direção, caminha Benveniste (1989, p.87): como forma de discurso, a enunciação coloca duas ‘figuras’ igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da enunciação. Este quadro é dado necessariamente com a definição da enunciação. A fusão dessas duas esferas – origem e fim – sugere a alternância de um protagonismo na enunciação, polarizando, finalmente, a intrínseca relação eu/tu. De acordo com Benveniste (1989), pode-se dizer que mesmo no monólogo há enunciação, pois o eu se biparte em eu locutor e eu ouvinte. O monólogo é, então, “um diálogo interiorizado, formulado em ‘linguagem interior’, entre um eu locutor e um eu ouvinte” (BENVENISTE, 1989, p.87). Assim, o monólogo deve ser considerado como uma variação do diálogo, na qual tanto o eu locutor pode ser o único a falar quanto o eu ouvinte pode intervir, tornando-se um locutor. E mais uma vez pode se falar em consenso pragmático. Essas posições psicodramáticas podem acontecer de duas maneiras: somente o eu locutor fala ou, também, o eu ouvinte intervém com objeções, questões, dúvidas etc, deixando no uso da língua as marcas de sua interferência. Como a língua só existe em decorrência do uso que o sujeito faz dela, pode-se dizer que a interação pode ser compreendida como um ‘entrosamento’ de um eu com um outro, que é essencialmente a condição para que esse eu tenha seu lugar como falante real, saindo, portanto, da virtualidade. Além dessa visão benvenistiana, a alteridade é discutida sob uma ótica que inclui um outro como interagente necessário, seja esse sujeito o que interage diretamente com o eu ou aquele que, mesmo não estando presente fisicamente, é atualizado na fala do que fala, sujeito falante. Assim, desde já, pode-se dizer que esta pesquisa considera a subjetividade a partir desse sujeito que está ‘fora’ do eu, sendo, entretanto, esse sujeito ‘fora’ que constitui o eu em todas as suas dimensões. A idéia de eu e tu (outro) separados facilita a compreensão dos dois termos isoladamente. No entanto, vale salientar que se se falar em um tu (outro) que constitui o eu, pode-se dizer que o tu, sujeito que vive exterior ao eu, vem fazer parte dele, ou o eu vai fazer parte desse outro, como se queira. Inicialmente, diz-se que a fala do outro está na fala do eu. E aí surge a grande pergunta: qual a contribuição da noção de alteridade para o que se propõe nesta pesquisa? Vislumbra-se entender a questão da interação entre o(s) sujeito(s) que perfaze(m) o circuito do ato comunicacional, partindo da compreensão, em ordem cronológica, que contempla o outro constituindo o eu, assunto que está sendo tratado neste capítulo, e, no capítulo seguinte, o Outro que fala no lugar do eu (o inconsciente), considerando, é claro, o outro minúsculo, pois, como se verá a cada tempo, o outro tem sua função para que as etapas especulares aconteçam e, por conseguinte, a idéia de sujeito falante seja ‘completa’ na incompletude, posto que o Outro fala indiretamente ao eu; fala ao eu por meio do outro. O foco até agora é na alteridade que constitui o eu. Nesse sentido, o dialogismo pode contribuir bastante, mostrando como é possível que o outro sóciohistórico constitua o a voz do falante. Assim, dialogismo pode ser considerado como o princípio constitutivo da linguagem, isto é, a palavra do sujeito é sempre formada a partir de uma relação com o outro (numa acepção pluralizada). Assim, esse princípio norteador do pensamento bakhtiniano se reveste como uma condição do sentido para o discurso. Essa relação dialógica é que aponta para o sujeito constituído tal como é. O sujeito e tudo que diz respeito a ele (e a língua se inclui nesse rol) só têm razão de ser em decorrência da alteridade. Bakhtin propõe um discurso dialógico, em que figuram como centro o eu e o outro. Não é à toa que o referido autor se pronuncia de forma tão veemente no tocante à interação dialógica: “tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência” (BAKHTIN, 1981, p.223). Na visão bakhtiniana, o dialogismo é visto como princípio constitutivo da linguagem, não uma linguagem ao nível de frase, mas num âmbito discursivo, quer dizer, o foco é na concepção de língua que ultrapasse os limites da morfologia e sintaxe. A concepção de língua aqui adotada leva em conta o sujeito que a mobiliza, que a torna viva, historicizada, social, língua em que o outro é inscrito não linearmente pelo locutor. É como se o locutor desse lugar ao outro nas malhas do seu próprio discurso. A palavra do sujeito é sempre formada a partir da sua relação com o(s) outro(s) – seu(s) interlocutor(es). Vale ressaltar, embora de forma superficial, que, além de lingüistas e de outros teóricos da linguagem, filósofos com pés bem fincados em estudos sobre a linguagem, mais especificamente no aspecto da intersubjetividade, também deram suas contribuições. Auroux (1998) diz que Husserl defende uma subjetividade transcendental que vá além da figura do eu. Para que haja subjetividade, é preciso que esse eu seja também um nós, isto é, a subjetividade é intersubjetividade na medida em que a presença do outro é solicitada para a compreensão do mundo. Segundo Marques (2000), Heidegger reivindica que o sujeito não é isolado; ele sempre está com outro. Isso reforça que as ponderações bakhtinianas merecem louvor, dentre outros motivos, porque estão inscritas não apenas nos campos da lingüística ou da teoria da literatura, mas porque suas preocupações eram compartilhadas inclusive com áreas vizinhas, como é o caso da filosofia da linguagem. Pode-se conceituar alteridade como a possibilidade de enxergar o outro como elemento necessário para a constituição do sujeito falante; a interação pode ser entendida como todas as formas de relação entre participantes (no caso, o eu e o outro), na qual haja proximidade. Por falar em proximidade, pode-se entender melhor que, mesmo o outro constituindo o eu, não é possível tê-los como unidade desde sempre. Em um primeiro momento, são duas entidades lingüísticas diferentes, isto é, são dois que se tornam um, já que o outro passa a constituir a fala do sujeito quando a língua é posta em uso. 2.3 Linguagem e dialogismo A concepção segundo a qual a língua é vista como sendo monológica (objetivismo abstrato) não era preocupação de Bakhtin. Ele foi um teórico da linguagem que foi além dos que pregavam em seu tempo. Fala-se em “linguagem” porque era preocupação de Bakhtin trabalhar questões ligadas à literatura, lingüística e à filosofia da linguagem. Entretanto, ao falar de linguagem, deve-se remeter à idéia de língua, já que, aqui, se investiga o fenômeno da subjetividade estritamente no campo lingüístico. Ele compreende que a língua não era apenas um sistema. Isso não quer dizer que quisesse apagar o que outros grandes lingüistas fizeram, como é o caso de Saussure. Mikhail Bakhtin pôde avançar em seu arcabouço teórico, haja vista a combinação de tudo isso: a inclusão da subjetividade e o fato de que levou em conta os aspectos cultural e sócio-histórico no trato com a linguagem, de forma a compreender o fenômeno lingüístico como evento dialógico por excelência. O dialogismo é um princípio constitutivo da linguagem e condição do sentido para o discurso. A relação dialógica é necessária para que o sujeito se constitua como tal. É como se esse ‘ser’ exterior proporcionasse a existência ao eu, isso considerando o caráter lingüístico. Nessa direção, Bakhtin (2003, p.199) defende que “certo conjunto de idéias, pensamentos e palavras se realiza em várias vozes desconexas, ecoando em cada uma delas”. Essas vozes refletem o caráter dialógico até agora difundido, visto que, mesmo sem haver uma simetria, os sujeitos que interagem se implantam dentro dessa relação, ‘dizendo e sendo ditos’, por meio desses ecos que se propagam, atingindo essa relação de comunhão e fazendo com que o sujeito e seu(s) interlocutor(es) pertençam, de alguma maneira, uns aos outros. O dialogismo é a condição para que sentidos sejam constituídos. As contradições se cruzam no interior das palavras que formam o discurso. Assim, de maneira sucessiva e contínua, os discursos são vistos em outros discursos ecoando. Seguindo essa mesma orientação, o outro, além de estar fisicamente em contato com o eu, implanta-se no discurso do que enuncia, o que é, para Mikhail Bakhtin, o cerne da questão dialógica. De acordo com a visão bakhtiniana, é possível perceber o ressôo de várias vozes permeando a língua em uso. O outro é apreendido pelo eu enquanto discurso. Interagindo com o outro, o enunciador integra o discurso outro no momento em que produz seu próprio discurso. Trata-se de uma relação de doação, troca, empréstimo de discursos. O sujeito é tido como ambivalente do ponto de vista da linguagem. Através dela, ele enuncia e é enunciado; a alteridade só é enxergada a partir da interação e somente por ela passa a existir, fato que é abarcado de forma determinante pela questão do dialogismo. O sujeito não pode ser concebido como homogêneo; ele é e está no outro, assim como o outro está no eu, constituindo-o. Bakhtin estabelece um elo entre a linguagem e seu caráter social, permitindo a visão de uma produção essencialmente sócio-histórica, razão pela qual se atribui ao evento lingüístico um cunho ideológico. Na visão bakhtiniana, falar em dialogismo é falar nas relações que o discurso mantém com a enunciação, com o contexto sócio-histórico e com o outro. Há também o que Bakhtin chama de diálogo entre discursos, o qual pode aparecer em um determinado texto através da intertextualidade. Então, os sujeitos que falam não falam sozinhos; eles falam porque existe a interdiscursividade, ou seja, o discurso de outrem presente nos discursos que vão sendo produzidos. No capítulo dedicado à obra de Dostoiévski, a relação dialógica pode ser bem ilustrada, embora possa haver, em um primeiro olhar, a impressão de se tratar de um texto essencialmente monológico. Dessa forma, Bakhtin (2003, p.199) defende que: “as concepções ideológicas também são interiormente dialogadas e no diálogo externo sempre se combinam com as réplicas internas do outro, mesmo onde assumam forma acabada, externamente monológica”. Diante da defesa contra a neutralidade da língua, imprimem-se nela, por conseguinte, as marcas da ideologia, caracterizando-a como discursiva. Assim sendo, falando em dialogismo, interação verbal entre um eu e um outro, língua numa acepção discursiva, não se pode deixar de considerar a enunciação, a qual, para Bakhtin, significa o resultado da interação entre falantes. Não se deve, por outro lado, deixar de considerar o conceito de Benveniste sobre enunciação, que se define como o momento em que a língua está sendo posta em movimento. Assim, no dizer de Benveniste (1989), a enunciação é o momento em que a língua está sendo colocada em funcionamento; é o ato de produzir um enunciado; é a mobilização da língua impulsionada pelo sujeito falante. O processo de semantização da língua, de acordo com Benveniste (idem), é corolário da conversão individual da língua em discurso. É essa semantização que conduz à análise da significação, permitindo a manifestação dos atores sociais, realizada através da enunciação. Assim sendo, o falante é tido como parâmetro quando ele produz a enunciação. Essa é uma condição necessária para a realização do enunciado como evento singular, pois antes de haver enunciação, a língua se reduz apenas a uma possibilidade de existir. A língua só se torna efetivamente concreta em uma instância do discurso, depois de realizada a enunciação. Como corrobora Benveniste (1989, p.84), o ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância do discurso constitua um centro de referência interno. Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com a sua enunciação. Vale ressaltar, dessa forma, que a enunciação é a realização individual da língua, isto é, o sujeito se apropria dela e a emprega para produzir sentidos; dizer o mundo. Embora seja individual, já que é o eu que fala (e esse eu é um indivíduo), deve-se ter em mente que o eu é constituído pelo outro. Nos pólos da estrutura dialógica estão o eu e o tu. Essa relação de implicação mútua reflete uma oposição necessária que fundamenta a subjetividade lingüística. Não é concebível a idéia de uma língua que seja por si só suficiente e ‘veiculável’ sem a expressão concomitante de pessoas. Esses sujeitos, verdadeiros operários da língua, devem estar em meio ao reduto lingüístico, de modo a, efetivamente, preservá-lo vivo, ou seja, a língua existe em função do sujeito. O eu, na postura de um pronome pessoal, por exemplo, não encerra em si entidade lexical que já esteja pronta no universo biopsicossocial. De fato, o outro permeia o ato discursivo do indivíduo falante quando este lança mão da enunciação, deixando assim claro quem são os sujeitos interagentes – falante/ouvinte. Daí a se dizer que a intersubjetividade se fundamenta na língua em atividade, em exercício. É através dessa língua em exercício que o sujeito se apropria dela, instaurando-se como eu. E, ao instaurar-se como eu, inclui-se também o outro, seu duplo, sem o qual o eu não existiria, pelo menos nessa concepção dialógica. A consideração acerca do discurso é, nesse diapasão, indispensável para que a língua seja considerada, uma vez que existem as relações intersubjetivas. A intersubjetividade está caracterizada pelo fato de haver um entrelaçamento entre sujeitos, entre um locutor e um ouvinte. Consoante Bakhtin (1997, p.113), essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Quando se fala em enunciação, é, portanto, imprescindível pensar em um contexto onde haja a interação de sujeitos, uma vez que o caráter dialógico permeia o ato de enunciar. Assim sendo, fica evidente a estreita relação entre enunciação e interação dialógica. Para tanto, se faz mister considerar as seguintes ponderações sobre dialogismo. Nos comentários sobre a obra de Dostoiévski, fica clara a posição de Bakhtin no que diz respeito à razão de ser do dialogismo: não há uma síntese do que é dito, isto é, não se junta o que foi dito na tese e na antítese; há, sim, a sucumbência de uma voz em relação à outra ou uma combinação dessas vozes, a qual, na maioria das vezes, é assimétrica. Não importa a vitória dessa ou daquela voz; o grande acontecimento é a interação de vozes (BAKHTIN, 2003). Uma outra questão que se poderia trazer agora seria o fato de que, assim como o sujeito da psicanálise lacaniana, claro que com estrutura diferente, o sujeito em Bakhtin parece que sabe tudo, é pleno, uno. Entretanto, o que esse eu fala não pertence a si, mas ao outro. Nada é seu, tudo é do outro, numa relação que se encadeia e que vem desde o Adão mítico cuja fala é original. Do ponto de vista da mitologia cristã, Adão foi o único ser em cuja fala não se permite aplicar os conceitos de intertextualidade e interdiscursividade, pois foi o primogênito em relação ao resto da humanidade. A partir dele, à medida que ia havendo outros semelhantes, passou- se a contemplar a figura da alteridade, a qual vai interferindo na fala dos sujeitos, posto que existem outros diante do falante, ao seu derredor. Corroborando com essa reflexão, Bakhtin (2002, p.88) diz que a orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar. Complementando o raciocínio sobre a relevância da interação para Bakhtin, pode-se dizer que todos os atributos a ela empregados se devem ao contexto axiológico cultural, ou seja, o valor genealógico como categoria para a consolidação da alteridade. Embora o indivíduo tenha a sua própria vida, iniciando sua existência com o nascimento, ele não pode pensar que é o iniciador axiológico responsável por ela. Ao nascer, a vida se inicia, entretanto, os atos, os juízos, os posicionamentos perante a própria vida já existem; só resta ao ser dar-lhes continuidade (BAKHTIN, 2003). Na verdade, existe uma relação de filiação à hombridade como um todo, aos pais, à família, aos que vivem no convívio direta ou indiretamente. Não se pode falar que alguém pertence a si mesmo, mas ao outro. Pertence ao outro quando pensa, quando não quer pensar, quando se comporta de uma determinada maneira mediante fatos do cotidiano, quando, enfim, fala com o outro. Assim, não se pode conceber um ator social que não seja em toda a sua essência dialógico, posto que seu isolamento ou desentranhamento voluntário em relação ao outro (seu semelhante) o descaracterizaria automaticamente, tirando-lhe seu traço maior – sua humanidade. Defende-se que o outro, através da fala do eu, é necessária para que a visão dialógica sobre a língua seja válida. Assim sendo, ao falar em língua na concepção de Bakhtin, deve-se remeter instantaneamente à linha matriz do dialogismo, isto é, devem-se considerar como essenciais as relações intersubjetivas. Falar em alteridade, portanto, é remissão necessária para pensar num outro, um outro que fundamenta a concepção subjetiva sobre a linguagem, quer dizer, o outro é constitutivo do sujeito e da linguagem. Visto isso, ao falar em lingüística após o advento do estruturalismo, não se pode excluir o sujeito de suas considerações, pois a língua não é mais vista enquanto sistema, fechada em si mesma. Na visão em que não mais se pensa a língua como sistema, o dialogismo e a polifonia são alguns dos alicerces para a definição dessa subjetividade para além do eu, o qual vem a ser concebido como discursivo, histórico, ideológico e, sobretudo, interacional. Quando se fala em alteridade, deve-se pensar necessariamente em sujeito heterogêneo, uma vez que a presença constante do outro constitui o sujeito, no caso, o eu que fala. Dessa maneira, o outro se encontra em sua fala. Essa relação de heterogeneidade e alteridade é bastante autorizada por Authier-Revuz (2004). Para ela, definitivamente, a heterogeneidade é a presença constitutiva da alteridade. É possível dizer que a língua traz consigo a porção de subjetividade, sem a qual não se poderia pensá-la além da visão sistêmica. Tal subjetividade, analisada pelo viés bakhtiniano, é por excelência marcada pelo outro da memória, pelo sujeito histórico, por aquele indivíduo que fala porque interage com a palavra (do outro), possibilitando, assim, como a obra do referido autor autoriza, mencionar o princípio da alteridade. Seria esse mesmo princípio o mesmo que heterogeneidade? De certa maneira, sim, pois Bakhtin diz que a linguagem é heterogênea. Ele não menciona claramente, na sua teoria, o termo ‘heterogeneidade’, não como Authier-Revuz (2004) o faz. Bakhtin (1997, p.85) diz que "a linguagem não pode ser, segundo Saussure, o objeto da lingüística. Considerada em si mesma, falta-lhe unidade interna e leis independentes, autônomas. Ela é compósita, heterogênea”. Seguindo o raciocínio de Authier-Revuz (idem), a partir da concepção dialógica da linguagem formulada por Bakhtin, ela compreende o sujeito como sendo um efeito da linguagem. Para ela, a função da psicanálise, além do que já Bakhtin preleciona sobre a questão do heterogêneo, é mostrar que a constituição desse sujeito não ocorre no interior da homogeneidade; pelo contrário, ocorre, sim, na pluralidade da heterogeneidade, seja marcada ou constitutiva. Nesse sentido, essa fala heterogênea decorre de uma espécie de sujeito que é entendido como dividido em consciente e inconsciente. O heterogêneo para Bakhtin refere-se ao eu e ao outro, ao passo que a lingüista francesa aponta para a existência de um terceiro elemento: o Outro (inconsciente), termo que vem da psicanálise lacaniana, sobre o qual se falará mais detalhadamente no próximo capítulo. A alteridade, portanto, não só caracteriza como possibilita a linguagem do sujeito. Ela é entendida mais amplamente, sendo subsidiada por um campo exterior à lingüística. Essa visão acerca do sujeito adentra caminhos outros que enveredam pela reflexão psicanalítica, possibilitando, por conseguinte, a idéia de sujeito heterogêneo. De resto, deve-se dizer que, enquanto a base teórica bakhtiniana considera o eu e o outro; em Authier-Revuz,vê-se a possibilidade de inserção de um outro elemento: o Outro (inconsciente) lacaniano que será discutido com mais profundidade no próximo capítulo. Conceitos, classificações e implicações sobre a alteridade são vários nos diversos campos das ciências humanas, os quais são revestidos, muitas vezes, de matizes que até se avizinham, porém cada um com um direcionamento que aponta para especificidades a que cada área/disciplina/corrente se propõe. Aqui, nesta pesquisa, privilegia(m)-se as concepção(ões) de alteridade que venha(m) a contribuir para aclarar o lugar do sujeito falante como ser dialógico perante a língua, portanto, considerando a lingüística como ciência-mestra. Por outro lado, inclina-se à psicanálise lacaniana também como aporte teórico, visto que se defende a afirmação de que o inconsciente tem uma linguagem que, via de regra, do ponto de vista fonológico e morfossintático, dita a língua expressa/dita/enunciada pelo eu. Assim, entende-se que o sujeito falante é dotado de um inconsciente (Outro maiúsculo) e de outro(s) minúsculos, numa relação dialógica. Tanto o maiúsculo quanto o(s) minúsculo(s) constitui(em) esse sujeito que fala. O sujeito que fala é, pois, constituído por um outro que está fora de si, no seu exterior. Trata-se de um outro que sequer precisa estar presente ‘corporalmente’ para atravessar o dizer do falante. Em relação a esse eu e outro, assenta-se o conceito de alteridade, de heterogeneidade. Alicerçar-se numa base cartesiana é assumir o risco de afirmar que o sujeito pode ser definido enquanto espaço de homogeneidades. Esse sujeito humanista, pleno, uno, universal, sem ser limitado pelo tempo, advogado pelo arcabouço epistemológico racionalista, opõe-se sobremaneira à visão de sujeito que seja marcado pela história, pela ideologia e pelo inconsciente. A concepção histórico-ideológica impulsiona a um entendimento do dual, do um e do outro, concomitantemente. Sem antecipar os pormenores que o próximo capítulo trará, pode-se dizer que a psicanálise, por outro lado, traz consigo um elemento novo a essa arquitetura em torno da alteridade: o sujeito do inconsciente, marcado pela falta. Destarte, desde já, deve-se referenciar, em virtude da crença que o outro constitui o sujeito, o percurso que leve à visualização do elemento subjetivo baseado na clivagem, na descentralização e na contradição. Este trabalho se agarra na idéia de que toda palavra é dialógica e de que a língua não está adstrita a formas, não é um sistema fechado em si; é, sim, o fenômeno social da interação verbal. Nesse contexto interacional, então, o outro tem o seu lugar. Não há espaço para pensar num sujeito individualizado, homogêneo. O exterior e interior estão constantemente se ‘tocando’, se cruzando, proporcionando, em vez de um eu e um outro isolados, um nós (BAKHTIN, 1997). Em se tratando de heterogeneidade, numa acepção mais psicanalítica e, ao mesmo tempo, ratificando o que se acaba de dizer, assegura Brandão (2001, p. 68): “o trabalho analítico articula o discurso com seu avesso, o seu reverso. O discurso não se reduz a um dizer explícito, pois ele é permanentemente atravessado pelo seu avesso que é a pontuação do inconsciente.” Então, o que se pode encontrar de novo no termo “heterogeneidade”, na visão de Authier-Revuz, é a questão de que a subjetividade é vista de forma dividida, tendo sua parte consciente e inconsciente, o eu (falante assumido) e o Outro (falante por meio do eu), respectivamente. Além desses dois, existe ainda o(s) outro(s), com o(s) qual(is) acontece a relação especular, proposto por Lacan, já que essa autora baseia-se, além de Bakhtin, em Lacan, no que toca à estrutura do inconsciente. E aí, percebe-se que a interação se dá neste contexto: os elementos subjetivos percorrem um caminho que, inevitavelmente, implica colocar-se diante do outro, seja esse grande ou pequeno, ou, contrariamente, o eu colocar-se diante do Outro, sem, claro, ter consciência disso. A interação de que se fala aqui é aquela compreendida quando há cada vez menos separação entre o que faz parte da interioridade (o eu, aquele que fala) e o que faz parte da exterioridade (o outro que constitui o eu), isto é, à medida que for havendo menos separação entre o eu e o outro (e Outro, já que o inconsciente tem seu papel na linguagem), vai havendo mais interação. Até agora se defendeu uma concepção dialógica sobre a língua, mas sem maiores pormenores sobre sua origem. Por isso, na próxima parte do capítulo, cujo fim é compreender melhor o que é e de onde vem o dialogismo, far-se-á um percurso que dará continuidade à discussão sobre os elementos interação e alteridade. Para que se chegue, entretanto, à questão do processo dialógico, é imprescindível passear pelas orientações lingüístico-filosóficas criticadas por Bakhtin: objetivismo abstrato e subjetivismo individualista. 2.4 O subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato: uma proposta para o dialogismo? Partindo das orientações criticadas por Bakhtin (1997), subjetivismo individualista e objetivismo abstrato, será possível entender o fenômeno da interação verbal. Entretanto, não se tem, nesse ponto da discussão, a intenção de dizer que a ação com as palavras, através da concepção dialógica, é fruto de um ou de outro pensamento, muito menos, que é resultado desse amálgama. Primeiramente, será feito um quadro geral que possa diferenciar as duas orientações, analisando suas especificidades, para, só depois, tentar compreender a gênese da grande sacada que é a interação entre o um e o outro, cujas palavras dançam freneticamente, entrecruzando-se a ponto de não permitir que se veja a zona de limite que separa o sujeito do seu exterior, quer dizer, tudo aquilo que mesmo estando fora vem integrar o que está dentro, no caso, o outro vindo constituir o eu. O trabalho de Bakhtin (1997), no que diz respeito ao objeto de seu estudo, deixa transparecer a tendência de seu pensamento, isto é, visa ao esclarecimento de pontos fundamentais para construir definições em torno das duas orientações contra as quais se posicionou, para propor o dialogismo. Para se chegar até a rejeição completa da idéia de língua enquanto estrutura (no caso aqui, estrutura fonético-fonológica) e evidenciar seu caráter ideológico, recorrer-se-á à função dos sentidos, priorizando, sobremaneira, a função da audição, já que é através dos ouvidos que se consegue escutar a língua. Então, ver-se-á que o traço fonético-fonológico é de extrema importância para a primeira orientação. Os olhos carecem de força para utilizar sua habilidade maior, pois não ‘vêem’ a língua; as mãos, não sendo diferentes, não conseguem ‘tocá-la’. Quanto aos ouvidos, algo se perfaz de dessemelhante em relação aos primeiros: eles conseguem ‘ouvir’ as palavras, a língua. Daí a habilidade de sedução da fonética em comparação a outros campos. Para limitar um determinado objeto, via de regra, costuma-se voltar para o que é concreto, materialmente observado, o que, também, mostra que tal competência não é atribuição de estudiosos da linguagem, mas de outras áreas, como se passará a apontar. Além disso, ficar limitado a esses contornos implica reduzir o alcance do âmago da linguagem, quer dizer, a verdadeira essência do objeto a ser estudado será escamoteada, que é exatamente a sua natureza ideológica. Assim, acredita-se que os aspectos físicos (som), fisiológicos (processo fisiológico da produção do som) e psicológicos (associação da atividade mental do locutor e ouvinte) por si sós não dão conta de auxiliar na busca de explicações do fato lingüístico. Somente se se recorrer à ‘alma’, como quarto elemento, é que será possível entender, de fato, as nuanças da língua, pois, como diz Bakhtin (1997, p.70): [...] já lançamos mão de três esferas da realidade: física, fisiológica e psicológica, do que resultou, até que de modo satisfatório, um conjunto complexo de numerosos elementos. Mas este complexo é privado de alma, seus elementos estão alinhados ao invés de estarem unidos por um conjunto de regras internas que lhe atribuiria vida e faria dele justamente um fato lingüístico. A primeira tendência, a do subjetivismo individualista tem o seu interesse maior voltado para a fala como criação individual. A fonte alimentadora da língua é formada pelo psiquismo individual, sendo essa, portanto, a obrigação do estudioso da linguagem. Dessa maneira, a língua enquanto criação pode ser comparada à arte e à estética. Para Bakhtin (idem), o fato lingüístico está num continuum, existe uma energia que nutre a capacidade da fala como ato essencialmente individual. Ao dar continuação, diz que a psicologia individual é a ditadora (no sentido de determinar as regras que devem ser seguidas) das leis de criação da língua. Um outro aspecto a ser observado é que se faz uma analogia entre dois tipos de criação: a lingüística e a artística. Por fim, não se pode perder de vista que essa mesma orientação tem total estabilidade, uma vez que elege para si categorias que servem de pilastra, como a gramática, o léxico e a fonética. Assim, a língua estabilizada é considerada como instrumento pelos falantes, isto é, adquire-se um conhecimento que é, depois, posto em uso. Já a segunda orientação (objetivismo abstrato) afirma que a consciência individual está fora de questão; o sistema lingüístico de nada depende desta. Resumidamente, pode-se dizer que um dos grandes erros da segunda orientação é a separação da forma lingüística e seu substrato ideológico. Sem a carga ideológica, não haverá mais signos, mas apenas sinais vazios. Bakhtin (1997, p.103) expõe sucintamente alguns pontos essenciais que caracterizam a segunda orientação: 1. Nas formas lingüísticas, o fator normativo e estável prevalece sobre o caráter mutável; 2. O abstrato prevalece sobre o concreto; 3. O sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica; 4. As formas dos elementos prevalecem sobre as do conjunto; 5. A reificação do elemento lingüístico isolado substitui a dinâmica da fala; 6. Univocidade da palavra mais do que polissemia e plurivalência vivas; 7. Representação da linguagem como um produto acabado, que se transmite de geração a geração; 8. Incapacidade de compreender o processo gerativo interno da língua. Diante da exposição de características que possuem as duas orientações criticadas por Bakhtin, deve-se chegar a uma conclusão no sentido de averiguar como se dá o desenvolvimento da idéia da interação verbal, isto é, qual das duas contribui? Nenhuma? As respostas a essas perguntas são todas negativas. A verdade não reside no meio-termo das duas, nem em uma, nem em outra. O fio condutor da essência mantenedora desse pensar não se consubstancia no ponto de contato entre a tese e a antítese das duas orientações, mas, como diz Bakhtin (idem, p.109), “a verdade encontra-se mais além, mais longe, manifesta uma idêntica recusa tanto da tese quanto da antítese, e constitui uma síntese dialética”. Indo um pouco mais além na questão das duas orientações filosóficolingüísticas criticadas por Bakhtin (idem), pode-se dizer que o subjetivismo individualista está ligado ao Romantismo, vanguarda filosófica que foi uma reação contra o Neoclassicismo. Estes dois últimos movimentos foram os que deram suporte ao objetivismo abstrato. Segundo Bakhtin (1997), a escola romântica foi pioneira a trabalhar a língua materna; eram avessos ao ‘estrangeiro’; tentaram organizar o pensamento lingüístico sobre os pilares da atividade mental que envolvia a língua materna. O subjetivismo tem seu ponto de partida com o fato de que considera a enunciação monológica, uma vez que a ‘coisa’ é analisada a partir de quem fala; trata-se de algo interno; quando a pessoa se exprime. Quando se fala em ‘expressão’, deve-se entendê-la a partir da fala de Bakhtin (idem, p.111): “tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores”. Existem duas facetas na expressão: o que é naturalmente interno, que é o conteúdo, e o que é externo, objetivando-se para fora de si. Entretanto, em vez de fora, pode, também, remeter-se a si mesmo. Em harmonia com o dizer de Bakhtin (idem), a teoria da expressão é marcada pelo binômio interior/exterior, nessa mesma seqüência, pois segundo a mesma teoria, o movimento é este, sempre de dentro para fora. Por outro lado, não há como evitar dizer que, em um certo momento, quando a expressão que era interior passou a estar no exterior, há uma espécie de deformação desse interior, pois foi transformado, de alguma maneira, pelo exterior, quando um ficou em contato com o outro. Em função desse raciocínio, a teoria da expressão caiu por terra, posto que não se pode avaliar em termos qualitativos que o material interior é melhor ou pior do que o exterior. Além disso, o que se deve ter em mente é que o exterior organiza toda a dimensão palpável da expressão; a exterioridade é o centro e não a interioridade, como pensava a teoria da expressão. Considerando que o exterior é quem determina o interior, Bakhtin afirma: “Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que modela e determina sua orientação” (1997, p.112). Depois de mudada a perspectiva em relação à questão da exterioridade/ interioridade (agora numa seqüência invertida), já é possível começar a discutir a questão da enunciação na ótica de Bakhtin. É a partir desse entrosar que o ‘dentro e fora’ se tornam um; não no sentido da unidade propriamente, mas no sentido da diferença mesmo, pois aí se dá uma interação numa seara de cunho social. Na verdade, a enunciação é o produto dessa interação entre um locutor e um ouvinte. Esse interlocutor, o ouvinte, não precisa ser real; pode ser substituído por um representante qualquer do grupo a que pertence o locutor (família, amigos, pessoas jurídicas, as pessoas em geral). A interação, dessa forma, caracteriza-se basicamente pelo fato de que a palavra procede de alguém e dirige-se a um outro, diminuindo, portanto, a separação entre o de ‘dentro’ e o de ‘fora’. A palavra é a mediadora desse contato entre o um e o outro. Bakhtin (1997, p. 113) diz também que “a palavra é o território comum do locutor e do interlocutor”. Como essa zona de separação entre o um e o outro fica muito estreita, fica difícil de dizer que a palavra pertence a quem a fala. A palavra só lhe pertence no momento do ato fisiológico, tempo em que ela está sendo materializada. Fora disso, não há como se pensar na palavra como objeto de pertença do locutor. Pelo contrário, a palavra, enquanto signo, já que é ideológica; pertence a um outro social (razão de se falar na alteridade), o qual está inserido, obviamente, numa cadeia eminentemente social. No momento e depois da interação, a palavra passa, também, a pertencer ao locutor. A princípio, só pertencia ao outro. Entende-se a língua como um acontecimento baseado na enunciação dialógica (não querendo ser redundante), pois esta é fruto da interação entre o falante e os demais atores sociais. Quando se remete à interação, talvez se pense tão-somente em diálogo. Todavia, esse diálogo é apenas uma das formas que dá vida à interação verbal. Essa palavra ‘diálogo’ deve ser compreendida em uma acepção ampla, pois contempla toda a forma de comunicação, não apenas aquela pronunciada em tom audível, aquela que implica em uma relação de dois, face a face. Assim, o diálogo nessa amplidão traduz a idéia de língua defendida por Bakhtin. O elemento lingüístico de que se incumbe é muito mais que a materialidade observada nas seqüências fonético-fonológicas, é algo abstrato que não se ‘toca’. Pode ser entendido que essa língua é essencialmente discursiva, pois só friccionando, colocando em contato a palavra com a realidade ‘fora do verbal’ e com a palavra do outro é que, de fato, se tem uma idéia do que é interagir numa dimensão que extrapola o aspecto material. A língua pertence ao social; ela é resultado da enunciação e das enunciações. Eis o motivo pelo qual tanto o objetivismo abstrato quanto o subjetivismo individual ‘pecam’, pois eles defendem uma espécie de monologismo, molde sob o qual a sua idéia de enunciação é concebida. Depois de levantar algumas discussões sobre dialogismo, alteridade, língua, interação, enunciação, nada mais pertinente do que concluir essas reflexões, temporariamente, com uma citação de Bakhtin, visto que ele consegue, em poucas linhas, acalmar a efervescência suscitada pelas questões discutidas neste capítulo: A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 1997, p. 123). De outro modo, portanto, não se pode deixar de conceber a língua como evento interativo. O outro, nesse aspecto é essencial para que essa alteridade aconteça. Por esse motivo, este capítulo abordou a alteridade sob uma ótica que inclui um outro necessariamente. Assim, a subjetividade é considerada a partir desse sujeito que está ‘fora’, o(s) outro(s), sendo, portanto, esse(s) sujeito(s) exterior(es) que constitui(em) o eu em todas as suas dimensões. Também foi o intuito entender a questão da interação entre o(s) sujeito(s) que vivificam a língua, seja numa ótica que compreende o outro constituindo o eu ou o Outro falando no lugar desse eu, este último de acordo com a psicanálise. Tentou-se, desde o início, trabalhar o conceito de alteridade sempre aliado ao de interação, uma vez que esta investigação focaliza exatamente a questão da interação entre o eu, o outro e o Outro, relação sobre a qual se falou mais superficialmente neste capítulo, mas terá seu lugar de destaque no capítulo dedicado à psicanálise lacaniana. Para dar conta de defender essa interação proposta, foi preciso aclarar que se considerou a língua como sendo um produto eminentemente social, e por conseqüência, intersubjetivo. Também se desenvolveram as concepções de alteridade e interação através do dialogismo proposto por Bakhtin, o qual se opunha às correntes lingüístico-filosóficas chamadas de subjetivismo individualista e objetivismo abstrato. Assim, ficou claro que, para Bakhtin, as relações intersubjetivas só podem ser pensadas se houver o fenômeno dialógico, permeando-as. Embora os estudos sobre a língua tenham se iniciado no berço da civilização ocidental, só no século passado é que a questão do sujeito na língua e do outro, fazendo parte desse processo como co-participante, apareceu na pauta das preocupações dos lingüistas. Isso demonstra a inércia por parte de tantos que fizeram história. E é através de Bakhtin que se tem a chance de enxergar a questão do outro presente na fala de quem fala, evidenciando, portanto, o caráter heterogêneo que tem a língua. Por outro lado, Authier-Revuz defende também uma não-homoneização da língua, porém considerando um sujeito do inconsciente inserido nesse processo, um dos pontos que a diferencia de Bakhtin. Pensar um sujeito que não fala o que é só seu, num primeiro olhar, é estranho, porém, quando se detecta que o que se fala já foi dito, muitas vezes, nem mesmo sabendo quem disse aquilo, passa-se a conceber a língua de maneira menos estrutural e, conseqüentemente, empenha-se em contemplar a figura do sujeito que a usa, um sujeito que fala, e quando usa a palavra, tem intenções, mas também as perde por vezes. Esse caráter intencional ou não das palavras (do falante) pressupõe uma outra pessoa (pelo menos!) para quem essas (des)intenções serão direcionadas. É esse o momento em que não se pode deixar a idéia de alteridade de lado. A linguagem é, por natureza, dual; implica um jogo de troca, de imanência; consubstancia-se na relação entre quem fala (assujeitado ou não) e outros participantes (outras vozes) que, mesmo em silêncio, momentaneamente, também falam. São sujeitos interdependentes, ‘gêmeos univitelinos’, necessários para que a linguagem tenha o seu lugar de mediadora. A investigação acerca das fronteiras do dialogismo acalenta, portanto, um pensar que perpassa as cercas de um diálogo que dá conta, apenas, de contemplar um eu e um outro, de acordo com a visão bakhtiniana dos termos, um falante e o seu interlocutor, ou melhor, uma interação verbal que enseja um eu consciente e um tu como parceiros da relação dialógica. Essa zona limítrofe do diálogo se expande muito mais quando se pensa em um sujeito dito que não seja pleno, mas que congrega em sua essência diversidades mantenedoras da existência humana, dualidades indispensáveis para a continuação da vida ou, ainda, um sujeito que sem saber o que fala ou o que está por trás de sua fala, mesmo assim, é ousado: diz de si a si, de si ao outro, do outro a si, do outro ao outro; diz, enfim, do mundo ao mundo, fidedignamente, em cores e formas. 2.5 Linguagem, alteridade e psicanálise A ênfase continua sendo dada à questão da alteridade na lingüística, mas agora já com um viés psicanalítico. Entretanto, uma discussão mais aprofundada sobre o sujeito na psicanálise será feita no próximo capítulo. Assim, pode-se desde já retomar a questão da subjetividade numa perspectiva mais abrangente, visto que esse olhar sobre o sujeito se amplia frente à contribuição do olhar psicanalítico. Os estudos de Jacqueline Authier-Revuz mostram claramente que a abordagem psicanalítica em relação ao sujeito, na lingüística, dá-se através de Bakhtin, mais especificamente através da comparação entre suas considerações sobre o sujeito como elemento constitutivo da língua e a idéia de Outro em Lacan. Destacar-se-ão, nesta parte do capítulo, alguns estudos que caminham nesta direção. Flores (1999) enxerga o fato dialógico como sendo imanente à lingüística, embora, clássica e estruturalmente, exclua-se a questão do outro na constituição do locutor. Por mais que ele parta de orientações saussurianas, seu grande foco vai ser a metaenunciação, entrelaçando a visão sobre o sujeito dotado de inconsciente e a concepção de enunciação/enunciado, num percurso teórico que contempla também o sistema bakhtiniano, dentre outros autores. Flores (1999) retorna a Saussure, interrogando o lugar do sujeito para a ciência lingüística. O próprio autor diz: que a lingüística estrutural transborda, isto é, vai além; esse ponto de transbordamento nada mais é do que a consideração do sujeito. Nesse sentido, ele tenta fazer retornar para a lingüística, com muita pertinência, o que faz parte do seu objeto: o elemento subjetividade. Flores dá conta de explicar o dialogismo, defendendo a questão dialógica como sendo pertencente, sobremaneira, à lingüística, visto que é perceptível a sua existência tão-somente na língua, fato que leva à afirmação de que a língua é eminentemente dialógica. De acordo com Flores (1999), portanto, a metaenunciação refere-se ao iralém da lingüística, perpassando a psicanálise lacaniana e levando em conta a irrupção do Outro no discurso. Assim, apesar de contemplar a concepção dialógica de bakhtiniana, vai além dela. Através da idéia de um sujeito que volta à semântica da língua, à estrutura da língua, através da falta que constitui tanto o sistema lingüístico quanto o próprio sujeito, a psicanálise dá sua contribuição no que diz respeito à concepção de sujeito dotado de inconsciente. Segundo a visão de Flores, a semântica, dita metaenunciativa, introduz na regularidade do sistema lingüístico a idéia de falha numa dimensão constitutiva. E falando em subjetividade, não se pode deixar de lado a intersubjetividade, posto que o sujeito se constitui necessariamente através do outro, passando assim a reconhecer-se nele (outro). Nessa dimensão do outro constituindo o enunciador, recorre-se, em primeiro lugar, ao outro dos espaços sociais compartilhados lingüisticamente. Authier-Revuz (2004) acredita que a palavra é heterogênea por natureza, palavra aqui com o sentido de discurso, ou seja, o discurso que aparentemente era do sujeito locutor passa a ser visto como sendo dos outros (outro e Outro). Há, portanto, o que se pode chamar de descentralização do sujeito. O sujeito falante não é o centro nem origem do dizer, pois o outro constitui sua fala. Flores (1999) concorda com a posição lacaniana quando esta afirma que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. A concepção saussuriana de signo foi retomada, com o intuito de entender o significante como sendo parte de uma estrutura que permite introduzir a metáfora paterna como ordem do desejo, isto é, o recalque originário surge como processo que estrutura a criança fundamentalmente e que se dá através da metaforização, a qual pode ser definida como ato da ‘simbolização primordial’, uma vez que se dá quando o significante Nome-do-Pai substitui o significante fálico. A referência à metáfora paterna está ligada à questão do recalque originário, que proporciona ao indivíduo a primeira grande substituição de significantes. Dor (1989, p.90) diz que o recalque originário aparece como processo fundamentalmente estruturante e que consiste na metaforização. Esta metaforização não é outra senão o ato mesmo da simbolização primordial da Lei, que se efetua na substituição do significante fálico pelo significante Nome-doPai. A obra lacaniana afirma que um significante representa um sujeito para outro significante. Para Lacan, a dimensão do simbólico, tendo em vista o Outro, é introduzida pelo significante, o qual é estruturado numa cadeia puramente diferencial. De outra maneira, é o mesmo que dizer que o sujeito falante na relação com o Outro é instaurado através da metáfora paterna e do acesso ao simbólico. Na estrutura, percebe-se uma falta do próprio significante, a qual faz alusão à ordem do desejo. O desejo é a possibilidade da intersubjetividade através da linguagem. Então, a partir do axioma ‘o desejo é desejo do desejo do Outro’, foi possível concluir que o sujeito do desejo insiste na/pela cadeia significante, razão pela qual se pode falar dele como vazio. Flores (1999) formula alguns princípios para melhor conduzir as suas reflexões. Para o referido autor, a linguagem instaura o desejo como desejo do Outro, ou seja, é através da própria linguagem que se possibilita o reconhecimento pelo outro; o real constitui a estrutura significante e emerge no Simbólico como limite interno dado pela pura diferença do significante. O real designa uma realidade fenomênica que é imanente à representação, por parte do eu. Já o simbólico designa um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significação que determinam o sujeito à sua revelia, levando-o ao Outro. Tais princípios isolados não dão grande contribuição para enfocar a questão da semântica da língua. Todavia, articulando esses mesmos princípios com a noção de sujeito enunciador, é perfeitamente possível entender a intervenção do sujeito desejante na língua. Dessa forma, através da dialética hegeliana, sugere-se pensar num terceiro (mediador da relação pelo simbólico). O sujeito como efeito do significante, como sujeito desejante, está relacionado com o sujeito que enuncia, visto que a semântica da língua é alterada. Isso se dá em razão de o sujeito que enuncia, ao dizer algo, ser atravessado por um desejo do Outro. O sujeito falante passa a ser dividido, quer dizer, embora o sujeito que enuncia seja uma certeza (pois dele ‘vêem-se e ouvem-se palavras saírem de sua boca’), essa fala não só pertence ao eu, mas também ao Outro. Para se dizer algo sobre intersubjetividade, é imprescindível tocar na subjetividade. É exatamente no momento da relação intersubjetiva, na enunciação, que se possibilita passar da intersubjetividade à subjetividade. Em outras palavras, o sujeito da enunciação é aquele constituído pela relação intersubjetiva e que possibilita a passagem da subjetividade à intersubjetividade. Considera-se um sujeito dialógico como um sujeito cindido pela constituição eu/Outro. Isso, como conseqüência, leva a crer que o inconsciente está presente no dizer e no dito. No dizer de Flores (1999, p.202): “O sujeito da enunciação não está nem do lado do eu nem do lado do tu, mas instaura-os à moda de um terceiro que intervém, mas que não se mostra à linearidade”. Embora a teoria benvenistiana no tocante à enunciação seja a princípio ortodoxa, percebem-se certas considerações que não deixam de lado as ponderações psicanalíticas. Dessa forma, apesar de em estágio embrionário, já se antevê o que mais tarde é defendido por autores, como Flores (idem), em relação à participação ativa do inconsciente no ato enunciativo. No momento em que Benveniste se consagrou por suas idéias sobre enunciação, ele não tangenciava seu pensamento aos conceitos psicanalíticos diretamente, pelo menos, não era bastante claro. Entretanto, chegou a dizer que o ‘sentido profundo’ pode opor-se ao sentido convencional das palavras, e isso leva a uma reflexão que considera a interface linguagem e inconsciente. Concorda-se com Flores (idem, p.209) quando ele diz que Benveniste não contemplou apenas a lingüística do signo, mas um sentido muito distante do literal: Com isso, quero dizer que Benveniste admitia que, na instância enunciativa, o discurso pode significar exatamente o contrário daquilo que as palavras podem significar. É isso que uma leitura atenta à teoria de Benveniste autoriza. E para falar no contrário do que, conscientemente, deseja-se dizer, é indispensável considerar o inconsciente como protagonista, ao lado do sujeito falante, supostamente ‘senhor de si’. Nada impede dizer que Benveniste tivesse seus pontos de comunhão com Lacan, assim trazendo para seus textos um pouco daquela noção psicanalítica, embora que escamoteada. Lacan, no seminário sobre A Carta Roubada, faz menção clara aos pressupostos benvenistianos, deixando indícios de que estava familiarizado com a obra de Benveniste no que diz respeito à questão da alteridade: [...] quando um sujeito se engaja na análise, ele aceita uma posição mais constituinte nela mesma do que todas as senhas com que ele se deixa mais ou menos enganar: a da interlocução [...]. Pois isso nos será a ocasião de insistir no fato de que a alocução do sujeito aí comporta um alocutário, [...], que o locutor aí se constitui como intersubjetividade. (LACAN, 1988, p. 123). Fica bem visto que o sujeito, na interlocução, se assume como um eu numa relação com um outro, conseqüentemente, constituindo-se nessa troca, nessa relação de espelhamento, nessa comunhão de dois. Dessa maneira, é possível pensar que, em certos momentos, não há dois, mas apenas um. Flores (1999), como já se viu, vai além da lingüística clássica, no sentido de buscar subsídios que melhor expliquem a idéia de sujeito e como este se constitui. Assim, ele faz um retorno a Authier-Revuz (2004), que define a estrutura subjetiva à luz de Bakhtin e Lacan, deixando clara, destarte, a presença do Outro no discurso. Sobre a teoria do dialogismo, Flores (1999, p.51) define: “[...] o sujeito se reconhece frente ao outro em um processo de auto-reconhecimento pelo reconhecimento desse outro em um movimento da alteridade”. Tratando-se de dialogismo, é imprescindível remeter-se a Bakhtin (2003), pois para ele a linguagem é essencialmente dialógica, e como ela não deve dissociar-se da idéia de sujeito, este, conseqüentemente, traz consigo tal feição. Authier-Revuz (2004) fala sobre a heterogeneidade constitutiva do discurso, tendo como referência pontos teóricos extrínsecos à análise do discurso, como é o caso do dialogismo do círculo de Bakhtin e da psicanálise. Assim, lança mão de pontos de vista exteriores para explicar fenômenos que são, a priori, lingüísticos. Dessa forma, ela diz que o Outro está também dentro do circuito dialógico. Para ela, entretanto, o Outro não está presente tão-somente no embate físico da interação. Esse Outro, no seu dizer, atravessa o eu, constituindo-o discursivamente. Bakhtin (2003) acata a visão de que o que tem cunho ideológico contém também significado, remetendo a algo que está situado fora de si. Ele enxerga a enunciação impregnada de conteúdo ideológico. Na verdade, esse conteúdo ideológico não compreende as palavras materializadas, mas o que elas dizem. E é por essa razão que sua postura é crítica perante o objetivismo abstrato, visto que tal segmento contempla a língua essencialmente sob uma ótica monológica. Articulando uma discussão que envolve o eu, o outro e o Outro, é possível enxergar os postulados de Lacan em relação à subjetividade, pois o viés psicanalítico não considera um sujeito pleno, mas heterogêneo; leva-se em conta a inclusão do inconsciente na relação dialógica, resultando, daí, a tríade: eu, outro e Outro. Authier-Revuz (2004) busca no plano bakhtiniano a idéia de oposições formadoras de uma unidade, isto é, considera que o eu é constituído pela alteridade. É permitido antever um lugar para o sujeito na perspectiva dialógica, com a ressalva de que nessa relação não há nem um duplo de um frente a frente nem um diferente, mas um outro que atravessa constitutivamente o eu. Através da heterogeneidade mostrada e constitutiva, evidenciam-se as fronteiras sempre presentes e muito próximas do eu, fronteiras essas que apontam para a alteridade. É por meio desse outro que o eu vê o exterior. Sem contrapor Bakhtin, mas auxiliando-o no que diz respeito à questão dialógica, ela se apóia na psicanálise, posto que o sujeito não é pleno, conseqüentemente, a palavra não é homogênea. Sua intenção é posicionar a palavra, com todas a suas nuanças de significação, em um lugar em que seja prioritária a marca da heterogeneidade. Ela considera, portanto, o sujeito como dividido. Como ela vai além da compreensão abrangida por um eu e um outro, tenta resgatar o Outro, desconhecido por parte de quem fala, ora visto como sujeito, ora como lugar, o qual é capaz de guardar e remeter para a exterioridade (na suposta linearidade da fala) as lembranças mais remotas e escamoteadas, fazendo ressurgir os conflitos esquecidos, demandas recalcadas e agindo independentemente da consciência do sujeito enquanto falante. Assim, por mais que haja pontos de semelhança com o dizer de Authier-Revuz (2004), este trabalho encontra seu diferencial no fato de que a interação é o ponto de partida para contemplar a palavra dita e assumida por um eu, porém, sem deixar de considerar que, por trás desse eu, há sujeitos outros. De fato, são esses outros sujeitos os grandes iniciadores e responsáveis por este corpo unificado, mas dividido, que é o sujeito enquanto falante de uma língua. O outro é inscrito linearmente pelo locutor na sua fala. É como se o locutor desse lugar explicitamente ao discurso de um outro nas malhas de seu próprio discurso. Nesse sentido, Authier-Revuz (2004) menciona a expressão ‘o jogo com o outro’, o que significa que a presença do outro se verifica mais fortemente no espaço onde não há explicitude. Então, segundo a mesma autora, o discurso do outro se torna semidesvelado. Trata-se, no seu dizer, de uma heterogeneidade constitutiva. A visão bakhtiniana de língua convida a uma reflexão mais complexa, isto é, o diálogo, latu sensu, permite, por excelência, a materialização da língua; o diálogo é produto da relação de alteridade existente entre, pelo menos, duas consciências individuais, socialmente organizadas. É nessa perspectiva dialógica que até o silêncio de uma das consciências se converte em discurso, posto que mesmo sem a concretização fonético-fonológica, as palavras estão incessantemente ‘em frenesi’, indo e vindo. Essas palavras são aquelas que ficam no mundo interior dos indivíduos. Bakhtin (2003) enfatiza sempre o aspecto dialógico inerente à linguagem. As ‘coisas’ ditas já foram ditas; nada é original; nada pertence à invenção de quem fala. O discurso desvelado no cotidiano é um discurso que vem sendo tecido não se sabe desde que momento; as consciências ideológicas vêm se encontrando e se somando espacial e temporalmente. Na estrutura da dialogicidade, o discurso é visto como sendo prenhe de resposta, porque quem diz algo se motiva para dizer tal coisa em função da possibilidade de uma resposta do parceiro - interlocutor. Como diz Flores (1999, p.69): “A enunciação do sujeito, como o que ainda não foi dito, é determinada pela resposta que já está nela contida pelo próprio fato de se construir na atmosfera do já-dito”. Por isso, consoante o trato bakhtiniano, a interação dialógica não se restringe ao âmbito do diálogo físico; na verdade, esse dialogismo pode ir muito mais além. Para ele, mesmo uma palavra pode ser dialógica, num sentido mais próximo dos estudos sobre polifonia. Para melhor entender a subjetividade na língua, de acordo com Authier-Revuz (2004), deve-se contemplar o dialogismo bakhtiniano, segundo o qual pensar em um outro, na relação dialógica, não é o mesmo que vê-lo como um duplo de um diálogo frente a frente, mas em um eu constituído discursivamente pelo outro. Existe aí uma relação de atravessamento. Bakhtin (2003) concebe a relação com o outro demarcada por uma fronteira interior. Essa fronteira determina as nuanças do discurso que o círculo de Bakhtin privilegia. Bakhtin (1997), de maneira geral, concebe a língua como algo que corresponde à produção de sentidos. Assim, a lingüística não consegue por si só dar conta de circunscrevê-la nesse terreno cujo solo tem características tão específicas. Uma espécie de translingüística entra em cena, que contempla a interação da língua e da situação. Falando em língua dentro de um contexto social, não se pode deixar de falar em inter-relação verbal e, automaticamente, em enunciado. Este visto como resultado acabado da enunciação. Em relação aos enunciados, está a idéia de significado valorativo - eis aí o aspecto axiológico inerente à língua como discurso. O dialogismo é a condição para que os sentidos sejam constituídos. As vozes se cruzam no interior das palavras que formam o discurso. E assim os discursos são ouvidos ecoando em outros discursos. O lugar do outro não deve estar ao lado (fisicamente) do enunciador, mas, imprescindivelmente, presente no discurso; não é possível atribuir uma posição definida para ele, ou melhor, não é possível visualizá-la, pois o outro constitui o que o eu fala; o outro permeia a fala do eu. Na visão bakhtiniana, é concebível, nos limites de uma única e mesma construção lingüística, ressoarem várias vozes. O outro, através da interação com o enunciador, já que ele constitui o eu, é apreendido pelo eu enquanto discurso. Compreendendo seu interlocutor, o locutor integra uma imagem do discurso outro, no momento da produção de seu discurso. Trata-se de uma espécie de relação de espelhamento mediante essa idéia de empréstimo ou fundição de discursos. O eu vê no outro uma porção de si. De acordo com Authier-Revuz (2004), esse espelhamento acontece para Lacan quando o emissor recebe do ouvinte o que o próprio emissor disse de maneira invertida. Há, dessa maneira, a necessidade de uma resposta no momento em que essa palavra é utilizada; ela é prenhe de resposta. Consoante Authier-Revuz (idem, p.44), “em Bakhtin, o outro (interlocutor, discurso) é sempre ‘o outro de um outro’(interlocutor, discurso), lá onde podemos dizer que ‘não há outro do Outro’ (inconsciente)”. Explicando melhor a questão da alteridade, pode-se afirmar que o outro é sempre fruto de vários entrecruzamentos com sujeitos-falantes outros, uma vez que essa relação de perpetuidade é uma das marcas bakhtinianas. Porém, deve-se ficar atento para não dizer o mesmo do Outro (inconsciente), pois, embora esse Outro entre na cena enunciativa, sendo responsável muitas vezes pelo que o eu diz, é inconcebível a idéia de um outro desse Outro. O outro, na perspectiva dialógica bakhtiniana, é a condição do discurso do enunciador; é visto como uma fronteira que marca a relação constitutiva com os outros na linguagem. Falando em Outro e outro, há que especificar e aclarar pontos de alcance de um e de outro. Levando em consideração o que pontifica a psicanálise, o sujeito não é visto como pleno; é marcado pela heterogeneidade. Daí se explica o fato de ser ele cindido. Trata-se da emergência do inconsciente no curso ‘normal’ na vida das pessoas (AUTHIER-REVUZ, 2004). Embora o uso do termo ‘sujeito cindido’ pertença ao repertório conceitual da psicanálise, referindo-se, basicamente, ao eu/Outro, não é absurdo pensar em um eu cindido, em relação ao outro, posto que outro constitui o eu, inclusive o que esse eu fala. Porém, os pares eu/Outro e eu/outro possuem propriedades e movimentos diferenciados, se vistos separadamente, mas podem fazer parte de um circuito dialógico, cada um com um lugar e função para o indivíduo. A função da psicanálise é fazer advirem os conflitos esquecidos. É através da capacidade de transindividualização que o inconsciente se “concretiza” por meio do discurso. A princípio, o desejo está aprisionado. Vem a linguagem e o liberta, o que resulta na afirmação “a linguagem é condição do inconsciente”. Isso não quer dizer que o inconsciente tenha o seu próprio discurso; ele age no discurso dito ‘normal’ do indivíduo. Não se pode dizer que a psicanálise tem a linguagem como seu objeto, pois, na verdade, seu objeto é o próprio desejo. A linguagem é usada para desvelá-lo, circunscrevendo-o. O inconsciente se evidencia através da materialidade da língua. De acordo com Authier-Revuz (2004), essa língua, assim concebida, implica o fato de que o discurso do Outro é o discurso do eu ao avesso. É, pois, por meio das ressonâncias do dizer que o conteúdo latente pode se tornar manifesto (via escuta analítica). Partindo do pressuposto de que todo discurso é polifônico, diz-se que, no momento da análise, ouvem-se várias vozes: a do locutor, a do ouvinte e as outras várias vozes anônimas, as quais vêm, inclusive, do lugar/sujeito que se desconhece, isto é, do Outro, em relação ao qual o falante é completamente ignorante. Dessa maneira, fica clara a alusão que Authier-Revuz (2004) faz ao dialogismo bakhtiniano e à psicanálise lacaniana, já que essa alteridade adentra/permeia uma fenomenologia não alheia ao sujeito, mas fora dele, por mais que o outro e o Outro o constituam. Um outro ponto que deve ser esclarecido, já que se trata da subjetividade, é a pluriacentuação do discurso, a qual pode ser definida como “[...] um fator de interlocução no qual o sujeito se constitui intersubjetivamente” (FLORES,1999, p. 75). Essa idéia de pluriacentuação se propaga ao longo de seu texto, mesmo que o termo ‘pluriacentuação’ nem sempre esteja explícito. É a alteridade marcando o dizer do sujeito falante numa dimensão constitutiva: [...] a atitude de um locutor para consigo é inseparável da atitude para com o outro e deste em relação a ele. A consciência de si é sempre presente na consciência que o outro tem do locutor. O ‘eu para si’ que subjaz o ‘eu para o outro’ é, na verdade, a confirmação da tese de que as vozes constituem a consciência do sujeito e que este, por sua vez, fala a partir do discurso do outro, com o discurso do outro e para o discurso do outro. Na voz do sujeito está a consciência que o outro tem dele (FLORES, 1999, p.75). Flores (idem) também ratifica o posicionamento de Bakhtin em relação ao sujeito dialógico, haja vista que o sujeito é constituído numa relação de troca com o outro discursivo, pois esse outro se reflete no eu. Dessa forma, pode-se dizer que a subjetividade já é intersubjetividade, uma vez que é com o outro que o sujeito passa pelo processo de (auto)/(re)conhecimento: ele se vê sujeito num dos pólos que o liga ao outro pólo de seu semelhante. Vendo-o, ele se reconhece no outro. Flores (idem) defende, através do viés da semântica enunciativa, um tipo de sujeito e uma espécie de semântica marcados pela falta, uma falta que pressupõe o Outro como lugar e como próprio sujeito. Segundo Roudinesco & Plon (1998, p.147), “Lacan estabeleceu um elo entre um desejo baseado no reconhecimento (ou desejo do desejo do outro) e o desejo do inconsciente [...]”. Assim, percebe-se que, ao referir-se a um indivíduo falante, necessariamente, deve-se interpor um outro e um Outro (sujeito do inconsciente), visto que é através da interação entre esses atores que a linguagem tem sua cena performada. A estrutura material da língua permite que a polifonia de um discurso se inscreva, tornando clara a atuação do Outro na fala do locutor. Por isso, se diz que o sujeito é heterogêneo e a linguagem lhe é interior/exterior, isto é, essa linguagem provém de um outro e do Outro, restando ao eu a aparente idéia de originalidade do dizer. Anteriormente já se falou que a linguagem é a condição do inconsciente. Numa relação de paralelismo, pode-se dizer que o sujeito é tido como um efeito da linguagem. Através dela, ele existe; por ela ele é representado; ele enuncia e é enunciado, visto que o movimento é duplo, enxergado na alteridade. Assim, o sujeito não pode ser concebido como homogêneo. Ele é e está no outro e no Outro, assim como eles (outro e Outro) estão no locutor. O sujeito do inconsciente é representado pelo significante. Ele é um sujeito em que não há uma subjetividade psicológica, como acontece com o sujeito que acha que fala porque quer e que fala somente o que deseja falar (idéia de sujeito pleno). Quando se fala em clivagem, deve-se remeter preferencialmente ao desejo barrado, o que é, aliás, a razão de se falar na divisão desse sujeito. O inconsciente é parte essencial da constituição do sujeito, dito barrado. Fala-se em sujeito barrado porque Lacan concebe o significante (com letra maiúscula) estando em cima do significado. Esse significante está separado do significado por uma barra que serve de obstáculo para que se dêem os devidos amarrações, não permitindo assim deslizamentos quaisquer. Daí vem a idéia de ponto-de-estofo, que é a operação pela qual o significante detém o deslizamento, de outra forma indeterminado e infinito, da significação. Assim, com outras palavras, é aquilo por meio do qual o significante se associa ao significado na cadeia discursiva. Para a psicanálise, mesmo na linearidade da emissão vocal, outras vozes se ouvem. É o eco polifônico dos outros, inclusive do Outro, pois o discurso é constitutivamente atravessado pelo “discurso do Outro”. No dizer de Authier-Revuz (2004, p.69), todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do Outro’. O outro não é um objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição (constitutiva, para que se fale) do discurso de um sujeito falante que não é fonte primeira desse discurso. Para Authier-Revuz (idem), o que caracteriza o atravessamento de discursos outros no discurso do sujeito falante é a própria heterogeneidade, vista como um fenômeno que privilegia o aspecto, por natureza dual, mesclado de outras essências. Assim, por meio do dizer permeado por outros dizeres, o outro se localiza frente, mediante, perante, ao derredor do eu, como se fosse uma relação simbiótica, isto é, para que o eu seja efetivamente eu, é preciso observar outros elementos subjetivos, visíveis ou não, o lugar/sujeito (Outro) que o eu desconhece e os outros, os quais são necessários para o entendimento dessa subjetividade que vai além da concepção de sujeito pleno. Na heterogeneidade constitutiva, o sujeito desaparece para deixar o lugar a um discurso, discurso esse marcado pela presença de outros atores sociais, investindo-se de papéis com lugares bem definidos, mas, muitas vezes, não ditos, fazendo crer que o que se fala só é criação de quem diz, da maneira que quer dizer. Voltando-se um pouco mais para a psicanálise no que toca à formação do sujeito, já que é uma das vigas deste trabalho, pode-se dizer que o Outro é representado pela mãe, a que se perdeu, para o indivíduo, em função do incesto cometido anteriormente e definitivamente, depois de ocorrida a metáfora paterna. Assim, tem-se o outro e o Outro. O Outro, com maiúscula, é representação do eu, através das identificações imaginárias; já o outro, com minúscula, é alteridade literalmente exterior ao sujeito, mas, ao mesmo tempo, presentificada nas relações dialógicas. A função paterna serve, tão-somente, para tornar ‘normal’ (neurótico) o sujeito lacaniano que, a princípio, só vê a mãe, pois ela é o seu desejo. Vem o pai, o Outro que impõe a castração simbólica. O desejo pela mãe é barrado, por conta do recalque originário, sobre o qual já se falou neste mesmo capítulo. Daí a função do pai, servindo, inclusive, para promover a divisão, clivagem do eu. Sendo assim, consoante Teixeira (2000), Lacan é marcado pela intersubjetividade da palavra, abrindo vistas para a questão do desejo. Toda essa ‘sombra’, ajudada pelo inconsciente, deve vir a ser verbalizada, pois só a partir de então, será possível ao sujeito ‘se resolver’. Para Teixeira (idem, p. 83), “os sintomas e traumas são lacunas, são espaços vazios e não-historicizados do universo simbólico do sujeito”. A análise se encarrega de tentar dar uma significação a esses traumas, preenchendo o lugar vazio. Lacan (1978, apud TEIXEIRA, 2000, p.124), o qual diz que “o inconsciente é esse capítulo da minha memória que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: isto é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está escrita em algum lugar”. Esse branco a que se refere Lacan não é um branco no sentido de não ter conteúdo. Pelo contrário, há muitos vestígios de experiências que precisam ser contadas. Para se ter uma idéia do que guarda o inconsciente, pode-se até pensar nele não apenas como um capítulo, mas como uma enciclopédia com vários e vários capítulos continuamente em construção. De acordo com Teixeira (2000), o sujeito nem é dono do que diz nem é assujeitado completamente. No tocante a esse assujeitamento, o próximo capítulo se encarrega de falar sobre o papel, sobretudo, do Outro, enquanto sujeito do inconsciente, que se presentifica no dizer do falante cuja consciência é ausente quanto ao que o Aquele dita. Dessa forma, não se pode considerar um sujeito puramente com o olhar da lingüística, mas concebê-lo para além dela, como o verdadeiro sujeito: o sujeito lacaniano. 3 Considerações sobre o sujeito lacaniano: para além de um outro da lingüística Sobre o eu e o outro Esse Outro de boa fé suposta está presente a partir do momento em que se escuta alguém, suposto também a partir do momento em que se fala a alguém. É o Outro da palavra que é o alocutário fundamental, a direção do discurso mais além daquele a quem se dirige. Jacques-Alain Miller No início deste terceiro capítulo, serão delineadas as direções tomadas, de modo que conceitos como de discurso e de linguagem serão admitidos como sinônimos, visto que tanto a visão dialógica quanto a psicanálise (esta no que toca, sobretudo, ao inconsciente) assim os concebe. A preocupação em estabelecer semelhanças aqui se deve ao fato de que o que se tem em mente é que a leitura seja facilitada por parte de quem a fizer, embora essas categorias conceituais não ocupem lugar central. Essa relação de intercâmbio conceitual, ou melhor, de uso de ‘linguagem’ por ‘discurso’ e vice-versa é encontrada na obra lacaniana. Veja-se: “Quando o paciente se cala, há todas as chances de que essa parada no seu discurso seja devida a algum tipo de pensamento que se relaciona ao analista”. (LACAN, 1979, p.52). Não há como pensar, pelo menos no caminho de reflexão no qual segue esta dissertação, que linguagem não seja tomada enquanto discursiva, pois quando Lacan fala em ‘parada no seu discurso’, vê-se que a noção do termo ‘discurso’ se aproxima do segmento ‘linguagem’. Nesse sentido, a palavra ‘linguagem’ (aspecto lingüístico) é tomada como sinônimo de ‘discurso’, considerando que ambos são dialógicos. Para melhor corroborar a idéia de discurso e linguagem como sinônimos, segue uma outra passagem, na qual Lacan desenvolve um raciocínio em relação à palavra enquanto acordo, entendimento, pacto: “Mas o caráter agressivo da concorrência primitiva deixa sua marca em qualquer espécie de discurso sobre o pequeno outro, sobre o Outro enquanto terceiro, sobre o objeto” (LACAN, 1988, p. 51). Uma outra questão a ser observada é o paralelo estabelecido entre metáfora e metonímia, pois não se concebe um estudo sobre o sujeito, articulando lingüística e psicanálise, que não contemple as relações às quais esses termos remetem, isto é, aos processos de condensação e deslocamento, uma vez que são eles mesmos que mostrarão evidências da estrutura da linguagem no seu aspecto mais estrutural: eixos paradigmático e sintagmático. Também será discutida a representação do significante junto à estrutura do sujeito do inconsciente quanto ao aspecto lingüístico, sem perder de vista a interação da linguagem, sobretudo, entre um sujeito dividido e a alteridade que o circunda. Assim, sempre que possível, serão feitos paralelos e referências entre as concepções de alteridade. Como a interação e a alteridade são categorias de relevância para o que se propõe a estudar, haverá momentos em que a intertextualidade será necessária, isto é, Bakhtin e, principalmente, Lacan serão parafraseados, analisados e, com freqüência, comparados, de sorte que o entrecruzamento de suas respectivas teorias venha a esclarecer pontos de interesse tanto para a lingüística quanto para a psicanálise, como é o caso da subjetividade na linguagem. Em se tratando de sujeito na obra de Lacan, é necessário que alguns paradigmas sejam chamados a atuar neste texto, pois as considerações a serem feitas trazem da psicanálise um elemento, sujeito do inconsciente, ou o Outro. O termo inconsciente pode ter sua significação mais atrelada à acepção quotidiana ou ao jargão psicanalítico, o qual ainda pode reconfigurar-se em função do tempo e da ênfase de teórico para teórico, como é o caso de Freud e Lacan. De acordo com a acepção do quotidiano, inconsciente é aquilo que não é consciente, que está fora dos sentidos; é o conjunto de processos psíquicos que influem sobre a conduta, mas dos quais a pessoa não tem a consciência; ou ainda, é a pessoa que age irrefletidamente. Consoante Chemama (1995), Freud chama de inconsciente a instância que guarda elementos recalcados, os quais resistem a vir à instância préconsciente ou consciente, o que corresponde à primeira tópica do aparelho psíquico. Em relação à segunda tópica, o inconsciente qualifica a instância do isso e aplica-se em parte às do eu e do super-eu. Entretanto, o conceito de inconsciente que servirá é aquele lugar de saber constituído por um material literal, que não tem significação, mas que dá uma certa organização ao gozo, a percepção etc. A princípio, ao se observar a questão do discurso, percebe-se que ele não possui apenas uma dimensão. A intenção é discuti-lo numa acepção mais ampla, abrindo a possibilidade, inclusive, de pensar discurso enquanto linguagem, isto é, a linguagem de que o indivíduo lança mão consciente ou inconscientemente. Acreditase que qualquer um já tenha experienciado um lapso de língua, momento em que vários discursos (fala do inconsciente) ‘vêm’; são exteriorizadas aquelas enunciações, através do mesmo porta-voz. Fink (1998, p.19) utiliza esse termo ‘porta-voz’ para dimensionar o entendimento da palavra discurso: “o discurso nunca possui uma só dimensão. Um lapso de língua nos lembra imediatamente que vários discursos podem usar o mesmo porta-voz ao mesmo tempo”. Na verdade, essa fala envolta por esse discurso é o resultado do que o falante queria dizer, embora também, nesse momento, escapem “coisas” que não imaginava, sequer desejava dizer. A partir de então, é possível considerar que na fala se materializa tanto aquilo que conscientemente se fala quanto o que está para lá da vontade de falar. Assim, pode-se, logo agora, afirmar a existência de duas fontes da linguagem, isto é, duas molas propulsoras que impulsionam os atos lingüísticos: o eu (com sua fala consciente) e o Outro (sujeito/lugar desconhecido, o inconsciente). Dessa maneira, não é descartável o raciocínio de que o discurso do eu é consciente e intencional; ao passo que o discurso do Outro é inconsciente e involuntário. O inconsciente tem seu fio discursivo que remete necessariamente ao Outro. Dessa forma, uma certa fala desordenada, incompreendida muitas vezes por parte do falante, escapa sem maior esforço, persistindo em não ficar na linearidade. Essa fala pertence a uma outra instância que está fora das fronteiras do eu. Esse lugar é o inconsciente. Lacan, segundo Fink (1998, p. 20), diz que “o inconsciente é o discurso do Outro”. Muitas pessoas afirmam que, quando falam o que não planejavam falar, estão diante do que consideram uma mente mais veloz do que sua habilidade de articular as palavras, isso levando em conta tão-somente o aspecto fono-articulatório. Na visão freudiana, esse seria o momento em que a verdade está sendo dita, ao passo que o falante tem a impressão de estar dizendo algo sem sentido, que falou aleatoriamente. Muitas pessoas não dão a atenção devida a essas falas ditas sem nexo, porém, em uma situação de clínica, a psicanálise cuida exatamente delas, no sentido de descobrir o que está por trás delas. Em A Interpretação dos Sonhos, Freud dedicou-se a entender os mecanismos que regem esse processo de exteriorização do inconsciente através da palavra. Lacan, mais tarde, estabelece uma relação dos processos de deslocamento e condensação, estudados nessa obra por Freud, com os conceitos lingüísticos de metonímia e metáfora. De acordo com Dor (1989), a metáfora pode ser entendida como uma figura de estilo baseada em relações de similaridade ou de substituição. Sua presença é observada no eixo paradigmático, eixo sincrônico, aquele do repertório lexical que possui a língua. Assim, sentidos e significados vão sendo cumulativamente sobrepostos, isto é, sentidos figurados são metáforas antigas. Lacan, então, fala da metáfora como uma substituição de significantes; há sentidos e significados sendo sobrepostos. A metáfora implica uma espécie de substituição de uma coisa por outra. Lacan, assim, formula o que ele mesmo chama de substituição de significantes. Os significados dependem dessa rede dos significantes. Vê-se que, portanto, o significado é preterido em detrimento do valor do significante, o que se configura como a supremacia do significante. Um exemplo clássico e de muita clareza para a exemplificação do fenômeno metafórico é o sonho da “injeção de Irma”, citado por Dor (1998, p.53). Assim, Freud relata: Todas essas pessoas que descubro ao investigar esta Irma não aparecem no sonho: elas se dissimulam por detrás da Irma do sonho que se torna também uma imagem genérica, formada com quantidades de traços contraditórios. Irma representa todas essas pessoas sacrificadas ao longo do trabalho de condensação, uma vez que acontece com ela tudo o que aconteceu com as outras. Freud investiga e acaba descobrindo que Irma é atualizada numa série de situações, ou seja, ela aparece no lugar de outras pessoas às quais ela mesma se refere. Os seus atos fazem não só menção, mas referência a diversas pessoas. Esse fenômeno vem confirmar o processo do qual vem se falando - metáfora. Além da metáfora, existe também o que será apresentado a seguir – metonímia. A metáfora e a metonímia, juntas, podem fazer com que se entenda melhor o ponto de estofo. Diz-se que elas estão juntas porque são a lógica do significante e se esboçam no discurso do sujeito, isto é, os processos metafóricos e metonímicos no discurso do sujeito são testemunhos inquestionáveis do caráter primordial do significante. E por que falar em ponto-de-estofo? Pelo fato de Lacan considerar que, através dele, o significante detém o deslizamento da significação. Assim, o significante se associa ao significado na cadeia discursiva. Em relação a esse desdobramento da cadeia do significante, é necessário destacar as conseqüências no nível semântico: a metáfora e metonímia, as quais representam a linguagem nas suas direções paradigmáticas e sintagmáticas. Dessa forma, a metonímia pode ser compreendida como uma espécie de transferência de denominação, isto é, um objeto é denominado por outro termo e não o que normalmente o nomeia. É preciso que haja ligações entre os termos; a arbitrariedade não é ilimitada a ponto de a substituição acontecer entre quaisquer termos. Dor (1989) exemplifica o processo metonímico com a expressão ‘estar num divã’. Pode-se entendê-la como ‘estar em análise’. O todo (a análise) está elidido, e a parte (o divã) está em seu lugar. Assim, deve-se afirmar que o processo metonímico impõe uma troca de significantes em função da relação de contigüidade existente entre a parte e o todo. Falar em conceitos como o de metonímia e metáfora pode, em um primeiro momento, levar o leitor a uma espécie de indagação: o que tem a ver isso com o sujeito, com a linguagem? Se se está falando em um sujeito que fala, na acepção psicanalítica do termo, não se pode perder de mira a questão do caráter linear do significante e, conseqüentemente, cadeias sintagmáticas. Lacan (1985) afirma que os significantes são jogados para além do real. Esse real é representado pela realidade do eu. Indo além do que se permite normativamente, além da equivalência primeira entre significantes e significados, pode-se perceber o jogo com as palavras, no que diz respeito ao aspecto mais material da palavra, passando a existir aí os chistes, trocadilhos etc. Como se acredita num sujeito para além do eu, não se pode deixar de lado a idéia de uma alteridade que o constitui, seja um Outro ou outro. Lacan (1985) diz que, na esfera da consciência, está a relação imaginária. O sujeito não se circunscreve apenas no eu, pois ele é e está sempre em relação a uma espécie de alteridade (seja outro ou Outro), e esta alteridade se presentifica no eu de forma marcante. A linguagem, aqui enxergada, situa-se num patamar que inclui o Outro como responsável sobremaneira por ela. Pois de acordo com Lacan (1979), no Outro está a cadeia do significante, o qual ordena tudo o que se presentifica no sujeito, ou seja, tudo o que vai ser dito pelo sujeito. É interessante falar naquele discurso ou linguagem que precede o ser e que se perpetuará depois que morrer. Nesse ponto, encontram-se semelhanças em relação à pré e pós-existência da linguagem no tocante ao sujeito em Lacan e em Bakhtin. Bakhtin (2003) fala do valor axiológico como categoria para a consolidação da alteridade, isto é, quando um indivíduo nasce, embora digam que a vida é sua, nada, de fato, lhe pertence, pois os fatos, os juízos, os posicionamentos já existem, inclusive a língua/linguagem. Dor (1998, p. 21), falando em uma vertente psicanalítica, diz que Lacan explica a estranheza dessa forma: nascemos em um mundo de discurso, um discurso ou linguagem que precede nosso nascimento e que continuará após a nossa morte. Muito antes de uma criança nascer, um lugar já está preparado para ela no universo lingüístico dos pais: os pais falam da criança que vai nascer, tentam escolher o nome perfeito para ela, preparam-lhe um quarto, e começam a imaginar como suas vidas serão com uma pessoa a mais no lar. As palavras que usam para falar da criança têm sido usadas, com freqüência, por décadas, se não séculos e, geralmente, os pais nem a definiram e nem as redefiniram, apesar dos muitos anos de uso. Essas palavras lhe são conferidas por séculos de tradição: elas constituem o Outro da linguagem, como Lacan chama em francês (l’Autre du langage), mas que podemos tentar converter em o Outro da lingüística, ou o Outro como linguagem. Essa linguagem preexistente é mais uma prova de que a alteridade marca a vida dos indivíduos, trata-se de uma condição para que o sujeito seja, constitua-se como um eu. O Outro, obviamente, exerce um papel de extrema relevância nisso tudo, pois é a partir dele e por meio dele que o sujeito fala. Em harmonia com Lacan (1979), o sujeito falante está necessariamente em relação ao Outro sempre, pois para falar, ele depende do significante, mas o significante está primeiramente no campo do Outro. O sujeito produz-se no campo do Outro, fazendo com que surja o sujeito da significação. Nessa perspectiva, o sujeito é também um significante; um significante que vem se instalar com o mesmo movimento com que é impulsionado a falar, a existir como sujeito. Quando se fala em linguagem pré-existente, não se deve deixar de lado a reflexão de que uma criança, nos seus primeiros meses de vida, não chora com intenções determinadas. Na verdade, quem vai pouco a pouco moldando a significação do seu choro e suas atitudes são os seus pais, os quais atribuem significado à medida que vão adivinhando o que seus filhos desejam. Fink (1998) diz que seus desejos tomam forma determinada porque são compelidos a usar as palavras de seus pais, que foram herdadas de seus avós, bisavós e assim por diante. Essas palavras não são correspondentes às demandas específicas do ser que cresce. Há, dessa maneira, uma moldagem de seus desejos dentro das formas que a língua materna que falam prescreve. De resto, há de considerar-se que o sentido é determinado não pela criança, mas por quem está em sua volta, levando em conta, é claro, a linguagem que utilizam. Lacan defende que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Isso é tão verdade que se observa como bem ilustra Fink (1998, p.25): “analise as palavras ‘conservação’ e ‘conversação’. Elas são anagramas: elas contêm as mesmas letras, somente a ordem em que aparecem é que é diferente”. Para o eu e seu discurso, conseqüentemente, essa relação não faz sentido a princípio, em nível consciente, mas essas palavras podem estar associadas em nível inconsciente. Entretanto, para o inconsciente, a atenção é dada a certos detalhes, como é o caso da substituição de palavras. Basta, para isso, que o contexto seja envolvido por um sonho ou uma fantasia, como diz Fink (1998). Isso tem razão de ser, pois a linguagem do inconsciente obedece a um tipo de gramática (regras estabelecidas), comandando os possíveis deslizamentos que podem aí acontecer. Por isso que mais facilmente são percebidas essas manifestações lingüísticas nos sonhos, momento em que o inconsciente passa a se articular de forma mais atuante. O recalque exerce um fator de extrema importância, uma vez que ele pode determinar a acessibilidade ou a inacessibilidade de uma certa palavra ou parte dela ao consciente, isto é, o recalque originário se presentifica sempre ao longo da vida do falante em função do processo de substituição de significantes. Quando uma palavra, por algum motivo, é falada com acepção diversa da que costumeiramente é, ou é a partir dela feito um trocadilho, ela passa (é uma possibilidade!) a exercer um novo papel para o falante, o de atualização do recalque originário, fazendo com que, de alguma maneira, o falante, inconscientemente, relacione essa nova enunciação à intervenção paterna, o que substituiu, portanto, o papel da mãe. Pelo fato de relacionar o inconsciente e a linguagem, Lacan não pretende dizer que o inconsciente é estruturado como uma língua qualquer, visivelmente regrada, mas há uma sujeição a uma espécie de gramática que dita as “regras do jogo”, isto é, há um conjunto de regras que comandam a transformação que existe dentro dessa linguagem. Continuando a explanação sobre inconsciente e linguagem, poder-se-ia dizer que, segundo Fink (1998), o inconsciente é uma cadeia de significantes, mais outro motivo para ser comparado à linguagem. Além dessa estrutura que dá forma ao inconsciente, pode-se dizer também que ele (o inconsciente) está cheio de falas outras, de outras pessoas, desejos, vontades de outras pessoas. O inconsciente está cheio de outras vozes porque, ao nascer, a criança herda a linguagem dos seus iguais, se concebe a linguagem aqui como aquela aos moldes da que estrutura o inconsciente. Daí, se a linguagem não é uma invenção individual, mas coletiva, por conseqüência, o inconsciente é povoado por outras vozes. Vê-se assim que o inconsciente é representado de diversas formas, dentre as quais são mencionadas: o Outro é visto como linguagem (não podendo, aí, deixar de considerar a idéia de todos os significantes reunidos), o Outro como demanda, o Outro como desejo, o Outro como gozo, o Outro com lugar e como sujeito. O Outro é, sobremaneira, o lugar do significante, é o registro do simbólico. Sempre há significantes faltando, eles trabalham na incompletude; sempre novos significantes são introduzidos. O lugar do significante é denominado de Outro porque nunca pode ser o mesmo. O movimento acontece na alteridade. Embora essa alteridade esteja no próprio sujeito do inconsciente, não se pode deixar esquecer o fato de que “falar é antes de mais nada falar a outros” (LACAN, 1988, p.47). A palavra é do Outro e do outro, e é assim que a alteridade se apresenta. Corrobora Jorge (2002, p.92), dizendo que: [...] atestar que ‘não há Outro do Outro’ implica formular a radical incompletude do Outro: para além desse regime faltoso, furado da linguagem, nada vem em suplência. O Outro não poderia possuir uma alteridade para além de sua própria, ele já é a alteridade, ele já é Outro continuamente: nada vem lhe garantir qualquer limite definido. O outro já é alteridade porque ele ‘funciona’ com o sujeito falante. É através da linguagem do inconsciente que o sujeito fala, fala o que quer e o que não quer, mesmo sem saber que não quer. Vê-se nessa relação entre o Outro e o eu uma forma de interação. Lacan, nas palavras de Fink (1998), diz que o sujeito cartesiano também é transitório, pois assim que faz suas elucubrações (pensa), sua necessidade de existir cessa; ele precisa dizer para si mesmo que ‘pensa’. Depois disso, não há mais razão para existir, embora ele continue existindo; o pensamento do sujeito em relação à sua própria existência dispensa outras cogitações acerca do pensamento de manutenção desse existir. A idéia de falar nesse sujeito cartesiano é fazer um paralelo entre o sujeito controlado, que sabe tudo, uno, pleno e o sujeito da falta, do desejo (sujeito consciente & sujeito inconsciente). O sujeito de Descartes se completa em si mesmo; ele é só, visto que não precisa do outro para constituí-lo. Diz-se isso porque sua fala só é sua, é pensada, é produto unicamente seu. Porém, a idéia de sujeito na psicanálise se expande mais, posto que o sujeito não sabe o que fala, não sabe o que está nem quem está por detrás de sua fala. E se souber, sabe parcialmente, sabe muito pouco. Mesmo sem saber precisar a existência de outros no sujeito, admite-se a idéia do dual, de outros mesclando a sua essência. A questão da alteridade na obra lacaniana deve ser compreendida em relação a dois conceitos fundamentais: outro, chamado também de outro minúsculo, e Outro, denominado de grande Outro, equivalente à ordem simbólica. O Outro é o lugar do significante, equivale ao lugar a quem se dirige o discurso do sujeito e de quem o sujeito recebe sua mensagem de forma invertida, visto que fala ao eu através do outro. Numa comparação com o circuito comunicacional entre indivíduos falantes, com diferenças bem claras, pode-se dizer que tanto o Outro pode ser emissor quanto destinatário, razão por que se fala em inversão de mensagem, afinal esse Outro, de alguma forma, é sujeito, ou compõe a subjetividade. A concepção de subjetividade ultrapassa os limites da idéia cartesiana do sujeito: “Penso, logo existo”. Em Lacan, o sujeito se abstém de consciência não porque quer. Por isso, na psicanálise lacaniana, o sujeito não sabe quem realmente ele é; do contrário, seria cartesiano, pleno e senhor de seu dizer. Isso pode ser claramente visto a partir da máxima: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”. Lacan enxerga a questão do dialogismo além das fronteiras entre um eu e um tu (outro), como Bakhtin previa. Segundo Lacan, falar em sujeito implica incluir um Outro, seja como lugar da verdadeira palavra, lugar do inconsciente, lugar do significante ou lugar da falta. Então, para uma melhor visualização da subjetividade e suas possíveis interações, Lacan utiliza o esquema L, o qual é constituído dos seguintes elementos: o S (sujeito analítico), o moi (eu), o outro e o Outro. Segundo Lacan (1985), o sujeito analítico não é sujeito na sua totalidade, pois se assim fosse não haveria interação; cada um estaria no seu canto, completo. Segundo o mesmo autor, o sujeito está na sua abertura, diferentemente dos planetas, que estão fechados em si, pois são redondos, não falam. E como não falam, não interagem, conseqüentemente, não se pode falar que existe alteridade nos planetas. Por outro lado, o eu e o outro têm uma relação de implicação mútua, pois nessa reciprocidade especular o eu consegue se ver no outro, promovendo assim para si a idéia de um outro fora de si, um outro que perpassa o centro de sua existência. Como diz Lacan (1985, p. 307): [...] o eu é uma forma absolutamente fundamental para a constituição dos objetos. Em particular, é sob a forma do outro especular que ele vê aquele que, por razões que são estruturais, chamamos de seu semelhante. Esta forma do outro tem a mais estreita relação com o seu eu [...]. Como se observa no gráfico abaixo (esquema L), nas relações intersubjetivas, o sujeito tem um eu no qual ele se vê, a ponto de crer que o “eu” é “ele”. O sujeito S do esquema L é o sujeito da experiência analítica, na sua incompletude e ignorância. O eu, que é a imagem do sujeito, é a construção imaginária que ele edifica em relação à sua imagem especular. De acordo com Dreyfuss, Jadin e Ritter (1999, p.204), a relação entre o eu e o outro no esquema L reproduz a relação entre o sujeito e sua imagem especular no estádio do espelho. [...] opticamente o outro é uma imagem virtual (no sentido ótico onde ele é obtido pelo prolongamento de raios luminosos por trás do espelho) e que, como imagem especular, ela é invertida em relação ao objeto ótico que constitui o corpo, de maneira que se pode dizer que no esquema L o eu recebe do outro especular sua própria imagem de forma invertida (tradução minha).1 Em termos cronológicos, sabe-se que o estádio do espelho foi criado por Lacan primeiro que o esquema L. O estádio do espelho passou a ser usado por Lacan em 1936, de acordo com Roudinesco e Plon (1998); já o esquema L foi utilizado pela primeira vez na lição de 25 de maio de 1955, conforme afirmam Dreyfuss, Jadin e Ritter (1999). No estádio do espelho, podem-se observar dois termos em evidência: o eu e o outro, cada um aparecendo à medida que cada fase ia sendo vivenciada pelo indivíduo. É mister percorrer as fases pelas quais passa a criança para que sua subjetividade se constitua, em um processo de espelhamento, na perspectiva lacaniana. O espelho, como pontifica Dor (1989), serve de instrumento para que a criança conquiste a imagem do seu próprio corpo. O 1 “optiquement l’autre est une image virtuelle (au sens optique où elle est obtenue par le prolongement des rayons lumineux derrière le miroir) et que , comme l’image spéculaire, elle est inversée par apport à l’objet optique que constitue le corps, de sorte que l’on pourrait dire que dans le schéma L le moi reçoit de l’autre spéculaire sa propre image sous une forme inversée”. feedback imagético decisivamente promoverá o eu estruturado à criança, pois até então ela passa por uma etapa psíquica que Lacan chama de fantasma do corpo esfacelado. A constituição do sujeito se dá, inicialmente, quando a criança procura ver na imagem do seu corpo um outro ser, ao qual ela deseja se assemelhar. É a primeira cogitação de desejo, em termos de similaridades e diferenças que ela faz entre si mesma e o outro. No segundo momento, ela percebe que o outro, tido antes como realidade, nada mais é do que o outro imaginário. A partir desse momento, ela sabe distinguir o que é a imagem do outro e o que é a realidade do outro. Vencida essa etapa, dois “outros” são apresentados à criança, um que é seu reflexo e que se confunde com ela e um outro que está fora dela (resultados, ambos, de uma “estrutura” ótica). Esses outros irão fazer parte da sua constituição como sujeito e, conseqüentemente, das interlocuções das quais ele fará parte. Dessa forma, ela passa a ter consciência de um interlocutor real, para o qual dirige sua fala. A criança toma consciência de que o que via no espelho era a sua própria imagem; e não um outro, como pressupunha. Após esse processo de (auto)/(re)conhecimento, ela passa a juntar as peças do ‘quebra-cabeça’: unifica-se o corpo esfacelado, permitindo que, metaforicamente, se faça um paralelo entre a imagem do seu corpo unificado e a sua identidade, constituindo-se, então, enquanto sujeito. Somente em 1955, Lacan cria o esquema L, através do qual a visão da subjetividade é melhor explicitada. Agora, em vez de três, existem quatro termos: o sujeito, o eu, o eu ideal (outro) e o grande Outro. (Es) S (moi) a a’ (autre) Autre FIGURA 1: Esquema L FONTE: Lacan (1985) O outro é uma imagem virtual, pois é uma imagem inversa, assim pode-se dizer que o eu recebe do outro especular sua própria imagem de forma invertida. O sujeito se dirige a um semelhante, supondo estar diante de sua própria imagem, pois aqueles com quem fala são aqueles com quem se identifica. A relação imaginária, ou o muro da linguagem, impede que o sujeito se dirija diretamente ao “Outro verdadeiro”, fazendo com que ele se identifique com um outro especular, numa posição onde se aproxima do seu eu como se fosse esse eu que falasse. Lacan utiliza o esquema L para criticar a concepção de análise como um reencontro do“eu com um outro eu”, no qual o analista se oferece de modelo ao analisando. Assim: O sujeito reencontra o seu próprio eu imaginário essencialmente na forma do eu do analista. Aliás, esse eu não permanece simplesmente imaginário, pois a intervenção falada do analista é expressamente concebida como um encontro do eu com um eu [...] (LACAN, 1985, p.309). A análise deve visar à passagem da verdadeira palavra que junta o sujeito a um outro sujeito, do outro lado do muro da linguagem. Por esse motivo, o analista deve se apagar, ficando no lugar do Outro, o verdadeiro respondente. É se separando/ libertando da relação imaginária que o sujeito entra em relação com o Outro, de quem ele recebe as respostas às suas perguntas. O emissor recebe do receptor sua própria mensagem de forma invertida. Nesse sentido, pode-se dizer que AS, isto é, a linha que vai do Autre (Outro) ao sujeito da análise (representado por S), simboliza que o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem, a qual é invertida. O outro especular é mediado pela palavra do Outro, o qual é responsável pelo triplo reconhecimento: reconhecimento por parte da criança, antes de aprender a falar, da sua imagem no espelho, reconhecimento entre a relação dessa imagem e seu meio especular e o reconhecimento da relação desse complexo virtual (sempre levando em conta o sentido ótico do termo), isto é, a realidade se duplica, o corpo da criança e as outras pessoas/objetos ao seu lado são seres bem distintos. O eu é uma construção imaginária tanto para o neurótico quanto para o psicótico. O psicótico é aquele que adere somente ao imaginário. No neurótico, que é foco desta dissertação, não se podem confundir o eu e o S: o S é o sujeito analítico. Porém, ele não sabe o que diz. Se soubesse, estaria no lugar do Outro, lugar do desconhecimento. Através da capacidade de espelhamento, o S se vê em a, e é por isso que ele tem um eu. O eu é uma forma fundamental para a constituição dos objetos. Vê-se, assim, que a alteridade, considerando o eu e o outro, é fundamental para que se chegue à dimensão de alteridade entre o eu e o Outro. No tocante ao eu e outro, Lacan (1985) diz que é sob a forma do espelho que ele vê aquele que se chama de seu semelhante. Esta forma do outro possui uma estreita linha divisória em relação a eu. É preciso distinguir um outro plano, que é o muro da linguagem. A partir daí, é perfeitamente possível falar sobre a alteridade que circunda o eu e o Outro. Ao considerar o muro da linguagem, o imaginário, isto é, o eu e o outro, toma sua falsa realidade. Assim, o eu e o outro, estes imaginários passam a ser objetos. Na medida em que o sujeito põe o outro em relação com sua própria imagem, aquele pequeno a’ é aquele com quem vai haver uma identificação, ou seja, o eu não vai saber distinguir quem é ele mesmo e quem é o outro. Entrando a figura do grande Outro, A, a cena de interação se amplia, uma vez que, mesmo sem saber, os sujeitos se direcionam ao grande Outro, verdadeiro sujeito. O Outro está no outro lado do muro da linguagem, onde, em um primeiro instante, não é dado a ninguém conhecer ou alcançar. É a ele que fundamentalmente visa o eu cada vez que pronuncia uma fala, mas sempre alcança a’, por reflexão. Assim, pode-se dizer que a fala é fundamentada na existência do Outro, o verdadeiro. Todavia, a linguagem é feita para que se possa remeter de volta ao outro objetivado, ao outro com o qual se pode fazer tudo o que quiser, até a ponto de dizer que é um objeto, e por ser objeto, ele não sabe o que diz, repercutindo no eu, tendo em vista a imagem do espelho. O funcionamento da linguagem se dá, considerando o eu, o outro e o Outro, dentro de uma certa ambigüidade. Lacan (1985, p.308) diz que “a linguagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir radicalmente de entendê-lo”. Por isso se fala em ambigüidade. O sujeito não sabe o que diz, e pelas mais válidas razões, porque não sabe o que é. Ele se Vê do outro lado, de maneira imperfeita, devido ao caráter inacabado da imagem especular, que, além de imaginária, pode ser considerada ilusória. O sujeito, num estágio bem inicial, tem suas formas todas despedaçadas, mas ele desconhece tal fato. A junção desses objetos parciais se dá através da imagem do outro. De acordo com a fala de Lacan (idem, p. 309), “o eu só pode ir juntar-se a si mesmo e recompor-se por intermédio do semelhante que o sujeito tem diante de si – ou atrás, o resultado é o mesmo”. Nesse sentido, pode-se concluir que a constituição do sujeito vai se tornando cada vez mais complexa, pois, no primeiro momento, o outro pequeno é que inicia o processo rumo à unificação do corpo esfacelado; depois vem o Outro grande, a grande voz que conduz toda a cena, dizendo ao eu que ele não é o outro, mas ele mesmo. Na relação imaginária especular, o real pertence basicamente ao eu, pois é construído individualmente, mas sempre em relação ao outro. Em termos mais práticos, pode-se dizer que o bebê vê a si mesmo, mas não sabe que ele é aquele exatamente. O Outro, performado pela mãe, dita quem realmente o bebê é – aquele da imagem. A partir daí, o grande Outro definitivamente passa a atuar. A mensagem invertida tem uma grande função nesse circuito de autoconhecimento, visto que a mãe (grande Outro) passa a mensagem através do outro pequeno, claro que esse raciocínio só pode ser aplicado a um sujeito neurótico que, via de regra, é o sujeito aparentemente normal. O grande Outro não fala com o bebê diretamente; ele fala via outro pequeno. Essa é a grande razão de dizer que o sujeito realmente não sabe o que diz, pois diz, através do outro especular, utilizando chistes e atos falhos, a mensagem que tem como fonte original o Outro, verdadeiro sujeito do inconsciente. O outro é o semelhante com o qual o sujeito se identifica no diálogo, e o Outro é o lugar de onde se apresenta a questão de sua existência. Chemama (1995, p.107) diz que ‘o inconsciente é o discurso do Outro’ e esse discurso é enviado ao eu, por intermédio do outro, razão por que se defende que o sujeito também se constitui no lugar do Outro, na dependência daquilo que se articula como discurso. É dessa maneira que se percebe uma outra nuança na compreensão do sujeito, pois, para Bakhtin, as relações dialógicas se dão entre, basicamente, um eu e um outro sócio-histórico, figurando como centro o eu, já que ele assume a fala. Embora o outro invada o seu dizer constantemente, tem-se idéia de que esse eu bakhtiniano se insinua mais, é mais consciente e, portanto, vez por outra, está atento ao fato de que aquilo que diz não pertence a si, mas ao outro. Dessa maneira, tratase, em Bakhtin, de uma noção de outro que simplesmente ecoa no eu, constituindoo até, porém deve-se deixar claro que tal constituição não sucumbe à autonomia do eu, pois este fala o que quer falar, por mais que essa fala não lhe pertença. Por outro lado, em Lacan, essas relações são vistas de forma mais ampliada, através da inclusão do Outro na questão da subjetividade e suas interações. Afinal, esse Outro é o grande foco de toda esta discussão; é dele e para ele que as mensagens são enviadas, embora essas mensagens tenham sempre que passar pelo filtro do muro da linguagem. Indo um pouco mais além, a relação entre o eu, o outro e o Outro é de extrema dependência daquele em relação a estes, quer dizer, o eu lacaniano só é eu na presença do outro especular e só se reconhece como eu fora do outro mediante a ordem vinda do Outro grande, verdadeiro sujeito. Na verdade, o outro pequeno é o instrumento de interação utilizado pelo Outro para mediar sua presença lingüística no eu. Assim sendo, o Outro é o lugar onde a psicanálise situa, além do outro imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao sujeito, o determina. Para Bakhtin a idéia de diálogo se constitui através da interação entre o eu e o outro, cuja voz ecoa no dizer do falante. Para Lacan, essa alteridade se dá em três momentos, se é que é possível dividir tais fases: primeiro, o eu com o outro, o qual é a sua própria imagem refletida no espelho; depois o eu e o Outro, já que é ao Outro que o eu fala e ao eu que o Outro fala. Por fim, vê-se que esses três componentes subjetivos formam um todo, resultando numa dependência entre os três, de forma que se possa conceber o sujeito em sua dimensão existencialista e essencialmente lingüística marcada por uma alteridade, indo decisivamente além do outro pequeno. Portanto, o verdadeiro sujeito lacaniano, diga-se o Outro, não pode ser examinado sem se falar em um eu e um outro, pois é através deles que seu potencial em termos de linguagem pode se expressar. É necessário fazer a distinção entre o outro e o Outro: o outro é o semelhante, parceiro imaginário; o Outro é a ordem exterior e anterior ao sujeito que o domina mesmo sem que ele saiba que isso acontece. Embora não haja palavra entre o eu e o outro, já que este é imaginário, não é possível subtraí-lo do esquema subjetivo, deixando a cena apenas com o eu e o Outro, pois o Outro é inconsciente; ele subjaz o dizer, o qual é supostamente conduzido pelo pequeno outro imaginário. Partindo do eu em direção ao Outro, pode-se dizer que o liame é a linguagem, é a palavra. Por isso que o Outro pode ser confundido com a ordem da linguagem. Tendo em mente examinar melhor o status do inconsciente, admite-se que ele constitui a parte de um discurso concreto, do qual o sujeito não dispõe. O inconsciente não é um sujeito escondido dentro do próprio ser, mas deve ser concebido como transindividual, isto é, como o discurso do Outro. É a partir do Outro que o sujeito fala e deseja, daí a afirmar que o desejo do sujeito é o desejo do Outro. Assim sendo, essa discussão abre espaços para possibilidades de expressão da subjetividade por meio de elementos que compõem a idéia de linguagem habitada/orquestrada por uma estrutura subjetiva circunscrita pelo eu, o outro(s) e o Outro, seja um outro sócio-histórico seja um outro imaginário, que serve única exclusivamente para que o Outro, sujeito do inconsciente, venha a interagir com o eu, determinando, a rigor, a sua fala. 4 Compreender o sujeito da linguagem atravessado pela psicanálise: uma tarefa possível? O inconsciente (S/A, S/D) O sujeito que fala não é amo e senhor do que diz. Na medida em que fala, em que pensa e utiliza a língua, é a língua que, na realidade, o utiliza: na medida em que fala, diz sempre mais do que quer e, ao mesmo tempo, diz sempre outra coisa. Jacques-Alain Miller Aqui, talvez por razões pessoais, de fuga ou assunção mesmo de formas veladas do lidar com a palavra, gostaria de ME e NOS posicionar em lugar claro e definido, saindo, um pouco, da posição do discurso forçosamente neutro e, por conseqüência, assumindo lingüisticamente as fraquezas como indivíduo e, quem sabe, alguns sucessos que foram sendo conquistados ao longo do processo de construção desta investigação, sem, contudo, excluir as outras vozes que invadiram (de maneira muito positiva!) o ato de tecê-la. Começar pela reflexão que o sujeito faz dele próprio enquanto falante parece ser tarefa fácil, porém a cada palavra que é escrita, encontros e desencontros vão sendo experimentados, visto que, como indivíduo, trafego nos espaços do mundo e das idéias e me identifico com o que a linguagem opera, já que também a utilizo como elemento de sobrevivência. Ora, falo dela e, através dela mesma, falo de mim, uma vez que também sou sujeito, através de meu eu, outro(s) e Outro. Não pretendi ser inédito ao lançar uma proposta de discutir o sujeito, sob as óticas da lingüística e da psicanálise, até porque outros já cuidaram de fazer essa ponte. Entretanto, minha inquietação maior (e isso foi ficando mais claro a cada palavra que nascia) foi e é entender como é o sujeito falante, como ele se comporta quando a linguagem é utilizada, como é essa linguagem, de onde ela vem de fato, se é o eu o único ponto de partida para que a linguagem tenha seu lugar, ou, se para isso, é preciso haver um outro, com o qual o eu interage. Então, por falar em sujeito que fala, acabei priorizando as contribuições de teóricos como Benveniste, Bakhtin e Lacan, nessa seqüência, sem evitar, vez por outra, a antecipação de conceitos que, de início, viriam em uma ordem elencada e estanque, caso eu tivesse seguido com rigor o plano seqüencial inicial. Essas antecipações foram úteis para auxiliar o desenrolar dos questionamentos e possíveis desatamentos de nós. Por outro lado, não hesitei em chamar para a discussão outros autores, como Flores, Authier-Revuz e Teixeira, pois discutem também, embora com objetivos diferentes, a idéia de alteridade na linguagem, seja através de um outro bakhtiniano seja de um outro (e um Outro) lacaniano. O caráter desta investigação figura-se exatamente na questão central que todos esses teóricos e autores mencionados trabalham direta ou indiretamente: o sujeito. Todavia, aparando as arestas, é muito visível que minha intenção foi mais exclusiva em relação a esses mencionados, isto é, lançar olhares sobre o subjetivo, aquele que movimenta a linguagem, sem o qual ela não teria motivos para existir; mas falo de um sujeito marcado inteiramente pelo fato de ele ser dialógico, visto que, ao interagir com outro(s), a linguagem se consubstancia. Embora ela seja ‘proferida’, ‘dita’, ‘assumida’ por um eu, percebemos que esse eu é apenas uma pequena parte diante do todo, isto é, apenas na interação entre o sujeito e a alteridade a linguagem tem seu lugar. Narcisista até, mas é fascinante falar de você, falar do que é seu e, em anexo, toda a sua imprescindibilidade. Então, falei de mim, pois sou sujeito falante; falei dos outros, que estão constantemente em meu dizer (por isso a obrigatoriedade do eu e do nós), falei até daquele que pouco conheço, como indivíduo, mas que tentei visualizar melhor no campo do saber, da apreensão conceitual; aquele que chamam de ‘o Outro’. E esse sim, mais do que muitos pensam, ‘diz’, ‘produz’ linguagem; aliás, ‘é’ a própria linguagem. Como meu objetivo foi discutir a arquitetura subjetiva dentro da linguagem, nada mais pertinente do que ter trazido a concepção benvenistiana de enunciação para as primeiras páginas desta dissertação. Achei por bem utilizá-la porque ela parecia dar conta de elucidar o fato de que a língua, vivificada pelo sujeito, acontece exatamente nessa cena enunciativa. Daí, pensar um sujeito habitando a linguagem seria, ao meu ver, mais pertinente se trouxesse para o calor da discussão o fenômeno da enunciação, posto que a perspectiva que escolhi para investigar foi a dialógica. Os questionamentos foram prosseguindo, mas tudo, ainda, apontava para a incoerência mais do que para uma conclusão bem feita e coesa. Nesse ponto, com Benveniste, indicando o caminho a percorrer, limitava-me a pensar numa alteridade que não ia além de um eu-tu. Sim! Esse tu, que mais tarde vamos chamar de outro(s), já era entendido como aquele que constitui o eu. Mas algo faltava. Eu não sabia exatamente o que era. Embora eu já tivesse a informação de que o inconsciente subjaz o dizer, não sabia como fazer o link com a enunciação, entretanto, prossegui. Mesmo não de maneira explícita, por vezes, tinha a impressão de que, ao constituir o eu, o tu era permeado por outra voz (ou era o eu que me passava essa idéia?). Bem, de uma maneira ou de outra, Benveniste foi muito útil, afinal, ele é um dos pioneiros a fazer estudos sobre o sujeito na linguagem. Para a minha finalidade, dentro das limitações que possuo, a teoria benvenistiana sobre o sujeito me ajudou, sobretudo aí, isto é, quando ela diz que o tu constitui o eu. E isso é perceptível no momento em que a língua está sendo posta em uso (enunciação). A língua, antes vazia e estática, depois de operada por um sujeito, torna-se inegavelmente matéria viva, torna-se subjetiva, pois o sujeito a habita. E mais: um sujeito, o eu, é habitado por, pelo menos, outro sujeito, o tu. Chega a vez de Bakhtin entrar em cena. Como tudo acontece? Bem, certos processos não podem ser planejados (embora devam ser). Eles vão acontecendo. Pois bem, a idéia de dialogismo corroborou a noção de constituição do tu em relação ao eu. Acho mesmo que, em certos momentos, Bakhtin e Benveniste falam da mesma coisa; apenas utilizam a terminologia diferenciada, além de processos e universos diferentes, já que, para Bakhtin, o sujeito é dialógico numa dimensão sócio-histórica. No dizer de Morato (2004, p. 333), O dialogismo bakhtiniano – que podemos observar na heterogeneidade enunciativa, na polifonia, nos discurso relatados, nas diferentes posições enunciativas assumidas pelos falantes – marca discursivamente a concepção de sujeito: o sujeito é interpelado e reconhecido socialmente por meio dos outros, por meio do discurso dos outros, por meio de discursos outros que constituem o seu próprio discurso. Então, com o olhar bakhtiniano, só podemos nos referir à linguagem como algo eminentemente dialógico. A implicação do outro na fala do eu é permanente e histórica, vem de várias gerações, lugares distantes, fronteiras culturais diferentes até. Isso, portanto, vai diferenciá-lo de Benveniste, para o qual a linguagem parece só ter vez entre falantes físicos, vivendo espaços semelhantes, embora virtuais, por exemplo, na atualidade, através de chats ou e-mails. O trato psicanalítico amplia o entendimento sobre o sujeito, pois traz para a arena da linguagem uma outra categoria, o inconsciente (o Outro), o qual, mesmo tendo sempre existido, só encontra lugar para ancoragem na psicanálise. Como o intuito aqui é descortinar o sujeito da linguagem constituído pela intersubjetividade, quer dizer, por um outro e pelo Outro, é possível chegar, não a conclusões, mas a profusões maiores desse sujeito que, maquiado, para não dizer ausente, no percurso dos estudos lingüísticos, ao longo da história da humanidade, vem paulatinamente se mostrando presente na linguagem, a ponto, inclusive, de ser visto como tri-uno, uma vez que aqui, ao falar de sujeito, entendemo-lo analogicamente a uma equação, isto é, sujeito na linguagem = eu, outro e Outro. Digo isso, porque, ao contemplar a afirmação lacaniana de que o ‘inconsciente é estruturado como uma linguagem’, a máxima cartesiana de que o sujeito tem o controle de tudo que fala é derrubada, dando vez a uma subjetividade que se encontra não apenas marcada lingüisticamente, isto é, na superfície da língua, mas para um sujeito, o Outro, que é, nesse dizer, a própria linguagem. E já antecipando para explicar melhor a intersubjetividade e sua conseqüente interação, podemos dizer que o Outro, embora dite o que o eu fala, não fala a ele diretamente; fala ao outro especular. Como esse outro pequeno tem uma relação direta com o eu, a qual é imaginária, o eu recebe a mensagem do Outro de forma invertida. A questão da interação dentro da lingüística é algo que tem seu espaço não de muito tempo, se nos reportarmos, é claro, aos primórdios dos estudos sobre a língua, na Grécia e Roma antiga. Atualmente, a idéia de interação permeia o trato com a língua nos seguintes domínios da lingüística: sócio-lingüística, pragmática, psicolingüística, semântica enunciativa, análise do discurso etc. Percebemos, aí, uma externalidade nunca antes observada, visto que tais campos lingüísticos trafegam para fora do sistema, dialogando com o exterior e, portanto, considerando as heterogeneidades da constituição desse mundo externo, o qual, por sua vez, marca o funcionamento da linguagem por quem a utilize. Assim, pensamos que toda ação humana procede de uma interação, e como a linguagem é uma ação, um traço característico exclusivo do componente humano, não podemos excluí-la do raciocínio de que também é, por excelência, interativa. Depois de Saussure, vemos que a tentativa tem sido vigilante no sentido de ultrapassar os limites das dicotomias propostas por ele (língua & fala, sujeito & objeto, competência & desempenho), uma vez que a ênfase no sujeito e seus coparticipantes, quando utilizam a linguagem, é o grande desafio dessas mais recentes vanguardas que vêm mostrando que se devem inserir na ciência da linguagem as considerações acerca das práticas sociais nas quais a linguagem está imersa e que a constituem; o aspecto pragmático que ronda a utilização da linguagem, na qual os componentes subjetivos da língua vão garantir o seu funcionamento; além das condições, sobretudo, ideológicas da produção lingüística. Dessa forma, não há como refutar, através dessas práticas discursivas, o estatuto do outro na vida lingüística do sujeito. Mas de que outro estivemos falando? A nossa pretensão foi tão-somente pôr em relevância as posições teóricas assumidas pela lingüística no tocante à subjetividade com implicação direta na intersubjetividade, sem deixar, contudo, de apontar para novos ou diferentes horizontes, considerando que a psicanálise lacaniana pode ajudar nessa reconfiguração, trazendo assim conseqüências epistemológicas para a ciência da linguagem. Nesse pensar sobre o sujeito lingüístico sob um olhar psicanalítico, vemos que implementos outros advêm, isto é, a intersubjetividade, o que não é um fato novo para a lingüística, passa a ser vista com uma outra roupagem, com a emergência do inconsciente, o qual, ao longo desta dissertação, chamamos de ‘o Outro’. Por falar em intersubjetividade, devemos perceber, além de sua direta equivalência etimológica, as implicações semânticas a que somos conduzidos. Ou seja, o prefixo inter remete à idéia de reciprocidade entre, pelo menos, dois seres. Mesmo sem haver, em princípio, a referência à idéia de ‘ação’, assim consideramos o ato intersubjetivo, posto que diz respeito à linguagem. Assim sendo, o conceito de linguagem como ‘ação’ entre sujeitos que interagem vem completar a concepção sobre o elemento intersubjetividade. Dessa forma, o sujeito se inscreve num quadro social em que não pode ser pensado sem que haja a defesa em relação ao seu caráter sócio-histórico, o qual, via de regra, jamais é neutro, pois traz em sua fala o eco das vozes de outros, razão por que acreditamos numa linguagem circunscrita por uma alteridade, seja ela na presença, como defende o arquétipo benvenistiano ou como a postura bakhtiniana sobre o outro na fala de quem fala. Enquanto, para Benveniste, a intersubjetividade é marcada pela presença física entre os falantes de uma língua, num espaço comum entre os dois, ideal para a realização do consenso pragmático, que é exatamente a alternância entre o eu e o tu como locutor e ouvinte, para Bakhtin, a intersubjetividade não se dá necessariamente pela interação presencial, pois ela está marcada por um outro mais distante, se não nos ativermos somente à questão dos corpos dos falantes; trata-se, sim, de um outro ideológico, um outro que se inscreve na fala do sujeito mesmo sem ele planejar. Detectamos que o outro, enquanto discurso e interdiscurso, é constitutivo da linguagem. Desse modo, a interação não se refere de forma exclusiva ao discurso oral, realidade descrita por Benveniste. Tal situação nos abre caminhos para pensarmos em um sujeito que é constituído por outro(s) e/ou Outro (o sujeito ou o lugar do inconsciente). Então, esse inconsciente de que falamos não implica, apenas, uma falta de consciência, mas, sobretudo, consideramo-lo como uma unidade lingüísticodiscursiva, como lugar ou mesmo como sujeito ‘da outra cena’. Por isso, o falante desconhece, muitas vezes, o que está dizendo, da forma como está dizendo. Por essa razão, é pertinente alargarmos o raciocínio sobre que elemento outro é esse que constitui o eu. Será o mesmo tu benvenistiano, será o outro mesmo sóciohistórico bakhtiniano? Ou será o inconsciente lacaniano? Qual é a relação entre esse sujeito constituído por um inconsciente e a idéia de interação na lingüística? Pois bem, retornando às considerações lacanianas, gostaria de maximizar as possibilidades de reconfiguração desses horizontes sobre o sujeito na lingüística, acima propostos, uma vez que falar em alter (outro), povoando a fala do eu, remete inevitavelmente ao Outro enquanto sujeito que constitui o eu, pois esse Outro age de maneira tão escamoteada a ponto de fazer qualquer falante pensar que a sua fala pertence a si mesmo. Na seara psicanalítica, o termo inconsciente é tomado como sendo o lugar desconhecido pela consciência; trata-se, de fato, de uma ‘outra cena’, como dizem Roudinesco e Plon (1998). Para Freud, o inconsciente é, ao mesmo tempo, interno ao sujeito e, por conseqüência, à sua consciência, e externo a quaisquer possibilidades de dominação por parte da consciência. Sendo assim, não há como pensar que o outro bakhtiniano se exclui dessa concepção inconsciente. Isso quer dizer que, apesar de não ser feita nenhuma alusão ao inconsciente da psicanálise, não podemos deixar de considerar que, no texto bakhtiniano, é perfeitamente possível percebermos que a carga semântica do aspecto inconsciente, senão o mesmo da psicanálise, leva o leitor a conotações que sobrevoam essas mesmas considerações psicanalíticas, quer dizer, quando nos remetemos à alteridade em Bakhtin, vemos que o outro sócio-histórico se assemelha ao Outro lacaniano, posto que o falante, na visão bakhtiniana, traz em seu discurso o que não é dele, vem de uma alteridade subjetiva, o que às vezes se revela como consciente ou inconsciente para o falante. Talvez aí resida a diferença: o sujeito, no plano lacaniano, fala muitas vezes o que vem do Outro, através do outro pequeno, já que é ele que se relaciona, na dimensão imaginária, com o eu. Os chistes, atos falhos, por exemplo, são exemplos lingüisticamente concretos do que é ditado pelo inconsciente, mas que não é fato permitido ao eu conhecer. Então, retomando as categorizações da lingüística, seria possível lidar, em um primeiro instante, apenas com um sujeito constituído por um outro que, necessariamente, está na presença, na cena enunciativa, ou por um outro sócio-histórico, o qual não se diz declaradamente constituído por um inconsciente. Porém, passamos a ‘suspeitar’ dele, já que achamos que ele está na outra cena, que está para além de onde podemos vê-lo. Nesse sentido, temos de repensar o estatuto desse sujeito falante cujas dimensões podem ser mais bem examinadas se trouxermos para o seio da discussão a outra cena (o inconsciente). Em outro momento, já citamos a tese lacaniana, sem a qual nossa sustentação não seria válida: ‘o inconsciente é estruturado como uma linguagem’. Tal afirmação nos leva à ponderação sobre a linguagem produzida pelo sujeito falante, uma vez que o inconsciente constitui a fala do eu. Além disso, podemos também recorrer a uma outra afirmação lacaniana: ‘a linguagem é a condição do inconsciente’. Quer dizer, se o inconsciente condiciona a linguagem, não vemos meio de excluí-lo no tocante ao fato de que o eu é constituído, sim, por outro(s) e pelo Outro. O pensamento lacaniano de uma primazia da linguagem assenta-se no fato de que o indivíduo não é dono de sua fala; ela é anterior a ele. Pelo contrário, a linguagem o institui/constrói como sujeito. O indivíduo, antes mesmo de saber o que diz sua fala, começa a falar. O sujeito enquanto efeito da linguagem é preso pelo funcionamento da língua por um outro falante mesmo antes de vir a ser sujeito. Nesse tocante, não pertencemos a nós mesmos, mas a uma espécie de alteridade, pai-mãe-soceiedade com/em que vivemos. Lacan explica a estranheza dessa forma: nascemos em um mundo de discurso, um discurso ou linguagem que precede nosso nascimento e que continuará após a nossa morte. Muito antes de uma criança nascer, um lugar já está preparado para ela no universo lingüístico dos pais: os pais falam da criança que vai nascer, tentam escolher o nome perfeito para ela, preparam-lhe um quarto, e começam a imaginar como suas vidas serão com uma pessoa a mis no lar. As palavras que usam para falar da criança têm sido usadas, com freqüência, por décadas, senão séculos e, geralmente, os pais nem a definiram e nem as redefiniram, apesar dos muitos anos de uso. Essas palavras lhes são conferidas por séculos de tradição: elas constituem o Outro da linguagem, como Lacan chama em francês (l’ Autre du langage), mas que podemos tentar converter em o Outro da lingüística, ou outro como linguagem (FINK, 1998, p.21) Bakhtin (2003, p.163) também fala a respeito dessa pertença do sujeito para com o outro, a princípio, pai e mãe: Eu não começo a vida, eu não sou o seu iniciador axiologicamente responsável, não disponho sequer de um enfoque axiológico que me permita iniciar ativamente a série da vida responsável pelos valores e pelo sentido; eu posso agir e emitir juízo de valor com base na vida já dada e valorada; a série de meus atos não parte de mim, eu apenas lhes dou continuidade (como a dou também aos atos-pensamentos, aos atossentimentos e aos atos-feitos); estou ligado por uma indissolúvel relação de filiação à paternidade e à maternidade genealógicas (no sentido estrito da linhagem-povo do gênero humano. Na pergunta:’ quem sou?’, ouve-se a pergunta: ‘quem são meus pais, qual é minha genealogia?’). Eu só posso ser o que essencialmente sou; não posso renegar o meu essencial já-ser, porquanto ele não pertence a mim, mas à minha mãe, ao meu pai, ao gênero, ao povo, à humanidade (BAKHTIN, 2003, p. 163). Por essa razão, esse ato de captura do outro em relação ao sujeito falante representa um tipo de imanência da própria espécie humana, ou seja, mesmo antes de o sujeito existir numa esfera física, sua ‘moldagem’ vai sendo preparada, de início, por seus pais e, depois, pelos outros que, por ventura, se avizinhem, e, dessa forma, passando a constituí-los permanentemente. Parafraseando Dor (1989), a linguagem é uma atividade essencialmente subjetiva, por meio da qual o sujeito diz algo que pode ser completamente diferente do que acredita estar dizendo. E é exatamente nesse ‘diferente’ onde reside, pertinentemente, a categoria do inconsciente. Assim, esse algo diferente nada mais é do que o inconsciente instituído, o qual escapa na fala do sujeito, já que se encontra constitutivamente separado dele. Nesse percurso em que dialogaram os mais variados matizes teóricos, percebemos que considerar o sujeito com um olhar estritamente lingüístico pode deixar margem para incompletudes e interrogações sobre como o indivíduo se comporta na e pela linguagem, motivo pelo qual tratamos de viabilizar uma discussão que possa fornecer meios de trazer para o palco da reflexão outros componentes ontológicos que não devem ser esquecidos pelos saberes constituídos da lingüística ou pelo quadro epistemológico da ciência da linguagem, como é o caso do sujeito do inconsciente, que diz mais do que quer dizer. 5 Últimas considerações Nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar. Michel Foucault A tarefa de concluir um trabalho (ou fazer as últimas considerações) é, com certeza, mais difícil do que dar início a ele, uma vez que, pelo menos, duas implicações se impõem: uma delas é pôr um fim, dando um limite ao trabalho. Nunca o texto está perfeitamente acabado; sempre vão existir vozes incessantes povoando os seus domínios. Embora se saiba que nunca é demais quando se está lidando com o conhecimento, principalmente o conhecimento científico, cuja tessitura é bastante rigorosa e formal, há um ponto em que se deve parar, mesmo que seja momentaneamente, para, depois, se convier, dar-lhe continuidade. A outra implicação é a superação do mito de verdade aliado à idéia primeira de finitude. Esse estabelecimento de finitude com a busca da possível verdade é, na realidade, a maior preocupação de quem faz ciência, pois é preciso que se tenha um número mínimo de proposições e a descrição do caminho percorrido para se chegar a determinados resultados, de modo que seja viabilizada a finitude, pelo menos temporária, através das conclusões. Logo no início desta investigação, foi discutido o lugar do sujeito no discurso científico e na psicanálise. Chegou-se à conclusão de que se tratava de um mesmo sujeito, apesar de a atuação da psicanálise, como campo, não pertencer de modo algum à ciência, pois aquela opera por seus próprios ritos. A intersecção, portanto, entre a cientificidade e o psicanalismo é exatamente a questão subjetiva, sobre a qual vai incidir proposições de uma área do saber e de outra, além de constituir cerne de destaque para esta pesquisa. Desse modo, como já dito, a compreensão da figura do sujeito foi avançando, à medida que correntes e teorias iam sendo recapturadas. O sujeito tornou-se, assim, a parte central desta investigação. Com base nisso tudo, o princípio que norteou essa pesquisa articulou as idéias de sujeito, intersubjetividade, dialogismo, inconsciente, interação, procurando fazer com que a concepção de alteridade fosse entendida numa dimensão mais complexa. Para isso, procurou-se pensar essas noções à luz da concepção lacaniana de sujeito. Embora o sujeito e seu alocutário benvenistianos em si mesmos não sejam o ideal de sujeito para este trabalho, percebe-se que foi, sobretudo, a partir de suas preocupações, já que se referia a um tu fora do eu, que se desenvolveu a noção de outro que constitui o verdadeiro dizer do sujeito falante. Então, partiu-se para a concepção de alteridade por meio do dialogismo, veia teórica pela qual o pensar bakhtiniano reflete a constituição de um sujeito, ou seja, o sujeito falante é constituído ou atravessado por um outro sócio-histórico, aquele que não se presentifica no embate do diálogo físico, mas aquele que circunda e acaba ‘invadindo’ o falar, mesmo que não seja visto; trata-se realmente daquele sujeito da história: seu pai, sua mãe, seus avós, sua comunidade, seus antepassados, as gerações anteriores e até outras gerações contemporâneas a você, mas com as quais você nunca teve contato lingüístico direto: face a face, por telefone, e-mail, dentre outros. É como se você ouvisse ressôos vindo de algum lugar, vindo de alguém, mas também não se sabe como chegou até você, nem através de quem. Esse é o outro bakhtiniano, portanto, um sujeito de cunho mais ideológico. Não se pode dizer que os contornos do sujeito que se burilaram até agora só são, em sua essência, bakhtinianos. Apenas foram utilizadas as sua categorias, ou a sua principal categoria, no caso o dialogismo, para que se pudesse chegar a uma noção de sujeito que fosse além do sujeito contemplado tradicionalmente pela lingüística, mesmo aquela mais moderna, de ponta. Não que o sujeito tenha mudado de comportamento dentro do fenômeno lingüístico, mas que a história do pensamento lingüístico assim o escreve: primeiro imprime sua total ausência; depois, aos poucos, sua presença vai sendo notada. Quer dizer, não se trata se o sujeito, de fato, habita ou não a linguagem (ou é habitado por ela); o fato é que alguns autorizados não o incluíram nas suas preocupações, tanto por a ênfase de seus trabalhos ser outra, quanto pela crença em uma língua sistêmica, fechada em si mesma, não movimentada por um sujeito. Avançando em direção à psicanálise, foi possível chegar aos resultados, não quantitativos, como os das ciências exatas e da natureza, mas a resultados de cunho qualitativo, por meio de argumentos interpretativos. Assim, o que se descobriu desse sujeito pode até fraturar as concepções do senso comum, pois ele é, ao mesmo tempo, eu, outro e Outro, não havendo pontos visíveis de divisão, tampouco de junção. Esse compósito ‘eu, outro e Outro’, de uma maneira mais pragmática, é o verdadeiro sujeito. A teoria lacaniana fala que o verdadeiro sujeito é o grande Outro, mas não será o verdadeiro sujeito aquele mais completo, que conta com a alteridade estabelecida por um outro pequeno de uma relação imaginária e, ao mesmo tempo, com aquele grande Outro que dita as ‘regras do jogo’? Só para esclarecer, o outro da relação imaginária, muitas vezes, se assemelha ao outro dos moldes de Bakhtin, por mais que se chame de imaginário. Ele é imaginário para um eu, cujo narcisismo é tão profundo que precisa ver em um outro qualquer sua própria reflexão, mesmo que seja fruto da criação e ordenação do inconsciente. Por outro lado, o sujeito é como se fosse ‘diluído’ em várias instâncias, daí o motivo de não se poder acreditar nele como pleno, dono de sua fala. Ele é faltante, incompleto. Ele existe sim no mundo concreto, mas regrado, em todo momento, por um Outro sujeito, muito mais forte, pois age no silêncio e na incompletude; ele é o maestro que se afina para fazer sua orquestra tocar (no caso, o eu falar). Por fim, pode-se concluir dizendo que o objetivo geral desta investigação foi alcançado, visto que se conseguiu estabelecer alguns pontos de convergência e até de divergência entre a lingüística e a psicanálise, considerando a atuação dos sujeitos que compõem a interação pela palavra. Assim, foram trazidos para trafegar nas discussões feitas conceitos de um eu e um tu, que por vezes, foi tido como outro, além do inconsciente nesse circuito dialógico, através da noção lacaniana do Outro, promovendo, portanto, uma forma diferente de compreender a relação na e pela alteridade. Também outros objetivos mais específicos foram atingidos, isto é, o Outro constantemente empenha-se em estar no discurso do eu, ou seja, esse Outro lacaniano constitui o sujeito falante sempre discursivamente. O dialogismo, em todas as suas dimensões, fez com que se constatassem os movimentos da alteridade, tanto de um eu-tu, de um eu-outro, quanto de um eu-outro-Outro. Referências AUROUX, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. Tradução: José Horta Nunes. Campinas: UNICAMP, 1998. AUTHIER-REVUZ. Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. 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