6/02/2014 às 00h00 Classe média, desigualdade e eleições Por Marta Arretche A afirmação de que o Brasil tornou-se um país de classe média revela um fato: a última década testemunhou substancial elevação da renda dos domicílios mais pobres. Como toda formulação simples, contudo, a afirmação esconde outro fato igualmente relevante: a desigualdade social ainda é muito grande no Brasil. A trajetória da renda média domiciliar per capita dos 20% mais pobres, dos 30% menos pobres (5º ao 10º vintis de renda) e dos 5% mais ricos, dos anos 1980 a 2012, está apresentada no gráfico 1. Este mostra que todos os estratos sociais tiveram ganhos de renda com a adoção do Plano Cruzado e do Plano Real. Estes ganhos foram preservados nos governos Fernando Henrique Cardoso, com a manutenção de seu programa de estabilização. Nos governos Lula, o crescimento econômico e os programas sociais produziram crescimento sistemático da renda para todos os estratos de renda, tendência que se manteve no governo Dilma, a despeito das baixas taxas de crescimento econômico. O pico da desigualdade econômica ocorreu em 1989, final do governo Sarney, quando a média da renda dos 5% mais ricos foi 70 vezes a média da renda dos 20% mais pobres. Desde então, esta razão vem apresentando queda sistemática. A despeito disto, em 2012, ano em que esta série atingiu seu patamar mais baixo, a renda média dos 5% mais ricos era 33 vezes a dos 20% mais pobres. A desigualdade social no Brasil não está restrita à renda. Baixa renda e carência de serviços essenciais estão superpostas nos domicílios mais pobres. Esta associação está exposta no gráfico 2, que apresenta as taxas de cobertura nos serviços essenciais por vintis de renda para 2012 (ordenados a partir dos mais pobres, da esquerda para a direita). Para o acesso a energia elétrica, as taxas de cobertura chegam a 100% para todos os estratos de renda, excluídos os 5% mais pobres, que 133 anos depois da invenção de Thomas Edison ainda não tinham acesso à luz elétrica. Entretanto, reduzir a associação entre baixa renda e ausência de serviços básicos, eliminando a inclinação para baixo à esquerda das linhas ainda é um desafio para políticas tão básicas quanto as de acesso à água, coleta de lixo e saneamento básico. Este quadro provavelmente seria ainda mais dramático se incluíssemos o transporte coletivo e a segurança pública, políticas para as quais não contamos com dados tão precisos. A nova classe média brasileira (cuja renda domiciliar per capita varia entre R$ 291 e R$ 1019) está distribuída do 5º ao 16º vintis de renda. Como mostra o gráfico, mais de 20% destes domicílios ainda carecem de acesso à água e serviços de coleta de lixo e mais de 50% deles ainda não contam com coleta de esgoto. Esta carência é ainda mais acentuada para os domicílios dos 20% mais pobres. O "pulo do gato" é saber quando a simplificação dos conceitos ilumina e quando ela distorce nossa compreensão dos fenômenos sociais. As demandas da nova classe média brasileira não são apenas aquelas associadas à ampliação do horizonte de expectativas, derivadas do crescimento da renda e da escolaridade, que seriam típicas da conversão para um país de classe média, o que parece ter ocorrido nas manifestações de junho de 2013. Embora isto também esteja ocorrendo, na verdade, parte da velha dívida social com os mais pobres ainda não foi paga... e parte desta dívida chega até o 16º vintil de renda. Na campanha estará em jogo a disposição de se encarar o tema A distorção começa quando incluímos no mesmo conceito fenômenos muito diferentes. Como a renda no Brasil é muito concentrada, a nova classe média brasileira compreende 70% dos domicílios. Definida a partir da renda, é muito heterogênea para servir de base para inferências sobre suas preferências e comportamentos. Para equacionar nossa dívida social, a eleição para presidente é, sem dúvida, a mais importante. No Brasil, pobreza de renda e carência de serviços têm expressão territorial. Estão concentradas nos municípios e regiões com maior número de pobres, que também carecem de capacidade para investir em infraestrutura básica. Nestes, a decisão da oferta de serviços depende dos incentivos e da supervisão do governo federal. Está colocado para 2014 saber qual dos candidatos tem credenciais para convencer os eleitores do andar de baixo, bem como aqueles que têm razões morais para ver a desigualdade como um problema, de sua disposição efetiva para equacionar esta dívida. Marta Arretche é professora livre-docente de ciência política na USP, diretora do Centro de Estudos da Metrópole e colunista convidada do "Valor". Cristian Klein volta a escrever em abril E-mail: [email protected] http://www.valor.com.br/politica/3421200/classe-media-desigualdade-eeleicoes#ixzz2sXvNgVWA