Walison Paulino de Araújo Costa
Lingüística e Psicanálise:
Murmuros do inconsciente
Mercedes Vandondorno
uma discussão sobre o sujeito na
linguagem
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Área de Concentração: Lingüística e Língua Portuguesa
Walison Paulino de Araújo Costa
Lingüística e Psicanálise:
uma discussão sobre o sujeito na
linguagem
João Pessoa – PB,
2006
Walison Paulino de Araújo Costa
Lingüística e Psicanálise:
uma discussão sobre o sujeito na
linguagem
DISSERTAÇÃO apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal da
Paraíba, linha de pesquisa: “Estrutura do Português: uma
abordagem semântica, sintática e pragmática”; eixo
temático: “Lingüística e Psicanálise, Saussure e Lacan: a
constituição dos sentidos”, como requisito institucional
para a obtenção do Título de MESTRE EM LETRAS.
Orientadora: Profa. Dra. Mônica Nóbrega
João Pessoa – PB,
2006
Walison Paulino de Araújo Costa
Lingüística e Psicanálise:
uma discussão sobre o sujeito na
linguagem
DISSERTAÇÃO apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, linha de pesquisa: “Estrutura do Português: uma abordagem semântica,
sintática e pragmática”; eixo temático: “Lingüística e Psicanálise, Saussure e Lacan: a
constituição dos sentidos”, como requisito institucional para a obtenção do Título de
MESTRE EM LETRAS.
Aprovado em ____/____/_____
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________
Dra. Mônica Nóbrega
Orientadora – UFPB
______________________________________
Dra. Ivone Tavares de Lucena
Examinadora – UFPB
______________________________________
Dra. Marlene Teixeira
Examinadora- UNISINOS/RS
DEDICO...
™ Aos meus familiares, tão numerosos, cuja história e particularidades determinam o meu jeito
de pensar e agir diante dos fenômenos que me são apresentados quotidianamente;
™ De maneira muitíssimo especial, à minha avó materna Maria Alves de Araújo, dona de casa,
lavradora, professora do grupo escolar da ‘minha’ saudosa Beira do Rio (palco de tantas
descobertas!) sem a qual, talvez, eu não tivesse sido seduzido, desde muito criança, pela
belíssima e inigualável profissão que é a de educador;
™ Ao meu avô materno Antônio Cipriano da Silva, lavrador, vaqueiro, que, mesmo sem ter a
habilidade exigida pela escola institucionalizada, consegue ‘ler’ o dia-a-dia de uma maneira
muito coerente, sabendo aceitar o que a vida lhe reservou, sem intolerância e com muita
dignidade;
™ À minha avó paterna Joana Batista da Costa, que, mesmo tendo ido embora muito jovem,
marcou sua estória neste mundo por ter sido a mulher condolente, altruísta e reta que foi;
™ À minha avó paterna e madrinha Raimunda Araújo Costa, que, na sua calma e paciência,
soube conduzir a sua vida e a dos que a rodearam com bastante prontidão e doçura;
™ Ao meu avô paterno Antônio Pereira da Costa, homem honesto e de decisões muito
acertadas, por ter sido a estaca em que muitos puderam se agarrar em momentos difíceis;
™ Aos meus pais Maria Nilma de Araújo Paulino e Joaquim Paulino Neto, meus tesouros,
sem os quais a vida seria algo insignificante, a quem ofereço meu eterno agradecimento, por
terem sempre me conduzido para o Bem;
™ Ao meu irmão Walison Paulino de Araújo Costa, de quem herdei o mesmo nome, por ter
sido o primeiro de nós e ter proporcionado a ‘mainha’ e ‘painho’ tanta felicidade, infelizmente,
por tão pouco tempo;
™ Ao meu irmão Wellington Paulino de Araújo Costa, que, mesmo sendo muito diferente de
mim, consegue ser insubstituível, por ser muito mais forte do que eu e, às vezes, me mostrar,
despretensiosamente, que a vida pode ser muito mais fácil, sem grandes ambições;
™ À minha irmã Joana Emília Paulino de Araújo Costa com quem me identifico, embora
discordemos tanto, por ser uma pessoa que busca sempre dar o melhor de si e não vê
obstáculos para cumprir seus desígnios;
™ Ao meu sobrinho, afilhado e ‘filho de alma’ Pedro Henrique Paulino Costa, em quem
deposito todo o amor de um pai, por me dar tanta alegria e vontade de viver;
™ À minha sobrinha Larissa Bianca Paulino de Araújo Ferreira, que, mesmo tendo
enfrentado separações ainda tão bebê, parece já ser obstinada em relação ao seu futuro,
pelo amor que tem aos livros e por ser, até agora, a minha grande esperança de outras
descobertas;
™ Ao meu sobrinho ‘bebezinho’ Gabriel Leite Paulino Costa, nosso mascote, por ser tão
indefeso e se assemelhar tanto à figura de Deus Menino;
™ À minha cunhada Maria de Lourdes Araújo Leite, pela delicadeza e respeito que dedica aos
que tanto amo;
™ Ao meu grande amigo e companheiro de tantas interações, sempre inesquecíveis, José
Washington de Morais Medeiros, por representar um ‘modelo’ de retidão em minha vida e
me fazer acreditar que sou capaz de ir adiante...
Agradecimentos
™ Àquele a quem chamam de Deus, de Jesus, de Javé, de Jeová, de Oxalá, de Alá, de Buda,
Àquele poderoso, eterno e bom que tem força para os que clamam por Sua intervenção;
™ à Virgem Santíssima, por ter sido a preceptora de Cristo e sempre trazer a consolação em
momentos de agonia; à Venerada Senhora, Aquela que é Mãe, advogada, que jamais acusa,
e sempre defende, por dar conforto aos que necessitam de um amparo;
™ à Profa. Dra. Mônica Nóbrega, minha orientadora e, muito mais, pessoa íntegra e
competente, de quem pude aprender ensinamentos dentro e fora da academia, com quem
compartilho segredos e POSSO festejar cada etapa da vida;
™ à Banca de Qualificação e de Defesa, que, com esmero, nas pessoas de Ivone Lucena,
Marlene Teixeira e Mariane Cavalcanti, contribuíram bastante pela acessibilidade e pela
leitura séria que empreenderam;
™ a todos os meus professores, principalmente, Angelina, Ester, Félix, Genilda Azeredo, Iara,
Lúcia Nobre, Luciene Espíndola, Maura Dourado, Eleida, Margarida, Michael Smith, Rosilda,
de quem muito aprendi;
™ à professora e coordenadora Elisalva Madruga e às secretárias do PPGL, que, muito
gentilmente, sempre se mostraram prontas para ajudar nos meus interesse junto ao
programa;
™ aos meus companheiros da Pós: André Pedro, Cida, Fernanda, Flávio Benites, Isaías, Kalina,
Jailma, João, Rachel, Renata, Vilma Pastor, Sílvia, Valéria , dentre tantos outros.
™ aos meus amigos ‘da vida’, veteranos e calouros: Anna Líbia, Anne Pellicciotto, Auxiliadora
Gomes de Lima (vulgo Dora, Edson ou Doriedson) Cristóvam Tadeu, Dalvaci Carneiro (vulgo
Léa), Fernanda Martínez, Isabelle Vasconcelos, Lúcia Sobreira, Marinete Queirós, Roseanne
Catão.
™ A Eduardo Sérgio, recém chegado em minha vida, pelos momentos agradáveis que me
proporciona e pelas indispensáveis sutilezas com que torna meus dias mais alegres.
™ aos meus alunos, com quem aprendo mais do que ensino;
™ aos meus companheiros de trabalho;
™ a tudo e a todos aqueles que, de alguma maneira, pelo menos, tiveram a intenção de me
ensinar algo.
Resumo
No contexto dos estudos sobre a linguagem, há muitos caminhos nos quais se pode
pautar uma discussão. Este estudo prioriza enfocar a linguagem trafegando por
concepções que atribuem ao sujeito um estatuto de fundamento para a sua
compreensão. O sujeito, que é a razão de a língua existir, traz consigo uma idéia
imanente de intersubjetividade, segundo a qual o dizer de um falante é sempre
constituído por uma alteridade. Assim, tenta-se entender essa inclusão do outro no
dizer do eu por conjunturas que contemplam o dialogismo, a interação, trazendo à
cena um Outro elemento subjetivo: o sujeito do inconsciente, cuja atuação na
linguagem é silenciosa e constante, via de regra, sendo materializada no discurso de
um sujeito suposto saber, além dos contornos assumidos por um outro pequeno que,
em função de uma relação imaginária, proporciona ao eu o embuste de que fala
somente o que quer, quando, na verdade, fala mais do que supõe, ou fala algo
totalmente diferente do que deseja. Em termos metodológicos, esta pesquisa de
cunho exploratório se fundamenta na abordagem qualitativa, cujo método evidencia
a construção de uma reflexão, conectando pontos categóricos para uma
interpretação subsidiada pela força de princípios de verdade, isto é, argumentos
lógicos. Tinha-se como objetivo geral estabelecer pontos de convergência entre a
lingüística e a psicanálise, concretizados a partir do enfoque dado aos sujeitos
envolvidos na interação verbal (eu e outro, mas que ora também é visto como um tu)
e, principalmente, da emergência do inconsciente nesse circuito dialógico, através
da noção lacaniana do Outro. Com os resultados alcançados, verificou-se que o
Outro redefine, assim como o outro bakhtiniano e o outro pequeno da relação
imaginária, a compreensão sobre o sujeito e seu lidar com a linguagem.
Palavras-chaves: sujeito; intersubjetividade; linguagem; dialogismo; inconsciente.
Abstract
In the context of language studies, there are a lot of ways on which one can base a
discussion. This study focuses on language through conceptions that attribute to the
subject a status that is fundamental to its comprehension. The subject, who is the
reason why language exists, brings up the innate idea of intersubjectivity, according
to which the discourse of a speaker is always constituted by other-orientation. Thus,
one tries to understand the inclusion of the ‘other’ into the I’s discourse by
contemplating dialogism, interaction, the ‘Other’ as a subjective element: the subject
of unconscious, whose acting in language is silent and constant, generally, being
materialized in the discourse of the subject supposed to know everything, besides the
participation of the ‘other’ that, owing to its imaginary relationship, makes the ‘I’ think
that it says only what it wants to, when, in fact, it says more than supposes, or says
something completely different from what wants to. Methodologically, this exploratory
research is based on qualitative approach, whose method reflects by connecting
categories for some interpretation subsidized by the strength of principles of truth,
which one calls logic argument. It aimed at establishing convergent points between
linguistics and psychoanalysis, taking into account the emphasis on the subjects
involved in the verbal interaction (the ‘I’ and the ‘other’, which is sometimes seen as
the ‘you’) and mainly considering the emergence of unconscious in the dialogical
circuit through Lacan’s notion on the ‘Other’. With the results, one could see that the
‘Other’ redefines, like Bakhtin’s ‘other’ and the ‘other’ of the imaginary relationship,
the comprehension on the subject and its dealing with language.
Key words: subject; intersubjectivity; language; dialogism; unconscious.
A psicanálise deveria ser a ciência da linguagem habitada
pelo sujeito. Na perspectiva freudiana, o homem é o sujeito
tomado e torturado pela linguagem.
Jean Jacques Lacan
Sumário
1
Abrindo as janelas para a noção de sujeito.......................................................................
11
2
Sobre a inter(subjetividade) na linguagem........................................................................
22
2.1
Sujeito e linguagem................................................................................................................
25
2.2
Enunciação e alteridade: o caráter intersubjetivo da linguagem............................................
28
2.3
Linguagem e dialogismo.........................................................................................................
32
2.4
O subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato: uma proposta para o
dialogismo?.............................................................................................................................
Linguagem, alteridade e psicanálise.......................................................................................
43
2.5
52
3
Considerações sobre o sujeito lacaniano: para além de um outro da
lingüística..............................................................................................................................
69
4
Compreender o sujeito da linguagem atravessado pela psicanálise: uma tarefa
possível?..................................................................................................................................
90
5
Últimas considerações.........................................................................................................
102
Referências............................................................................................................................
107
1 Abrindo as janelas para a noção de sujeito
Mulher na janela (1822) – autor desconhecido
Estou, com efeito, cada vez mais convencido de que o
pensamento é algo sério demais para ser entregue às
pessoas, a não ser a título excepcional.
Jean-Claude Milner
Lidar com a questão da subjetividade é tarefa já feita por alguns estudiosos,
porém o intuito, neste estudo, é mostrar as possibilidades de interseccionar saberes
distintos: a lingüística e a psicanálise lacaniana, encontrando pontos de ancoragem
comuns, e até divergências, no trato do fenômeno abordado, no caso, a constituição
do sujeito lacaniano e suas repercussões no tratamento da questão da interação na
lingüística.
Tenta-se, logo de início, enxergar como as duas áreas do saber, verdadeiros
princípios norteadores com os quais se trabalha nesta investigação, posicionam-se
frente ao conceito de ciência, tanto numa acepção dos antigos quanto numa
acepção dos teóricos que orbitam os dias de hoje. Em um primeiro instante, falar em
lingüística como ciência significa voltar-se no tempo, isto é, sabe-se que Saussure é
o expoente que grandemente contribuiu para que a lingüística tivesse o status
científico que tem hoje. Entretanto, esse status é bem diferente hoje do que tinha na
época em que as discussões dele fizeram-se conhecidas através do Curso de
Lingüística Geral (CLG). Sabe-se que a lingüística contemporânea cada vez mais se
situa dentro de um quadro epistemológico que incita, embora seus limites sejam bem
visíveis em termos de atuação e explicação de que cuida tal ciência, uma
abordagem pluridisciplinar da comunicação humana. Por esse motivo, o papel da
linguagem no processo da comunicação obriga a uma concepção de lingüística que
não se ausenta, de maneira alguma, de um debate em que estejam presentes as
marcas de outras disciplinas. Assim, a lingüística se ‘exterioriza’, sai de si e vem
discutir com outras áreas do saber, não se limita ao interior de seus próprios
domínios, isto é, esse debate nada mais é do que o lugar comum da linguagem na
construção dos valores culturais ou na estruturação da vida social. É nesse
momento que se acha cabível pensar numa lingüística que seja acessível para uma
discussão com a psicanálise lacaniana.
De acordo com Milner (1996), o epistemólogo francês Alexander Koyré afirma
que há entre a episteme antiga e a ciência moderna um corte. A ciência moderna se
refere à ciência feita aos moldes de Galileu, isto é, a física matematizada.
Matematizando o seu objeto, a ciência galileana o despoja de suas qualidades
sensíveis. E são exatamente essas qualidades sensíveis que interessam para as
ciências humanas, onde existe espaço para a subjetividade.
O conceito de ciência tem adquirido o status de algo inquestionável ao longo
da história e se vê que o que resiste em prevalecer, de fato, com caráter científico,
são basicamente os postulados das ciências naturais, como a matemática, física,
química etc. Enquanto isso, as ciências humanas parecem ter sido relegadas para
um segundo plano. Ciência não é necessariamente conhecimento. Aquele é mais
específico do que este, pois delimita o objeto a ser estudado de maneira muito
enfática. A ciência é uma espécie de conhecimento. Para a psicanálise lacaniana,
também, a diferença entre ciência e conhecimento é fundamental. Na história do
pensamento, a teoria do conhecimento, de diversas formas, parece preconizar o
mesmo ideal, que é exatamente a junção do sujeito e do objeto. É como se o objeto
se obrigasse naturalmente a um sujeito, de forma que de incognoscível passasse a
cognoscível. De acordo com Miller (1999), a ciência teve sua origem no estudo da
física-matemática, no século XVII, e, assim, por separar radicalmente o sujeito do
objeto (dando ênfase, sobretudo ao objeto), vem a psicanálise contradizer essa
estrutura na contemporaneidade, pois Freud introduziu em sua prática a questão da
histeria, uma das teses mais vigorosas da epistemologia lacaniana no que toca aos
pólos sujeito e objeto. Nesse sentido, a estrutura do discurso da ciência não deixa
de se correlacionar ao discurso da histeria, embora que, de certo modo, dele se
ausente, uma vez que o discurso científico tradicional se constitui a partir da
construção de redes sistemáticas de elementos em si mesmos desprovidos de
significação, mas coerentes entre si.
Segundo Milner (1996), Lacan constrói uma equação, na qual é expressa a
idéia de que o sujeito que se opera na psicanálise é o sujeito da ciência. Essa
equação se desmembra nas três seguintes proposições: ‘não é o eu, por exemplo,
que é operado pela psicanálise, mas o sujeito’; ‘há um sujeito da ciência’ e ‘estes
dois sujeitos, o da psicanálise e o da ciência, constituem apenas um.’ Assim, é
possível dizer que a psicanálise é um saber constituído em si mesma, porém o
sujeito operado por ela é o mesmo da ciência, motivo pelo qual não se pode deixar
de lado o discurso científico, embora se saiba que não faz sentido perguntar, em
uma dada instância, em que condições a psicanálise seria uma ciência, pois a
psicanálise organiza seu próprio campo epistemológico e permite que nele mesmo
ela seja orientada. É como se saísse de uma praxis para a theoria, ou seja, todo
arsenal argumentativo sobre o sujeito da psicanálise é, na verdade, evocada da sua
praxis, mas como esse sujeito psicanalítico é o mesmo da ciência, não há como
refutar a passagem da praxis para a theoria como pressuposto do discurso da
ciência, pelo menos nesse trato sobre a questão do sujeito.
Consoante Miller (1999), há um silêncio no mundo. Mesmo depois do advento
da física-matemática, a ciência diz que existem significantes que não querem dizer
nada para ninguém, assim não exigindo a figura do sujeito para lidar com o que
esses significantes, por ventura, venham a dizer; é como se esses significantes não
estivessem relacionados com um sujeito que se expressaria por seu intermédio. A
autonomia desses significantes é fato incontroverso, porém com a entrada do
componente subjetivo na cena, o sujeito passa a ser um efeito do funcionamento
das leis significantes. Segundo Miller (1999, p.46), ‘por isso Lacan diz, e afinal a
história parece confirmá-lo, que a psicanálise não era possível antes do advento do
discurso da ciência.’ Parece que tirar a ênfase do sujeito dentro do quadro científico
era uma espécie de estratégia, por parte de quem fazia a ciência, pois assim ela
seria imutável, tornando célebre quem com ela lidava. O discurso da ciência, por
muito tempo, rechaçou o sujeito, visto que ele podia (e pode) fraturar sua
consistência (MILLER, 1999, p. 52). Todavia, o sujeito está aí, dizendo e sendo dito,
‘utilizando’ e sendo utilizado pela palavra. É esse mesmo sujeito que faz da ciência
conhecimento legítimo e útil para toda a humanidade. Assim, o sujeito do
inconsciente é o próprio sujeito do significante, ou o sujeito da ciência, com uma
diferença apenas: ele é recuperado dentro de um esquema científico em que tem
vez para falar.
O inconsciente lacaniano não pode ser pensado como se estivesse no fundo
e a linguagem na superfície, entendendo o fenômeno como se houvesse um lado
direito e um avesso. Como diz Miller (1999), Lacan, através da Faixa do matemático
Moebius, faz uma correlação, traduzindo o direito e o avesso numa idéia de
continuidade. Assim, é possível visualizar o sujeito e o objeto numa relação bipolar,
mas não distante. De acordo com essa topologia do discurso da ciência, Lacan
procurou estruturar a experiência analítica, razão por que psicanálise, mesmo
permeada por fenômenos paradoxais para o senso comum, não pode ser excluída
do campo científico. O sujeito da psicanálise, o inconsciente, é aquele que advém
sem estar preparado para um determinado fim, não planeja uma linguagem bonita,
tampouco com intenções sedutoras; ele não purifica sua linguagem; pelo contrário,
seu material está em completa desordem.
O critério científico das ciências experimentais traz para si, via de regra, o
componente objetivo. A psicanálise vai além, pois o conceito de objeto, em princípio,
faz parte do discurso matemático. Porém, o conceito de cientificidade é muito mais
complexo do que, pura e simplesmente, a idéia de objeto observado. Nesse tocante,
o Hamlet shakespeariano diz a Horácio, personagem da mesma trama: ‘há mais
coisas na ciência que o que crês, Horácio.’
A psicanálise lacaniana é crítica e epistemológica, a qual vai de encontro aos
discursos obscurantistas do embuste psicoterapêutico. Um exemplo disso é a
questão da linguagem verificada pela psicologia, em seus redutos laboratoriais. Por
mais que haja semelhança entre homens e animais, é impossível fazer
experimentos, envolvendo a linguagem, com estes sendo aplicados àqueles. A
linguagem é o que diferencia os homens dos animais; pela linguagem, pode-se, por
exemplo, prever a morte. É como diz Miller (1999, p. 33): “Isso traça, de qualquer
modo, os limites da psicologia e, por inteligente que seja, o rato de Skinner não tem
70 expressões para nomear a desordem”.
Considera-se o sujeito falante não como aquele que sabe o que diz, mas
aquele que é utilizado pela própria língua; trata-se daquele que sempre diz mais do
que quer e, ao mesmo tempo, diz sempre outra coisa. Por essa mesma razão, não
se pode conceber a linguagem como aquela quantificada, cujos resultados são
obtidos na tradição behaviorista. Quanto se trata de linguagem real, humana, não se
deve ficar atrelado, por exemplo, à linguagem computacional ou animal; ela é
inequívoca, mas a humana tem como traço fundamental o equívoco. Assim sendo, a
língua real transcende a concepção positivista de que há palavras demais para se
dizer tudo certinho e arrumado de maneira conveniente. “Há sempre palavras
demais na língua, e ao mesmo tempo, singularmente, elas nunca são suficientes
para dizer o que se quer dizer” (MILLER, 1999, p.32). Chomsky, por exemplo, fala de
um par locutor-ouvinte ideal, que é pura ficção, pois não se pode falar em
homogeneidade dentro de uma comunidade lingüística. Diferentemente dessa ótica
positivista, o sujeito de que se cuida aqui é aquele que vacila com a linguagem.
Desse modo, sob um olhar da psicanálise, a linguagem não é utilizada pelo homem,
tampouco modificada por ele; ela, sim, transforma-o, afetando diretamente seu corpo
em sua profundidade, seus desejos, suas necessidades, suas atitudes.
Lacan tentou, a todo custo, atribuir à psicanálise um estatuto de ciência, até
porque o sujeito de que cuida a primeira é o mesmo sujeito de que se incumbe a
segunda. Para tal intento, chegou até a matematizar proposições para a sustentação
de tal saber, como se assim ela pudesse ser mais visivelmente considerada como
um saber/fazer de cunho científico. Quando se fala em ciência, remete-se
instantaneamente a um ‘conjunto de conhecimentos’ passível de ser aplicado, além
da remissão necessária a um conjunto de procedimentos de verificação e refutação,
métodos de construção de modelos, processos de formulação de conceitos, dentre
outros. Nessa concepção de ciência, a psicanálise, como campo de um saber
constituído, não tem condição de ser incluída, visto que traz consigo uma de suas
bases sólidas: a inclusão de um sujeito do inconsciente. Entretanto, esse
inconsciente é apenas parte do todo subjetivo para a psicanálise. Assim, o sujeito
em sua estrutura constituída pelo eu, pelo outro e, também, pelo sujeito do
inconsciente é o mesmo sujeito de que trata a ciência, por mais que se negue.
Segundo Lacan, a ciência exclui o sujeito de suas considerações, tenta desprezá-lo,
mas não o consegue completamente (FINK,1998). Uma coisa não deveria excluir a
outra, pois mesmo que a psicanálise contemple o inconsciente, não se deixa de falar
em sujeito. Pelo contrário, o Outro, nessa acepção mais psicanalítica do termo,
como sujeito, é o que existe de mais interno, mais guardado, mais profundo no
sujeito; é aquilo de que não se tem consciência, mas que está lá presente e atuante
no sujeito falante.
Parece que o papel da ciência é trabalhar com conceitos “puros”, axiomatizar
o que é extrínseco ao humano, mas será que isso é sempre possível? O extrínseco
facilmente se matematiza quando se trata de uma ciência exata ou uma ciência que
se aproxime dessa exatidão. Entretanto, quando se defende que a ciência seja um
discurso e que, enquanto tal, busque suas formas de convencimento em relação ao
que diz, a questão da exatidão parece desaparecer do centro da preocupação. No
caso da psicanálise, procura-se trabalhar com uma forma de racionalidade, para o
sujeito, própria do seu dizer. É como argumenta Fink (1998, p.171): “Cada discurso,
ao buscar seus próprios fins e suas próprias molas mestras, tenta fazer com que sua
forma de racionalidade prevaleça”.
Pode-se pensar, por exemplo, como se tentará discutir, que o fenômeno da
enunciação, no que concerne à atuação de outros sujeitos, seja mais complexo se
se levar em conta os pressupostos da psicanálise lacaniana, no que diz respeito à
constituição do sujeito, isto é, o outro (interlocutor) e o Outro (inconsciente) são
atuantes na enunciação do sujeito falante. A psicanálise contribui, portanto, no
sentido de trazer a concepção de um sujeito que se compõe por um eu, o qual é
permanentemente constituído por um outro (interlocutor) e por um Outro
(inconsciente).
Com base nisso tudo, o princípio que norteia essa pesquisa articula as idéias
de sujeito, intersubjetividade, dialogismo, inconsciente, interação, procurando fazer
com que a concepção de alteridade seja entendida numa dimensão maior, mais
complexa. Para isso, procura-se pensar essas noções à luz da concepção lacaniana
de sujeito.
O grande objetivo da investigação é estabelecer pontos de convergência
entre a lingüística e a psicanálise, concretizados a partir do enfoque dado aos
sujeitos envolvidos na interação verbal (eu e outro, mas que ora também é visto
como um tu) e, principalmente, da emergência do inconsciente nesse circuito
dialógico, através da noção lacaniana do Outro, o qual deverá modificar a
compreensão dessa relação entre o eu e a alteridade.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, outros objetivos mais específicos
empenham-se em: a) mostrar a atuação do Outro no eu, de forma constitutiva, de
acordo com a psicanálise lacaniana; b) investigar as zonas limítrofes do dialogismo,
uma vez que a interação verbal parece apenas contemplar o eu consciente e o tu
como parceiros dessa relação dialógica; e c) buscar uma melhor compreensão da
relação entre o eu, o outro e o Outro, via processo dialógico, uma vez que esse eu é
constituído a partir, sobretudo, do Outro, materializando-se na cena enunciativa.
Os procedimentos metodológicos da pesquisa estiveram correlacionados ao
fenômeno e sua condição de existência no interior das teorias que embasam o
estudo. Nesse processo, reconhece-se que a construção do saber, tomando por
base os fundamentos constitutivos inerentes às ciências humanas, agrega
elementos de sentidos tanto objetivos quanto subjetivos. Esse caráter alimenta, por
sua vez, as especificidades do fazer científico, através do qual é superado o ranço
positivista que põe sujeito e objeto em pólos extremamente antagônicos.
Nas ciências humanas, no quadro lógico do método, lembrando as
considerações de Richardson (1999), inserem-se componentes de significados que
se fazem perceptíveis através do rompimento com a tradição quantitativa das
ciências exatas e da natureza. Nesse sentido, componentes de significados
elaboram referências de verdades imediatas que tornam possível a problematização,
a pesquisa, a percepção, a reflexão, a afirmação ou mesmo a refutação sobre o
fenômeno de estudo.
Este estudo exclui de seus interesses os aspectos inerentes à abordagem
quantitativa, além da compreensão que dualiza sujeito e objeto, colocando-os,
assim, em pólos extremos. Entende-se que o olhar sobre o fenômeno em pauta só
adquire componentes significativos se se considerar o estudo como sendo uma
abordagem qualitativa. Nesse sentido, estudar o inconsciente que é estruturado
como uma linguagem minimiza concepções tradicionais acerca do que é linguagem
e acentua uma epistemologia alicerçada na relação interpretativa e lógica para a
construção do conhecimento sobre um sujeito não-pleno, o que o separa muito do
sujeito cartesiano.
Dessa maneira, o quadro de postulados metodológicos define um plano de
pesquisa através do qual são eleitas categorias analíticas, partindo de categorias
centrais, advindas das teorias de Benveniste, Lacan e Bakhtin. Este estudo
desdobra seus matizes enquanto pesquisa classificada como teórica de cunho
exploratório, entendendo esse tipo de pesquisa como uma forma metodológica e
qualitativa de associar e aprofundar pontos categóricos, podendo suscitar
concepções que não se diriam inovadoras, mas esclarecedoras, entre pontos
teóricos, para o que se recorreu a outros autores, como é o caso de Flores (1999),
de Authier-Revuz (2004) e de Teixeira (2000), dentre outros.
Com o intuito de melhor guiar a atenção do leitor, logo agora se mostrará
como será construída esta dissertação: a introdução, cuja leitura está já se
ultimando, é ponto de partida; tem o fim de situar a leitura, isto é, oferece ao leitor
uma idéia de onde partem as reflexões feitas ao longo de todos os capítulos,
especificando/delimitando dizeres no tocante, principalmente, à questão do sujeito
frente aos saberes científicos constituídos pela lingüística e pela psicanálise. Em
seguida, vem o segundo capítulo. Ele serve de porta de entrada para a lógica
dedutiva do texto, visto que se percorrem estas categorias eleitas para servirem de
pilares, a saber: subjetividade e intersubjetividade como constituintes da linguagem,
alteridade, sujeito dialógico, noção de Outro enquanto sujeito. Como a finalidade é
desenvolver uma discussão acerca do sujeito dentro da linguagem, pelo viés da
psicanálise, procuram-se contemplar as contribuições benvenistianas, bakhtinianas e
lacanianas.
De
Benveniste,
tenta-se
trazer
a
noção
de
subjetividade
e
intersubjetividade; de Bakhtin, ampliar a idéia de alteridade através do dialogismo; e
de
Lacan,
embora
que
parafraseado,
ainda
discutir
a
subjetividade,
intersubjetividade e interação, porém imprimindo a idéia do Outro que permeia a
cena dialógica. O terceiro capítulo tratará da questão do sujeito e, mais
especificamente, da interação, tentando melhor discutir as pertinências (pontos de
encontro) entre a teoria lacaniana do sujeito do inconsciente e os outros
componentes que formam o arcabouço subjetivo, isto é, o eu, o outro e o Outro,
sempre que necessário, remetendo ao dialogismo bakhtiniano. O último capítulo tem
o caráter de um palco, onde são performados os conceitos e categorias vistas no
segundo capítulo e no terceiro. Nas últimas considerações, ao mesmo tempo em
que se discutem, ainda, algumas noções teóricas, tenta-se chegar a conclusões
parciais, e não finais, pois se vê que não é possível esgotar toda a matéria, mas a
partir daí alçar vôos mais altos.
2 Sobre a inter(subjetividade) na linguagem
O enlace da subjetividade (S/A, S/D)
Falar ao outro não implica, de modo algum, saber o
que se diz. Somente o Outro é quem pode ensiná-lo a
nós, e por isso falamos uns aos outros.
Jacques-Alain Miller
Somente depois do corte saussureano, a questão do sujeito passou a ser
interesse dos estudos sobre a linguagem. Entretanto, alguns estudiosos já haviam
se dedicado a tal assunto, como por exemplo: Humboldt e Bréal. Embora na sua
época a língua fosse pensada como produto, Humboldt a concebe como atividade
mental, através da qual o homem expressa seu pensamento. Essa é a razão de ele
pensar na existência do sujeito da atividade de linguagem. Pouco tempo depois,
vem Bréal, segundo o qual a fala não objetiva apenas descrever, narrar ou agir
desinteressadamente, mas expressar desejos, dar ordens ou ostentar o poder
exercido sobre as pessoas e coisas existentes. Assim sendo, não é possível excluir
o elemento subjetivo do centro da questão sobre a língua. Pelo contrário, este deve
desfilar como parte essencial (RIBEIRO, 2003).
Fruto do corte saussuriano e de um longo e produtivo período no qual os
estudos sobre linguagem estavam imersos na estrutura, mas, ao mesmo tempo,
distanciando-se das amarras dessa estrutura, surge o trio que reintroduz a discussão
sobre subjetividade na linguagem: Bühler, Bally, Benveniste. Aquele se opôs ao
pensamento de que a língua, enquanto sistema de signos, serve apenas para o
intercâmbio de idéias. Para ele, além do aspecto intelectual da linguagem, há
também o não-intelectual. Partindo daí, ele trouxe duas outras funções para
complementar as funções representativas da linguagem: a expressiva e a apelativa.
O segundo diz que todo o enunciado está prenhe de elementos expressivos,
atribuindo tal fato aos afetos. Segundo esse mesmo estudioso, o enunciado jamais é
um ato que cuida de veicular a comunicação de uma idéia exclusivamente. Já
Benveniste empreende a entrada definitiva da subjetividade e intersubjetividade
como formas de conceber da língua.
Jakobson, com o trabalho sobre shifters, Benveniste, falando sobre a
categoria de pessoa e Austin, com os performativos, inserem-se em um quadro que
inicia as teorias enunciativas, visto que cada um desses trabalhos não exclui o
elemento ‘subjetividade’ de suas preocupações; muito pelo contrário, para eles não
se pode dissociar o sujeito da língua.
Não se pode esquecer Kerbrat-Orecchioni, visto que ela também defende o
elemento subjetivo na linguagem. Ela tenta ampliar o aparelho formal da enunciação
de Benveniste através de outras categorias da língua, como: substantivos, adjetivos,
verbos e advérbios. Além disso, ela discorda da perspectiva monológica que se
desenvolve sobre o sujeito, trazendo para o centro da discussão a interação,
consoante o que preleciona Bakhtin. Segundo esse autor, a linguagem é dialógica
porque é essencialmente de natureza social.
Bakhtin diz que para tratar do fenômeno lingüístico não se pode ficar preso
aos componentes físico, fisiológico e psicológico (BAKHTIN,1997). Deve-se, sim,
considerar a porção social, isto é, é necessário observar a linguagem dentro das
relações sociais, situando os interlocutores em seu meio.
Este capítulo, portanto, dedica-se à subjetividade na linguagem, a partir do
ponto de vista do dialogismo e, por conseguinte, da intersubjetividade. Dessa forma,
nada mais cabível do que trazer categorias teóricas para o centro das discussões,
como: dialogismo, intersubjetividade, enunciação, interação. Assim, na primeira
subdivisão, a questão subjetiva como constitutiva da linguagem será explorada,
sobretudo apoiada em Benveniste. No segundo momento, chega a vez de
contemplar o intersubjetivo, querendo mostrar qual é o papel do outro na
constituição da fala do sujeito. No terceiro momento, fala-se de uma espécie de
alteridade mais pautada no dialogismo bakhtiniano. Por fim, introduzem-se estudos
que discutem a relação entre lingüística e psicanálise na análise da questão da
subjetividade.
Discutir-se-á uma um tipo de lingüística em que o elemento subjetivo ‘rouba a
cena’, colocando-se em sua parte central, uma vez que ele será o foco da discussão
do fenômeno lingüístico aqui abordado. Assim, ao longo do trabalho, quando se falar
em lingüística, tenha-se em mente a veia teórica que envolve, pelo menos, ‘um
falante para um ouvinte’, sem os quais não é possível conceber a idéia de alteridade
e interação dentro da linguagem.
Neste capítulo, portanto, optou-se por trabalhar com concepções teóricas que,
embora estejam separadas pela linha divisória do tempo e de vanguardas, parecem,
até para o olhar de um leitor desavisado, compartilhar, em certos aspectos, a noção
de sujeito enquanto vivificador da linguagem, ou seja, a língua só terá razão de ser
se for operada, instrumentada, usada, posta em uso (como se queira!) pelo sujeito,
que ao falar, não prescinde do outro para que a enunciação aconteça (essa
enunciação pode ser considerada como o ato de pôr em funcionamento a língua por
um falante que a utiliza); seja um sujeito que tem um lugar na metaenunciação
(FLORES, 1999), segundo a qual a semântica que estuda a questão da
subjetividade é um amálgama da articulação entre a lingüística e a psicanálise,
razão por que implica uma redefinição do sujeito lingüístico marcado pelo
inconsciente numa dimensão constitutiva: seja um sujeito histórico que é
considerado essencialmente dialógico, seja o sujeito não pleno, mas marcado pela
heterogeneidade, o qual pertence à ótica psicanalítica.
2.1 Sujeito e linguagem
Poder-se-ia referir-se à linguagem como sendo a responsável pela
constituição do sujeito. A linguagem faz parte do próprio homem, em outras
palavras, diz-se que a constituição do homem como sujeito só é possível na/pela
linguagem.
Esta investigação parte, pois, de um conceito de linguagem que ultrapassa a
noção de instrumento. A linguagem está para o sujeito, assim como o sujeito está
para a linguagem como condição sine qua non de existência. Para Benveniste
(1988), a linguagem é mais que a simples feição instrumental que muitos defendem.
Ela é inata ao homem e indissociável dele. Na verdade, ele não a cria; ela é
imanente à sua própria essência. Assim, é ratificado tal pensamento na seguinte
passagem: “Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos
nunca, inventando-a” (BENVENISTE, idem, p. 285).
Além de a linguagem não ter simplesmente esse caráter instrumental, ela
pode (e deve) ainda ser concebida, substancialmente, dentro de uma interação.
Nessa perspectiva, diz o já citado autor: “É um homem falando que encontramos no
mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria
definição do homem” (BENVENISTE, idem, p.286).
Portanto, é mister considerar que esse eu que fala por meio da linguagem traz
em si a necessidade de um tu para que se torne eu de fato, ou seja, é na
interlocução que o eu se constitui como tal, pois vê no seu alocutário um
complemento de si, ora o eu sendo eu, ora mudando de pólo, virando um tu e
cedendo, conseqüentemente, o lugar de eu para o tu.
Assim, entra em cena o papel de tu para o eu, isto é, o que fala (eu) precisa
de um tu para que se torne real. Sem um alocutário, o eu nada mais é do que uma
expectativa de vir a ser; é virtual. Entretanto, toda essa necessidade do tu por parte
do eu, segundo Benveniste, acontece no plano da consciência. A consciência
apresenta um papel fundamental para a subjetividade, visto que esse eu que fala é
um sujeito controlado, consciente da sua participação na interação com o outro.
Nesse jogo interativo, percebe-se a relação de pertença entre o eu e seu
interlocutor, ou seja, “eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior a
‘mim’, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu” (BENVENISTE, 1988, p.
286). Ou, ainda, “essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois
implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez
designa por eu” (ibdem, idem).
É em função dessa relação de imanência e oposição entre o eu e o tu
que se descobre o fundamento lingüístico da subjetividade. Não é concebível
que haja uma língua que seja por si só suficiente e “veiculável”; a expressão
da pessoa no reduto lingüístico é indispensável.
A subjetividade, portanto, fundamenta-se na língua em atividade, em
exercício. E é através desse ato de mobilizar a língua que o locutor se apropria
dela por entre o tecido das instâncias do discurso, instaurando-se com o eu.
De fato, o eu refere-se ao ato discursivo do indivíduo, quando este lança mão
da enunciação, deixando assim claro quem é o locutor. Daí a se dizer que é na
enunciação que o locutor, como sujeito, vem à baila. Mas o conceito de
enunciação não pode ser pensado apenas a partir de um indivíduo, pois ele é
‘compelido’ por um outro a enunciar, motivo por que não é errôneo dizer que a
enunciação não repousa sobre um único enunciador; o efeito que a interação
causa é o ponto de partida de mais preponderância para se conceber o
fenômeno enunciativo. Desse modo, “a instância de discurso é assim
constitutiva de todas as coordenadas que definem o sujeito e das quais
apenas designamos sumariamente as mais aparentes” (BENVENISTE, 1988, p.
289).
2.2 Enunciação e alteridade: o caráter intersubjetivo da linguagem
Podemos dizer, então, que o outro, numa interação dialógica, é claramente
determinante, uma vez que esse outro encerra na relação com o eu o plano da
alteridade. O outro é, portanto, o componente indispensável para a manutenção do
esquema dialógico.
Esses participantes do jogo dialógico estão inseridos num ‘consenso
pragmático’ segundo o qual cada locutor vem a ser um co-locutor. Esse consenso
pragmático nada mais é do que um acordo tácito e, ao mesmo tempo, inato entre
falantes de uma língua, o qual permite a troca constante de papéis ‘falante versus
ouvinte’, isto é, um falante é ouvinte, e um ouvinte, um falante, bastando para isso o
câmbio de pólos, por meio dos quais os elementos subjetivos assumirão, mesmo
que de forma co-participativa, um status de enunciador (BENVENISTE, 1989).
No dizer de Benveniste (1989), o outro também pode ser visto como parceiro,
haja vista a implicação deste diretamente na relação discursiva. Diferentemente da
idéia de “outro” polifônico ducrotiano, segundo a qual a alteridade marca o discurso
do enunciador em função das muitas vozes nele presentes, Benveniste vê esse
alocutário não como um sujeito sobre o qual o enunciador tenta lançar seu próprio
convencimento, mas como um ente considerado útil para que o indivíduo que se
apropria da língua se torne refletido no seu parceiro. Em outra citação, Benveniste
(idem, p.84) deixa este ponto mais claro: “[...] desde que ele se declara locutor e
assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de
presença que ele atribua a este outro”.
Na cena enunciativa, o parceiro enunciador é tido como origem; ao passo que
o parceiro enunciatário é considerado o fim. Nessa mesma direção, caminha
Benveniste (1989, p.87):
como forma de discurso, a enunciação coloca duas ‘figuras’
igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da
enunciação. É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição
de parceiros são alternativamente protagonistas da
enunciação. Este quadro é dado necessariamente com a
definição da enunciação.
A fusão dessas duas esferas – origem e fim – sugere a alternância de um
protagonismo na enunciação, polarizando, finalmente, a intrínseca relação eu/tu.
De acordo com Benveniste (1989), pode-se dizer que mesmo no monólogo há
enunciação, pois o eu se biparte em eu locutor e eu ouvinte. O monólogo é, então,
“um diálogo interiorizado, formulado em ‘linguagem interior’, entre um eu locutor e
um eu ouvinte” (BENVENISTE, 1989, p.87). Assim, o monólogo deve ser
considerado como uma variação do diálogo, na qual tanto o eu locutor pode ser o
único a falar quanto o eu ouvinte pode intervir, tornando-se um locutor. E mais uma
vez pode se falar em consenso pragmático.
Essas posições psicodramáticas podem acontecer de duas maneiras:
somente o eu locutor fala ou, também, o eu ouvinte intervém com objeções,
questões, dúvidas etc, deixando no uso da língua as marcas de sua interferência.
Como a língua só existe em decorrência do uso que o sujeito faz dela, pode-se dizer
que a interação pode ser compreendida como um ‘entrosamento’ de um eu com um
outro, que é essencialmente a condição para que esse eu tenha seu lugar como
falante real, saindo, portanto, da virtualidade.
Além dessa visão benvenistiana, a alteridade é discutida sob uma ótica que
inclui um outro como interagente necessário, seja esse sujeito o que interage
diretamente com o eu ou aquele que, mesmo não estando presente fisicamente, é
atualizado na fala do que fala, sujeito falante. Assim, desde já, pode-se dizer que
esta pesquisa considera a subjetividade a partir desse sujeito que está ‘fora’ do eu,
sendo, entretanto, esse sujeito ‘fora’ que constitui o eu em todas as suas dimensões.
A idéia de eu e tu (outro) separados facilita a compreensão dos dois termos
isoladamente. No entanto, vale salientar que se se falar em um tu (outro) que
constitui o eu, pode-se dizer que o tu, sujeito que vive exterior ao eu, vem fazer parte
dele, ou o eu vai fazer parte desse outro, como se queira. Inicialmente, diz-se que a
fala do outro está na fala do eu. E aí surge a grande pergunta: qual a contribuição da
noção de alteridade para o que se propõe nesta pesquisa? Vislumbra-se entender a
questão da interação entre o(s) sujeito(s) que perfaze(m) o circuito do ato
comunicacional, partindo da compreensão, em ordem cronológica, que contempla o
outro constituindo o eu, assunto que está sendo tratado neste capítulo, e, no capítulo
seguinte, o Outro que fala no lugar do eu (o inconsciente), considerando, é claro, o
outro minúsculo, pois, como se verá a cada tempo, o outro tem sua função para que
as etapas especulares aconteçam e, por conseguinte, a idéia de sujeito falante seja
‘completa’ na incompletude, posto que o Outro fala indiretamente ao eu; fala ao eu
por meio do outro.
O foco até agora é na alteridade que constitui o eu. Nesse sentido, o
dialogismo pode contribuir bastante, mostrando como é possível que o outro sóciohistórico constitua o a voz do falante. Assim, dialogismo pode ser considerado como
o princípio constitutivo da linguagem, isto é, a palavra do sujeito é sempre formada a
partir de uma relação com o outro (numa acepção pluralizada). Assim, esse princípio
norteador do pensamento bakhtiniano se reveste como uma condição do sentido
para o discurso. Essa relação dialógica é que aponta para o sujeito constituído tal
como é. O sujeito e tudo que diz respeito a ele (e a língua se inclui nesse rol) só têm
razão de ser em decorrência da alteridade.
Bakhtin propõe um discurso dialógico, em que figuram como centro o eu e o
outro. Não é à toa que o referido autor se pronuncia de forma tão veemente no
tocante à interação dialógica: “tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada
termina e nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência”
(BAKHTIN, 1981, p.223).
Na visão bakhtiniana, o dialogismo é visto como princípio constitutivo da
linguagem, não uma linguagem ao nível de frase, mas num âmbito discursivo, quer
dizer, o foco é na concepção de língua que ultrapasse os limites da morfologia e
sintaxe. A concepção de língua aqui adotada leva em conta o sujeito que a mobiliza,
que a torna viva, historicizada, social, língua em que o outro é inscrito não
linearmente pelo locutor. É como se o locutor desse lugar ao outro nas malhas do
seu próprio discurso. A palavra do sujeito é sempre formada a partir da sua relação
com o(s) outro(s) – seu(s) interlocutor(es).
Vale ressaltar, embora de forma superficial, que, além de lingüistas e de
outros teóricos da linguagem, filósofos com pés bem fincados em estudos sobre a
linguagem, mais especificamente no aspecto da intersubjetividade, também deram
suas contribuições. Auroux (1998) diz que Husserl defende uma subjetividade
transcendental que vá além da figura do eu. Para que haja subjetividade, é preciso
que esse eu seja também um nós, isto é, a subjetividade é intersubjetividade na
medida em que a presença do outro é solicitada para a compreensão do mundo.
Segundo Marques (2000), Heidegger reivindica que o sujeito não é isolado; ele
sempre está com outro. Isso reforça que as ponderações bakhtinianas merecem
louvor, dentre outros motivos, porque estão inscritas não apenas nos campos da
lingüística ou da teoria da literatura, mas porque suas preocupações eram
compartilhadas inclusive com áreas vizinhas, como é o caso da filosofia da
linguagem.
Pode-se conceituar alteridade como a possibilidade de enxergar o outro como
elemento necessário para a constituição do sujeito falante; a interação pode ser
entendida como todas as formas de relação entre participantes (no caso, o eu e o
outro), na qual haja proximidade. Por falar em proximidade, pode-se entender melhor
que, mesmo o outro constituindo o eu, não é possível tê-los como unidade desde
sempre. Em um primeiro momento, são duas entidades lingüísticas diferentes, isto é,
são dois que se tornam um, já que o outro passa a constituir a fala do sujeito quando
a língua é posta em uso.
2.3 Linguagem e dialogismo
A concepção segundo a qual a língua é vista como sendo monológica
(objetivismo abstrato) não era preocupação de Bakhtin. Ele foi um teórico da
linguagem que foi além dos que pregavam em seu tempo. Fala-se em “linguagem”
porque era preocupação de Bakhtin trabalhar questões ligadas à literatura,
lingüística e à filosofia da linguagem. Entretanto, ao falar de linguagem, deve-se
remeter à idéia de língua, já que, aqui, se investiga o fenômeno da subjetividade
estritamente no campo lingüístico. Ele compreende que a língua não era apenas um
sistema. Isso não quer dizer que quisesse apagar o que outros grandes lingüistas
fizeram, como é o caso de Saussure. Mikhail Bakhtin pôde avançar em seu
arcabouço teórico, haja vista a combinação de tudo isso: a inclusão da subjetividade
e o fato de que levou em conta os aspectos cultural e sócio-histórico no trato com a
linguagem, de forma a compreender o fenômeno lingüístico como evento dialógico
por excelência. O dialogismo é um princípio constitutivo da linguagem e condição do
sentido para o discurso. A relação dialógica é necessária para que o sujeito se
constitua como tal. É como se esse ‘ser’ exterior proporcionasse a existência ao eu,
isso considerando o caráter lingüístico.
Nessa direção, Bakhtin (2003, p.199) defende que “certo conjunto de idéias,
pensamentos e palavras se realiza em várias vozes desconexas, ecoando em cada
uma delas”. Essas vozes refletem o caráter dialógico até agora difundido, visto que,
mesmo sem haver uma simetria, os sujeitos que interagem se implantam dentro
dessa relação, ‘dizendo e sendo ditos’, por meio desses ecos que se propagam,
atingindo essa relação de comunhão e fazendo com que o sujeito e seu(s)
interlocutor(es) pertençam, de alguma maneira, uns aos outros.
O dialogismo é a condição para que sentidos sejam constituídos. As
contradições se cruzam no interior das palavras que formam o discurso. Assim, de
maneira sucessiva e contínua, os discursos são vistos em outros discursos ecoando.
Seguindo essa mesma orientação, o outro, além de estar fisicamente em contato
com o eu, implanta-se no discurso do que enuncia, o que é, para Mikhail Bakhtin, o
cerne da questão dialógica. De acordo com a visão bakhtiniana, é possível perceber
o ressôo de várias vozes permeando a língua em uso. O outro é apreendido pelo eu
enquanto discurso. Interagindo com o outro, o enunciador integra o discurso outro no
momento em que produz seu próprio discurso. Trata-se de uma relação de doação,
troca, empréstimo de discursos. O sujeito é tido como ambivalente do ponto de vista
da linguagem. Através dela, ele enuncia e é enunciado; a alteridade só é enxergada
a partir da interação e somente por ela passa a existir, fato que é abarcado de forma
determinante pela questão do dialogismo. O sujeito não pode ser concebido como
homogêneo; ele é e está no outro, assim como o outro está no eu, constituindo-o.
Bakhtin estabelece um elo entre a linguagem e seu caráter social, permitindo
a visão de uma produção essencialmente sócio-histórica, razão pela qual se atribui
ao evento lingüístico um cunho ideológico. Na visão bakhtiniana, falar em dialogismo
é falar nas relações que o discurso mantém com a enunciação, com o contexto
sócio-histórico e com o outro. Há também o que Bakhtin chama de diálogo entre
discursos, o qual pode aparecer em um determinado texto através da
intertextualidade. Então, os sujeitos que falam não falam sozinhos; eles falam
porque existe a interdiscursividade, ou seja, o discurso de outrem presente nos
discursos que vão sendo produzidos.
No capítulo dedicado à obra de Dostoiévski, a relação dialógica pode ser bem
ilustrada, embora possa haver, em um primeiro olhar, a impressão de se tratar de
um texto essencialmente monológico. Dessa forma, Bakhtin (2003, p.199) defende
que: “as concepções ideológicas também são interiormente dialogadas e no diálogo
externo sempre se combinam com as réplicas internas do outro, mesmo onde
assumam forma acabada, externamente monológica”.
Diante da defesa contra a neutralidade da língua, imprimem-se nela, por
conseguinte, as marcas da ideologia, caracterizando-a como discursiva. Assim
sendo, falando em dialogismo, interação verbal entre um eu e um outro, língua numa
acepção discursiva, não se pode deixar de considerar a enunciação, a qual, para
Bakhtin, significa o resultado da interação entre falantes.
Não se deve, por outro lado, deixar de considerar o conceito de Benveniste
sobre enunciação, que se define como o momento em que a língua está sendo
posta em movimento. Assim, no dizer de Benveniste (1989), a enunciação é o
momento em que a língua está sendo colocada em funcionamento; é o ato de
produzir um enunciado; é a mobilização da língua impulsionada pelo sujeito falante.
O processo de semantização da língua, de acordo com Benveniste (idem), é
corolário da conversão individual da língua em discurso. É essa semantização que
conduz à análise da significação, permitindo a manifestação dos atores sociais,
realizada através da enunciação.
Assim sendo, o falante é tido como parâmetro quando ele produz a
enunciação. Essa é uma condição necessária para a realização do enunciado como
evento singular, pois antes de haver enunciação, a língua se reduz apenas a uma
possibilidade de existir. A língua só se torna efetivamente concreta em uma instância
do discurso, depois de realizada a enunciação.
Como corrobora Benveniste (1989, p.84),
o ato individual de apropriação da língua introduz aquele que
fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A
presença do locutor em sua enunciação faz com que cada
instância do discurso constitua um centro de referência
interno. Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas
específicas cuja função é de colocar o locutor em relação
constante e necessária com a sua enunciação.
Vale ressaltar, dessa forma, que a enunciação é a realização individual da
língua, isto é, o sujeito se apropria dela e a emprega para produzir sentidos; dizer o
mundo. Embora seja individual, já que é o eu que fala (e esse eu é um indivíduo),
deve-se ter em mente que o eu é constituído pelo outro.
Nos pólos da estrutura dialógica estão o eu e o tu. Essa relação de implicação
mútua reflete uma oposição necessária que fundamenta a subjetividade lingüística.
Não é concebível a idéia de uma língua que seja por si só suficiente e ‘veiculável’
sem a expressão concomitante de pessoas. Esses sujeitos, verdadeiros operários da
língua, devem estar em meio ao reduto lingüístico, de modo a, efetivamente,
preservá-lo vivo, ou seja, a língua existe em função do sujeito.
O eu, na postura de um pronome pessoal, por exemplo, não encerra em si
entidade lexical que já esteja pronta no universo biopsicossocial. De fato, o outro
permeia o ato discursivo do indivíduo falante quando este lança mão da enunciação,
deixando assim claro quem são os sujeitos interagentes – falante/ouvinte. Daí a se
dizer que a intersubjetividade se fundamenta na língua em atividade, em exercício. É
através dessa língua em exercício que o sujeito se apropria dela, instaurando-se
como eu. E, ao instaurar-se como eu, inclui-se também o outro, seu duplo, sem o
qual o eu não existiria, pelo menos nessa concepção dialógica. A consideração
acerca do discurso é, nesse diapasão, indispensável para que a língua seja
considerada, uma vez que existem as relações intersubjetivas.
A intersubjetividade está caracterizada pelo fato de haver um entrelaçamento
entre sujeitos, entre um locutor e um ouvinte. Consoante Bakhtin (1997, p.113),
essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma
importância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta
duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede
de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do
ouvinte.
Quando se fala em enunciação, é, portanto, imprescindível pensar em
um contexto onde haja a interação de sujeitos, uma vez que o caráter dialógico
permeia o ato de enunciar. Assim sendo, fica evidente a estreita relação entre
enunciação e interação dialógica. Para tanto, se faz mister considerar as
seguintes ponderações sobre dialogismo.
Nos comentários sobre a obra de Dostoiévski, fica clara a posição de Bakhtin
no que diz respeito à razão de ser do dialogismo: não há uma síntese do que é dito,
isto é, não se junta o que foi dito na tese e na antítese; há, sim, a sucumbência de
uma voz em relação à outra ou uma combinação dessas vozes, a qual, na maioria
das vezes, é assimétrica. Não importa a vitória dessa ou daquela voz; o grande
acontecimento é a interação de vozes (BAKHTIN, 2003).
Uma outra questão que se poderia trazer agora seria o fato de que, assim
como o sujeito da psicanálise lacaniana, claro que com estrutura diferente, o sujeito
em Bakhtin parece que sabe tudo, é pleno, uno. Entretanto, o que esse eu fala não
pertence a si, mas ao outro. Nada é seu, tudo é do outro, numa relação que se
encadeia e que vem desde o Adão mítico cuja fala é original. Do ponto de vista da
mitologia cristã, Adão foi o único ser em cuja fala não se permite aplicar os conceitos
de intertextualidade e interdiscursividade, pois foi o primogênito em relação ao resto
da humanidade. A partir dele, à medida que ia havendo outros semelhantes, passou-
se a contemplar a figura da alteridade, a qual vai interferindo na fala dos sujeitos,
posto que existem outros diante do falante, ao seu derredor. Corroborando com essa
reflexão, Bakhtin (2002, p.88) diz que
a orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a
todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer
discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em
todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de
outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma
interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com
a primeira palavra num mundo virgem, ainda não
desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por
completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio
para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico,
isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente
é que pode dela se afastar.
Complementando o raciocínio sobre a relevância da interação para Bakhtin,
pode-se dizer que todos os atributos a ela empregados se devem ao contexto
axiológico cultural, ou seja, o valor genealógico como categoria para a consolidação
da alteridade. Embora o indivíduo tenha a sua própria vida, iniciando sua existência
com o nascimento, ele não pode pensar que é o iniciador axiológico responsável por
ela. Ao nascer, a vida se inicia, entretanto, os atos, os juízos, os posicionamentos
perante a própria vida já existem; só resta ao ser dar-lhes continuidade (BAKHTIN,
2003).
Na verdade, existe uma relação de filiação à hombridade como um todo, aos
pais, à família, aos que vivem no convívio direta ou indiretamente. Não se pode falar
que alguém pertence a si mesmo, mas ao outro. Pertence ao outro quando pensa,
quando não quer pensar, quando se comporta de uma determinada maneira
mediante fatos do cotidiano, quando, enfim, fala com o outro. Assim, não se pode
conceber um ator social que não seja em toda a sua essência dialógico, posto que
seu isolamento ou desentranhamento voluntário em relação ao outro (seu
semelhante) o descaracterizaria automaticamente, tirando-lhe seu traço maior – sua
humanidade.
Defende-se que o outro, através da fala do eu, é necessária para que a visão
dialógica sobre a língua seja válida. Assim sendo, ao falar em língua na concepção
de Bakhtin, deve-se remeter instantaneamente à linha matriz do dialogismo, isto é,
devem-se considerar como essenciais as relações intersubjetivas.
Falar em alteridade, portanto, é remissão necessária para pensar num outro,
um outro que fundamenta a concepção subjetiva sobre a linguagem, quer dizer, o
outro é constitutivo do sujeito e da linguagem. Visto isso, ao falar em lingüística após
o advento do estruturalismo, não se pode excluir o sujeito de suas considerações,
pois a língua não é mais vista enquanto sistema, fechada em si mesma. Na visão em
que não mais se pensa a língua como sistema, o dialogismo e a polifonia são alguns
dos alicerces para a definição dessa subjetividade para além do eu, o qual vem a ser
concebido como discursivo, histórico, ideológico e, sobretudo, interacional. Quando
se fala em alteridade, deve-se pensar necessariamente em sujeito heterogêneo,
uma vez que a presença constante do outro constitui o sujeito, no caso, o eu que
fala. Dessa maneira, o outro se encontra em sua fala. Essa relação de
heterogeneidade e alteridade é bastante autorizada por Authier-Revuz (2004). Para
ela, definitivamente, a heterogeneidade é a presença constitutiva da alteridade.
É possível dizer que a língua traz consigo a porção de subjetividade, sem a
qual não se poderia pensá-la além da visão sistêmica. Tal subjetividade, analisada
pelo viés bakhtiniano, é por excelência marcada pelo outro da memória, pelo sujeito
histórico, por aquele indivíduo que fala porque interage com a palavra (do outro),
possibilitando, assim, como a obra do referido autor autoriza, mencionar o princípio
da alteridade. Seria esse mesmo princípio o mesmo que heterogeneidade? De certa
maneira, sim, pois Bakhtin diz que a linguagem é heterogênea. Ele não menciona
claramente, na sua teoria, o termo ‘heterogeneidade’, não como Authier-Revuz
(2004) o faz. Bakhtin (1997, p.85) diz que "a linguagem não pode ser, segundo
Saussure, o objeto da lingüística. Considerada em si mesma, falta-lhe unidade
interna e leis independentes, autônomas. Ela é compósita, heterogênea”. Seguindo
o raciocínio de Authier-Revuz (idem), a partir da concepção dialógica da linguagem
formulada por Bakhtin, ela compreende o sujeito como sendo um efeito da
linguagem. Para ela, a função da psicanálise, além do que já Bakhtin preleciona
sobre a questão do heterogêneo, é mostrar que a constituição desse sujeito não
ocorre no interior da homogeneidade; pelo contrário, ocorre, sim, na pluralidade da
heterogeneidade, seja marcada ou constitutiva. Nesse sentido, essa fala
heterogênea decorre de uma espécie de sujeito que é entendido como dividido em
consciente e inconsciente. O heterogêneo para Bakhtin refere-se ao eu e ao outro,
ao passo que a lingüista francesa aponta para a existência de um terceiro elemento:
o Outro (inconsciente), termo que vem da psicanálise lacaniana, sobre o qual se
falará mais detalhadamente no próximo capítulo. A alteridade, portanto, não só
caracteriza como possibilita a linguagem do sujeito. Ela é entendida mais
amplamente, sendo subsidiada por um campo exterior à lingüística. Essa visão
acerca do sujeito adentra caminhos outros que enveredam pela reflexão
psicanalítica, possibilitando, por conseguinte, a idéia de sujeito heterogêneo. De
resto, deve-se dizer que, enquanto a base teórica bakhtiniana considera o eu e o
outro; em Authier-Revuz,vê-se a possibilidade de inserção de um outro elemento: o
Outro (inconsciente) lacaniano que será discutido com mais profundidade no
próximo capítulo.
Conceitos, classificações e implicações sobre a alteridade são vários nos
diversos campos das ciências humanas, os quais são revestidos, muitas vezes, de
matizes que até se avizinham, porém cada um com um direcionamento que aponta
para especificidades a que cada área/disciplina/corrente se propõe. Aqui, nesta
pesquisa, privilegia(m)-se as concepção(ões) de alteridade que venha(m) a
contribuir para aclarar o lugar do sujeito falante como ser dialógico perante a língua,
portanto, considerando a lingüística como ciência-mestra. Por outro lado, inclina-se à
psicanálise lacaniana também como aporte teórico, visto que se defende a afirmação
de que o inconsciente tem uma linguagem que, via de regra, do ponto de vista
fonológico e morfossintático, dita a língua expressa/dita/enunciada pelo eu. Assim,
entende-se que o sujeito falante é dotado de um inconsciente (Outro maiúsculo) e de
outro(s) minúsculos, numa relação dialógica. Tanto o maiúsculo quanto o(s)
minúsculo(s) constitui(em) esse sujeito que fala.
O sujeito que fala é, pois, constituído por um outro que está fora de si, no seu
exterior. Trata-se de um outro que sequer precisa estar presente ‘corporalmente’
para atravessar o dizer do falante. Em relação a esse eu e outro, assenta-se o
conceito de alteridade, de heterogeneidade.
Alicerçar-se numa base cartesiana é assumir o risco de afirmar que o sujeito
pode ser definido enquanto espaço de homogeneidades. Esse sujeito humanista,
pleno, uno, universal, sem ser limitado pelo tempo, advogado pelo arcabouço
epistemológico racionalista, opõe-se sobremaneira à visão de sujeito que seja
marcado pela história, pela ideologia e pelo inconsciente.
A concepção histórico-ideológica impulsiona a um entendimento do dual, do
um e do outro, concomitantemente. Sem antecipar os pormenores que o próximo
capítulo trará, pode-se dizer que a psicanálise, por outro lado, traz consigo um
elemento novo a essa arquitetura em torno da alteridade: o sujeito do inconsciente,
marcado pela falta. Destarte, desde já, deve-se referenciar, em virtude da crença
que o outro constitui o sujeito, o percurso que leve à visualização do elemento
subjetivo baseado na clivagem, na descentralização e na contradição.
Este trabalho se agarra na idéia de que toda palavra é dialógica e de que a
língua não está adstrita a formas, não é um sistema fechado em si; é, sim, o
fenômeno social da interação verbal. Nesse contexto interacional, então, o outro tem
o seu lugar. Não há espaço para pensar num sujeito individualizado, homogêneo. O
exterior e interior estão constantemente se ‘tocando’, se cruzando, proporcionando,
em vez de um eu e um outro isolados, um nós (BAKHTIN, 1997).
Em se tratando de heterogeneidade, numa acepção mais psicanalítica e, ao
mesmo tempo, ratificando o que se acaba de dizer, assegura Brandão (2001, p. 68):
“o trabalho analítico articula o discurso com seu avesso, o seu reverso. O discurso
não se reduz a um dizer explícito, pois ele é permanentemente atravessado pelo seu
avesso que é a pontuação do inconsciente.”
Então, o que se pode encontrar de novo no termo “heterogeneidade”, na visão
de Authier-Revuz, é a questão de que a subjetividade é vista de forma dividida,
tendo sua parte consciente e inconsciente, o eu (falante assumido) e o Outro (falante
por meio do eu), respectivamente. Além desses dois, existe ainda o(s) outro(s), com
o(s) qual(is) acontece a relação especular, proposto por Lacan, já que essa autora
baseia-se, além de Bakhtin, em Lacan, no que toca à estrutura do inconsciente. E
aí, percebe-se que a interação se dá neste contexto: os elementos subjetivos
percorrem um caminho que, inevitavelmente, implica colocar-se diante do outro, seja
esse grande ou pequeno, ou, contrariamente, o eu colocar-se diante do Outro, sem,
claro, ter consciência disso. A interação de que se fala aqui é aquela compreendida
quando há cada vez menos separação entre o que faz parte da interioridade (o eu,
aquele que fala) e o que faz parte da exterioridade (o outro que constitui o eu), isto
é, à medida que for havendo menos separação entre o eu e o outro (e Outro, já que
o inconsciente tem seu papel na linguagem), vai havendo mais interação.
Até agora se defendeu uma concepção dialógica sobre a língua, mas sem
maiores pormenores sobre sua origem. Por isso, na próxima parte do capítulo, cujo
fim é compreender melhor o que é e de onde vem o dialogismo, far-se-á um
percurso que dará continuidade à discussão sobre os elementos interação e
alteridade. Para que se chegue, entretanto, à questão do processo dialógico, é
imprescindível passear pelas orientações lingüístico-filosóficas criticadas por
Bakhtin: objetivismo abstrato e subjetivismo individualista.
2.4 O subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato: uma proposta para o
dialogismo?
Partindo das orientações criticadas por Bakhtin (1997), subjetivismo
individualista e objetivismo abstrato, será possível entender o fenômeno da interação
verbal. Entretanto, não se tem, nesse ponto da discussão, a intenção de dizer que a
ação com as palavras, através da concepção dialógica, é fruto de um ou de outro
pensamento, muito menos, que é resultado desse amálgama. Primeiramente, será
feito um quadro geral que possa diferenciar as duas orientações, analisando suas
especificidades, para, só depois, tentar compreender a gênese da grande sacada
que é a interação entre o um e o outro, cujas palavras dançam freneticamente,
entrecruzando-se a ponto de não permitir que se veja a zona de limite que separa o
sujeito do seu exterior, quer dizer, tudo aquilo que mesmo estando fora vem integrar
o que está dentro, no caso, o outro vindo constituir o eu.
O trabalho de Bakhtin (1997), no que diz respeito ao objeto de seu estudo,
deixa transparecer a tendência de seu pensamento, isto é, visa ao esclarecimento
de pontos fundamentais para construir definições em torno das duas orientações
contra as quais se posicionou, para propor o dialogismo.
Para se chegar até a rejeição completa da idéia de língua enquanto estrutura
(no caso aqui, estrutura fonético-fonológica) e evidenciar seu caráter ideológico,
recorrer-se-á à função dos sentidos, priorizando, sobremaneira, a função da audição,
já que é através dos ouvidos que se consegue escutar a língua. Então, ver-se-á que
o traço fonético-fonológico é de extrema importância para a primeira orientação. Os
olhos carecem de força para utilizar sua habilidade maior, pois não ‘vêem’ a língua;
as mãos, não sendo diferentes, não conseguem ‘tocá-la’. Quanto aos ouvidos, algo
se perfaz de dessemelhante em relação aos primeiros: eles conseguem ‘ouvir’ as
palavras, a língua. Daí a habilidade de sedução da fonética em comparação a outros
campos. Para limitar um determinado objeto, via de regra, costuma-se voltar para o
que é concreto, materialmente observado, o que, também, mostra que tal
competência não é atribuição de estudiosos da linguagem, mas de outras áreas,
como se passará a apontar. Além disso, ficar limitado a esses contornos implica
reduzir o alcance do âmago da linguagem, quer dizer, a verdadeira essência do
objeto a ser estudado será escamoteada, que é exatamente a sua natureza
ideológica. Assim, acredita-se que os aspectos físicos (som), fisiológicos (processo
fisiológico da produção do som) e psicológicos (associação da atividade mental do
locutor e ouvinte) por si sós não dão conta de auxiliar na busca de explicações do
fato lingüístico. Somente se se recorrer à ‘alma’, como quarto elemento, é que será
possível entender, de fato, as nuanças da língua, pois, como diz Bakhtin (1997,
p.70):
[...] já lançamos mão de três esferas da realidade: física,
fisiológica e psicológica, do que resultou, até que de modo
satisfatório, um conjunto complexo de numerosos elementos.
Mas este complexo é privado de alma, seus elementos estão
alinhados ao invés de estarem unidos por um conjunto de
regras internas que lhe atribuiria vida e faria dele justamente
um fato lingüístico.
A primeira tendência, a do subjetivismo individualista tem o seu interesse
maior voltado para a fala como criação individual. A fonte alimentadora da língua é
formada pelo psiquismo individual, sendo essa, portanto, a obrigação do estudioso
da linguagem. Dessa maneira, a língua enquanto criação pode ser comparada à arte
e à estética. Para Bakhtin (idem), o fato lingüístico está num continuum, existe uma
energia que nutre a capacidade da fala como ato essencialmente individual. Ao dar
continuação, diz que a psicologia individual é a ditadora (no sentido de determinar as
regras que devem ser seguidas) das leis de criação da língua. Um outro aspecto a
ser observado é que se faz uma analogia entre dois tipos de criação: a lingüística e
a artística. Por fim, não se pode perder de vista que essa mesma orientação tem
total estabilidade, uma vez que elege para si categorias que servem de pilastra,
como a gramática, o léxico e a fonética. Assim, a língua estabilizada é considerada
como instrumento pelos falantes, isto é, adquire-se um conhecimento que é, depois,
posto em uso.
Já a segunda orientação (objetivismo abstrato) afirma que a consciência
individual está fora de questão; o sistema lingüístico de nada depende desta.
Resumidamente, pode-se dizer que um dos grandes erros da segunda orientação é
a separação da forma lingüística e seu substrato ideológico. Sem a carga ideológica,
não haverá mais signos, mas apenas sinais vazios.
Bakhtin (1997, p.103) expõe sucintamente alguns pontos essenciais que
caracterizam a segunda orientação:
1. Nas formas lingüísticas, o fator normativo e estável
prevalece sobre o caráter mutável; 2. O abstrato prevalece
sobre o concreto; 3. O sistemático abstrato prevalece sobre a
verdade histórica; 4. As formas dos elementos prevalecem
sobre as do conjunto; 5. A reificação do elemento lingüístico
isolado substitui a dinâmica da fala; 6. Univocidade da palavra
mais do que polissemia e plurivalência vivas; 7.
Representação da linguagem como um produto acabado, que
se transmite de geração a geração; 8. Incapacidade de
compreender o processo gerativo interno da língua.
Diante da exposição de características que possuem as duas orientações
criticadas por Bakhtin, deve-se chegar a uma conclusão no sentido de averiguar
como se dá o desenvolvimento da idéia da interação verbal, isto é, qual das duas
contribui? Nenhuma?
As respostas a essas perguntas são todas negativas. A verdade não reside
no meio-termo das duas, nem em uma, nem em outra. O fio condutor da essência
mantenedora desse pensar não se consubstancia no ponto de contato entre a tese e
a antítese das duas orientações, mas, como diz Bakhtin (idem, p.109), “a verdade
encontra-se mais além, mais longe, manifesta uma idêntica recusa tanto da tese
quanto da antítese, e constitui uma síntese dialética”.
Indo um pouco mais além na questão das duas orientações filosóficolingüísticas criticadas por Bakhtin (idem), pode-se dizer que o subjetivismo
individualista está ligado ao Romantismo, vanguarda filosófica que foi uma reação
contra o Neoclassicismo. Estes dois últimos movimentos foram os que deram
suporte ao objetivismo abstrato. Segundo Bakhtin (1997), a escola romântica foi
pioneira a trabalhar a língua materna; eram avessos ao ‘estrangeiro’; tentaram
organizar o pensamento lingüístico sobre os pilares da atividade mental que envolvia
a língua materna.
O subjetivismo tem seu ponto de partida com o fato de que considera a
enunciação monológica, uma vez que a ‘coisa’ é analisada a partir de quem fala;
trata-se de algo interno; quando a pessoa se exprime.
Quando se fala em ‘expressão’, deve-se entendê-la a partir da fala de Bakhtin
(idem, p.111): “tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira
no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de
algum código de signos exteriores”.
Existem duas facetas na expressão: o que é naturalmente interno, que é o
conteúdo, e o que é externo, objetivando-se para fora de si. Entretanto, em vez de
fora, pode, também, remeter-se a si mesmo. Em harmonia com o dizer de Bakhtin
(idem), a teoria da expressão é marcada pelo binômio interior/exterior, nessa mesma
seqüência, pois segundo a mesma teoria, o movimento é este, sempre de dentro
para fora. Por outro lado, não há como evitar dizer que, em um certo momento,
quando a expressão que era interior passou a estar no exterior, há uma espécie de
deformação desse interior, pois foi transformado, de alguma maneira, pelo exterior,
quando um ficou em contato com o outro. Em função desse raciocínio, a teoria da
expressão caiu por terra, posto que não se pode avaliar em termos qualitativos que o
material interior é melhor ou pior do que o exterior. Além disso, o que se deve ter em
mente é que o exterior organiza toda a dimensão palpável da expressão; a
exterioridade é o centro e não a interioridade, como pensava a teoria da expressão.
Considerando que o exterior é quem determina o interior, Bakhtin afirma: “Não
é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão
que organiza a atividade mental, que modela e determina sua orientação” (1997,
p.112).
Depois de mudada a perspectiva em relação à questão da exterioridade/
interioridade (agora numa seqüência invertida), já é possível começar a discutir a
questão da enunciação na ótica de Bakhtin. É a partir desse entrosar que o ‘dentro e
fora’ se tornam um; não no sentido da unidade propriamente, mas no sentido da
diferença mesmo, pois aí se dá uma interação numa seara de cunho social. Na
verdade, a enunciação é o produto dessa interação entre um locutor e um ouvinte.
Esse interlocutor, o ouvinte, não precisa ser real; pode ser substituído por um
representante qualquer do grupo a que pertence o locutor (família, amigos, pessoas
jurídicas, as pessoas em geral). A interação, dessa forma, caracteriza-se
basicamente pelo fato de que a palavra procede de alguém e dirige-se a um outro,
diminuindo, portanto, a separação entre o de ‘dentro’ e o de ‘fora’. A palavra é a
mediadora desse contato entre o um e o outro. Bakhtin (1997, p. 113) diz também
que “a palavra é o território comum do locutor e do interlocutor”.
Como essa zona de separação entre o um e o outro fica muito estreita, fica
difícil de dizer que a palavra pertence a quem a fala. A palavra só lhe pertence no
momento do ato fisiológico, tempo em que ela está sendo materializada. Fora disso,
não há como se pensar na palavra como objeto de pertença do locutor. Pelo
contrário, a palavra, enquanto signo, já que é ideológica; pertence a um outro social
(razão de se falar na alteridade), o qual está inserido, obviamente, numa cadeia
eminentemente social. No momento e depois da interação, a palavra passa,
também, a pertencer ao locutor. A princípio, só pertencia ao outro. Entende-se a
língua como um acontecimento baseado na enunciação dialógica (não querendo ser
redundante), pois esta é fruto da interação entre o falante e os demais atores
sociais.
Quando se remete à interação, talvez se pense tão-somente em diálogo.
Todavia, esse diálogo é apenas uma das formas que dá vida à interação verbal.
Essa palavra ‘diálogo’ deve ser compreendida em uma acepção ampla, pois
contempla toda a forma de comunicação, não apenas aquela pronunciada em tom
audível, aquela que implica em uma relação de dois, face a face.
Assim, o diálogo nessa amplidão traduz a idéia de língua defendida por
Bakhtin. O elemento lingüístico de que se incumbe é muito mais que a materialidade
observada nas seqüências fonético-fonológicas, é algo abstrato que não se ‘toca’.
Pode ser entendido que essa língua é essencialmente discursiva, pois só
friccionando, colocando em contato a palavra com a realidade ‘fora do verbal’ e com
a palavra do outro é que, de fato, se tem uma idéia do que é interagir numa
dimensão que extrapola o aspecto material. A língua pertence ao social; ela é
resultado da enunciação e das enunciações. Eis o motivo pelo qual tanto o
objetivismo abstrato quanto o subjetivismo individual ‘pecam’, pois eles defendem
uma espécie de monologismo, molde sob o qual a sua idéia de enunciação é
concebida.
Depois de levantar algumas discussões sobre dialogismo, alteridade, língua,
interação, enunciação, nada mais pertinente do que concluir essas reflexões,
temporariamente, com uma citação de Bakhtin, visto que ele consegue, em poucas
linhas, acalmar a efervescência suscitada pelas questões discutidas neste capítulo:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da
língua (BAKHTIN, 1997, p. 123).
De outro modo, portanto, não se pode deixar de conceber a língua como
evento interativo. O outro, nesse aspecto é essencial para que essa alteridade
aconteça. Por esse motivo, este capítulo abordou a alteridade sob uma ótica que
inclui um outro necessariamente. Assim, a subjetividade é considerada a partir desse
sujeito que está ‘fora’, o(s) outro(s), sendo, portanto, esse(s) sujeito(s) exterior(es)
que constitui(em) o eu em todas as suas dimensões. Também foi o intuito entender a
questão da interação entre o(s) sujeito(s) que vivificam a língua, seja numa ótica que
compreende o outro constituindo o eu ou o Outro falando no lugar desse eu, este
último de acordo com a psicanálise. Tentou-se, desde o início, trabalhar o conceito
de alteridade sempre aliado ao de interação, uma vez que esta investigação focaliza
exatamente a questão da interação entre o eu, o outro e o Outro, relação sobre a
qual se falou mais superficialmente neste capítulo, mas terá seu lugar de destaque
no capítulo dedicado à psicanálise lacaniana. Para dar conta de defender essa
interação proposta, foi preciso aclarar que se considerou a língua como sendo um
produto eminentemente social, e por conseqüência, intersubjetivo. Também se
desenvolveram as concepções de alteridade e interação através do dialogismo
proposto por Bakhtin, o qual se opunha às correntes lingüístico-filosóficas chamadas
de subjetivismo individualista e objetivismo abstrato. Assim, ficou claro que, para
Bakhtin, as relações intersubjetivas só podem ser pensadas se houver o fenômeno
dialógico, permeando-as. Embora os estudos sobre a língua tenham se iniciado no
berço da civilização ocidental, só no século passado é que a questão do sujeito na
língua e do outro, fazendo parte desse processo como co-participante, apareceu na
pauta das preocupações dos lingüistas. Isso demonstra a inércia por parte de tantos
que fizeram história. E é através de Bakhtin que se tem a chance de enxergar a
questão do outro presente na fala de quem fala, evidenciando, portanto, o caráter
heterogêneo que tem a língua. Por outro lado, Authier-Revuz defende também uma
não-homoneização da língua, porém considerando um sujeito do inconsciente
inserido nesse processo, um dos pontos que a diferencia de Bakhtin.
Pensar um sujeito que não fala o que é só seu, num primeiro olhar, é
estranho, porém, quando se detecta que o que se fala já foi dito, muitas vezes, nem
mesmo sabendo quem disse aquilo, passa-se a conceber a língua de maneira
menos estrutural e, conseqüentemente, empenha-se em contemplar a figura do
sujeito que a usa, um sujeito que fala, e quando usa a palavra, tem intenções, mas
também as perde por vezes. Esse caráter intencional ou não das palavras (do
falante) pressupõe uma outra pessoa (pelo menos!) para quem essas (des)intenções
serão direcionadas. É esse o momento em que não se pode deixar a idéia de
alteridade de lado. A linguagem é, por natureza, dual; implica um jogo de troca, de
imanência; consubstancia-se na relação entre quem fala (assujeitado ou não) e
outros participantes (outras vozes) que, mesmo em silêncio, momentaneamente,
também falam. São sujeitos interdependentes, ‘gêmeos univitelinos’, necessários
para que a linguagem tenha o seu lugar de mediadora. A investigação acerca das
fronteiras do dialogismo acalenta, portanto, um pensar que perpassa as cercas de
um diálogo que dá conta, apenas, de contemplar um eu e um outro, de acordo com
a visão bakhtiniana dos termos, um falante e o seu interlocutor, ou melhor, uma
interação verbal que enseja um eu consciente e um tu como parceiros da relação
dialógica. Essa zona limítrofe do diálogo se expande muito mais quando se pensa
em um sujeito dito que não seja pleno, mas que congrega em sua essência
diversidades mantenedoras da existência humana, dualidades indispensáveis para a
continuação da vida ou, ainda, um sujeito que sem saber o que fala ou o que está
por trás de sua fala, mesmo assim, é ousado: diz de si a si, de si ao outro, do outro a
si, do outro ao outro; diz, enfim, do mundo ao mundo, fidedignamente, em cores e
formas.
2.5 Linguagem, alteridade e psicanálise
A ênfase continua sendo dada à questão da alteridade na lingüística, mas
agora já com um viés psicanalítico. Entretanto, uma discussão mais aprofundada
sobre o sujeito na psicanálise será feita no próximo capítulo. Assim, pode-se desde
já retomar a questão da subjetividade numa perspectiva mais abrangente, visto que
esse olhar sobre o sujeito se amplia frente à contribuição do olhar psicanalítico.
Os estudos de Jacqueline Authier-Revuz mostram claramente que a
abordagem psicanalítica em relação ao sujeito, na lingüística, dá-se através de
Bakhtin, mais especificamente através da comparação entre suas considerações
sobre o sujeito como elemento constitutivo da língua e a idéia de Outro em Lacan.
Destacar-se-ão, nesta parte do capítulo, alguns estudos que caminham nesta
direção.
Flores (1999) enxerga o fato dialógico como sendo imanente à lingüística,
embora, clássica e estruturalmente, exclua-se a questão do outro na constituição do
locutor. Por mais que ele parta de orientações saussurianas, seu grande foco vai ser
a metaenunciação, entrelaçando a visão sobre o sujeito dotado de inconsciente e a
concepção de enunciação/enunciado, num percurso teórico que contempla também
o sistema bakhtiniano, dentre outros autores. Flores (1999) retorna a Saussure,
interrogando o lugar do sujeito para a ciência lingüística. O próprio autor diz: que a
lingüística estrutural transborda, isto é, vai além; esse ponto de transbordamento
nada mais é do que a consideração do sujeito. Nesse sentido, ele tenta fazer
retornar para a lingüística, com muita pertinência, o que faz parte do seu objeto: o
elemento subjetividade. Flores dá conta de explicar o dialogismo, defendendo a
questão dialógica como sendo pertencente, sobremaneira, à lingüística, visto que é
perceptível a sua existência tão-somente na língua, fato que leva à afirmação de que
a língua é eminentemente dialógica.
De acordo com Flores (1999), portanto, a metaenunciação refere-se ao iralém da lingüística, perpassando a psicanálise lacaniana e levando em conta a
irrupção do Outro no discurso. Assim, apesar de contemplar a concepção dialógica
de bakhtiniana, vai além dela. Através da idéia de um sujeito que volta à semântica
da língua, à estrutura da língua, através da falta que constitui tanto o sistema
lingüístico quanto o próprio sujeito, a psicanálise dá sua contribuição no que diz
respeito à concepção de sujeito dotado de inconsciente. Segundo a visão de Flores,
a semântica, dita metaenunciativa, introduz na regularidade do sistema lingüístico a
idéia de falha numa dimensão constitutiva.
E falando em subjetividade, não se pode deixar de lado a intersubjetividade,
posto que o sujeito se constitui necessariamente através do outro, passando assim a
reconhecer-se nele (outro).
Nessa dimensão do outro constituindo o enunciador, recorre-se, em primeiro
lugar, ao outro dos espaços sociais compartilhados lingüisticamente. Authier-Revuz
(2004) acredita que a palavra é heterogênea por natureza, palavra aqui com o
sentido de discurso, ou seja, o discurso que aparentemente era do sujeito locutor
passa a ser visto como sendo dos outros (outro e Outro). Há, portanto, o que se
pode chamar de descentralização do sujeito. O sujeito falante não é o centro nem
origem do dizer, pois o outro constitui sua fala.
Flores (1999) concorda com a posição lacaniana quando esta afirma que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem. A concepção saussuriana de signo
foi retomada, com o intuito de entender o significante como sendo parte de uma
estrutura que permite introduzir a metáfora paterna como ordem do desejo, isto é, o
recalque originário surge como processo que estrutura a criança fundamentalmente
e que se dá através da metaforização, a qual pode ser definida como ato da
‘simbolização primordial’, uma vez que se dá quando o significante Nome-do-Pai
substitui o significante fálico. A referência à metáfora paterna está ligada à questão
do recalque originário, que proporciona ao indivíduo a primeira grande substituição
de significantes. Dor (1989, p.90) diz que
o
recalque
originário
aparece
como
processo
fundamentalmente estruturante e que consiste na
metaforização. Esta metaforização não é outra senão o ato
mesmo da simbolização primordial da Lei, que se efetua na
substituição do significante fálico pelo significante Nome-doPai.
A obra lacaniana afirma que um significante representa um sujeito para outro
significante. Para Lacan, a dimensão do simbólico, tendo em vista o Outro, é
introduzida pelo significante, o qual é estruturado numa cadeia puramente
diferencial. De outra maneira, é o mesmo que dizer que o sujeito falante na relação
com o Outro é instaurado através da metáfora paterna e do acesso ao simbólico. Na
estrutura, percebe-se uma falta do próprio significante, a qual faz alusão à ordem do
desejo.
O desejo é a possibilidade da intersubjetividade através da linguagem. Então,
a partir do axioma ‘o desejo é desejo do desejo do Outro’, foi possível concluir que o
sujeito do desejo insiste na/pela cadeia significante, razão pela qual se pode falar
dele como vazio.
Flores (1999) formula alguns princípios para melhor conduzir as suas
reflexões. Para o referido autor, a linguagem instaura o desejo como desejo do
Outro, ou seja, é através da própria linguagem que se possibilita o reconhecimento
pelo outro; o real constitui a estrutura significante e emerge no Simbólico como limite
interno dado pela pura diferença do significante. O real designa uma realidade
fenomênica que é imanente à representação, por parte do eu. Já o simbólico
designa um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e
significação que determinam o sujeito à sua revelia, levando-o ao Outro.
Tais princípios isolados não dão grande contribuição para enfocar a questão
da semântica da língua. Todavia, articulando esses mesmos princípios com a noção
de sujeito enunciador, é perfeitamente possível entender a intervenção do sujeito
desejante na língua. Dessa forma, através da dialética hegeliana, sugere-se pensar
num terceiro (mediador da relação pelo simbólico).
O sujeito como efeito do significante, como sujeito desejante, está relacionado
com o sujeito que enuncia, visto que a semântica da língua é alterada. Isso se dá em
razão de o sujeito que enuncia, ao dizer algo, ser atravessado por um desejo do
Outro. O sujeito falante passa a ser dividido, quer dizer, embora o sujeito que
enuncia seja uma certeza (pois dele ‘vêem-se e ouvem-se palavras saírem de sua
boca’), essa fala não só pertence ao eu, mas também ao Outro.
Para se dizer algo sobre intersubjetividade, é imprescindível tocar na
subjetividade. É exatamente no momento da relação intersubjetiva, na enunciação,
que se possibilita passar da intersubjetividade à subjetividade.
Em outras palavras, o sujeito da enunciação é aquele constituído pela relação
intersubjetiva e que possibilita a passagem da subjetividade à intersubjetividade.
Considera-se um sujeito dialógico como um sujeito cindido pela constituição
eu/Outro. Isso, como conseqüência, leva a crer que o inconsciente está presente no
dizer e no dito.
No dizer de Flores (1999, p.202): “O sujeito da enunciação não está nem do
lado do eu nem do lado do tu, mas instaura-os à moda de um terceiro que intervém,
mas que não se mostra à linearidade”.
Embora a teoria benvenistiana no tocante à enunciação seja a princípio
ortodoxa, percebem-se certas considerações que não deixam de lado as
ponderações psicanalíticas. Dessa forma, apesar de em estágio embrionário, já se
antevê o que mais tarde é defendido por autores, como Flores (idem), em relação à
participação ativa do inconsciente no ato enunciativo. No momento em que
Benveniste se consagrou por suas idéias sobre enunciação, ele não tangenciava
seu pensamento aos conceitos psicanalíticos diretamente, pelo menos, não era
bastante claro. Entretanto, chegou a dizer que o ‘sentido profundo’ pode opor-se ao
sentido convencional das palavras, e isso leva a uma reflexão que considera a
interface linguagem e inconsciente.
Concorda-se com Flores (idem, p.209) quando ele diz que Benveniste não
contemplou apenas a lingüística do signo, mas um sentido muito distante do literal:
Com isso, quero dizer que Benveniste admitia que, na
instância enunciativa, o discurso pode significar exatamente o
contrário daquilo que as palavras podem significar. É isso que
uma leitura atenta à teoria de Benveniste autoriza.
E para falar no contrário do que, conscientemente, deseja-se dizer, é
indispensável considerar o inconsciente como protagonista, ao lado do sujeito
falante, supostamente ‘senhor de si’.
Nada impede dizer que Benveniste tivesse seus pontos de comunhão com
Lacan, assim trazendo para seus textos um pouco daquela noção psicanalítica,
embora que escamoteada. Lacan, no seminário sobre A Carta Roubada, faz menção
clara aos pressupostos benvenistianos, deixando indícios de que estava
familiarizado com a obra de Benveniste no que diz respeito à questão da alteridade:
[...] quando um sujeito se engaja na análise, ele aceita uma
posição mais constituinte nela mesma do que todas as senhas
com que ele se deixa mais ou menos enganar: a da
interlocução [...]. Pois isso nos será a ocasião de insistir no
fato de que a alocução do sujeito aí comporta um alocutário,
[...], que o locutor aí se constitui como intersubjetividade.
(LACAN, 1988, p. 123).
Fica bem visto que o sujeito, na interlocução, se assume como um eu numa
relação com um outro, conseqüentemente, constituindo-se nessa troca, nessa
relação de espelhamento, nessa comunhão de dois. Dessa maneira, é possível
pensar que, em certos momentos, não há dois, mas apenas um.
Flores (1999), como já se viu, vai além da lingüística clássica, no sentido de
buscar subsídios que melhor expliquem a idéia de sujeito e como este se constitui.
Assim, ele faz um retorno a Authier-Revuz (2004), que define a estrutura subjetiva à
luz de Bakhtin e Lacan, deixando clara, destarte, a presença do Outro no discurso.
Sobre a teoria do dialogismo, Flores (1999, p.51) define: “[...] o sujeito se
reconhece frente ao outro em um processo de auto-reconhecimento pelo
reconhecimento desse outro em um movimento da alteridade”.
Tratando-se de dialogismo, é imprescindível remeter-se a Bakhtin (2003), pois
para ele a linguagem é essencialmente dialógica, e como ela não deve dissociar-se
da idéia de sujeito, este, conseqüentemente, traz consigo tal feição. Authier-Revuz
(2004) fala sobre a heterogeneidade constitutiva do discurso, tendo como referência
pontos teóricos extrínsecos à análise do discurso, como é o caso do dialogismo do
círculo de Bakhtin e da psicanálise. Assim, lança mão de pontos de vista exteriores
para explicar fenômenos que são, a priori, lingüísticos. Dessa forma, ela diz que o
Outro está também dentro do circuito dialógico. Para ela, entretanto, o Outro não
está presente tão-somente no embate físico da interação. Esse Outro, no seu dizer,
atravessa o eu, constituindo-o discursivamente.
Bakhtin (2003) acata a visão de que o que tem cunho ideológico contém
também significado, remetendo a algo que está situado fora de si. Ele enxerga a
enunciação impregnada de conteúdo ideológico. Na verdade, esse conteúdo
ideológico não compreende as palavras materializadas, mas o que elas dizem. E é
por essa razão que sua postura é crítica perante o objetivismo abstrato, visto que tal
segmento contempla a língua essencialmente sob uma ótica monológica.
Articulando uma discussão que envolve o eu, o outro e o Outro, é possível
enxergar os postulados de Lacan em relação à subjetividade, pois o viés
psicanalítico não considera um sujeito pleno, mas heterogêneo; leva-se em conta a
inclusão do inconsciente na relação dialógica, resultando, daí, a tríade: eu, outro e
Outro.
Authier-Revuz (2004) busca no plano bakhtiniano a idéia de oposições
formadoras de uma unidade, isto é, considera que o eu é constituído pela alteridade.
É permitido antever um lugar para o sujeito na perspectiva dialógica, com a ressalva
de que nessa relação não há nem um duplo de um frente a frente nem um diferente,
mas um outro que atravessa constitutivamente o eu. Através da heterogeneidade
mostrada e constitutiva, evidenciam-se as fronteiras sempre presentes e muito
próximas do eu, fronteiras essas que apontam para a alteridade. É por meio desse
outro que o eu vê o exterior. Sem contrapor Bakhtin, mas auxiliando-o no que diz
respeito à questão dialógica, ela se apóia na psicanálise, posto que o sujeito não é
pleno, conseqüentemente, a palavra não é homogênea. Sua intenção é posicionar a
palavra, com todas a suas nuanças de significação, em um lugar em que seja
prioritária a marca da heterogeneidade. Ela considera, portanto, o sujeito como
dividido. Como ela vai além da compreensão abrangida por um eu e um outro, tenta
resgatar o Outro, desconhecido por parte de quem fala, ora visto como sujeito, ora
como lugar, o qual é capaz de guardar e remeter para a exterioridade (na suposta
linearidade da fala) as lembranças mais remotas e escamoteadas, fazendo ressurgir
os conflitos esquecidos, demandas recalcadas e agindo independentemente da
consciência do sujeito enquanto falante. Assim, por mais que haja pontos de
semelhança com o dizer de Authier-Revuz (2004), este trabalho encontra seu
diferencial no fato de que a interação é o ponto de partida para contemplar a palavra
dita e assumida por um eu, porém, sem deixar de considerar que, por trás desse eu,
há sujeitos outros. De fato, são esses outros sujeitos os grandes iniciadores e
responsáveis por este corpo unificado, mas dividido, que é o sujeito enquanto falante
de uma língua.
O outro é inscrito linearmente pelo locutor na sua fala. É como se o locutor
desse lugar explicitamente ao discurso de um outro nas malhas de seu próprio
discurso. Nesse sentido, Authier-Revuz (2004) menciona a expressão ‘o jogo com o
outro’, o que significa que a presença do outro se verifica mais fortemente no espaço
onde não há explicitude. Então, segundo a mesma autora, o discurso do outro se
torna semidesvelado. Trata-se, no seu dizer, de uma heterogeneidade constitutiva.
A visão bakhtiniana de língua convida a uma reflexão mais complexa, isto é, o
diálogo, latu sensu, permite, por excelência, a materialização da língua; o diálogo é
produto da relação de alteridade existente entre, pelo menos, duas consciências
individuais, socialmente organizadas. É nessa perspectiva dialógica que até o
silêncio de uma das consciências se converte em discurso, posto que mesmo sem a
concretização fonético-fonológica, as palavras estão incessantemente ‘em frenesi’,
indo e vindo. Essas palavras são aquelas que ficam no mundo interior dos
indivíduos.
Bakhtin (2003) enfatiza sempre o aspecto dialógico inerente à linguagem. As
‘coisas’ ditas já foram ditas; nada é original; nada pertence à invenção de quem fala.
O discurso desvelado no cotidiano é um discurso que vem sendo tecido não se sabe
desde que momento; as consciências ideológicas vêm se encontrando e se
somando espacial e temporalmente.
Na estrutura da dialogicidade, o discurso é visto como sendo prenhe de
resposta, porque quem diz algo se motiva para dizer tal coisa em função da
possibilidade de uma resposta do parceiro - interlocutor. Como diz Flores (1999,
p.69): “A enunciação do sujeito, como o que ainda não foi dito, é determinada pela
resposta que já está nela contida pelo próprio fato de se construir na atmosfera do
já-dito”.
Por isso, consoante o trato bakhtiniano, a interação dialógica não se restringe
ao âmbito do diálogo físico; na verdade, esse dialogismo pode ir muito mais além.
Para ele, mesmo uma palavra pode ser dialógica, num sentido mais próximo dos
estudos sobre polifonia.
Para melhor entender a subjetividade na língua, de acordo com Authier-Revuz
(2004), deve-se contemplar o dialogismo bakhtiniano, segundo o qual pensar em um
outro, na relação dialógica, não é o mesmo que vê-lo como um duplo de um diálogo
frente a frente, mas em um eu constituído discursivamente pelo outro. Existe aí uma
relação de atravessamento. Bakhtin (2003) concebe a relação com o outro
demarcada por uma fronteira interior. Essa fronteira determina as nuanças do
discurso que o círculo de Bakhtin privilegia.
Bakhtin (1997), de maneira geral, concebe a língua como algo que
corresponde à produção de sentidos. Assim, a lingüística não consegue por si só dar
conta de circunscrevê-la nesse terreno cujo solo tem características tão específicas.
Uma espécie de translingüística entra em cena, que contempla a interação da língua
e da situação. Falando em língua dentro de um contexto social, não se pode deixar
de falar em inter-relação verbal e, automaticamente, em enunciado. Este visto como
resultado acabado da enunciação. Em relação aos enunciados, está a idéia de
significado valorativo - eis aí o aspecto axiológico inerente à língua como discurso.
O dialogismo é a condição para que os sentidos sejam constituídos. As vozes
se cruzam no interior das palavras que formam o discurso. E assim os discursos são
ouvidos ecoando em outros discursos.
O lugar do outro não deve estar ao lado (fisicamente) do enunciador, mas,
imprescindivelmente, presente no discurso; não é possível atribuir uma posição
definida para ele, ou melhor, não é possível visualizá-la, pois o outro constitui o que
o eu fala; o outro permeia a fala do eu. Na visão bakhtiniana, é concebível, nos
limites de uma única e mesma construção lingüística, ressoarem várias vozes.
O outro, através da interação com o enunciador, já que ele constitui o eu, é
apreendido pelo eu enquanto discurso. Compreendendo seu interlocutor, o locutor
integra uma imagem do discurso outro, no momento da produção de seu discurso.
Trata-se de uma espécie de relação de espelhamento mediante essa idéia de
empréstimo ou fundição de discursos.
O eu vê no outro uma porção de si. De acordo com Authier-Revuz (2004),
esse espelhamento acontece para Lacan quando o emissor recebe do ouvinte o que
o próprio emissor disse de maneira invertida. Há, dessa maneira, a necessidade de
uma resposta no momento em que essa palavra é utilizada; ela é prenhe de
resposta.
Consoante Authier-Revuz (idem, p.44), “em Bakhtin, o outro (interlocutor,
discurso) é sempre ‘o outro de um outro’(interlocutor, discurso), lá onde podemos
dizer que ‘não há outro do Outro’ (inconsciente)”. Explicando melhor a questão da
alteridade, pode-se afirmar que o outro é sempre fruto de vários entrecruzamentos
com sujeitos-falantes outros, uma vez que essa relação de perpetuidade é uma das
marcas bakhtinianas. Porém, deve-se ficar atento para não dizer o mesmo do Outro
(inconsciente), pois, embora esse Outro entre na cena enunciativa, sendo
responsável muitas vezes pelo que o eu diz, é inconcebível a idéia de um outro
desse Outro. O outro, na perspectiva dialógica bakhtiniana, é a condição do discurso
do enunciador; é visto como uma fronteira que marca a relação constitutiva com os
outros na linguagem.
Falando em Outro e outro, há que especificar e aclarar pontos de alcance de
um e de outro. Levando em consideração o que pontifica a psicanálise, o sujeito não
é visto como pleno; é marcado pela heterogeneidade. Daí se explica o fato de ser
ele cindido. Trata-se da emergência do inconsciente no curso ‘normal’ na vida das
pessoas (AUTHIER-REVUZ, 2004). Embora o uso do termo ‘sujeito cindido’ pertença
ao repertório conceitual da psicanálise, referindo-se, basicamente, ao eu/Outro, não
é absurdo pensar em um eu cindido, em relação ao outro, posto que outro constitui o
eu, inclusive o que esse eu fala. Porém, os pares eu/Outro e eu/outro possuem
propriedades e movimentos diferenciados, se vistos separadamente, mas podem
fazer parte de um circuito dialógico, cada um com um lugar e função para o
indivíduo.
A função da psicanálise é fazer advirem os conflitos esquecidos. É através da
capacidade de transindividualização que o inconsciente se “concretiza” por meio do
discurso. A princípio, o desejo está aprisionado. Vem a linguagem e o liberta, o que
resulta na afirmação “a linguagem é condição do inconsciente”. Isso não quer dizer
que o inconsciente tenha o seu próprio discurso; ele age no discurso dito ‘normal’ do
indivíduo.
Não se pode dizer que a psicanálise tem a linguagem como seu objeto, pois,
na verdade, seu objeto é o próprio desejo. A linguagem é usada para desvelá-lo,
circunscrevendo-o. O inconsciente se evidencia através da materialidade da língua.
De acordo com Authier-Revuz (2004), essa língua, assim concebida, implica o
fato de que o discurso do Outro é o discurso do eu ao avesso. É, pois, por meio das
ressonâncias do dizer que o conteúdo latente pode se tornar manifesto (via escuta
analítica). Partindo do pressuposto de que todo discurso é polifônico, diz-se que, no
momento da análise, ouvem-se várias vozes: a do locutor, a do ouvinte e as outras
várias vozes anônimas, as quais vêm, inclusive, do lugar/sujeito que se desconhece,
isto é, do Outro, em relação ao qual o falante é completamente ignorante. Dessa
maneira, fica clara a alusão que Authier-Revuz (2004) faz ao dialogismo bakhtiniano
e
à psicanálise
lacaniana, já
que
essa
alteridade
adentra/permeia
uma
fenomenologia não alheia ao sujeito, mas fora dele, por mais que o outro e o Outro o
constituam.
Um outro ponto que deve ser esclarecido, já que se trata da subjetividade, é a
pluriacentuação do discurso, a qual pode ser definida como “[...] um fator de
interlocução no qual o sujeito se constitui intersubjetivamente” (FLORES,1999, p.
75). Essa idéia de pluriacentuação se propaga ao longo de seu texto, mesmo que o
termo ‘pluriacentuação’ nem sempre esteja explícito. É a alteridade marcando o dizer
do sujeito falante numa dimensão constitutiva:
[...] a atitude de um locutor para consigo é inseparável da
atitude para com o outro e deste em relação a ele. A
consciência de si é sempre presente na consciência que o
outro tem do locutor. O ‘eu para si’ que subjaz o ‘eu para o
outro’ é, na verdade, a confirmação da tese de que as vozes
constituem a consciência do sujeito e que este, por sua vez,
fala a partir do discurso do outro, com o discurso do outro e
para o discurso do outro. Na voz do sujeito está a consciência
que o outro tem dele (FLORES, 1999, p.75).
Flores (idem) também ratifica o posicionamento de Bakhtin em relação ao
sujeito dialógico, haja vista que o sujeito é constituído numa relação de troca com o
outro discursivo, pois esse outro se reflete no eu. Dessa forma, pode-se dizer que a
subjetividade já é intersubjetividade, uma vez que é com o outro que o sujeito passa
pelo processo de (auto)/(re)conhecimento: ele se vê sujeito num dos pólos que o liga
ao outro pólo de seu semelhante. Vendo-o, ele se reconhece no outro.
Flores (idem) defende, através do viés da semântica enunciativa, um tipo de
sujeito e uma espécie de semântica marcados pela falta, uma falta que pressupõe o
Outro como lugar e como próprio sujeito. Segundo Roudinesco & Plon (1998, p.147),
“Lacan estabeleceu um elo entre um desejo baseado no reconhecimento (ou desejo
do desejo do outro) e o desejo do inconsciente [...]”. Assim, percebe-se que, ao
referir-se a um indivíduo falante, necessariamente, deve-se interpor um outro e um
Outro (sujeito do inconsciente), visto que é através da interação entre esses atores
que a linguagem tem sua cena performada.
A estrutura material da língua permite que a polifonia de um discurso se
inscreva, tornando clara a atuação do Outro na fala do locutor. Por isso, se diz que o
sujeito é heterogêneo e a linguagem lhe é interior/exterior, isto é, essa linguagem
provém de um outro e do Outro, restando ao eu a aparente idéia de originalidade do
dizer.
Anteriormente já se falou que a linguagem é a condição do inconsciente.
Numa relação de paralelismo, pode-se dizer que o sujeito é tido como um efeito da
linguagem. Através dela, ele existe; por ela ele é representado; ele enuncia e é
enunciado, visto que o movimento é duplo, enxergado na alteridade. Assim, o sujeito
não pode ser concebido como homogêneo. Ele é e está no outro e no Outro, assim
como eles (outro e Outro) estão no locutor.
O sujeito do inconsciente é representado pelo significante. Ele é um sujeito
em que não há uma subjetividade psicológica, como acontece com o sujeito que
acha que fala porque quer e que fala somente o que deseja falar (idéia de sujeito
pleno). Quando se fala em clivagem, deve-se remeter preferencialmente ao desejo
barrado, o que é, aliás, a razão de se falar na divisão desse sujeito. O inconsciente é
parte essencial da constituição do sujeito, dito barrado. Fala-se em sujeito barrado
porque Lacan concebe o significante (com letra maiúscula) estando em cima do
significado. Esse significante está separado do significado por uma barra que serve
de obstáculo para que se dêem os devidos amarrações, não permitindo assim
deslizamentos quaisquer. Daí vem a idéia de ponto-de-estofo, que é a operação pela
qual o significante detém o deslizamento, de outra forma indeterminado e infinito, da
significação. Assim, com outras palavras, é aquilo por meio do qual o significante se
associa ao significado na cadeia discursiva.
Para a psicanálise, mesmo na linearidade da emissão vocal, outras vozes se
ouvem. É o eco polifônico dos outros, inclusive do Outro, pois o discurso é
constitutivamente atravessado pelo “discurso do Outro”.
No dizer de Authier-Revuz (2004, p.69),
todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos
‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do Outro’. O outro não é um
objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição
(constitutiva, para que se fale) do discurso de um sujeito
falante que não é fonte primeira desse discurso.
Para Authier-Revuz (idem), o que caracteriza o atravessamento de discursos
outros no discurso do sujeito falante é a própria heterogeneidade, vista como um
fenômeno que privilegia o aspecto, por natureza dual, mesclado de outras
essências. Assim, por meio do dizer permeado por outros dizeres, o outro se localiza
frente, mediante, perante, ao derredor do eu, como se fosse uma relação simbiótica,
isto é, para que o eu seja efetivamente eu, é preciso observar outros elementos
subjetivos, visíveis ou não, o lugar/sujeito (Outro) que o eu desconhece e os outros,
os quais são necessários para o entendimento dessa subjetividade que vai além da
concepção de sujeito pleno.
Na heterogeneidade constitutiva, o sujeito desaparece para deixar o lugar a
um discurso, discurso esse marcado pela presença de outros atores sociais,
investindo-se de papéis com lugares bem definidos, mas, muitas vezes, não ditos,
fazendo crer que o que se fala só é criação de quem diz, da maneira que quer dizer.
Voltando-se um pouco mais para a psicanálise no que toca à formação do
sujeito, já que é uma das vigas deste trabalho, pode-se dizer que o Outro é
representado pela mãe, a que se perdeu, para o indivíduo, em função do incesto
cometido anteriormente e definitivamente, depois de ocorrida a metáfora paterna.
Assim, tem-se o outro e o Outro. O Outro, com maiúscula, é representação do eu,
através das identificações imaginárias; já o outro, com minúscula, é alteridade
literalmente exterior ao sujeito, mas, ao mesmo tempo, presentificada nas relações
dialógicas.
A função paterna serve, tão-somente, para tornar ‘normal’ (neurótico) o sujeito
lacaniano que, a princípio, só vê a mãe, pois ela é o seu desejo. Vem o pai, o Outro
que impõe a castração simbólica. O desejo pela mãe é barrado, por conta do
recalque originário, sobre o qual já se falou neste mesmo capítulo. Daí a função do
pai, servindo, inclusive, para promover a divisão, clivagem do eu.
Sendo
assim,
consoante
Teixeira
(2000),
Lacan
é
marcado
pela
intersubjetividade da palavra, abrindo vistas para a questão do desejo. Toda essa
‘sombra’, ajudada pelo inconsciente, deve vir a ser verbalizada, pois só a partir de
então, será possível ao sujeito ‘se resolver’. Para Teixeira (idem, p. 83), “os sintomas
e traumas são lacunas, são espaços vazios e não-historicizados do universo
simbólico do sujeito”. A análise se encarrega de tentar dar uma significação a esses
traumas, preenchendo o lugar vazio. Lacan (1978, apud TEIXEIRA, 2000, p.124), o
qual diz que “o inconsciente é esse capítulo da minha memória que é marcado por
um branco ou ocupado por uma mentira: isto é o capítulo censurado. Mas a verdade
pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está escrita em algum lugar”.
Esse branco a que se refere Lacan não é um branco no sentido de não ter
conteúdo. Pelo contrário, há muitos vestígios de experiências que precisam ser
contadas. Para se ter uma idéia do que guarda o inconsciente, pode-se até pensar
nele não apenas como um capítulo, mas como uma enciclopédia com vários e vários
capítulos continuamente em construção. De acordo com Teixeira (2000), o sujeito
nem é dono do que diz nem é assujeitado completamente.
No tocante a esse assujeitamento, o próximo capítulo se encarrega de falar
sobre o papel, sobretudo, do Outro, enquanto sujeito do inconsciente, que se
presentifica no dizer do falante cuja consciência é ausente quanto ao que o Aquele
dita. Dessa forma, não se pode considerar um sujeito puramente com o olhar da
lingüística, mas concebê-lo para além dela, como o verdadeiro sujeito: o sujeito
lacaniano.
3 Considerações sobre o sujeito lacaniano:
para além de um outro da lingüística
Sobre o eu e o outro
Esse Outro de boa fé suposta está presente a partir do
momento em que se escuta alguém, suposto também a
partir do momento em que se fala a alguém. É o Outro
da palavra que é o alocutário fundamental, a direção
do discurso mais além daquele a quem se dirige.
Jacques-Alain Miller
No início deste terceiro capítulo, serão delineadas as direções tomadas, de
modo que conceitos como de discurso e de linguagem serão admitidos como
sinônimos, visto que tanto a visão dialógica quanto a psicanálise (esta no que toca,
sobretudo, ao inconsciente) assim os concebe. A preocupação em estabelecer
semelhanças aqui se deve ao fato de que o que se tem em mente é que a leitura
seja facilitada por parte de quem a fizer, embora essas categorias conceituais não
ocupem lugar central. Essa relação de intercâmbio conceitual, ou melhor, de uso de
‘linguagem’ por ‘discurso’ e vice-versa é encontrada na obra lacaniana. Veja-se:
“Quando o paciente se cala, há todas as chances de que essa parada no seu
discurso seja devida a algum tipo de pensamento que se relaciona ao analista”.
(LACAN, 1979, p.52). Não há como pensar, pelo menos no caminho de reflexão no
qual segue esta dissertação, que linguagem não seja tomada enquanto discursiva,
pois quando Lacan fala em ‘parada no seu discurso’, vê-se que a noção do termo
‘discurso’ se aproxima do segmento ‘linguagem’. Nesse sentido, a palavra
‘linguagem’
(aspecto
lingüístico)
é
tomada
como
sinônimo
de
‘discurso’,
considerando que ambos são dialógicos. Para melhor corroborar a idéia de discurso
e linguagem como sinônimos, segue uma outra passagem, na qual Lacan
desenvolve um raciocínio em relação à palavra enquanto acordo, entendimento,
pacto: “Mas o caráter agressivo da concorrência primitiva deixa sua marca em
qualquer espécie de discurso sobre o pequeno outro, sobre o Outro enquanto
terceiro, sobre o objeto” (LACAN, 1988, p. 51). Uma outra questão a ser observada é
o paralelo estabelecido entre metáfora e metonímia, pois não se concebe um estudo
sobre o sujeito, articulando lingüística e psicanálise, que não contemple as relações
às quais esses termos remetem, isto é, aos processos de condensação e
deslocamento, uma vez que são eles mesmos que mostrarão evidências da
estrutura da linguagem no seu aspecto mais estrutural: eixos paradigmático e
sintagmático. Também será discutida a representação do significante junto à
estrutura do sujeito do inconsciente quanto ao aspecto lingüístico, sem perder de
vista a interação da linguagem, sobretudo, entre um sujeito dividido e a alteridade
que o circunda. Assim, sempre que possível, serão feitos paralelos e referências
entre as concepções de alteridade. Como a interação e a alteridade são categorias
de relevância para o que se propõe a estudar, haverá momentos em que a
intertextualidade será necessária, isto é, Bakhtin e, principalmente, Lacan serão
parafraseados, analisados e, com freqüência, comparados, de sorte que o
entrecruzamento de suas respectivas teorias venha a esclarecer pontos de interesse
tanto para a lingüística quanto para a psicanálise, como é o caso da subjetividade na
linguagem.
Em se tratando de sujeito na obra de Lacan, é necessário que alguns
paradigmas sejam chamados a atuar neste texto, pois as considerações a serem
feitas trazem da psicanálise um elemento, sujeito do inconsciente, ou o Outro.
O termo inconsciente pode ter sua significação mais atrelada à acepção
quotidiana ou ao jargão psicanalítico, o qual ainda pode reconfigurar-se em função
do tempo e da ênfase de teórico para teórico, como é o caso de Freud e Lacan. De
acordo com a acepção do quotidiano, inconsciente é aquilo que não é consciente,
que está fora dos sentidos; é o conjunto de processos psíquicos que influem sobre a
conduta, mas dos quais a pessoa não tem a consciência; ou ainda, é a pessoa que
age irrefletidamente. Consoante Chemama (1995), Freud chama de inconsciente a
instância que guarda elementos recalcados, os quais resistem a vir à instância préconsciente ou consciente, o que corresponde à primeira tópica do aparelho psíquico.
Em relação à segunda tópica, o inconsciente qualifica a instância do isso e aplica-se
em parte às do eu e do super-eu. Entretanto, o conceito de inconsciente que servirá
é aquele lugar de saber constituído por um material literal, que não tem significação,
mas que dá uma certa organização ao gozo, a percepção etc.
A princípio, ao se observar a questão do discurso, percebe-se que ele não
possui apenas uma dimensão. A intenção é discuti-lo numa acepção mais ampla,
abrindo a possibilidade, inclusive, de pensar discurso enquanto linguagem, isto é, a
linguagem de que o indivíduo lança mão consciente ou inconscientemente. Acreditase que qualquer um já tenha experienciado um lapso de língua, momento em que
vários
discursos (fala
do
inconsciente) ‘vêm’;
são
exteriorizadas aquelas
enunciações, através do mesmo porta-voz. Fink (1998, p.19) utiliza esse termo
‘porta-voz’ para dimensionar o entendimento da palavra discurso: “o discurso nunca
possui uma só dimensão. Um lapso de língua nos lembra imediatamente que vários
discursos podem usar o mesmo porta-voz ao mesmo tempo”. Na verdade, essa fala
envolta por esse discurso é o resultado do que o falante queria dizer, embora
também, nesse momento, escapem “coisas” que não imaginava, sequer desejava
dizer. A partir de então, é possível considerar que na fala se materializa tanto aquilo
que conscientemente se fala quanto o que está para lá da vontade de falar. Assim,
pode-se, logo agora, afirmar a existência de duas fontes da linguagem, isto é, duas
molas propulsoras que impulsionam os atos lingüísticos: o eu (com sua fala
consciente) e o Outro (sujeito/lugar desconhecido, o inconsciente). Dessa maneira,
não é descartável o raciocínio de que o discurso do eu é consciente e intencional; ao
passo que o discurso do Outro é inconsciente e involuntário. O inconsciente tem seu
fio discursivo que remete necessariamente ao Outro. Dessa forma, uma certa fala
desordenada, incompreendida muitas vezes por parte do falante, escapa sem maior
esforço, persistindo em não ficar na linearidade. Essa fala pertence a uma outra
instância que está fora das fronteiras do eu. Esse lugar é o inconsciente. Lacan,
segundo Fink (1998, p. 20), diz que “o inconsciente é o discurso do Outro”. Muitas
pessoas afirmam que, quando falam o que não planejavam falar, estão diante do
que consideram uma mente mais veloz do que sua habilidade de articular as
palavras, isso levando em conta tão-somente o aspecto fono-articulatório. Na visão
freudiana, esse seria o momento em que a verdade está sendo dita, ao passo que o
falante tem a impressão de estar dizendo algo sem sentido, que falou
aleatoriamente.
Muitas pessoas não dão a atenção devida a essas falas ditas sem nexo,
porém, em uma situação de clínica, a psicanálise cuida exatamente delas, no
sentido de descobrir o que está por trás delas. Em A Interpretação dos Sonhos,
Freud dedicou-se a entender os mecanismos que regem esse processo de
exteriorização do inconsciente através da palavra. Lacan, mais tarde, estabelece
uma relação dos processos de deslocamento e condensação, estudados nessa obra
por Freud, com os conceitos lingüísticos de metonímia e metáfora.
De acordo com Dor (1989), a metáfora pode ser entendida como uma figura
de estilo baseada em relações de similaridade ou de substituição. Sua presença é
observada no eixo paradigmático, eixo sincrônico, aquele do repertório lexical que
possui a língua. Assim, sentidos e significados vão sendo cumulativamente
sobrepostos, isto é, sentidos figurados são metáforas antigas. Lacan, então, fala da
metáfora como uma substituição de significantes; há sentidos e significados sendo
sobrepostos. A metáfora implica uma espécie de substituição de uma coisa por
outra. Lacan, assim, formula o que ele mesmo chama de substituição de
significantes. Os significados dependem dessa rede dos significantes. Vê-se que,
portanto, o significado é preterido em detrimento do valor do significante, o que se
configura como a supremacia do significante. Um exemplo clássico e de muita
clareza para a exemplificação do fenômeno metafórico é o sonho da “injeção de
Irma”, citado por Dor (1998, p.53). Assim, Freud relata:
Todas essas pessoas que descubro ao investigar esta Irma
não aparecem no sonho: elas se dissimulam por detrás da
Irma do sonho que se torna também uma imagem genérica,
formada com quantidades de traços contraditórios. Irma
representa todas essas pessoas sacrificadas ao longo do
trabalho de condensação, uma vez que acontece com ela tudo
o que aconteceu com as outras.
Freud investiga e acaba descobrindo que Irma é atualizada numa série de
situações, ou seja, ela aparece no lugar de outras pessoas às quais ela mesma se
refere. Os seus atos fazem não só menção, mas referência a diversas pessoas.
Esse fenômeno vem confirmar o processo do qual vem se falando - metáfora. Além
da metáfora, existe também o que será apresentado a seguir – metonímia. A
metáfora e a metonímia, juntas, podem fazer com que se entenda melhor o ponto de
estofo. Diz-se que elas estão juntas porque são a lógica do significante e se
esboçam no discurso do sujeito, isto é, os processos metafóricos e metonímicos no
discurso do sujeito são testemunhos inquestionáveis do caráter primordial do
significante. E por que falar em ponto-de-estofo? Pelo fato de Lacan considerar que,
através dele, o significante detém o deslizamento da significação. Assim, o
significante se associa ao significado na cadeia discursiva. Em relação a esse
desdobramento da cadeia do significante, é necessário destacar as conseqüências
no nível semântico: a metáfora e metonímia, as quais representam a linguagem nas
suas direções paradigmáticas e sintagmáticas. Dessa forma, a metonímia pode ser
compreendida como uma espécie de transferência de denominação, isto é, um
objeto é denominado por outro termo e não o que normalmente o nomeia. É preciso
que haja ligações entre os termos; a arbitrariedade não é ilimitada a ponto de a
substituição acontecer entre quaisquer termos. Dor (1989) exemplifica o processo
metonímico com a expressão ‘estar num divã’. Pode-se entendê-la como ‘estar em
análise’. O todo (a análise) está elidido, e a parte (o divã) está em seu lugar. Assim,
deve-se afirmar que o processo metonímico impõe uma troca de significantes em
função da relação de contigüidade existente entre a parte e o todo.
Falar em conceitos como o de metonímia e metáfora pode, em um primeiro
momento, levar o leitor a uma espécie de indagação: o que tem a ver isso com o
sujeito, com a linguagem? Se se está falando em um sujeito que fala, na acepção
psicanalítica do termo, não se pode perder de mira a questão do caráter linear do
significante e, conseqüentemente, cadeias sintagmáticas.
Lacan (1985) afirma que os significantes são jogados para além do real. Esse
real é representado pela realidade do eu. Indo além do que se permite
normativamente, além da equivalência primeira entre significantes e significados,
pode-se perceber o jogo com as palavras, no que diz respeito ao aspecto mais
material da palavra, passando a existir aí os chistes, trocadilhos etc.
Como se acredita num sujeito para além do eu, não se pode deixar de lado a
idéia de uma alteridade que o constitui, seja um Outro ou outro. Lacan (1985) diz
que, na esfera da consciência, está a relação imaginária. O sujeito não se
circunscreve apenas no eu, pois ele é e está sempre em relação a uma espécie de
alteridade (seja outro ou Outro), e esta alteridade se presentifica no eu de forma
marcante.
A linguagem, aqui enxergada, situa-se num patamar que inclui o Outro como
responsável sobremaneira por ela. Pois de acordo com Lacan (1979), no Outro está
a cadeia do significante, o qual ordena tudo o que se presentifica no sujeito, ou seja,
tudo o que vai ser dito pelo sujeito.
É interessante falar naquele discurso ou linguagem que precede o ser e que
se perpetuará depois que morrer. Nesse ponto, encontram-se semelhanças em
relação à pré e pós-existência da linguagem no tocante ao sujeito em Lacan e em
Bakhtin. Bakhtin (2003) fala do valor axiológico como categoria para a consolidação
da alteridade, isto é, quando um indivíduo nasce, embora digam que a vida é sua,
nada, de fato, lhe pertence, pois os fatos, os juízos, os posicionamentos já existem,
inclusive a língua/linguagem. Dor (1998, p. 21), falando em uma vertente
psicanalítica, diz que
Lacan explica a estranheza dessa forma: nascemos em um
mundo de discurso, um discurso ou linguagem que precede
nosso nascimento e que continuará após a nossa morte. Muito
antes de uma criança nascer, um lugar já está preparado para
ela no universo lingüístico dos pais: os pais falam da criança
que vai nascer, tentam escolher o nome perfeito para ela,
preparam-lhe um quarto, e começam a imaginar como suas
vidas serão com uma pessoa a mais no lar. As palavras que
usam para falar da criança têm sido usadas, com freqüência,
por décadas, se não séculos e, geralmente, os pais nem a
definiram e nem as redefiniram, apesar dos muitos anos de
uso. Essas palavras lhe são conferidas por séculos de
tradição: elas constituem o Outro da linguagem, como Lacan
chama em francês (l’Autre du langage), mas que podemos
tentar converter em o Outro da lingüística, ou o Outro como
linguagem.
Essa linguagem preexistente é mais uma prova de que a alteridade marca a
vida dos indivíduos, trata-se de uma condição para que o sujeito seja, constitua-se
como um eu. O Outro, obviamente, exerce um papel de extrema relevância nisso
tudo, pois é a partir dele e por meio dele que o sujeito fala. Em harmonia com Lacan
(1979), o sujeito falante está necessariamente em relação ao Outro sempre, pois
para falar, ele depende do significante, mas o significante está primeiramente no
campo do Outro. O sujeito produz-se no campo do Outro, fazendo com que surja o
sujeito da significação. Nessa perspectiva, o sujeito é também um significante; um
significante que vem se instalar com o mesmo movimento com que é impulsionado a
falar, a existir como sujeito.
Quando se fala em linguagem pré-existente, não se deve deixar de lado a
reflexão de que uma criança, nos seus primeiros meses de vida, não chora com
intenções determinadas. Na verdade, quem vai pouco a pouco moldando a
significação do seu choro e suas atitudes são os seus pais, os quais atribuem
significado à medida que vão adivinhando o que seus filhos desejam. Fink (1998) diz
que seus desejos tomam forma determinada porque são compelidos a usar as
palavras de seus pais, que foram herdadas de seus avós, bisavós e assim por
diante. Essas palavras não são correspondentes às demandas específicas do ser
que cresce. Há, dessa maneira, uma moldagem de seus desejos dentro das formas
que a língua materna que falam prescreve. De resto, há de considerar-se que o
sentido é determinado não pela criança, mas por quem está em sua volta, levando
em conta, é claro, a linguagem que utilizam.
Lacan defende que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Isso é
tão verdade que se observa como bem ilustra Fink (1998, p.25): “analise as palavras
‘conservação’ e ‘conversação’. Elas são anagramas: elas contêm as mesmas letras,
somente a ordem em que aparecem é que é diferente”. Para o eu e seu discurso,
conseqüentemente, essa relação não faz sentido a princípio, em nível consciente,
mas essas palavras podem estar associadas em nível inconsciente. Entretanto, para
o inconsciente, a atenção é dada a certos detalhes, como é o caso da substituição
de palavras. Basta, para isso, que o contexto seja envolvido por um sonho ou uma
fantasia, como diz Fink (1998). Isso tem razão de ser, pois a linguagem do
inconsciente obedece a um tipo de gramática (regras estabelecidas), comandando
os possíveis deslizamentos que podem aí acontecer. Por isso que mais facilmente
são percebidas essas manifestações lingüísticas nos sonhos, momento em que o
inconsciente passa a se articular de forma mais atuante.
O recalque exerce um fator de extrema importância, uma vez que ele pode
determinar a acessibilidade ou a inacessibilidade de uma certa palavra ou parte dela
ao consciente, isto é, o recalque originário se presentifica sempre ao longo da vida
do falante em função do processo de substituição de significantes. Quando uma
palavra, por algum motivo, é falada com acepção diversa da que costumeiramente é,
ou é a partir dela feito um trocadilho, ela passa (é uma possibilidade!) a exercer um
novo papel para o falante, o de atualização do recalque originário, fazendo com que,
de alguma maneira, o falante, inconscientemente, relacione essa nova enunciação à
intervenção paterna, o que substituiu, portanto, o papel da mãe.
Pelo fato de relacionar o inconsciente e a linguagem, Lacan não pretende
dizer que o inconsciente é estruturado como uma língua qualquer, visivelmente
regrada, mas há uma sujeição a uma espécie de gramática que dita as “regras do
jogo”, isto é, há um conjunto de regras que comandam a transformação que existe
dentro dessa linguagem. Continuando a explanação sobre inconsciente e linguagem,
poder-se-ia dizer que, segundo Fink (1998), o inconsciente é uma cadeia de
significantes, mais outro motivo para ser comparado à linguagem. Além dessa
estrutura que dá forma ao inconsciente, pode-se dizer também que ele (o
inconsciente) está cheio de falas outras, de outras pessoas, desejos, vontades de
outras pessoas. O inconsciente está cheio de outras vozes porque, ao nascer, a
criança herda a linguagem dos seus iguais, se concebe a linguagem aqui como
aquela aos moldes da que estrutura o inconsciente. Daí, se a linguagem não é uma
invenção individual, mas coletiva, por conseqüência, o inconsciente é povoado por
outras vozes.
Vê-se assim que o inconsciente é representado de diversas formas, dentre as
quais são mencionadas: o Outro é visto como linguagem (não podendo, aí, deixar de
considerar a idéia de todos os significantes reunidos), o Outro como demanda, o
Outro como desejo, o Outro como gozo, o Outro com lugar e como sujeito. O Outro
é, sobremaneira, o lugar do significante, é o registro do simbólico. Sempre há
significantes faltando, eles trabalham na incompletude; sempre novos significantes
são introduzidos. O lugar do significante é denominado de Outro porque nunca pode
ser o mesmo. O movimento acontece na alteridade. Embora essa alteridade esteja
no próprio sujeito do inconsciente, não se pode deixar esquecer o fato de que “falar
é antes de mais nada falar a outros” (LACAN, 1988, p.47). A palavra é do Outro e do
outro, e é assim que a alteridade se apresenta. Corrobora Jorge (2002, p.92),
dizendo que:
[...] atestar que ‘não há Outro do Outro’ implica formular a
radical incompletude do Outro: para além desse regime
faltoso, furado da linguagem, nada vem em suplência. O Outro
não poderia possuir uma alteridade para além de sua própria,
ele já é a alteridade, ele já é Outro continuamente: nada vem
lhe garantir qualquer limite definido.
O outro já é alteridade porque ele ‘funciona’ com o sujeito falante. É através
da linguagem do inconsciente que o sujeito fala, fala o que quer e o que não quer,
mesmo sem saber que não quer. Vê-se nessa relação entre o Outro e o eu uma
forma de interação.
Lacan, nas palavras de Fink (1998), diz que o sujeito cartesiano também é
transitório, pois assim que faz suas elucubrações (pensa), sua necessidade de
existir cessa; ele precisa dizer para si mesmo que ‘pensa’. Depois disso, não há
mais razão para existir, embora ele continue existindo; o pensamento do sujeito em
relação à sua própria existência dispensa outras cogitações acerca do pensamento
de manutenção desse existir. A idéia de falar nesse sujeito cartesiano é fazer um
paralelo entre o sujeito controlado, que sabe tudo, uno, pleno e o sujeito da falta, do
desejo (sujeito consciente & sujeito inconsciente). O sujeito de Descartes se
completa em si mesmo; ele é só, visto que não precisa do outro para constituí-lo.
Diz-se isso porque sua fala só é sua, é pensada, é produto unicamente seu. Porém,
a idéia de sujeito na psicanálise se expande mais, posto que o sujeito não sabe o
que fala, não sabe o que está nem quem está por detrás de sua fala. E se souber,
sabe parcialmente, sabe muito pouco. Mesmo sem saber precisar a existência de
outros no sujeito, admite-se a idéia do dual, de outros mesclando a sua essência.
A questão da alteridade na obra lacaniana deve ser compreendida em relação
a dois conceitos fundamentais: outro, chamado também de outro minúsculo, e Outro,
denominado de grande Outro, equivalente à ordem simbólica. O Outro é o lugar do
significante, equivale ao lugar a quem se dirige o discurso do sujeito e de quem o
sujeito recebe sua mensagem de forma invertida, visto que fala ao eu através do
outro. Numa comparação com o circuito comunicacional entre indivíduos falantes,
com diferenças bem claras, pode-se dizer que tanto o Outro pode ser emissor
quanto destinatário, razão por que se fala em inversão de mensagem, afinal esse
Outro, de alguma forma, é sujeito, ou compõe a subjetividade.
A concepção de subjetividade ultrapassa os limites da idéia cartesiana do
sujeito: “Penso, logo existo”. Em Lacan, o sujeito se abstém de consciência não
porque quer. Por isso, na psicanálise lacaniana, o sujeito não sabe quem realmente
ele é; do contrário, seria cartesiano, pleno e senhor de seu dizer. Isso pode ser
claramente visto a partir da máxima: “Penso onde não sou, logo sou onde não
penso”.
Lacan enxerga a questão do dialogismo além das fronteiras entre um eu e um
tu (outro), como Bakhtin previa. Segundo Lacan, falar em sujeito implica incluir um
Outro, seja como lugar da verdadeira palavra, lugar do inconsciente, lugar do
significante ou lugar da falta. Então, para uma melhor visualização da subjetividade
e suas possíveis interações, Lacan utiliza o esquema L, o qual é constituído dos
seguintes elementos: o S (sujeito analítico), o moi (eu), o outro e o Outro.
Segundo Lacan (1985), o sujeito analítico não é sujeito na sua totalidade, pois
se assim fosse não haveria interação; cada um estaria no seu canto, completo.
Segundo o mesmo autor, o sujeito está na sua abertura, diferentemente dos
planetas, que estão fechados em si, pois são redondos, não falam. E como não
falam, não interagem, conseqüentemente, não se pode falar que existe alteridade
nos planetas.
Por outro lado, o eu e o outro têm uma relação de implicação mútua, pois
nessa reciprocidade especular o eu consegue se ver no outro, promovendo assim
para si a idéia de um outro fora de si, um outro que perpassa o centro de sua
existência. Como diz Lacan (1985, p. 307):
[...] o eu é uma forma absolutamente fundamental para a
constituição dos objetos. Em particular, é sob a forma do outro
especular que ele vê aquele que, por razões que são
estruturais, chamamos de seu semelhante. Esta forma do
outro tem a mais estreita relação com o seu eu [...].
Como se observa no gráfico abaixo (esquema L), nas relações intersubjetivas,
o sujeito tem um eu no qual ele se vê, a ponto de crer que o “eu” é “ele”. O sujeito S
do esquema L é o sujeito da experiência analítica, na sua incompletude e ignorância.
O eu, que é a imagem do sujeito, é a construção imaginária que ele edifica em
relação à sua imagem especular. De acordo com Dreyfuss, Jadin e Ritter (1999,
p.204), a relação entre o eu e o outro no esquema L reproduz a relação entre o
sujeito e sua imagem especular no estádio do espelho.
[...] opticamente o outro é uma imagem virtual (no sentido ótico
onde ele é obtido pelo prolongamento de raios luminosos por
trás do espelho) e que, como imagem especular, ela é
invertida em relação ao objeto ótico que constitui o corpo, de
maneira que se pode dizer que no esquema L o eu recebe do
outro especular sua própria imagem de forma invertida
(tradução minha).1
Em termos cronológicos, sabe-se que o estádio do espelho foi criado por
Lacan primeiro que o esquema L. O estádio do espelho passou a ser usado por
Lacan em 1936, de acordo com Roudinesco e Plon (1998); já o esquema L foi
utilizado pela primeira vez na lição de 25 de maio de 1955, conforme afirmam
Dreyfuss, Jadin e Ritter (1999). No estádio do espelho, podem-se observar dois
termos em evidência: o eu e o outro, cada um aparecendo à medida que cada fase
ia sendo vivenciada pelo indivíduo. É mister percorrer as fases pelas quais passa a
criança para que sua subjetividade se constitua, em um processo de espelhamento,
na perspectiva lacaniana. O espelho, como pontifica Dor (1989), serve de
instrumento para que a criança conquiste a imagem do seu próprio corpo. O
1
“optiquement l’autre est une image virtuelle (au sens optique où elle est obtenue par le prolongement
des rayons lumineux derrière le miroir) et que , comme l’image spéculaire, elle est inversée par apport
à l’objet optique que constitue le corps, de sorte que l’on pourrait dire que dans le schéma L le moi
reçoit de l’autre spéculaire sa propre image sous une forme inversée”.
feedback imagético decisivamente promoverá o eu estruturado à criança, pois até
então ela passa por uma etapa psíquica que Lacan chama de fantasma do corpo
esfacelado. A constituição do sujeito se dá, inicialmente, quando a criança procura
ver na imagem do seu corpo um outro ser, ao qual ela deseja se assemelhar. É a
primeira cogitação de desejo, em termos de similaridades e diferenças que ela faz
entre si mesma e o outro. No segundo momento, ela percebe que o outro, tido antes
como realidade, nada mais é do que o outro imaginário. A partir desse momento, ela
sabe distinguir o que é a imagem do outro e o que é a realidade do outro. Vencida
essa etapa, dois “outros” são apresentados à criança, um que é seu reflexo e que se
confunde com ela e um outro que está fora dela (resultados, ambos, de uma
“estrutura” ótica). Esses outros irão fazer parte da sua constituição como sujeito e,
conseqüentemente, das interlocuções das quais ele fará parte. Dessa forma, ela
passa a ter consciência de um interlocutor real, para o qual dirige sua fala. A criança
toma consciência de que o que via no espelho era a sua própria imagem; e não um
outro, como pressupunha. Após esse processo de (auto)/(re)conhecimento, ela
passa a juntar as peças do ‘quebra-cabeça’: unifica-se o corpo esfacelado,
permitindo que, metaforicamente, se faça um paralelo entre a imagem do seu corpo
unificado e a sua identidade, constituindo-se, então, enquanto sujeito.
Somente em 1955, Lacan cria o esquema L, através do qual a visão da
subjetividade é melhor explicitada. Agora, em vez de três, existem quatro termos: o
sujeito, o eu, o eu ideal (outro) e o grande Outro.
(Es) S
(moi) a
a’ (autre)
Autre
FIGURA 1: Esquema L
FONTE: Lacan (1985)
O outro é uma imagem virtual, pois é uma imagem inversa, assim pode-se
dizer que o eu recebe do outro especular sua própria imagem de forma invertida. O
sujeito se dirige a um semelhante, supondo estar diante de sua própria imagem, pois
aqueles com quem fala são aqueles com quem se identifica. A relação imaginária,
ou o muro da linguagem, impede que o sujeito se dirija diretamente ao “Outro
verdadeiro”, fazendo com que ele se identifique com um outro especular, numa
posição onde se aproxima do seu eu como se fosse esse eu que falasse.
Lacan utiliza o esquema L para criticar a concepção de análise como um
reencontro do“eu com um outro eu”, no qual o analista se oferece de modelo ao
analisando. Assim:
O sujeito reencontra o seu próprio eu imaginário
essencialmente na forma do eu do analista. Aliás, esse eu não
permanece simplesmente imaginário, pois a intervenção falada
do analista é expressamente concebida como um encontro do
eu com um eu [...] (LACAN, 1985, p.309).
A análise deve visar à passagem da verdadeira palavra que junta o sujeito a
um outro sujeito, do outro lado do muro da linguagem. Por esse motivo, o analista
deve se apagar, ficando no lugar do Outro, o verdadeiro respondente. É se
separando/ libertando da relação imaginária que o sujeito entra em relação com o
Outro, de quem ele recebe as respostas às suas perguntas. O emissor recebe do
receptor sua própria mensagem de forma invertida. Nesse sentido, pode-se dizer
que AS, isto é, a linha que vai do Autre (Outro) ao sujeito da análise (representado
por S), simboliza que o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem, a qual é
invertida.
O outro especular é mediado pela palavra do Outro, o qual é responsável pelo
triplo reconhecimento: reconhecimento por parte da criança, antes de aprender a
falar, da sua imagem no espelho, reconhecimento entre a relação dessa imagem e
seu meio especular e o reconhecimento da relação desse complexo virtual (sempre
levando em conta o sentido ótico do termo), isto é, a realidade se duplica, o corpo da
criança e as outras pessoas/objetos ao seu lado são seres bem distintos.
O eu é uma construção imaginária tanto para o neurótico quanto para o
psicótico. O psicótico é aquele que adere somente ao imaginário. No neurótico, que
é foco desta dissertação, não se podem confundir o eu e o S: o S é o sujeito
analítico. Porém, ele não sabe o que diz. Se soubesse, estaria no lugar do Outro,
lugar do desconhecimento. Através da capacidade de espelhamento, o S se vê em
a, e é por isso que ele tem um eu. O eu é uma forma fundamental para a
constituição dos objetos. Vê-se, assim, que a alteridade, considerando o eu e o
outro, é fundamental para que se chegue à dimensão de alteridade entre o eu e o
Outro. No tocante ao eu e outro, Lacan (1985) diz que é sob a forma do espelho que
ele vê aquele que se chama de seu semelhante. Esta forma do outro possui uma
estreita linha divisória em relação a eu. É preciso distinguir um outro plano, que é o
muro da linguagem. A partir daí, é perfeitamente possível falar sobre a alteridade
que circunda o eu e o Outro. Ao considerar o muro da linguagem, o imaginário, isto
é, o eu e o outro, toma sua falsa realidade. Assim, o eu e o outro, estes imaginários
passam a ser objetos. Na medida em que o sujeito põe o outro em relação com sua
própria imagem, aquele pequeno a’ é aquele com quem vai haver uma identificação,
ou seja, o eu não vai saber distinguir quem é ele mesmo e quem é o outro. Entrando
a figura do grande Outro, A, a cena de interação se amplia, uma vez que, mesmo
sem saber, os sujeitos se direcionam ao grande Outro, verdadeiro sujeito. O Outro
está no outro lado do muro da linguagem, onde, em um primeiro instante, não é
dado a ninguém conhecer ou alcançar. É a ele que fundamentalmente visa o eu
cada vez que pronuncia uma fala, mas sempre alcança a’, por reflexão.
Assim,
pode-se dizer que a fala é fundamentada na existência do Outro, o verdadeiro.
Todavia, a linguagem é feita para que se possa remeter de volta ao outro objetivado,
ao outro com o qual se pode fazer tudo o que quiser, até a ponto de dizer que é um
objeto, e por ser objeto, ele não sabe o que diz, repercutindo no eu, tendo em vista a
imagem do espelho. O funcionamento da linguagem se dá, considerando o eu, o
outro e o Outro, dentro de uma certa ambigüidade. Lacan (1985, p.308) diz que “a
linguagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir
radicalmente de entendê-lo”. Por isso se fala em ambigüidade. O sujeito não sabe o
que diz, e pelas mais válidas razões, porque não sabe o que é. Ele se Vê do outro
lado, de maneira imperfeita, devido ao caráter inacabado da imagem especular, que,
além de imaginária, pode ser considerada ilusória. O sujeito, num estágio bem
inicial, tem suas formas todas despedaçadas, mas ele desconhece tal fato. A junção
desses objetos parciais se dá através da imagem do outro. De acordo com a fala de
Lacan (idem, p. 309), “o eu só pode ir juntar-se a si mesmo e recompor-se por
intermédio do semelhante que o sujeito tem diante de si – ou atrás, o resultado é o
mesmo”. Nesse sentido, pode-se concluir que a constituição do sujeito vai se
tornando cada vez mais complexa, pois, no primeiro momento, o outro pequeno é
que inicia o processo rumo à unificação do corpo esfacelado; depois vem o Outro
grande, a grande voz que conduz toda a cena, dizendo ao eu que ele não é o outro,
mas ele mesmo. Na relação imaginária especular, o real pertence basicamente ao
eu, pois é construído individualmente, mas sempre em relação ao outro. Em termos
mais práticos, pode-se dizer que o bebê vê a si mesmo, mas não sabe que ele é
aquele exatamente. O Outro, performado pela mãe, dita quem realmente o bebê é –
aquele da imagem. A partir daí, o grande Outro definitivamente passa a atuar. A
mensagem invertida tem uma grande função nesse circuito de autoconhecimento,
visto que a mãe (grande Outro) passa a mensagem através do outro pequeno, claro
que esse raciocínio só pode ser aplicado a um sujeito neurótico que, via de regra, é
o sujeito aparentemente normal. O grande Outro não fala com o bebê diretamente;
ele fala via outro pequeno. Essa é a grande razão de dizer que o sujeito realmente
não sabe o que diz, pois diz, através do outro especular, utilizando chistes e atos
falhos, a mensagem que tem como fonte original o Outro, verdadeiro sujeito do
inconsciente. O outro é o semelhante com o qual o sujeito se identifica no diálogo, e
o Outro é o lugar de onde se apresenta a questão de sua existência. Chemama
(1995, p.107) diz que ‘o inconsciente é o discurso do Outro’ e esse discurso é
enviado ao eu, por intermédio do outro, razão por que se defende que o sujeito
também se constitui no lugar do Outro, na dependência daquilo que se articula como
discurso.
É dessa maneira que se percebe uma outra nuança na compreensão do
sujeito, pois, para Bakhtin, as relações dialógicas se dão entre, basicamente, um eu
e um outro sócio-histórico, figurando como centro o eu, já que ele assume a fala.
Embora o outro invada o seu dizer constantemente, tem-se idéia de que esse eu
bakhtiniano se insinua mais, é mais consciente e, portanto, vez por outra, está atento
ao fato de que aquilo que diz não pertence a si, mas ao outro. Dessa maneira, tratase, em Bakhtin, de uma noção de outro que simplesmente ecoa no eu, constituindoo até, porém deve-se deixar claro que tal constituição não sucumbe à autonomia do
eu, pois este fala o que quer falar, por mais que essa fala não lhe pertença. Por
outro lado, em Lacan, essas relações são vistas de forma mais ampliada, através da
inclusão do Outro na questão da subjetividade e suas interações. Afinal, esse Outro
é o grande foco de toda esta discussão; é dele e para ele que as mensagens são
enviadas, embora essas mensagens tenham sempre que passar pelo filtro do muro
da linguagem. Indo um pouco mais além, a relação entre o eu, o outro e o Outro é
de extrema dependência daquele em relação a estes, quer dizer, o eu lacaniano só
é eu na presença do outro especular e só se reconhece como eu fora do outro
mediante a ordem vinda do Outro grande, verdadeiro sujeito. Na verdade, o outro
pequeno é o instrumento de interação utilizado pelo Outro para mediar sua presença
lingüística no eu. Assim sendo, o Outro é o lugar onde a psicanálise situa, além do
outro imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao sujeito, o determina.
Para Bakhtin a idéia de diálogo se constitui através da interação entre o eu e
o outro, cuja voz ecoa no dizer do falante. Para Lacan, essa alteridade se dá em três
momentos, se é que é possível dividir tais fases: primeiro, o eu com o outro, o qual é
a sua própria imagem refletida no espelho; depois o eu e o Outro, já que é ao Outro
que o eu fala e ao eu que o Outro fala. Por fim, vê-se que esses três componentes
subjetivos formam um todo, resultando numa dependência entre os três, de forma
que se possa conceber o sujeito em sua dimensão existencialista e essencialmente
lingüística marcada por uma alteridade, indo decisivamente além do outro pequeno.
Portanto, o verdadeiro sujeito lacaniano, diga-se o Outro, não pode ser examinado
sem se falar em um eu e um outro, pois é através deles que seu potencial em termos
de linguagem pode se expressar. É necessário fazer a distinção entre o outro e o
Outro: o outro é o semelhante, parceiro imaginário; o Outro é a ordem exterior e
anterior ao sujeito que o domina mesmo sem que ele saiba que isso acontece.
Embora não haja palavra entre o eu e o outro, já que este é imaginário, não é
possível subtraí-lo do esquema subjetivo, deixando a cena apenas com o eu e o
Outro, pois o Outro é inconsciente; ele subjaz o dizer, o qual é supostamente
conduzido pelo pequeno outro imaginário. Partindo do eu em direção ao Outro,
pode-se dizer que o liame é a linguagem, é a palavra. Por isso que o Outro pode ser
confundido com a ordem da linguagem.
Tendo em mente examinar melhor o status do inconsciente, admite-se que ele
constitui a parte de um discurso concreto, do qual o sujeito não dispõe. O
inconsciente não é um sujeito escondido dentro do próprio ser, mas deve ser
concebido como transindividual, isto é, como o discurso do Outro. É a partir do Outro
que o sujeito fala e deseja, daí a afirmar que o desejo do sujeito é o desejo do Outro.
Assim sendo, essa discussão abre espaços para possibilidades de expressão da
subjetividade por meio de elementos que compõem a idéia de linguagem
habitada/orquestrada por uma estrutura subjetiva circunscrita pelo eu, o outro(s) e o
Outro, seja um outro sócio-histórico seja um outro imaginário, que serve única
exclusivamente para que o Outro, sujeito do inconsciente, venha a interagir com o
eu, determinando, a rigor, a sua fala.
4 Compreender o sujeito da linguagem
atravessado pela psicanálise: uma tarefa
possível?
O inconsciente (S/A, S/D)
O sujeito que fala não é amo e senhor do que diz. Na
medida em que fala, em que pensa e utiliza a língua, é
a língua que, na realidade, o utiliza: na medida em
que fala, diz sempre mais do que quer e, ao mesmo
tempo, diz sempre outra coisa.
Jacques-Alain Miller
Aqui, talvez por razões pessoais, de fuga ou assunção mesmo de formas
veladas do lidar com a palavra, gostaria de ME e NOS posicionar em lugar claro e
definido, saindo, um pouco, da posição do discurso forçosamente neutro e, por
conseqüência, assumindo lingüisticamente as fraquezas como indivíduo e, quem
sabe, alguns sucessos que foram sendo conquistados ao longo do processo de
construção desta investigação, sem, contudo, excluir as outras vozes que invadiram
(de maneira muito positiva!) o ato de tecê-la. Começar pela reflexão que o sujeito faz
dele próprio enquanto falante parece ser tarefa fácil, porém a cada palavra que é
escrita, encontros e desencontros vão sendo experimentados, visto que, como
indivíduo, trafego nos espaços do mundo e das idéias e me identifico com o que a
linguagem opera, já que também a utilizo como elemento de sobrevivência. Ora, falo
dela e, através dela mesma, falo de mim, uma vez que também sou sujeito, através
de meu eu, outro(s) e Outro.
Não pretendi ser inédito ao lançar uma proposta de discutir o sujeito, sob as
óticas da lingüística e da psicanálise, até porque outros já cuidaram de fazer essa
ponte. Entretanto, minha inquietação maior (e isso foi ficando mais claro a cada
palavra que nascia) foi e é entender como é o sujeito falante, como ele se comporta
quando a linguagem é utilizada, como é essa linguagem, de onde ela vem de fato,
se é o eu o único ponto de partida para que a linguagem tenha seu lugar, ou, se
para isso, é preciso haver um outro, com o qual o eu interage. Então, por falar em
sujeito que fala, acabei priorizando as contribuições de teóricos como Benveniste,
Bakhtin e Lacan, nessa seqüência, sem evitar, vez por outra, a antecipação de
conceitos que, de início, viriam em uma ordem elencada e estanque, caso eu tivesse
seguido com rigor o plano seqüencial inicial. Essas antecipações foram úteis para
auxiliar o desenrolar dos questionamentos e possíveis desatamentos de nós. Por
outro lado, não hesitei em chamar para a discussão outros autores, como Flores,
Authier-Revuz e Teixeira, pois discutem também, embora com objetivos diferentes, a
idéia de alteridade na linguagem, seja através de um outro bakhtiniano seja de um
outro (e um Outro) lacaniano. O caráter desta investigação figura-se exatamente na
questão central que todos esses teóricos e autores mencionados trabalham direta ou
indiretamente: o sujeito. Todavia, aparando as arestas, é muito visível que minha
intenção foi mais exclusiva em relação a esses mencionados, isto é, lançar olhares
sobre o subjetivo, aquele que movimenta a linguagem, sem o qual ela não teria
motivos para existir; mas falo de um sujeito marcado inteiramente pelo fato de ele
ser dialógico, visto que, ao interagir com outro(s), a linguagem se consubstancia.
Embora ela seja ‘proferida’, ‘dita’, ‘assumida’ por um eu, percebemos que esse eu é
apenas uma pequena parte diante do todo, isto é, apenas na interação entre o
sujeito e a alteridade a linguagem tem seu lugar. Narcisista até, mas é fascinante
falar de você, falar do que é seu e, em anexo, toda a sua imprescindibilidade. Então,
falei de mim, pois sou sujeito falante; falei dos outros, que estão constantemente em
meu dizer (por isso a obrigatoriedade do eu e do nós), falei até daquele que pouco
conheço, como indivíduo, mas que tentei visualizar melhor no campo do saber, da
apreensão conceitual; aquele que chamam de ‘o Outro’. E esse sim, mais do que
muitos pensam, ‘diz’, ‘produz’ linguagem; aliás, ‘é’ a própria linguagem.
Como meu objetivo foi discutir a arquitetura subjetiva dentro da linguagem,
nada mais pertinente do que ter trazido a concepção benvenistiana de enunciação
para as primeiras páginas desta dissertação. Achei por bem utilizá-la porque ela
parecia dar conta de elucidar o fato de que a língua, vivificada pelo sujeito, acontece
exatamente nessa cena enunciativa. Daí, pensar um sujeito habitando a linguagem
seria, ao meu ver, mais pertinente se trouxesse para o calor da discussão o
fenômeno da enunciação, posto que a perspectiva que escolhi para investigar foi a
dialógica. Os questionamentos foram prosseguindo, mas tudo, ainda, apontava para
a incoerência mais do que para uma conclusão bem feita e coesa. Nesse ponto, com
Benveniste, indicando o caminho a percorrer, limitava-me a pensar numa alteridade
que não ia além de um eu-tu. Sim! Esse tu, que mais tarde vamos chamar de
outro(s), já era entendido como aquele que constitui o eu. Mas algo faltava. Eu não
sabia exatamente o que era. Embora eu já tivesse a informação de que o
inconsciente subjaz o dizer, não sabia como fazer o link com a enunciação,
entretanto, prossegui. Mesmo não de maneira explícita, por vezes, tinha a impressão
de que, ao constituir o eu, o tu era permeado por outra voz (ou era o eu que me
passava essa idéia?). Bem, de uma maneira ou de outra, Benveniste foi muito útil,
afinal, ele é um dos pioneiros a fazer estudos sobre o sujeito na linguagem. Para a
minha finalidade, dentro das limitações que possuo, a teoria benvenistiana sobre o
sujeito me ajudou, sobretudo aí, isto é, quando ela diz que o tu constitui o eu. E isso
é perceptível no momento em que a língua está sendo posta em uso (enunciação). A
língua, antes vazia e estática, depois de operada por um sujeito, torna-se
inegavelmente matéria viva, torna-se subjetiva, pois o sujeito a habita. E mais: um
sujeito, o eu, é habitado por, pelo menos, outro sujeito, o tu.
Chega a vez de Bakhtin entrar em cena. Como tudo acontece? Bem, certos
processos não podem ser planejados (embora devam ser). Eles vão acontecendo.
Pois bem, a idéia de dialogismo corroborou a noção de constituição do tu em relação
ao eu. Acho mesmo que, em certos momentos, Bakhtin e Benveniste falam da
mesma coisa; apenas utilizam a terminologia diferenciada, além de processos e
universos diferentes, já que, para Bakhtin, o sujeito é dialógico numa dimensão
sócio-histórica. No dizer de Morato (2004, p. 333),
O dialogismo bakhtiniano – que podemos observar na
heterogeneidade enunciativa, na polifonia, nos discurso
relatados, nas diferentes posições enunciativas assumidas
pelos falantes – marca discursivamente a concepção de
sujeito: o sujeito é interpelado e reconhecido socialmente por
meio dos outros, por meio do discurso dos outros, por meio de
discursos outros que constituem o seu próprio discurso.
Então, com o olhar bakhtiniano, só podemos nos referir à linguagem como
algo eminentemente dialógico. A implicação do outro na fala do eu é permanente e
histórica, vem de várias gerações, lugares distantes, fronteiras culturais diferentes
até. Isso, portanto, vai diferenciá-lo de Benveniste, para o qual a linguagem parece
só ter vez entre falantes físicos, vivendo espaços semelhantes, embora virtuais, por
exemplo, na atualidade, através de chats ou e-mails.
O trato psicanalítico amplia o entendimento sobre o sujeito, pois traz para a
arena da linguagem uma outra categoria, o inconsciente (o Outro), o qual, mesmo
tendo sempre existido, só encontra lugar para ancoragem na psicanálise. Como o
intuito aqui é descortinar o sujeito da linguagem constituído pela intersubjetividade,
quer dizer, por um outro e pelo Outro, é possível chegar, não a conclusões, mas a
profusões maiores desse sujeito que, maquiado, para não dizer ausente, no
percurso dos estudos lingüísticos, ao longo da história da humanidade, vem
paulatinamente se mostrando presente na linguagem, a ponto, inclusive, de ser visto
como tri-uno, uma vez que aqui, ao falar de sujeito, entendemo-lo analogicamente a
uma equação, isto é, sujeito na linguagem = eu, outro e Outro. Digo isso, porque, ao
contemplar a afirmação lacaniana de que o ‘inconsciente é estruturado como uma
linguagem’, a máxima cartesiana de que o sujeito tem o controle de tudo que fala é
derrubada, dando vez a uma subjetividade que se encontra não apenas marcada
lingüisticamente, isto é, na superfície da língua, mas para um sujeito, o Outro, que é,
nesse dizer, a própria linguagem. E já antecipando para explicar melhor a
intersubjetividade e sua conseqüente interação, podemos dizer que o Outro, embora
dite o que o eu fala, não fala a ele diretamente; fala ao outro especular. Como esse
outro pequeno tem uma relação direta com o eu, a qual é imaginária, o eu recebe a
mensagem do Outro de forma invertida.
A questão da interação dentro da lingüística é algo que tem seu espaço não
de muito tempo, se nos reportarmos, é claro, aos primórdios dos estudos sobre a
língua, na Grécia e Roma antiga. Atualmente, a idéia de interação permeia o trato
com a língua nos seguintes domínios da lingüística: sócio-lingüística, pragmática,
psicolingüística, semântica enunciativa, análise do discurso etc. Percebemos, aí,
uma externalidade nunca antes observada, visto que tais campos lingüísticos
trafegam para fora do sistema, dialogando com o exterior e, portanto, considerando
as heterogeneidades da constituição desse mundo externo, o qual, por sua vez,
marca o funcionamento da linguagem por quem a utilize. Assim, pensamos que toda
ação humana procede de uma interação, e como a linguagem é uma ação, um traço
característico exclusivo do componente humano, não podemos excluí-la do
raciocínio de que também é, por excelência, interativa.
Depois de Saussure, vemos que a tentativa tem sido vigilante no sentido de
ultrapassar os limites das dicotomias propostas por ele (língua & fala, sujeito &
objeto, competência & desempenho), uma vez que a ênfase no sujeito e seus coparticipantes, quando utilizam a linguagem, é o grande desafio dessas mais recentes
vanguardas que vêm mostrando que se devem inserir na ciência da linguagem as
considerações acerca das práticas sociais nas quais a linguagem está imersa e que
a constituem; o aspecto pragmático que ronda a utilização da linguagem, na qual os
componentes subjetivos da língua vão garantir o seu funcionamento; além das
condições, sobretudo, ideológicas da produção lingüística. Dessa forma, não há
como refutar, através dessas práticas discursivas, o estatuto do outro na vida
lingüística do sujeito. Mas de que outro estivemos falando?
A nossa pretensão foi tão-somente pôr em relevância as posições teóricas
assumidas pela lingüística no tocante à subjetividade com implicação direta na
intersubjetividade, sem deixar, contudo, de apontar para novos ou diferentes
horizontes, considerando que a psicanálise lacaniana pode ajudar nessa
reconfiguração, trazendo assim conseqüências epistemológicas para a ciência da
linguagem.
Nesse pensar sobre o sujeito lingüístico sob um olhar psicanalítico, vemos
que implementos outros advêm, isto é, a intersubjetividade, o que não é um fato
novo para a lingüística, passa a ser vista com uma outra roupagem, com a
emergência do inconsciente, o qual, ao longo desta dissertação, chamamos de ‘o
Outro’. Por falar em intersubjetividade, devemos perceber, além de sua direta
equivalência etimológica, as implicações semânticas a que somos conduzidos. Ou
seja, o prefixo inter remete à idéia de reciprocidade entre, pelo menos, dois seres.
Mesmo sem haver, em princípio, a referência à idéia de ‘ação’, assim consideramos
o ato intersubjetivo, posto que diz respeito à linguagem. Assim sendo, o conceito de
linguagem como ‘ação’ entre sujeitos que interagem vem completar a concepção
sobre o elemento intersubjetividade. Dessa forma, o sujeito se inscreve num quadro
social em que não pode ser pensado sem que haja a defesa em relação ao seu
caráter sócio-histórico, o qual, via de regra, jamais é neutro, pois traz em sua fala o
eco das vozes de outros, razão por que acreditamos numa linguagem circunscrita
por uma alteridade, seja ela na presença, como defende o arquétipo benvenistiano
ou como a postura bakhtiniana sobre o outro na fala de quem fala. Enquanto, para
Benveniste, a intersubjetividade é marcada pela presença física entre os falantes de
uma língua, num espaço comum entre os dois, ideal para a realização do consenso
pragmático, que é exatamente a alternância entre o eu e o tu como locutor e ouvinte,
para Bakhtin, a intersubjetividade não se dá necessariamente pela interação
presencial, pois ela está marcada por um outro mais distante, se não nos ativermos
somente à questão dos corpos dos falantes; trata-se, sim, de um outro ideológico,
um outro que se inscreve na fala do sujeito mesmo sem ele planejar. Detectamos
que o outro, enquanto discurso e interdiscurso, é constitutivo da linguagem. Desse
modo, a interação não se refere de forma exclusiva ao discurso oral, realidade
descrita por Benveniste. Tal situação nos abre caminhos para pensarmos em um
sujeito que é constituído por outro(s) e/ou Outro (o sujeito ou o lugar do
inconsciente). Então, esse inconsciente de que falamos não implica, apenas, uma
falta de consciência, mas, sobretudo, consideramo-lo como uma unidade lingüísticodiscursiva, como lugar ou mesmo como sujeito ‘da outra cena’. Por isso, o falante
desconhece, muitas vezes, o que está dizendo, da forma como está dizendo. Por
essa razão, é pertinente alargarmos o raciocínio sobre que elemento outro é esse
que constitui o eu. Será o mesmo tu benvenistiano, será o outro mesmo sóciohistórico bakhtiniano? Ou será o inconsciente lacaniano? Qual é a relação entre
esse sujeito constituído por um inconsciente e a idéia de interação na lingüística?
Pois bem, retornando às considerações lacanianas, gostaria de maximizar as
possibilidades de reconfiguração desses horizontes sobre o sujeito na lingüística,
acima propostos, uma vez que falar em alter (outro), povoando a fala do eu, remete
inevitavelmente ao Outro enquanto sujeito que constitui o eu, pois esse Outro age de
maneira tão escamoteada a ponto de fazer qualquer falante pensar que a sua fala
pertence a si mesmo.
Na seara psicanalítica, o termo inconsciente é tomado como sendo o lugar
desconhecido pela consciência; trata-se, de fato, de uma ‘outra cena’, como dizem
Roudinesco e Plon (1998). Para Freud, o inconsciente é, ao mesmo tempo, interno
ao sujeito e, por conseqüência, à sua consciência, e externo a quaisquer
possibilidades de dominação por parte da consciência. Sendo assim, não há como
pensar que o outro bakhtiniano se exclui dessa concepção inconsciente. Isso quer
dizer que, apesar de não ser feita nenhuma alusão ao inconsciente da psicanálise,
não podemos deixar de considerar que, no texto bakhtiniano, é perfeitamente
possível percebermos que a carga semântica do aspecto inconsciente, senão o
mesmo da psicanálise, leva o leitor a conotações que sobrevoam essas mesmas
considerações psicanalíticas, quer dizer, quando nos remetemos à alteridade em
Bakhtin, vemos que o outro sócio-histórico se assemelha ao Outro lacaniano, posto
que o falante, na visão bakhtiniana, traz em seu discurso o que não é dele, vem de
uma alteridade subjetiva, o que às vezes se revela como consciente ou inconsciente
para o falante. Talvez aí resida a diferença: o sujeito, no plano lacaniano, fala muitas
vezes o que vem do Outro, através do outro pequeno, já que é ele que se relaciona,
na dimensão imaginária, com o eu. Os chistes, atos falhos, por exemplo, são
exemplos lingüisticamente concretos do que é ditado pelo inconsciente, mas que
não é fato permitido ao eu conhecer. Então, retomando as categorizações da
lingüística, seria possível lidar, em um primeiro instante, apenas com um sujeito
constituído por um outro que, necessariamente, está na presença, na cena
enunciativa, ou por um outro sócio-histórico, o qual não se diz declaradamente
constituído por um inconsciente. Porém, passamos a ‘suspeitar’ dele, já que
achamos que ele está na outra cena, que está para além de onde podemos vê-lo.
Nesse sentido, temos de repensar o estatuto desse sujeito falante cujas dimensões
podem ser mais bem examinadas se trouxermos para o seio da discussão a outra
cena (o inconsciente). Em outro momento, já citamos a tese lacaniana, sem a qual
nossa sustentação não seria válida: ‘o inconsciente é estruturado como uma
linguagem’. Tal afirmação nos leva à ponderação sobre a linguagem produzida pelo
sujeito falante, uma vez que o inconsciente constitui a fala do eu. Além disso,
podemos também recorrer a uma outra afirmação lacaniana: ‘a linguagem é a
condição do inconsciente’. Quer dizer, se o inconsciente condiciona a linguagem,
não vemos meio de excluí-lo no tocante ao fato de que o eu é constituído, sim, por
outro(s) e pelo Outro. O pensamento lacaniano de uma primazia da linguagem
assenta-se no fato de que o indivíduo não é dono de sua fala; ela é anterior a ele.
Pelo contrário, a linguagem o institui/constrói como sujeito. O indivíduo, antes
mesmo de saber o que diz sua fala, começa a falar. O sujeito enquanto efeito da
linguagem é preso pelo funcionamento da língua por um outro falante mesmo antes
de vir a ser sujeito. Nesse tocante, não pertencemos a nós mesmos, mas a uma
espécie de alteridade, pai-mãe-soceiedade com/em que vivemos.
Lacan explica a estranheza dessa forma: nascemos em um
mundo de discurso, um discurso ou linguagem que precede
nosso nascimento e que continuará após a nossa morte. Muito
antes de uma criança nascer, um lugar já está preparado para
ela no universo lingüístico dos pais: os pais falam da criança
que vai nascer, tentam escolher o nome perfeito para ela,
preparam-lhe um quarto, e começam a imaginar como suas
vidas serão com uma pessoa a mis no lar. As palavras que
usam para falar da criança têm sido usadas, com freqüência,
por décadas, senão séculos e, geralmente, os pais nem a
definiram e nem as redefiniram, apesar dos muitos anos de
uso. Essas palavras lhes são conferidas por séculos de
tradição: elas constituem o Outro da linguagem, como Lacan
chama em francês (l’ Autre du langage), mas que podemos
tentar converter em o Outro da lingüística, ou outro como
linguagem (FINK, 1998, p.21)
Bakhtin (2003, p.163) também fala a respeito dessa pertença do sujeito para
com o outro, a princípio, pai e mãe:
Eu não começo a vida, eu não sou o seu iniciador axiologicamente
responsável, não disponho sequer de um enfoque axiológico que me
permita iniciar ativamente a série da vida responsável pelos valores e pelo
sentido; eu posso agir e emitir juízo de valor com base na vida já dada e
valorada; a série de meus atos não parte de mim, eu apenas lhes dou
continuidade (como a dou também aos atos-pensamentos, aos atossentimentos e aos atos-feitos); estou ligado por uma indissolúvel relação de
filiação à paternidade e à maternidade genealógicas (no sentido estrito da
linhagem-povo do gênero humano. Na pergunta:’ quem sou?’, ouve-se a
pergunta: ‘quem são meus pais, qual é minha genealogia?’). Eu só posso
ser o que essencialmente sou; não posso renegar o meu essencial já-ser,
porquanto ele não pertence a mim, mas à minha mãe, ao meu pai, ao
gênero, ao povo, à humanidade (BAKHTIN, 2003, p. 163).
Por essa razão, esse ato de captura do outro em relação ao sujeito falante
representa um tipo de imanência da própria espécie humana, ou seja, mesmo antes
de o sujeito existir numa esfera física, sua ‘moldagem’ vai sendo preparada, de
início, por seus pais e, depois, pelos outros que, por ventura, se avizinhem, e, dessa
forma, passando a constituí-los permanentemente.
Parafraseando Dor (1989), a linguagem é uma atividade essencialmente
subjetiva, por meio da qual o sujeito diz algo que pode ser completamente diferente
do que acredita estar dizendo. E é exatamente nesse ‘diferente’ onde reside,
pertinentemente, a categoria do inconsciente. Assim, esse algo diferente nada mais
é do que o inconsciente instituído, o qual escapa na fala do sujeito, já que se
encontra constitutivamente separado dele.
Nesse percurso em que dialogaram os mais variados matizes teóricos,
percebemos que considerar o sujeito com um olhar estritamente lingüístico pode
deixar margem para incompletudes e interrogações sobre como o indivíduo se
comporta na e pela linguagem, motivo pelo qual tratamos de viabilizar uma
discussão que possa fornecer meios de trazer para o palco da reflexão outros
componentes ontológicos que não devem ser esquecidos pelos saberes constituídos
da lingüística ou pelo quadro epistemológico da ciência da linguagem, como é o
caso do sujeito do inconsciente, que diz mais do que quer dizer.
5 Últimas considerações
Nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo
momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista,
uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto
está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à
espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe
achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os
instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela
está presente aqui e em todo lugar.
Michel Foucault
A tarefa de concluir um trabalho (ou fazer as últimas considerações) é, com
certeza, mais difícil do que dar início a ele, uma vez que, pelo menos, duas
implicações se impõem: uma delas é pôr um fim, dando um limite ao trabalho. Nunca
o texto está perfeitamente acabado; sempre vão existir vozes incessantes povoando
os seus domínios. Embora se saiba que nunca é demais quando se está lidando
com o conhecimento, principalmente o conhecimento científico, cuja tessitura é
bastante rigorosa e formal, há um ponto em que se deve parar, mesmo que seja
momentaneamente, para, depois, se convier, dar-lhe continuidade. A outra
implicação é a superação do mito de verdade aliado à idéia primeira de finitude.
Esse estabelecimento de finitude com a busca da possível verdade é, na realidade,
a maior preocupação de quem faz ciência, pois é preciso que se tenha um número
mínimo de proposições e a descrição do caminho percorrido para se chegar a
determinados resultados, de modo que seja viabilizada a finitude, pelo menos
temporária, através das conclusões.
Logo no início desta investigação, foi discutido o lugar do sujeito no discurso
científico e na psicanálise. Chegou-se à conclusão de que se tratava de um mesmo
sujeito, apesar de a atuação da psicanálise, como campo, não pertencer de modo
algum à ciência, pois aquela opera por seus próprios ritos. A intersecção, portanto,
entre a cientificidade e o psicanalismo é exatamente a questão subjetiva, sobre a
qual vai incidir proposições de uma área do saber e de outra, além de constituir
cerne de destaque para esta pesquisa.
Desse modo, como já dito, a compreensão da figura do sujeito foi avançando,
à medida que correntes e teorias iam sendo recapturadas. O sujeito tornou-se,
assim, a parte central desta investigação.
Com base nisso tudo, o princípio que norteou essa pesquisa articulou as
idéias de sujeito, intersubjetividade, dialogismo, inconsciente, interação, procurando
fazer com que a concepção de alteridade fosse entendida numa dimensão mais
complexa. Para isso, procurou-se pensar essas noções à luz da concepção
lacaniana de sujeito. Embora o sujeito e seu alocutário benvenistianos em si
mesmos não sejam o ideal de sujeito para este trabalho, percebe-se que foi,
sobretudo, a partir de suas preocupações, já que se referia a um tu fora do eu, que
se desenvolveu a noção de outro que constitui o verdadeiro dizer do sujeito falante.
Então, partiu-se para a concepção de alteridade por meio do dialogismo, veia teórica
pela qual o pensar bakhtiniano reflete a constituição de um sujeito, ou seja, o sujeito
falante é constituído ou atravessado por um outro sócio-histórico, aquele que não se
presentifica no embate do diálogo físico, mas aquele que circunda e acaba
‘invadindo’ o falar, mesmo que não seja visto; trata-se realmente daquele sujeito da
história: seu pai, sua mãe, seus avós, sua comunidade, seus antepassados, as
gerações anteriores e até outras gerações contemporâneas a você, mas com as
quais você nunca teve contato lingüístico direto: face a face, por telefone, e-mail,
dentre outros. É como se você ouvisse ressôos vindo de algum lugar, vindo de
alguém, mas também não se sabe como chegou até você, nem através de quem.
Esse é o outro bakhtiniano, portanto, um sujeito de cunho mais ideológico. Não se
pode dizer que os contornos do sujeito que se burilaram até agora só são, em sua
essência, bakhtinianos. Apenas foram utilizadas as sua categorias, ou a sua
principal categoria, no caso o dialogismo, para que se pudesse chegar a uma noção
de sujeito que fosse além do sujeito contemplado tradicionalmente pela lingüística,
mesmo aquela mais moderna, de ponta. Não que o sujeito tenha mudado de
comportamento dentro do fenômeno lingüístico, mas que a história do pensamento
lingüístico assim o escreve: primeiro imprime sua total ausência; depois, aos poucos,
sua presença vai sendo notada. Quer dizer, não se trata se o sujeito, de fato, habita
ou não a linguagem (ou é habitado por ela); o fato é que alguns autorizados não o
incluíram nas suas preocupações, tanto por a ênfase de seus trabalhos ser outra,
quanto pela crença em uma língua sistêmica, fechada em si mesma, não
movimentada por um sujeito.
Avançando em direção à psicanálise, foi possível chegar aos resultados, não
quantitativos, como os das ciências exatas e da natureza, mas a resultados de
cunho qualitativo, por meio de argumentos interpretativos. Assim, o que se descobriu
desse sujeito pode até fraturar as concepções do senso comum, pois ele é, ao
mesmo tempo, eu, outro e Outro, não havendo pontos visíveis de divisão, tampouco
de junção. Esse compósito ‘eu, outro e Outro’, de uma maneira mais pragmática, é o
verdadeiro sujeito. A teoria lacaniana fala que o verdadeiro sujeito é o grande Outro,
mas não será o verdadeiro sujeito aquele mais completo, que conta com a alteridade
estabelecida por um outro pequeno de uma relação imaginária e, ao mesmo tempo,
com aquele grande Outro que dita as ‘regras do jogo’? Só para esclarecer, o outro
da relação imaginária, muitas vezes, se assemelha ao outro dos moldes de Bakhtin,
por mais que se chame de imaginário. Ele é imaginário para um eu, cujo narcisismo
é tão profundo que precisa ver em um outro qualquer sua própria reflexão, mesmo
que seja fruto da criação e ordenação do inconsciente. Por outro lado, o sujeito é
como se fosse ‘diluído’ em várias instâncias, daí o motivo de não se poder acreditar
nele como pleno, dono de sua fala. Ele é faltante, incompleto. Ele existe sim no
mundo concreto, mas regrado, em todo momento, por um Outro sujeito, muito mais
forte, pois age no silêncio e na incompletude; ele é o maestro que se afina para fazer
sua orquestra tocar (no caso, o eu falar).
Por fim, pode-se concluir dizendo que o objetivo geral desta investigação foi
alcançado, visto que se conseguiu estabelecer alguns pontos de convergência e até
de divergência entre a lingüística e a psicanálise, considerando a atuação dos
sujeitos que compõem a interação pela palavra. Assim, foram trazidos para trafegar
nas discussões feitas conceitos de um eu e um tu, que por vezes, foi tido como
outro, além do inconsciente nesse circuito dialógico, através da noção lacaniana do
Outro, promovendo, portanto, uma forma diferente de compreender a relação na e
pela alteridade.
Também outros objetivos mais específicos foram atingidos, isto é, o Outro
constantemente empenha-se em estar no discurso do eu, ou seja, esse Outro
lacaniano constitui o sujeito falante sempre discursivamente. O dialogismo, em todas
as suas dimensões, fez com que se constatassem os movimentos da alteridade,
tanto de um eu-tu, de um eu-outro, quanto de um eu-outro-Outro.
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Linguistica e Psicanálise - CCHLA