O ATAQUE ÀS POLÍTICAS SOCIAIS
Serviços públicos para redução da pobreza e da
desigualdade
No presente, a questão que se coloca é se será possível continuar reduzindo a pobreza em seu
sentido mais abrangente, o que vai além do aumento da renda pessoal dos mais pobres, sem
reduzir de forma mais drástica a desigualdade
por Mariana Dias Simpson, Francisco Menezes
Nos últimos doze anos, o Brasil venceu desafios que antes eram vistos como fatalidades
com as quais estávamos condenados a conviver para sempre. Superamos a extrema
pobreza e a fome. Por outro lado, tem sido utilizada a imagem de que a vida melhorou
significativamente da porta de casa para dentro, enquanto do lado de fora, seja nas ruas
ou nos campos, persiste grande precariedade dos serviços e bens públicos ofertados,
acarretando enormes dificuldades ao dia a dia da população – principalmente das
camadas mais pobres. Se o governo reeleito declara que o Brasil sem Miséria se
encerra tendo cumprido sua missão, baseado na superação da extrema pobreza pelo
critério da renda, não há dúvida sobre a necessidade de continuar avançando, abrindo
um novo ciclo de enfrentamento da pobreza e da desigualdade.
Nesse novo ciclo, os esforços devem se voltar prioritariamente para melhorar a
qualidade de vida de grande parte da população. E isso não se faz com megaprojetos
ou megaeventos, mas com um modelo de desenvolvimento que priorize a cidadania e o
direito ao acesso a serviços públicos de qualidade e a cidades sustentáveis, com foco
especial na inclusão daqueles que vivem em situação de pobreza.
Não se trata de contrapor universalização e focalização. Trata-se de realizar ações
afirmativas porque a universalização não se confirma na prática justamente pelas
dificuldades de acesso daqueles que são socialmente mais vulneráveis. Apesar dos
preconceitos que a prioridade sobre a correção de injustiças pode gerar – vide reações a
cotas e ao Bolsa Família –, o reconhecimento de que os mais pobres são aqueles que,
tradicionalmente, ficam por último faz que se imponha aqui o preceito da equidade, uma
vez que atender igualmente os desiguais poderia resultar na manutenção de
desigualdades, pondo em xeque o objetivo maior da universalização de direitos.
Mesmo com os avanços na última década, o déficit ainda é de grande monta, e a
população mais pobre continua a sofrer duramente o alijamento ou o reduzido acesso a
serviços essenciais e, quando deles dispõe, na maior parte das vezes a qualidade
oferecida é extremamente deficiente. Por exemplo, um trabalhador que more na Baixada
Fluminense e trabalhe no centro do Rio de Janeiro pode ter sua jornada para o trabalho
acrescida de seis horas, pela precariedade dos transportes. A crise hídrica do estado de
São Paulo, por sua vez, está castigando mais severamente os bairros pobres da capital.
E os homicídios em todo o país vitimam majoritariamente jovens negros e pobres.
A redução da pobreza no Brasil foi fruto incontestável de um conjunto de políticas públicas,
entre as quais se destacaram aquelas voltadas para o crescimento da renda de assalariados
por meio da recuperação do valor real do salário mínimo; as dirigidas para a expansão do
emprego formal em um contexto de crescimento econômico; as de acesso ao crédito, tanto
no meio rural como no urbano; e a consolidação de uma rede de proteção social que tem à
frente, com notável aplicação, o Bolsa Família. A desigualdade também diminuiu, mas a uma
velocidade bem mais lenta do que a pobreza.
No presente, a questão que se coloca é se será possível continuar reduzindo a pobreza em
seu sentido mais abrangente, o que vai além do aumento da renda pessoal dos mais pobres,
sem reduzir de forma mais drástica a desigualdade, ou seja, fazendo a pequena camada da
população, que se encontra no topo da pirâmide de renda, assumir de forma crescente os
custos de uma política distributiva, com sua nova prioridade, focada no acesso a serviços e
bens públicos de qualidade.
As manifestações ocorridas em junho de 2013, embora não circunscrevendo suas
demandas para os mais pobres, expressaram o elevado grau de insatisfação com a
maioria dos serviços urbanos, demonstrando urgência nessa agenda. Pesquisas de
opinião confirmam esse descontentamento na maioria da população.
Partindo do pressuposto de que a oferta de serviços públicos de qualidade é o próximo
passo a ser dado no enfrentamento da pobreza e da desigualdade no Brasil, o Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e um conjunto de organizações da
sociedade civil1 vêm procurando aprofundar essa discussão com o objetivo de incidir
positivamente sobre as políticas públicas que serão aplicadas nos próximos anos. Ao
examinarmos os setores de educação, saúde, assistência social, mobilidade,
saneamento básico, segurança pública e habitação, identificamos questões comuns que
atravessam e desafiam a prestação com qualidade de todos esses serviços – questões
que, se não forem enfrentadas, poderão frustrar o esforço de superação definitiva da
pobreza no país.
O primeiro fator que verificamos como determinante na resolução de impasses
relacionados à prestação de serviços públicos de qualidade está relacionado ao
financiamento dos investimentos necessários para fazer cumprir esse objetivo. Nesse
aspecto, o desafio do crescimento econômico e como ele será definido interferem
decisivamente nessa questão. Vale assim inverter os termos de como o problema é
apresentado: poderá ser o investimento em infraestrutura física e social, no âmbito dos
serviços, um dos motores propulsores do crescimento? O projeto que ganhou a eleição
para a Presidência, inspirado no que se realizou nos dois governos de Lula e no primeiro
de Dilma Rousseff, teve como princípio a não separação do econômico e do social.
Cabe manter a aposta de que os investimentos na área social, com preservação da
renda, manutenção do emprego e avanços na oferta de serviços e habitação de
qualidade, foram compromissos-chave para a vitória nas urnas que precisarão ser
cumpridos.
O país precisa continuar a crescer, mas esse crescimento precisa ser inclusivo e não pode
se dar a qualquer custo. Nos últimos anos, temos visto a opção por investimentos que visam
ao crescimento econômico e ao mesmo tempo acabam por gerar mais exclusão. Exemplos
dessas contradições aparecem no próprio Minha Casa Minha Vida, programa habitacional
regressivo que deixa predominantemente nas mãos das grandes empreiteiras a construção
de milhões de unidades habitacionais e coloca por terra preceitos básicos, como a
localização adequada em áreas com infraestrutura, saneamento ambiental, transporte
coletivo, equipamentos, serviços urbanos e sociais, inviabilizando ainda mais o acesso a
oportunidades de desenvolvimento social e econômico para moradores que já eram pobres,
repetindo erros do passado de forma ainda mais perversa; a construção de grandes
empreendimentos, como portos e hidrelétricas, que atraem grande número de trabalhadores
sazonais e trazem sérios impactos ambientais e sociais para as comunidades locais e, em
especial, para os mais vulneráveis, como mulheres e crianças; ou a aprovação de um Plano
Nacional de Mobilidade Urbana, que corretamente defende o desestímulo ao uso do carro
particular e o investimento em transporte público, enquanto o governo contraditoriamente
desonera a indústria automobilística com iniciativas como a alíquota zero do IPI. São alguns
exemplos de contradições de políticas dentro de um mesmo projeto que se esforça e
consegue fechar bolsões de miséria aqui, enquanto abre outros acolá.
Enfrentar toda a precariedade em relação aos serviços e bens públicos tem um custo
orçamentário alto e mexe com interesses que até hoje foram pouco contrariados.
Medidas nessa direção desencadeiam ruidosas resistências. Em todas as áreas
referidas constatam-se contradições que, se não forem superadas, encontrarão em suas
principais políticas barreiras intransponíveis. A aplicação de políticas efetivas nessa
direção invariavelmente implicará confrontos com interesses privados que se valem da
insuficiência e precariedade dos serviços e bens públicos para garantir altas taxas de
lucros, seja na educação, na saúde, na habitação ou no transporte.
E assim apresentamos o segundo fator identificado como desafiante ao conjunto de
serviços examinados: a dicotomia entre o público e o privado – ou melhor descrevendo,
sua relação com parca regulação. Há que se registrar o processo de privatização
acelerado desses serviços ocorrido na década de 1990, que pode ser identificado, por
exemplo, na transformação em negócio privado de parte dos serviços que deveriam ficar
na alçada do Sistema Único de Saúde (SUS). Ou o grave exemplo da questão hídrica
em São Paulo, onde assistimos à socialização do financiamento e à privatização do
lucro, enquanto a população tem limitado acesso a um direito tão básico como a água.
Ou a investida de corporações sobre a educação no período mais recente, com
universidades sendo compradas por grandes empresas no país e a fusão das duas
maiores companhias do setor, que criou o maior conglomerado educacional do mundo,
avaliado em cerca de R$ 12 bilhões.2 Vale lembrar ainda que, apenas até o segundo
semestre de 2013, 1,2 milhão de estudantes acessaram o ensino superior privado com
recursos de bolsas de estudos cedidas pelo governo federal por meio do ProUni,
transferindo-se assim parte da verba pública para a educação privada. E, se a lógica privada
já permeia serviços públicos, na educação sua influência é conceitual, sobre conteúdos
programáticos.
No lastro da tomada dos serviços públicos pelo privado, impôs-se a ideia de que este
oferece a eficiência e que o público será sempre precário. Os usuários de serviços
privados vêm conhecendo essa farsa, ainda que a opção pelo privado continue a ser
feita (por razões óbvias) pelas famílias que podem pagar, inclusive aquelas que acabam
de ascender à frágil “nova classe média”, apresentando ao setor privado uma nova e
significativa oportunidade de negócios. O fato é que a prestação dos serviços públicos
por empresas privadas traz uma contradição insolúvel, já que sua finalidade última é o
lucro, o que o torna incompatível com a garantia de direitos. Os brasileiros se defrontam
no cotidiano com as consequências dessa situação de difícil, mas necessária, reversão.
Um terceiro nó que se identifica no conjunto dos serviços públicos são as dificuldades
oriundas do chamado pacto federativo e as atribuições destinadas a cada ente. É fato
que em um país com as dimensões continentais do Brasil, que resultam em 5.570
municípios, torna-se indispensável a descentralização desses serviços. No entanto, da
forma como hoje estão definidas as responsabilidades e as dificuldades de uma
execução integrada das políticas, há que se proceder a várias redefinições. Em relação
aos estados, suas atribuições ficam pouco definidas e sem comprometê-los com a
efetiva articulação dos municípios.
Precisa ser discutida também a questão do repasse de recursos aos municípios, dando mais
a quem necessita mais. Os pisos atuais não dão conta da complexidade do país.
Sobressaem ainda dificuldades que vão desde incompatibilidades partidárias entre governos
dos três entes, com sabotagem a políticas nacionais para esses serviços, até total
desconhecimento e muitas vezes incapacidade para executá-las. A descentralização é
instrumental para que políticas sociais continuem a atingir a escala que têm alcançado, mas
a relação entre entes precisa ser mais dialógica, e não apenas centrada no repasse de
recursos. A ideia de formação de consórcios de municípios, intersetoriais e relacionados a
cada serviço, poderá ser uma alternativa à atual fragmentação municipalista.
Por fim, a questão da participação social junto a esses serviços precisa ser reexaminada,
diante da fragilidade que vem demonstrando. Há diferenças entre aqueles cujos sistemas já
estão constituídos, como na saúde e na assistência social, e aqueles nos quais são dados
passos ainda muito preliminares na direção do controle social, como na segurança pública e
nos transportes. Aqui, porém, as dificuldades parecem ser de natureza mais geral, com a
desmobilização social que prevaleceu nos últimos anos e a dificuldade de construção de
uma agenda unificada – isso aliado à incapacidade de comunicação por parte do governo,
inclusive daquilo que realiza de mais positivo.
As manifestações de 2013 tiveram na cobrança por serviços públicos de qualidade uma
de suas principais reivindicações. Essa mobilização precisa ser reforçada, dando-se
espaços a movimentos que emergem como novas vanguardas das lutas populares, a
exemplo do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e do Movimento Passe
Livre (MPL). Há que se ousar pensar além daquilo que já se transformou nos espaços
convencionais de participação, como os conselhos e as conferências, em que pese a
resistência insana da maioria da Câmara dos Deputados ao tímido decreto de
participação social do governo federal. Precisamos democratizar os espaços de
participação. O que faz a diferença é a população mobilizada defendendo seus direitos,
com qualidade da participação. E, infelizmente, essa não foi uma opção privilegiada pelo
governo, nos últimos quatro anos, com a pouca disposição que demonstrou para dialogar
com movimentos sociais.
As questões apresentadas procuram discutir os desafios maiores para a garantia
universal de serviços públicos de qualidade. Ao mesmo tempo, não se devem
desconhecer as importantes e inúmeras iniciativas que foram tomadas no âmbito do
Brasil sem Miséria para melhorar o acesso das populações mais pobres a esses
serviços. Desde a oferta de serviços de creches públicas, que chegou a 1 em cada 5
crianças do Bolsa Família matriculadas; de quase 60 mil escolas em tempo integral no
país, sendo 36 mil delas com maioria de alunos do Bolsa Família; da presença de
médicos nos municípios mais pobres que até então nunca tiveram esses profissionais,
graças ao Programa Mais Médicos ou às 116 “lanchas sociais”, que levam serviços de
saúde, educação e assistência social para as distâncias mais recônditas na região
amazônica e no Centro-Oeste brasileiro. Mas, para prosseguir e aprofundar essas e
outras tantas iniciativas, será preciso saber responder aos dilemas colocados pelas
questões aqui enunciadas.
Por outro lado, o acesso a serviços de qualidade não está dissociado dos outros
grandes desafios do país para os próximos anos. Não é indiferente à própria renovação
da política, à forma de fazer política, por isso também a procedência e atualidade do
debate sobre a reforma política no país.
Essas questões foram discutidas em oficina realizada pelo Ibase em novembro, que reuniu
especialistas e militantes dos temas dos serviços públicos e da pobreza no
Brasil,3 contribuindo significativamente para a elaboração deste artigo. Nas páginas a seguir,
os desafios aqui descritos serão explorados com mais profundidade por alguns dos que
participaram da oficina.
Mariana Dias Simpson
Mariana Dias Simpson é pesquisadora do Ibase
Francisco Menezes é diretor do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas).
Ilustração: Daniel Kondo
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