O ESTADO DE S. PAULO
DOMINGO, 18 DE MAIO DE 2014
E&N
ECONOMIA & NEGÓCIOS
Fundo de
infraestrutura
Desafios
da Europa
Aportes do FGTS
estão concentrados
em sete grupos
EmPortugal,crise
deixourodovias
vazias,dizGonçalves
Pág. B10
Págs. B21, B22 e B23
JAMIL CHADE/ESTADÃO
B1
%HermesFileInfo:B-1:20140518:
Montanha-russa.
Estudo que acompanhou a rotina financeira nas classe C, D e E identificou que o valor e as fontes de rendimento
sofrem enormes variações mês a mês, fazendo com que uma mesma família oscile entre a pobreza e a renda média em questão de dias
Pesquisa mostra que a renda da nova
classe média muda todos os meses
Alexa Salomão
EXCLUSIVO
Um estudo detalhado sobre
os ganhos e os gastos das classes C, D e E trouxe um dado
novo sobre a classe C, considerada a nova classe média
do País: a renda dessa parcela
da população não é tão estável quanto se pensa. Na verdade, tanto o valor quanto as
fontes de rendimento tendem a mudar, às vezes drasticamente, mês a mês. “Podemos dizer que a classe C é
classe média quando dá”, diz
Luciana Aguiar, sócia diretora da Plano CDE, consultoria
especializada em baixa renda, responsável pelo estudo.
A pesquisa foi feita com 120
famílias, de 64 comunidades de
centro urbanos em quatro capitais – Salvador, na Bahia, Recife,
em Pernambuco, São Paulo e
Rio Janeiro. O estudo foi encomendado e pago pelo CGAP (sigla em inglês de Consultative
GUSTAVO EPIFANIO/ESTADÃO
Group to Assist the Poor), um
organismointernacional,baseado no Banco Mundial. Como a
Plano CDE realizou todo o levantamento, pode divulgar parte dos dados financeiros, aos
quais o Estado teve acesso.
Diários financeiros.
Por causa
do número reduzido de entrevistados,a pesquisa não tem valor estatístico. O seu grande diferencial é a profundidade. Os
pesquisadores tiveram acesso
irrestritoàcontabilidade dasfamílias por seis meses, o que faz
com que os resultados tracem
uma radiografia fidedigna dos
padrões de comportamento
dessa parcela da população.
“A pesquisa é baseada no que
se chama de Diários Financeiros, que acompanham as fontes
dereceitaeosgastos”,dizLuciana. “É um tipo raro de acompanhamento, quepermite umainvestigação do orçamento familiar e de como as pessoas lidam
com o dinheiro e as dívidas.”
Oorçamentodetodasasfamílias pesquisadas variou ao longo dos seis meses. Uma delas
Chaveiro
sobre
rodas.
Lacrose,
pintor,
eletricista e
marceneiro,
agora
tem nova
atividade
atravessou quase todas as classes. Foi pobre, vulnerável, passou três vezes pela classe C e,
por fim, entrou na B.
Segundo Luciana, isso ocorre
porque apenas uma parte da
renda é certa – e nem sempre
por causa de um emprego com
carteira assinada. Aposentadoria, pensão, bolsa família, bolsa
carioca e outros benefícios sociais, muitas vezes, são a única
parcela fixa da renda. O restante – que não raro responde pela
maior parcela do ganho – é coberto por bicos e atividades pa-
ralelas,comovenda de cosmétiQuando Lacrose tem um
cos ou fazer salgados para fora. bom mês, a renda familiar passa
de R$ 6 mil. Pelos padrões de
Mobilidade mensal.
Cristiano ganho no País, a família, com
Ipaves Lacrose, 36 anos, de Ita- umafilha, vai ao topo da pirâmiquera, na zona leste da capital de.Encostana classeA,alta renpaulista,convivecomessa flexi- da. Em um mês ruim, porém, os
bilidade desde que começou a R$ 900 da esposa os colocam
ajudar o pai, aos dez anos. Mi- no piso da classe C. Por pouco
croempreendedor, ganha por não escorrega para a D. Como a
mês,como ele mesmo diz, “algo renda muda, a família Lacrose
entre nada e R$ 5 mil”.
transitaentre asclassesC, B eA.
Para garantir nem que seja
“Essa camada da população é
um mínimo, aprendeu a fazer mais vulnerável do que parece e
de tudo – serviços hidráulicos, precisadeapoioparase consolielétricos, marcenaria, pintura. dar”,dizLuciana.“ApenasarenSua mais recente atividade é ser da não é capaz de lhe garantir
chaveiro em domicílio. “Não dá estabilidade.” No longo prazo,
para adivinhar quando e quanto anovaclasse média precisaacuvai entrar”, diz Lacrose. “Há um mularativos–educação,qualifiano, ganhava bem sempre, mas, caçãoprofissional,acessoaosisdesde o fim do ano passado, os tema financeiro, um espaço paclientes ficaram mais inseguros ra empreender, já que a maioria
e as coisas, imprevisíveis.”
não tem trabalho formal. “A
Emcasa,quemtemrendacer- questão que se coloca é como
ta é a esposa. São R$ 900 como ajudá-la nessa transição.”
auxiliardeserviços.Édelaaconta bancária, que garantiu o empréstimo para os documentos Metade das famílias de
damotoeosdoiscartões decré- baixa renda vive ‘enforcada’
dito, que ele utiliza como fonte Pág. B4
de capital de giro.
POR DENTRO DA CONTABILIDADE DAS CLASSES EMERGENTES
S E G M E N T O S OC I A L
A pesquisa que
identifica hábitos
financeiros da
baixa renda
acompanhou, por
seis meses,
ganhos e gastos
de 120 famílias,
em 64
comunidades de
4 capitais que
concentram
menos renda,
mas
representam a
maior parcela da
população
P E S S OA S
ALTA
CLASSE
ALTA
BAIXA
ALTA
MASSA DE
RENDA
6%
35%
RENDA MENSAL
FAMILIAR PER CAPITA
Acima de R$ 2.481
16%
Du a s c on s t a t a ç õe s d a pe s q u i s a
A classe C é classe média quando pode, porque a renda tem
alta oscilação mensal
A RENDA DE
TODAS AS
FAMÍLIAS
PESQUISADAS
VARIOU AO LONGO
DOS MESES EM
QUE A PESQUISA
FOI APLICADA
VARIAÇÃO DA RENDA PER CAPITA
18%
CLASSE
MÉDIA
MÉDIA
25%
VULNERÁVEIS
CLASSE
BAIXA
POBRES
EXTREMAMENTE POBRES
14%
5%
17%
R$ 642 a R$ 1.019
11%
R$ 442 a R$ 641
7%
7%
4%
0,8%
0,2%
R$
R$
MÉDIA
CLASSE
MÉDIA
634
R$
294
POBRE
DEZ
2013
JAN
2014
R$
155
FEV
MAR
ABR
205
MAI
JUN
ORGANIZADO
(faz a gestão de
ganhos e gastos, se
priva e, quando
consegue, poupa)
FONTE: PLANO CDE/CGAP
28%
22%
71%
POBRES
50%
CLASSE
MÉDIA
INFOGRÁFICO/ESTADÃO
Metade das famílias
de classe média
vive ‘enforcada’
Entre os entrevistados, 28% ganham para pagar dívidas e 22% são
desorganizados; os mais pobres são os que se programam melhor
Alexa Salomão
As classes C, D e E podem dividir a base da pirâmide, mas
não lidam com questões financeiras da mesma maneira. Essa é outra constatação
da pesquisa realizada pela
consultoria Plano CDE. Apesar de ter mais renda, a classe
média – aquela que puxou o
consumo nos últimos anos –
demonstra menos habilidade
do que os mais pobres para lidar com as contas.
A Plano criou três perfis de
relacionamento de orçamento
familiar. O organizado (faz a
gestãodeganhosegastos,sepriva e, quando consegue, poupa).
O desorganizado (não sabe
quanto ganha ou gasta e entra
no vermelho regularmente). O
orientadopeladívida(quedestina tudo que ganha ao pagamento das contas e vive com a corda
no pescoço).
Apesar de serem considerados mais arriscados pelo sistema financeiro, porque têm renda inferior, os mais pobres se
mostram bem mais organizados – 71% têm controle rigoroso das finanças.
As famílias de classe média
queparticiparamdapesquisativeram um comportamento
bem diferente – 22% se mostra-
71%
18%
11%
VULNERÁVEL
R$
ORIENTADA PELA
DÍVIDA
(praticamente tudo
que ganha é para
pagar contas)
NA CLASSE MÉDIA
ENCONTRA-SE A
MAIOR
PROPORÇÃO DE
FAMÍLIAS
ORIENTADAS PELA
DÍVIDA
DESORGANIZADA
(não sabe quanto
ganha ou gasta e
regularmente entra
no vermelho)
564
R$
PERFIL DA GESTÃO DA DÍVIDA
POR FAIXA DE RENDA
795
BAIXA
CLASSE
MÉDIA
R$ 292 a R$ 441
R$ 163 a R$ 291
R$ 82 a R$ 162
Até R$ 81
1.239
ALTA
CLASSE
MÉDIA
MÉDIA
CLASSE
MÉDIA
16%
BAIXA
CLASSE
ALTA
R$ 1.020 a R$ 2.480
18%
R$
BAIXA
A c l a s s e C é m a is
desorganizada com
as finanças que os
mais pobres
las. A classe média hoje recorre
muito, por exemplo, ao cartão
“Definitivamente a noção
de crédito. Integrantes da pesde dívida entre os mais
quisa tinham cinco, alguns até
pobres não é a mesma dos
dez cartões, que funcionavam
economistas. Para eles,
como cheque especial.
dívida é o que não
Essa ineficiência também foi
conseguiram pagar – se
percebida em outras pesquisas.
renegociou ou parcelou um
OSPCBrasil, empresade cadasbem, não é dívida. O
tro de crédito, identificou no fipagamento pode estar até
nal do ano passado que 47% dos
atrasado, mas a pessoa só
inadimplentes eram da classe C
e estranhou o dado. “Na nossa
considera dívida quando
avaliação, esse dado mostrou
decide que não vai pagar.”
que a classe C não consegue se
Luciana Aguiar
blindarcom alternativasde créSÓCIA DA PLANO CDE
dito e rolagem de dívidas, como
asclassesAeB”,dizLuizaRodriram desorganizados e 28%, gues, economista do SPC.
orientadospelas dívidas. Ou seja:metadedestegrupotevepro- Dívidas. Há também questões
blemas para pagar as contas.
comportamentais. As famílias
“Nãopodemosexpandiroda- que participaram da pesquisa
do para o Brasil e dizer que me- responderam a 1.107 entrevistade da classe média, que reúne tas. Nesses momentos, muitas
98milhõesdepessoas–incluin- diziam não ter dívidas. Mas, ao
do os 64 milhões de classe C – olhar em detalhe o orçamento
estão nessa condição”, diz Lu- nos diários financeiros, a Plano
ciana Aguiar, sócia diretora da encontrava as dívidas.
Plano CDE. “Mas é possível di“Definitivamente a noção de
zer que há uma forte propensão dívida entre os mais pobres não
a esse comportamento.”
é a mesma dos economistas”,
Na avaliação de Luciana, vá- diz Luciana. “Para eles, dívida é
riosfatores contribuemparaco- o que não conseguiram pagar –
locaraclassemédia nessa situa- se renegociou ou parcelou um
ção,alémdofatodearendaosci- bem, não é dívida. O pagamenlar. A falta de instrumentos fi- to pode estar até atrasado, mas
nanceiros adequados é uma de- a pessoa só considera dívida
Diferenças
FELIPE RAU/ESTADÃO
Coleção de prejuízos.
Nailda tem cinco cartões e dívida equivalente ao triplo de sua renda
PARA ENTENDER A PESQUISA
Conhecer para
aperfeiçoar
e suas relações com instrumentos financeiros. Apesar de o
levantamento ter sido feito pelo Plano CDE, cabe à instituiO estudo encomendado e pa- ção apresentá-lo. Parte do trago pelo CGAP (sigla em inbalho foi exposto num semináglês de Consultative Group
rio do Banco Central, mas, seto Assist the Poor), organisgundo informou a assessoria
mo internacional, baseado no de imprensa do Banco MunBanco Mundial, procurou ava- dial no Brasil, a base de dados
liar a realidade financeira das ainda não foi integralmente
classes emergentes no Brasil divulgada porque o parceiro
quando decide que não vai pagar mesmo.”
Essa classe também ampliou
sua cesta de compras. Agora paga internet, TV por assinatura,
plano de saúde, colocou o filho
na escola privada, comprou
uma moto, mas o supermercado ainda é o item que mais pesa
no orçamento – 27% dos gastos.
Essa composição faz com que
essaspessoasfiquemmaisfragilizadas diante de oscilações da
economia. “À medida que avança, a camada mais baixa permanece sentindo a alta de preços
dos produtos básicos, como alimentos, mas também passa a
sentirparte dainflaçãodeserviços. E sofre com as duas”, diz o
economista André Braz, do Instituto Brasileiro de Economia
da Fundação Getulio Vargas.
Nailda Santos do Nascimento, 49 anos, está com dificuldadesparalidarcomosnovostempos. Ela tem carteira assinada e
recebe por hora para cuidar da
limpeza de um condomínio.
Com os descontos, são pouco
mais de R$ 500 por mês. Mas a
sua principal fonte de renda é a
pensão como viúva – R$ 1,6 mil.
Com a renda de R$ 2,1 mil sustentatrês filhas, numa casaprópriaem Carapicuíba,regiãometropolitana de São Paulo.
Em meados do ano passado,
quando os gastos foram ficando maiores que os ganhos, co-
local, a Caixa Econômica Federal, pediu tempo para analisar os resultados. Uma das
missões do CGAP é conhecer
o perfil da baixa renda em diferentes países, promover a
educação financeira desse
segmento e incentivar instituições de crédito, seguro e
fomento, principalmente bancos, a criar produtos adequados para essa parcela.
meçou a usar os cinco cartões
de crédito que recebeu de lojas
ebancossempedir,masguardara para emergências. A dívida
nos cartões passa de R$ 6 mil – o
triplo de sua renda. Primeiro
usouparapagarprestaçõesatrasadas da faculdade da filha, depois para despesas pessoais e,
por fim, os cartões bancaram a
reforma da casa, que teve a estruturaabaladaporumainfiltração do imóvel vizinho.
“Nunca tive o nome sujo porque, quando vejo que não vou
conseguir pagar, renegocio,
mas desta vez eu acho que não
vou conseguir. Estou vivendo
dos cartões e não saio mais do
vermelho.”
das famílias mais pobres são organizadas e pagam as contas em dia; mesmo assim é essa a
parcela da baixa renda que tem o acesso ao crédito limitado por ser considerada de alto risco
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18.05.14 - O Estado de S Paulo(editado)