O CONHECIMENTO A SERVIÇO DO DESENVOLVIMENTO
Uma "revolução" conceitual e prática
Lizia Helena Nagel
Resumo: O texto, com base no documento oficial do Banco Mundial, - Informe sobre o desarrollo
mundial - El conocimiento al servicio del desarrollo (1999) -, problematiza o conceito de conhecimento
advogado por essa instituição, sobre o qual se assenta, de forma sofística, não só a proposta de
redução das desigualdades entre países ricos e pobres, como a política educacional para as nações
com carência de conhecimentos científicos, tecnológicos e/ou culturais.
Palavras-chave: educação – conhecimento - desenvolvimento – Banco Mundial
Abstract: The World Bank document Information on World Development – Knowledge for
Development (1999) is analyzed. Our research problematizes the concept of development as
enhanced by the above institution. The World Bank's suggestions on the decrease of inequalities
between rich and poor countries and its educational policy with regard to countries lacking scientific,
technological and cultural knowledge are provided and critically evaluated.
Key words: Education, knowledge, development, World Bank.
O Banco Mundial, publicando seu Informe sobre o Desenvolvimento Mundial (19981999), oferece ricos subsídios para considerações dos educadores. Analisando apenas o
Resumo desse estudo - O conhecimento a serviço do desenvolvimento -, pretendemos
discutir, fundamentalmente, o significado do conhecimento que é considerado necessário
aos países pobres ou em desenvolvimento.
A versão resumida, expressando sinteticamente as questões trabalhadas na
totalidade do Informe, contempla os seguintes itens: a) necessidade de reduzir as
diferenças de conhecimentos entre países pobres e ricos, b) sugestões para corrigir os
problemas derivados da falta de informação dos países em desenvolvimento, c) políticas
para diminuir as deficiências de comunicação através de instituições internacionais, assim
como a delimitação das novas funções do Estado na perspectiva do desenvolvimento
global. Roteiro de trabalho importante para debate posto que sugere não só o ponto de
partida desse órgão internacional para entender a principal causa da riqueza e da pobreza
como oferece (para debelar o problema detectado como tal) um conjunto de alternativas
capazes de, contraditoriamente, assegurar o inverso defendido pelo discurso
organicamente articulado.
Já foi dito que, dependendo da forma como se elabora um problema, nessa
formulação, já estão contidas as idéias mestras, consideradas chaves, para a superação da
situação aflitiva. Ora, o problema principalizado pelo Banco Mundial constitui-se na tese de
que a falta de conhecimento impede o desenvolvimento, gerando pobreza. Cabe portanto
tornar mais ágil a aquisição de conhecimentos. Diz inicialmente esse estudo:
El conocimiento se asemeja a la luz. (...) A pesar de ello, miles de milliones
de personas viven todavía sumidas - sin ninguna necesidad - en la oscuridad
de la pobreza. (p. 1)
...
Lo que distingue a los pobres -sean personas o países - de los ricos es no
sólo que tienen menos capital sino tambíen menos conocimientos (p. 1)
...
Los problemas de información son com frecuencia la causa fundamental de
las dificultades que los pobres de los países en desarrollo encuentran en su
lucha diaria por sobrevivir y mejorar su nivel de vida. (p.4)
Secundarizando as relações capitalistas na determinação das diferenças entre
nações ou homens, o Banco Mundial investe naquilo que considera o problema real a ser
debelado: a superação da pobreza pela perspectiva do conhecimento. Tese aparentemente
cativante porque, ao recuperar o ideal Iluminista, que promete pelo saber a transformação
social, reativa em muitos homens, em muitos professores, o otimismo perdido nos discursos
asseguradores da morte dos paradigmas, tão comuns neste fim de século. Reativa, na
verdade, nos mais desavisados, um certo otimismo pedagógico, que se esforça por difundir
a nova forma de ser que deve ter o ensino, acreditando nas virtudes do novo modelo
sugerido pelos organismos internacionais e confirmado pelos órgãos competentes do
Estado.
Mas o estímulo ao crédito na razão ou no conhecimento para o saneamento de
problemas sociais também deve ser examinado para além de suas aparências. O conceito
de razão embutido nas teses Iluministas, da Ilustração, ou mesmo dos partícipes de um
otimismo pedagógico, não é o mesmo que o Banco Mundial utiliza para defender ou emular
o conhecimento nas nações subdesenvolvidas. O conhecimento que o Banco Mundial
sugere para o Terceiro Mundo é um produto acabado, feito no Primeiro Mundo, passível de
ser adquirido como uma mercadoria que, objetivada em um pacote, pode ser utilizada
segundo normas técnicas, presas ao próprio produto, por qualquer consumidor. Segundo
esse órgão, o conhecimento assim empacotado, servindo para eliminar, de modo rápido, a
defasagem entre ricos e pobres traz a vantagem embutida na supressão do tempo que
seria necessário à compreensão, pelo usuário, das relações entre as medidas a serem
tomadas e os seus efeitos, ou as possíveis conseqüências (boas ou más) do tratamento
utilizado.
Na perspectiva do Banco Mundial, a possibilidade de correção das diferenças de
conhecimento entre pobres e ricos, é otimizada justamente porque o usuário do
conhecimento-pronto, dispensado de racionalmente entender as causas do processo
problemático que exige a interferência prática dele, fica desobrigado de examinar as razões
determinantes de eficiência ou ineficiência dos métodos ou recursos empregados para a
superação do mesmo problema. Nesse sentido, a idéia de conhecimento necessário expõese nos limites da mera aplicação de conhecimentos já produzidos. O processo de conhecer
em todas as suas fases é eliminado da vida de alguns grupos por intencionalidade
pragmática em nome de um desenvolvimento mais aligeirado da humanidade! Nesse
momento, a questão básica consiste em perguntar quem vai ser, de fato, educado para
pensar abstratamente, para pensar teoricamente? Infelizmente, o preconceito que vem
crescendo de modo tendencial nos discursos pedagógicos, sempre a favor do pragmatismo
e da utilidade imediata do sujeito que aprende, negando a importância do pensamento
abstrato, só pode ajudar na implementação dessa nova política educacional.
É dentro do quadro de prazer auferido pela resposta imediata, sem as dores que o
conhecimento científico, pleno de mediações e abstrações possa oportunizar, que o
comprador do pacote de conhecimentos-prontos é desobrigado de procurar, de investigar
ou de estabelecer relações entre ações passadas, presentes e futuras afastando-se dos
processos mentais associativos ou de encaminhamentos compreensivos através de
analogias. Fica desobrigado de conhecer os nexos que unem a teoria à prática e eximido
de conhecer símbolos ou terminologias específicas, atributos ou propriedades dos
materiais. Livre, dessa forma, da necessária disciplina para organizar dados, investigar,
examinar tendências, ter familiaridade com critérios de julgamento, com generalizações ou
com estruturas teóricas que permitem, inclusive, previsões antecipadas dos fenômenos.
Como diz o Informe:
Por otro lado, los países en desarrollo no tienen que reinventar la
rueda ni las computadoras, ni redescubrir el tratamiento del paludismo. En
vez de volver a descubrir lo que ya se sabe, los países más pobres tienem la
posibilidad de adquirir y adaptar gran parte de los conocimientos ya
disponibles en los países más ricos. (p. 2)
Suprime-se pedagogicamente, nesta proposta, os atos intelectivos de compor e de
decompor as tecnologias, os símbolos, as representações, para o entendimento dos
produtos elaborados pelo homem. Desvaloriza-se o processo próprio à formação da
consciência que se instaura através de uma seqüência de experiências indispensáveis.
Suprime-se, de fato, a importância do ato interior de conhecer enquanto um ato humano,
histórico. Estimula-se um voluntarismo destinado a implementar o já constituído, como
promessa de superação das desigualdades, embora, o próprio texto do Banco Mundial,
contraditoriamente, afirme:
De hecho, la mayor diferencia es la que existe no en el volumen de
conocimientos disponibles sino en la capacidad de generación de los mismos.
(p. 2)
Na verdade, é a atividade intelectual enquanto geradora de conhecimentos que esse
organismo internacional considera desnecessária aos países em desenvolvimento. É o
processo construtor da ciência, que arrancando o homem da imediatez de uma vivência
sensível, é considerado desnecessário para a educação dos povos menos desenvolvidos.
Enquanto os empiristas, racionalistas, iluministas ou qualquer outra corrente teórica,
ajudando a solidificar a sociedade capitalista, conferiram à geração de conhecimentos uma
força demiúrgica, um crédito à cognição que, se ativada, poderia transformar o mundo, o
liberalismo, nos limites da globalização e sob o comando de instituições financeiras,
gerencia a paralisação da razão, a castração da gênese da consciência através do
direcionamento sofístico dos sistemas de ensino e das propostas curriculares para os
países endividados ou pobres.
Sem negar a importância de repassar e/ou adquirir conhecimentos já produzidos
pela humanidade, afirmamos o poder pernicioso do ideário e da prática que limita o ato de
conhecer à aplicação de saberes disponíveis no mercado do Primeiro Mundo. Empreitada
reducionista de valorização meramente mecânica de aplicação da tecnologia, que sempre
renova sua força e credibilidade da sistemática propaganda, posto que os argumentos a
favor dessa proposta não escondem o seu caráter político, explorador e opressivo, como
podemos ler no texto que segue:
Los factores fundamentales para la adquisición de conocimientos en
el exterior son tres: un régimen comercial abierto, la inversión extranjera y la
concesión de licencias de tecnología.
...
La concesión de licencias de productos tecnológicos desempeña un
papel de creciente importancia en la adquisición de conocimientos por los
países en desarrollo. (...)
Al mismo tiempo que el mundo avanza hacia una economía basada
en el conocimiento, se observa una tendencia a proteger mejor los derechos
de propriedad intelectual. (...)
Los países en desarrollo deben participar activamente en las
negociaciones en curso sobre estos temas, para poner de manifiesto su
preocupación de que el endurecimiento de los derechos de la propriedad
intelectual pueda inclinar la relación de fuerzas en favor de quienes generan
la información y, al frenar la adaptación, agrande las diferencias de
conocimientos. (p. 9)
Esse conjunto de juízos, entre outros, emitidos pelo Banco Mundial, obriga a refletir
sobre as mudanças na estrutura da economia desde a década de 80, na qual, os
investimentos externos e os mecanismos internacionais tem proeminência na definição das
políticas sociais. Considerando que o mesmo documento aponta para a necessidade, nos
países não desenvolvidos, de uma legislação mais agressiva e de tribunais menos
corruptos e menos lentos para processar crimes, entre os quais aqueles relativos à
pirataria, roubos dos direitos autorais e de patentes, não pagamento de royalties, não
cumprimento das normas e compromissos próprios à aquisição de informações, percebese, com maior clareza, o significado e/ou a função mais radical da instrução ou formação
teórica para as sociedades do conhecimento nas beiradas do século XXI. O saber científico
e tecnológico aparece, definitivamente, como mercadoria do primeiro mundo.
O conhecimento, como um bem privado, afirmado sem nenhum pudor como tal,
passa a ser preservado sob o império de leis, ratificadas constitucionalmente, que
garantem, mais do que nunca, os direitos dos proprietários intelectuais. O crescimento do
comércio internacional alarga-se nas bandas da comunicação, jamais pensando esses
interesses externos como restritos à área das telecomunicações ou da telefonia. O poder
que o saber detém, verdade histórica para a burguesia, continua indiscutível, mas emerge
sob outra configuração mais abstrata. Nessa nova configuração, nesse novo estágio de
desenvolvimento capitalista, o conhecimento passa a ser explicitamente controlado por
corporações internacionais, semelhantes, mais complexas, mas não iguais às
multinacionais.
A concorrência, portanto, que não desaparece, - incluindo-se todas as estratégias
para excluir possíveis competidores ou incorporar outros de seu interesse -, é mantida, ou
melhor, acelerada por um mercado que, considerando-se auto-ajustável, enfraqueceu o
Estado Nacional. Este, na perda de sua proeminência, passa a dar legitimidade não só aos
mecanismos dos mercados internacionais como a ser controlado pelos novos meios de
comunicação, encaminhando, inclusive, sob a égide do conhecimento a serviço do
desenvolvimento, mudanças estruturais no sistema educacional do país.
Nesse quadro, cabe pensar quais são as políticas, as propostas, as alternativas
educacionais sugeridas aos países em desenvolvimento? Sem maiores esforços encontrase as primeiras respostas no próprio documento do Banco Mundial. Nele, afirma-se que, à
Educação Básica, cabe, principalmente, fornecer conhecimentos técnicos sobre nutrição,
controle da natalidade, programas de contabilidade e de informática, além de
conhecimentos sobre ecologia para impedir a degradação ambiental e manter a força
dinâmica do trabalho saudável (p.2/10). Ao Ensino Universitário, por outro lado, deixando de
ser uma prerrogativa do Estado, com o compromisso de oferecer serviços de qualidade e
de baixo custo, cabe, principalmente, o ensino virtual. Em qualquer grau de escolarização,
no entanto, segundo o Banco Mundial, seria necessário que o conceito de conhecimento para os países em desenvolvimento - fosse entendido e assumido até às últimas
conseqüências nos limites da adaptação e/ou da aplicação de saberes já produzidos (p. 1011). Na verdade, uma grande "revolução" conceitual e prática!
Referência Bibliográfica
BANCO MUNDIAL. Informe sobre el desarrollo mundial. El conocimiento al servicio del desarrollo. Resumen.
Washington, D.C. 1998-1999
O conhecimento a serviço do desenvolvimento: um “revolução” conceitual e prática. Disponível em Revista
Eletrônica da HISTEDBR- On Line – www.unicamp.br/~histedbr/rev.
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