Crianças autistas e seus familiares: peculiaridades relacionais e afetivas a partir do
atendimento em serviço de saúde paulistano
Primeiro autor
Rosa Maria Monteiro López
Antropóloga, Bacharel em Ciências Sociais (USP), Mestre em Antropologia Social
(USP), Doutoranda em Saúde Coletiva (Universidade Federal de São Paulo) e bolsista
FAPESP.
Segundo autor
Cynthia Sarti
Antropóloga, Professora Titular na Universidade Federal de São Paulo.
Sumário
Entre as abordagens que informam a assistência a crianças autistas na cidade de São
Paulo, apresentam-se possivelmente de forma minoritária as que têm referências
psicanalíticas como embasamento teórico e prático para sua atuação. Acompanhando o
trabalho em instituição desse tipo, observa-se que a participação dos familiares – a mãe,
em especial – em atividades terapêuticas é tida como imprescindível. Isso é coerente
com a consideração implícita de que a relação entre criança e sua família está de alguma
forma ligada ao quadro psicopatológico apresentado pelo filho. A expectativa
institucional é intervir nas relações e afetos daqueles núcleos familiares, fazendo
emergir formas de interação mais “favoráveis ao desenvolvimento da criança”. Refletir
sobre como se define o que seria "mais favorável" no âmbito dessa assistência e sobre
as possibilidades de compreensão e correspondência por parte dos pais em relação às
expectativas profissionais, lançando um olhar antropológico sobre a questão, é o
objetivo desta comunicação.
Crianças autistas e seus familiares: peculiaridades relacionais e afetivas a partir do
atendimento em serviço de saúde paulistano
Rosa Maria Monteiro López – UNIFESP/SP
Cynthia Sarti – UNIFESP/SP
Para os que concebem o autismo ou as psicoses na infância como fenômenos
cuja etiologia não se restringe a questões orgânicas (considerando, inclusive, que tal
“base biológica” por vezes nem pode ser constatada, ou parece longe de ser
preponderante) é praticamente consenso que as estratégias terapêuticas para lidar com
as crianças que apresentam tais quadros sejam de cunho relacional e que envolvam a
participação dos familiares no tratamento. Porém, tal abordagem – que poder-se-ia
chamar de Psicopatológica, por estar ligada a hipóteses etiológicas de predominância
psicogenética (MARCELLI, 1998, p. 214) – vem perdendo espaço, desde os anos 1970,
para uma abordagem chamada de Genética, por estar relacionada a hipóteses de
predominância orgânica para explicar as psicoses da infância.
Diversos autores apontaram a predominância das explicações psicanalíticas do
autismo na teoria e na clínica psiquiátrica entre os anos 1940 e 1960 (ORTEGA, 2009;
MARCELLI, 1998; WING, 1996). Desde os anos 1970, porém, verifica-se a volta
triunfal à cena da psiquiatria biológica, que substitui a psicanálise como paradigma
dominante. Tais alternâncias inserem-se num contexto muito mais amplo de mudança de
paradigmas e embate pela hegemonia no campo psiquiátrico, sendo o deslocamento das
concepções predominantes em relação ao autismo na direção do biológico parte de um
tendência “biologizante” mais ampla, que leva a uma compreensão fisicalista do ser
humano e está difundida em boa parte do mundo ocidental (RUSSO e VENÂNCIO,
2006).
É no momento dessa “virada fisicalista” que começam a surgir as associações de pais de autistas em diversos países. Estas entidades posicionam­se, desde a sua constituição, como altamente críticas às teorias psicanalíticas, sob o argumento de que nessa abordagem os pais são constantemente culpabilizados pelo autismo dos filhos. Psiquiatras alinhados às hipóteses etiológicas genéticas também costumam apontar a “culpabilização dos pais” que dizem caracterizar a abordagem psicanalítica do autismo como um indício de acientificidade e de teorização e tratamento equivocados do “transtorno”.
Em artigo disponível em CD­Rom distribuído gratuitamente pela AMA (Associação de Amigos do Autista)1, Estevão Vadasz2 informa que, embora o autismo tenha sido descrito pela literatura leiga e científica há centenas de anos, foi reconhecido como síndrome completa há apenas 60 anos, 30 dos quais fortemente influenciados pela psicanálise. Para os psicanalistas da época o autismo era produto da seguinte equação simplista: ‘mães frias, distantes e intelectualizadas = filhos autistas’. Como conseqüência, os pacientes sofriam com a privação de uma assistência adequada e a ciência desqualificava qualquer proposta alternativa para explicação das causas do autismo. (VADASZ, 2004?)
Do ponto de vista dos profissionais e serviços que prosseguem tendo referências psicanalíticas como base para sua atuação, embora haja consideráveis divergências internas ao campo, pode­se inferir que as afirmações acima representem, no mínimo, uma visão simplificadora e distorcida da abordagem. Nas palavras de Kupfer (2000): ... Contrariamente a aquilo que se divulgou, e em que as mães das AMAs acreditam, um psicanalista não culpa mãe alguma. Mas a responsabiliza. Responsabilizar uma mãe significa fazê­la perguntar­se a respeito da parte que lhe cabe na criação de seus filhos. E isto serve, diga­se de passagem, para todas as mães. [...] Responsabilizar uma mãe significa engajá­la neste movimento de resgate do que não pôde acontecer quando seu filho era ainda um bebê, seja 1 CD Rom intitulado “Autismo: Você sabe o que é?”, com animações e textos informativos, produzido com o apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal
2 Médico psiquiatra que coordena o Projeto Autismo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas/USP e colaborador da AMA
porque ele não facilitou as coisas por ser, por exemplo, cego, surdo, ou hipotônico, seja porque ela vivia um momento em que se encontrava "apagada" para o exercício da função materna.
No exercício cotidiano da assistência a crianças com características autísticas e seus familiares, a instituição paulistana de orientação psicanalítica que é um dos focos de minha pesquisa etnográfica oferece demonstrações da dificuldade da tarefa a que se propõe. Sem deixar de valorizar as conquistas e benefícios alcançados, indico alguns possíveis “problemas de comunicação” que constituem o encontro entre profissionais atuantes nesse serviço e os familiares que buscam assistência para os seus filhos.
Um dos motivos mais abrangentes e importantes que parece influenciar a qualidade comunicativa desse contato passa pela não compreensão, por parte das famílias atendidas, da base conceitual que informa o trabalho em saúde mental a que recorrem. Não se trata aqui de apontar a necessidade de conhecimento teórico na área, mas de algo bem anterior, da consideração da premissa de que existe uma dimensão psíquica em cada um de nós, que “funciona” de modos que parecem às vezes “autônomos”, algo sobre nós mesmos e nossos pensamentos que não “controlamos” e que demanda um grande esforço e muitas vezes auxílio especializado para ser desvendado, entendido e transformado.
Existe uma boa parte da população brasileira, especialmente das camadas menos
favorecidas economicamente, para quem categorias como “inconsciente” não fazem
sentido. Não é uma questão de “atraso”, “ignorância”, apenas as explicações e sentidos
atribuídos aos fenômenos que classificaríamos como parte do “mundo mental”, “plano
psíquico”, são compreendidos de outra forma, a partir de outras categorias. Esse é um
assunto complexo, que diversos estudos antropológicos sobre grupos brasileiros de
classes populares têm apontado3 e que foge ao escopo deste artigo aprofundar.
Além da dificuldade que os familiares de crianças psicóticas atendidas possam ter
para entender as premissas e os métodos que estruturam o trabalho da instituição, parece
haver uma parte da explicação que informa todo o trabalho e que nunca é explicitada aos
familiares, talvez a resposta que eles mais busquem e que não chega a eles de forma
direta. Trata-se do que é tido para a equipe como um dos “disparadores” fundamentais do
quadro psicótico que as crianças apresentam, relacionado à insuficiência da troca
pessoal/afetiva entre mãe ou principal cuidador e o bebê que aquela criança foi, e tudo o
que se segue a isso em termos de não estruturação de subjetividade, etc.
Em conversa com os pais a respeito do quadro que os filhos apresentam, os
profissionais da instituição podem até dizer que é um transtorno global do
desenvolvimento, que ele tem dificuldades em se relacionar, lidar com suas emoções,
seus sentimentos, que o tratamento inclui também os pais... Mas a tal “causa”, tantas
vezes buscada, nunca é dita, apesar de ficar pairando o tempo todo durante a atenção
terapêutica a esse núcleo familiar. Desse “porquê” não explicitado, mas implícito na
cabeça dos técnicos, vem uma involuntária culpabilização da mãe, especialmente, e uma
tendência a uma orientação normativa de sua prática enquanto responsável por aquele
filho.
Apenas para citar um exemplo do quanto é um exercício difícil abstrair das
noções que se têm sobre como “bons” pais devem educar seus filhos, sobre os valores
que devem nortear sua relação com esses, destaco um comentário de um profissional da
equipe sobre o que ouviu falar dos atendimentos realizados por um outro profissional
com certa mãe e filho psicótico juntos: “Parece que tem sido muito ‘pedagógico’ para a
mãe, pois ela percebeu como o terapeuta lidava com o filho e ‘por imitação’, parece que
começou a perceber que dar limite funciona”. Ainda falando a respeito dessa mãe, com
3 Ver especialmente Duarte (1986), Sarti (1996) e Fonseca (1989 e 1995) para uma introdução à temática a partir de aspectos que de alguma forma se aproximam aos universos abordados neste artigo.
quem tem pouco contato, o profissional afirma: “Fico impressionado ao ver que coisas
tão simples demoram tanto para ser feitas (pela mãe), que até um olhar minimamente
amoroso precisou ser estimulado, pois a mãe é muito rude...”
Referências Bibliográficas
DUARTE, Luiz Fernando Dias (1986). Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras
Urbanas, Rio de Janeiro, Zahar.
FONSECA, Claudia. (1989) Pais e filhos na família popular In D’INCAO, M.A. (org.) Amor e Família no Brasil, São Paulo, Contexto, pp. 95­128.
FONSECA, Claudia. (1995) Caminhos da Adoção, São Paulo, Cortez.
KUPFER, M. Cristina M.. Notas sobre o diagnóstico diferencial da psicose e do autismo
na infância. Psicol. USP, São Paulo, v. 11, n. 1, 2000 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365642000000100006&lng=en&nrm=iso>. access on 26 Aug. 2010. doi:
10.1590/S0103-65642000000100006.
MARCELLI, D. (1998) Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra, Porto
Alegre, Artes Médicas.
ORTEGA, Francisco (2009) Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência e Saúde
Coletiva, 14 (1), pp. 67-77
RUSSO, Jane e VENÂNCIO, Ana Teresa A. (2006) “Classificando as pessoas e suas
perturbações: a ‘revolução terminológica’ do DSM III”. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, Vol. IX, n.3, pp.460-483.
SARTI, Cynthia.A. (1996) A família como espelho: Um estudo sobre a moral dos pobres,
Campinas, Autores Associados.
VADASZ, Estevão. (2004?) “Autismo, mitos e verdades” in Autismo, você sabe o que é?
(CD Rom informativo), São Paulo, Associação de Amigos do Autista.
WING, Lorna (1996). Anais do 5º. Congresso Autismo-Europa, Barcelona (Tradução de
Marialice de Castro Vatavuk).
Download

Crianças autistas e seus familiares