REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA JUSTIÇA: A EXPECTATIVA DO CIDADÃO E A RESPOSTA DO SISTEMA 1. A expressão “representações sociais da justiça”, sendo um modo de transmitir ou de formular uma síntese compreensiva das percepções externas sobre a Justiça contém, contudo, uma sublinhada amplitude. Representações como sentimentos e percepções da justiça como modo de realização de um ideal, como ideologia, como forma de concretização de um sistema de valores, mas também como exercício e acção e manifestação exterior e funcionalmente visível, apreensível e cénica do exercício ou da acção. Na expressão vai contida a «compreensão simultaneamente estática e dinâmica» - «justiça observada», por um lado, mas também «justiça recriada»1. As representações da justiça são polissémicas, ou mesmo exasperadamente polissémicas. E por isso, plurais. Mas, sobretudo, revelam e exteriorizam os olhares diversos e complexos sobre a justiça, confundidos os valores, os ideais, o sistema e os actores. A justiça, na sua exposição, aparência e expressão externa mais visível, identificada com o «mundo dos tribunais», sempre seduziu quer as expressões artísticas diversas, quer o universo quotidiano das referências e das apreensões do sentimento do homem comum. 1 Cfr. CUNHA RODRIGUES, “Representações da Justiça em Miguel Torga”, 1994, p. 4. 1 Na literatura, por exemplo, só para deixar muito breves referências à literatura nacional, a justiça tem sido objecto de “representações” quer como juízo de cultura, quer, muito especialmente, em feição incidental, de resvalamento crítico, por vezes em forte densidade caricatural. Nas representações, o erudito mescla-se e veste-se pelo olhar popular, e deixa a justiça muitas vezes em plano disfuncional pela negatividade ficcional dos seus actores. Desde o «juiz da Beira» de Gil Vicente, e as suas «sentenças disformes», à intensidade da desconfiança em Aquilino no “Malhadinhas” e em “Quando os lobos uivam”, passando por Camilo ou pelas dimensões caricaturais em Eça – o desembargador Amado no “Conde de Abranhos”; a personagem intensamente exausta de “Em nome da terra” de Vergílio, ou a força e a permanência, ou mesmo a recorrência do sentimento e do valor da justiça em toda a obra de Torga2, as representações da justiça despertaram sempre o interesse da literatura. Mas também nos sentimentos populares a justiça é ideia sempre muito presente, centradas as perspectivas especialmente nos valores comuns – a rectidão, a equidade, enfim, no sentimento difuso de justiça de atribuição, de adjudicação, de guarda e reconforto dos simples como instância de retemperação. Na literatura popular oral podemos encontrar também algumas manifestações. Na Beira interior transmitem-se de avós a netos os contos do “juiz de Fajão”, das suas sentenças, e da sua chamada à 2 Idem, p. 16. 2 relação do Porto para se explicar, em que se encontram, em registo de cultura popular, refracções de conteúdos que ainda hoje poderemos considerar actuais: a volatilidade e as dificuldades da prova pessoal; o princípio da justiça; a fundamentação e a reapreciação das decisões3. Nas percepções da cultura popular, pode dizer-se que a justiça é vista e sentida pelo lado da injustiça, pois só pela injustiça se pode compreender o valor da justiça4. Na expressão de CUNHA RODRIGUES, a justiça é, nesta perspectiva, «um ponto privilegiado de observação da ordem e da desordem – dois pólos e dois limites da estruturação da vida em comunidade; tacteia a intimidade da pessoa e encerra os acontecimentos reproduzindo o real num único tempo e espaço dramáticos». Mas também a justiça «dá a cada pessoa a oportunidade de ser figurante»; «expõe e amplifica os factos, diminuindo a distância de observação»; «envolve numa mesma acção a vida, o conhecimento e o poder» e «funciona entre as margens estreitas da razão e do arbítrio»5. 2. As representações sociais da justiça têm sido, na história, marcadas e mutuamente influenciadas pelas representações simbólicas. As formas simbólicas apresentam-se como «verdadeiras 3 No julgamento de um crime de homicídio, o juiz de Fajão, sabendo de ciência que o acusado não era culpado, foi confrontado com prova testemunhal intensa no sentido de que o autor tinha sido o acusado. Então proferiu a seguinte sentença: «Julgo que bem julgo, posto que bem mal julgado está! Vi que não vi; morra que não morra; dêem um nó na corda que não corra». Cfr. Pe. A. Nunes Pereira, O juiz de Fajão na Relação do Porto, “Os Contos de Fajão”, ed. do Museu e Laboratório Antropológico da Universidade de Coimbra, p. 11. 4 YVES-HENRI BONELLO, “L’injustice”, ed, Galilée, p. 15 ss. 5 Cfr. CUNHA RODRIGUES, loc. cit., p. 16. 3 categorias sociais», em «interacção entre pensamento e representação simbólica» e em consenso social quanto ao significado do símbolo6. Na classificação simbólica, a justiça e os valores da justiça apresentam-se sob as formas de alegoria, metáfora e arquétipo7. As representações simbólicas, historicamente contextualizadas, encerram uma analogia de linguagem e de significação do pensamento, em que se misturam cultura erudita e cultura popular. Enquanto arquétipo, a representação da justiça é a declaração do justo como virtude; as alegorias, sobretudo a figura feminina da justiça, com a balança, a espada e os olhos vendados, contêm, a par da representação estética, uma gramática de linguagem que transmite a essência da função da justiça nas representações histórico-culturais: a equidade, a igualdade e a execução; ou na representação alegórica da justiça na figuração do bom e do mau juiz de Monsaraz, das qualidades do juiz como identificação da justiça em acção, numa «visão simultaneamente ingénua e realista» e de «continuidade simbólica da justiça»8. Não obstante o descrédito moderno e pós-moderno dos símbolos, consequência de manifestações de sentimentos realistas quanto aos limites e imperfeições da justiça dos homens, as representações simbólicas da justiça, porventura sem a exaltação das referências de outros tempos, permanecem como narrativa de valores sentidos como federadores sociais e como metáforas da equidade e da igualdade. 6 ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM, “Judex Perfectus, Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820”, p. 795-796. 7 Cfr, idem, p. 797. 8 Cfr., idem, p. 800. 4 Na cultura popular, pode dizer-se que a representação da justiça encerra, porventura e ainda, valores comuns e identificações comunitárias de agregação e de virtudes que ligam e tecem a multiplicidade de relações: a justiça foi, e continuará a ser o cimento da confiança do viver social. 3. Não existem, é certo, investigações empíricas, com campo de recolha e análise que permitam, neste tempo de urgência, revelar e medir, com o rigor aproximado das ciências sociais, o sentido das representações sobre a justiça. Algumas sondagens e pequenos estudos de opinião, com fragmentaridade e sem critérios suficientemente estudados, não permitem identificar percepções assentes. Pressente-se uma mudança, mais ou menos intensa, mas não suficientemente apreensível para poder ser considerada e revelar (ou revelar-nos) uma mudança efectiva e real de paradigma. Observa-se, no entanto, um desencontro de culturas na expressão externa e na leitura das representações. De um lado, uma exposição exasperada (e quando não contraditória) de representações da justiça disfuncionais, que tomam conta da comunicação e da opinião publicada e do espaço público que ocupam – que tem sido a quase totalidade do espaço público. Mas, de outro, e contraditoriamente com o real construído, assiste-se a um recurso acrescido à justiça, exigindo das instituições respostas a problemas novos ou a novas formas de problemas velhos, para reconforto e amparo nas incertezas e fragilidades dos indivíduos 5 isolados em sociedades complexas que se transformaram radicalmente nas últimas duas décadas. Por isso, hoje, a justiça confronta-se com representações sociais que parecem revelar uma alteração de paradigma. A sociedade fragmentada produz novos conflitos; o indivíduo, segregado e atomizado pelo desmoronar das redes de segurança e resguardo que caracterizaram os modelos mais recentes, encontra na Justiça o lugar de expressão de conflitos e de interesses divergentes na sociedade, de reclamação de direitos, e o ponto de equilíbrio entre o Estado e o cidadão; um espaço dinâmico e de fronteiras amplas onde se discutem desde os pequenos conflitos do quotidiano até à protecção dos direitos fundamentais. A fragilidade dos indivíduos isolados numa sociedade em acelerada mudança tem determinado uma procura acrescida de justiça como refúgio no isolamento e na perda de referências. Mas também a Justiça tem sido transformada em instância de regulação política. A fractura e a incerteza determinaram a modificação de sociedades sedimentadas em estratos para sociedades efervescentes e de hiper-direito, exponenciando a complexidade das regras e criando o que se designa mesmo de «horror jurídico»9. O regresso do direito e, a par, do judicial transformaram as instituições judiciárias em actores de primeiro plano de regulação política. 4. Enquanto modelo de análise, as representações sociais da justiça que, particularmente nos anos mais recentes tomaram o espaço, 9 VALÉRY TURCEY, “L’horreur juridique, Vers une société de procès”, ed. Plon. 6 são essencialmente comunicacionais e de opinião. E pela força da expressão e intensidade dos meios condicionam a agenda e expandem influência; o registo que fica é o registo que se comunica e que conforma outras representações da justiça. Notícias, em recomposição factual de fragmentos que lhes retira rigor e sentido e que não permitem ler o conjunto, artigos de “fazedores de opinião”, discussões em espécie de democracia em directo em formato popular dos vários fóruns que preenchem horas de emissão na rádio e na televisão, constituem elementos de recomposição, e muito provavelmente de reordenamento das representações. Há, para tanto, certamente explicações. Razões dos tempos e das circunstâncias, mas também uma razão política (de policy, e não de politics) que se encontra nas novas exigências e em outras formas ou modos de acção e de funcionamento da democracia. As complexas sociedades da contemporaneidade transformaram-se em sociedades de desconfiança. A confiança como «instituição invisível» erodiu-se, e a legitimidade e a confiança só excepcionalmente e por breves tempos se encontram acidentalmente confundidas; mesmo quando se revela nos sentimentos e no discurso, o «estado de graça» é efémero. As sociedades de desconfiança, com entropias representativas, geram mecanismos de verificação: a democracia, sendo, hoje, em muito, democracia de opinião, é também democracia de fiscalização. As formas de desconfiança em relação às instituições e aos poderes assumem uma confrontação permanente, emergindo contra- 7 poderes ou poderes complementares, que se estruturam, informalmente, em modelos pluriformes já teorizados como “contrademocracia” (ROSANVALLON)10. Não como mecanismos a- democráticos ou anti-democráticos, mas enquanto formas inseridas numa dimensão maior e mais complexa de intervenção democrática, pondo à prova os poderes, e radicalizando e desenvolvendo a ideia de fiscalização ou vigilância. Os cidadãos procuram intervir como juízes. Juízes não em sentido judiciário, mas político, participando sob diversas formas no julgamento dos poderes, sobretudo pela mediação comunicacional (a televisão e a intensidade que permite tem sido exponencial), mas também sob formas mais ou menos organizadas de actividade militante – embora os media se assumam a um tempo como catalizadores e provocativos da exacerbação da ideia de fiscalização do povo-juiz. Nas manifestações dos «poderes complementares» emerge uma ideia de julgamento – julgamento dos poderes da sociedade, imediata e directamente, sem as mediações institucionais, por vezes em deriva de populismo como «patologia específica da contra-democracia»11. A justiça e as suas instituições, porventura em tempo mais tardio que outras instituições, encontram-se também no centro do julgamento numa contradição entre uma «atribuição ex ante de confiança» e um «exercício ex post de desconfiança»12. 10 PIERRE ROSANVALLON, “La contre-démocratie. La politique à l’age de la défiance”, ed. Seuil, 2006. 11 Cfr., idem, p. 269. 12 Cfr. idem, p. 205. 8 A propensão da opinião para alargar a sua jurisdição imediata e informal ao conjunto da vida pública, assume, no entanto, por regra, uma forma negativa de apropriação social dos poderes. A verificação e a fiscalização transmutam-se, não raras vezes, em pretensão de sobreposição de critérios e mesmo de decisão. Nas esferas de actividade das instituições de justiça, as manifestações de vigilância ou reacção dos meios não institucionais parecem produzir ou actuar em revolução conceptual: a justiça não é mais julgada pela aplicação da lei, mas apenas pelos resultados. Parece estabelecer-se a centralidade de uma espécie de “tribunal do povo”, em que se revelam todas as contradições da democracia de opinião e de fiscalização, inimiga das mediações institucionais. Em relação aos casos judiciais – específicos, fragmentários, de apelo moral ou sublinhados por coligações negativas – a exterioridade da vigilância caracteriza-se sobretudo por uma grande reactividade ao escândalo, uma sensibilidade exacerbada pelo sofrimento individual mais do que à transgressão moral, polarização na segurança, impaciência e urgência em saber e em denunciar, tudo acrescentado pela pressão dos medias13. Mas também, não raro, o que se revela parece ser uma aspiração, porventura sectorial ou mesmo organizada, de correcção social discreta da ordem normativa: pela via do julgamento das decisões, o que, na verdade, está presente é a pressão para correcção ou alterações normativas que se não obtêm pela força da intervenção política institucional. 13 Cfr., ANTOINE GARAPON e DENIS SALAS, “Les nouvelles sorcières de Salem; leçons d’Outreau”, ed. Seuil, p. 57. 9 E também a afirmação de uma concepção político-empírica do justo e do injusto, em acções de influência para tentar obter decisões específicas para casos considerados exemplares. Mas, na exteriorização das acusações populares no espaço público cedido para manifestação dos desconfortos mais ou menos construídos, surpreendem-se, por vezes, fórmulas que contêm alguma deriva demagógica de opiniões avulsas e impulsivas, marcadas por impaciências que longe de serem racionalmente fundamentadas, são, por vezes, muito dominadas pela obsessão de denúncia, numa espécie de versão moderna dos sicofantes da antiga Grécia14. 5. Vivemos, assim, tempos de passagem de democracias de confrontação e de representação para democracias de imputação, próprias das sociedades de risco e cada vez mais complexas. E se as instituições não podem ceder às exigências voláteis da mera sensibilidade da época e à tirania da imagem, também não podem ficar indiferentes às leituras que a complexidade e as mutações sociais quotidianamente lhes impõem. Por debaixo da espuma dos dias, têm de saber identificar as expectativas dos cidadãos e encontrar os meios adequados de resposta. Está será a tarefa mais intensa que a contemporaneidade trouxe para a justiça, sobretudo pela fragmentação dos valores em esferas com linguagens próprias e que pretendem ser absolutos ou totalizantes. 14 Cfr. PIERRE ROSANVALLON, cit., p. 204. 10 Podemos observar, na nossa realidade, alguns exemplos recentes que deverão ser vistos, interpretados e lidos pelas grelhas metodológicas que sumariamente ficaram enunciadas. Em artigos de opinião publicados em jornais de referência, como é do léxico dizer, a justiça, em misto de desencanto e esperança, fica colocada no centro, mas encostada ao pelourinho. Por causa da justiça - escreve-se - «sempre ela», «ou da falta dela», uns tantos não aprenderam a ser honestos, afirmando-se mesmo que «se chegou onde se chegou, porque faltou a justiça». Por ser «lenta e desatenta». «Por não ter as leis que necessita». «Por ser burocrática e obsoleta»15. Mas de par com a afirmação de que «recorrer à justiça é hoje sinal de impotência», conclui-se que «sem justiça não há volta a dar»16. No tratamento mediático de casos de justiça recentes no nosso espaço, têm-se revelado, exasperadamente, fórmulas comunicacionais de desconfiança, uma patologia de confrontação sem o rigor exigível, e manifestações de sobreposição de papéis. O “julgamento do povo” efectuado na arena mediática, sem factos e com impressões, parcelar, redutor, imediato, sem contraditório, emocional, sobrepõe-se no tempo e aos tempos do processo, num modelo antagónico de expressão do número e da razão. Pela natureza exemplar que revelam, refiram-se alguns casos de decisões do Supremo Tribunal que foram objecto de intenso tratamento mediático, sem a consideração total dos pressupostos, do 15 16 ANTÓNIO BARRETO, jornal Público, de 28 de Janeiro de 2007. ANTÓNIO BARRETO, jornal Público, de 18 de Fevereiro de 2007. 11 conteúdo e do sentido das decisões, fazendo passar para a opinião por vezes exactamente o contrário do que foi decidido; ou a desproporção comunicacional em redor de uma questão relativa à guarda de uma menor, com projecções mediáticas de referência e vocabulário de crise, com parcialidade instrumental, e ruído de confronto antiinstitucional. Pelo modo como os casos foram apresentados, não saiu reforçada a democracia, nem foram usados responsavelmente mecanismos, formas e critérios não institucionais; o rigor da intervenção foi tomado pela deriva populista. E, contudo, as instituições de justiça têm de saber compreender as formas de verificação, interpretar os sinais de desconfiança democrática, desconstruir os desvios de racionalidade e apreender as expectativas dos cidadãos. Tendo consciência das dificuldades de explicação entre os agentes da justiça e os cidadãos, e do risco inerente de as explicações serem consideradas como cortinas de fumo de feição corporativa e desqualificadas com referências populistas. 6. A acrescida complexidade das sociedades contemporâneas, a diversificação das funções do Estado e a emergência de novas e complexas regulações, bem como a afirmação cada vez mais intensa do indivíduo e dos seus direitos na centralidade política, alteraram decisivamente as expectativas. A Justiça autonomizou-se progressivamente, sobretudo a partir dos anos 80 do séc. XX, assumindo-se como poder modelador da democracia, não por uma 12 transferência de soberania para o juiz, mas antes por uma transformação do modelo da democracia, acrescentando dimensão jurídica às formas de exercício da democracia política. O juiz tornou-se, malgré lui, actor político central e verdadeiro garante das liberdades fundamentais, referente de forte densidade e consciência moral da vida social, política e económica – ou, em expressão marcada, «guardador das promessas» republicanas17. Na identificação dos modelos de desconfiança, a maior expectativa dos cidadãos remete-se à urgência das respostas – a chamada e usada lentidão da justiça constitui o primeiro dos motivos de denúncia. É nesta dimensão de celeridade e de resposta pronta que se situam igualmente as criticas endereçadas sobre as consequências económicas e o efeito, que se afirma negativo, do funcionamento da justiça na economia. Em outra perspectiva, não de urgência, mas de matéria, as expectativas são extensas, esperando-se da justiça respostas para as mais diversas questões, com forte procura e exigências sociais, e como garante último da legalidade e da democracia. As expectativas em relação à justiça significam exigências de democracia jurídica. As questões de segurança – a começar pela segurança física – conformam expectativas em que o cidadão se acolhe nas garantias que o sistema de justiça lhe deve oferecer: a perseguição penal dos factores mais ou menos difusos produtores de insegurança. 17 ANTOINE GARAPON, “Le Gardien des promesses, Justice et démocratie”, Ed. Odile Jacob, p. 24. 13 A intervenção do direito penal é, dir-se-ia, aqui emblemática. Pela força do arsenal cujo uso possibilita (a coacção e os meios de investigação; a privação de liberdade), e pela visibilidade e intensidade do espaço dramático em que decorre a acção no processo. A reposta que for percebida e interiorizada pelo cidadão pode aquietar o sentimento e transmitir confiança. Sendo – ou devendo ser – o direito penal o direito do senso comum, na protecção mais forte dos valores mais essenciais, o equilíbrio só poderá ser encontrado na conjugação entre a interpretação do sentido social dos valores e a proporcionalidade nos modelos humanizados e reequilibrados das reacções; aqui em resposta da justiça, mas também, e bem antes, do legislador. As emoções, os sentimentos e o círculo mais resguardado da personalidade têm de se revelar, por vezes, em ambiente de exposição da intimidade. Quer nas mediações possíveis, quer no sistema formal, o espaço de equidade, de atenção e compreensão, o tempo, a capacidade e a inteira disponibilidade para ouvir, podem responder às expectativas do cidadão que, em momento de fragilidade, se teve de acolher à arbitragem da justiça. Por todas estas exigências, a justiça deve encontrar as respostas que os instrumentos de intervenção possam proporcionar, no uso adequado e racional dos meios de que dispõe. Haverá, contudo, como base, que ensaiar a desconstrução de alguns mitos que a repetição foi criando, especialmente o mito ou a ideia da lentidão. 14 A primeira resposta tem, pois, que ver com os tempos da justiça, que constituem o ponto maior de denúncia critica. Tem sido esclarecido, com elementos objectivos e através da comparação de realidades, que existe, a este respeito, uma distância entre a realidade efectiva e o real construído. Basta verificar o que a este respeito consta, em termos reais e comparados, de Relatórios produzidos no âmbito do Conselho da Europa. Existindo, certamente, situações que revelam dificuldades, a justiça, em geral e enquanto sistema, responde em tempos que podem ser medidos aceitavelmente segundo critérios de razoabilidade. A justiça, no entanto, precisa de tempo. A rapidez não poderá ser a sua primeira prioridade, porque uma justiça urgente gera riscos de afectação de direitos. Relevante é a qualidade das decisões, que não poderá ser alcançada se a cada processo não for consagrado o tempo que exige; a celeridade não pode ser um valor em si, mas apenas um instrumento de eficácia, e a resposta da justiça tem de ser medida pelo equilíbrio entre a eficácia, a qualidade e a segurança das decisões. 7. Para responder às expectativas, a justiça, tem de ser eficiente e eficaz ou efectiva. A eficiência significa capacidade das instituições para responder às expectativas, avaliada numa perspectiva geral e qualitativa. A justiça será eficiente tanto quanto o conjunto do sistema e das instituições que o integram possam responder às exigências da sua 15 função e competências, e realizar as finalidades com qualidade e em tempo adequado e razoável. Eficiência, pois, como capacidade de organização para a melhor gestão dos recursos humanos e materiais, de modo a permitir a melhor razão entre custos e resultados; a eficiência tem muito a ver com a gestão e com a medida de comparação entre o esforço orçamental e os resultados esperados e efectivamente alcançados. Na eficácia ou efectividade – justiça efectiva – vai a verificação, ou melhor, a coincidência, entre os resultados obtidos e o grau de satisfação dos cidadãos que as instituições devem servir. Aqui, os critérios são qualitativos: as possibilidades de acesso, o equilíbrio, adequação e razoabilidade dos meios processuais disponíveis, a garantia da legalidade e a realização do princípio constitucional da igualdade, decisões apreensíveis e compreendidas, custos não excessivos. A eficácia significa que o sistema deverá saber identificar e responder às expectativas dos cidadãos; significa realização e acabamento das finalidades da justiça: decidir a divergência, apaziguar o conflito, reintegrar direitos afectados, permitir a resolução democrática da contestação sobre direitos no respeito pelas garantias do processo equitativo. A eficácia – e a justiça efectiva – supõe qualidade para acrescentar qualidade à democracia. Nas dimensões de eficiência e eficácia, que acrescentam qualidade e permitem dar substância à «instituição invisível» da 16 confiança, vai muito das respostas que a justiça pode dar para satisfazer as expectativas dos cidadãos. Voltemos às representações. Nas leituras da História e no sentido comum que poderemos interpretar para além do fumo das generalizações apressadas, a justiça permanece como o cimento da agregação nos laços que tece e que vinculam e que garantem a coesão da comunidade. É um ideal, mas tem de ser também concretização e acção. Mas, para tanto, as respostas têm que ser claras e percebidas, e supõem também capacidade de esclarecimento e informação e modelos de abordagem que permitam reduzir a complexidade. A justiça que se afaste da vida e da cultura perderá a noção da realidade transformando-se em mera ideologia18. Em perspectiva contígua, as respostas têm de corresponder e constituir um elemento de contribuição para funcionamento da economia em ambiente equilibrado. Mas, aqui, impõe-se que sejam esbatidos estereótipos, definindo os limites do contributo da justiça na definição de critérios de decisão económica e para a prestação da economia. É que a justiça só intervém se for solicitada, e apenas para a solução de alguma patologia na dimensão jurídica das relações económicas que reclame a definição de direitos ou, especialmente, a execução. A justiça não pode ser responsável, como por vezes se vê escrito, pelo difícil desempenho da economia. A acusação é muito redutora e, em rigor, centra-se apenas, ou querer-se-á referir apenas, às 18 Cfr. CUNHA RODRIGUES, “Comunicar e Julgar”, ed. Minerva, 1999, p. 84. 17 dificuldades do processo de execução e especialmente aos procedimentos de insolvência e de execução para pagamento. Mas, neste campo, reconhecendo dificuldades que não serão apenas conjunturais, será necessário esclarecer os cidadãos, por um lado, sobre a complexidade organizativa do sistema legal, que procura construir um outro modelo de procedimento de execução, e por outro, sobre a pressão acrescida resultante da ocupação do sistema por utilizadores de massa em busca de remédio marginal para consequências de políticas comerciais agressivas, com larga margem de risco de incumprimento de um vasto conjunto de obrigações de pequeno valor. Existe, neste campo, uma assinalável desproporção entre o desgaste de meios, a pressão sobre o sistema de justiça e os efeitos económicos. As respostas – ou o nível das respostas – têm de ser avaliadas com prudência, no plano da proporcionalidade entre processo, meios, recursos alocados e resultados obtidos. Mas onde o sentimento empírico do justo e da justiça condiciona mais intensamente as representações é em matéria de direito penal. Os valores, a força de intervenção, a lógica sacrificial, o crime como representação do mal e a dimensão real e simbólica da intervenção penal determinam a intensidade. As respostas da justiça, ou melhor, as leituras externas das respostas serão as mais complexas e as mais expostas a desvios de compreensão em virtude da intromissão acentuada de emoções. É em matéria penal que mais se acentuam os julgamentos externos em 18 sobreposição de papéis; os trial by newspaper e os julgamentos paralelos condicionam e podem fazer reordenar as representações. Neste tempo estará, aqui, porventura, a mais complexa exigência das respostas da justiça, apesar de não ser a matéria penal estatisticamente a mais relevante no conjunto da actividade. É necessário, nesta como em outras matérias, apreender o sentido comum de justiça, que tem de ser administrada no tempo e no espaço democrático e contraditório do processo, em resguardo do imediatismo das emoções e das certezas voláteis firmadas na urgência dos tempos que não podem ser os tempos da justiça. 8. É esta a leitura e a interpretação que faço das representações sociais da justiça, em época marcada por desconfianças institucionais, e das respostas que os cidadãos exigem. Não para formulação ou invenção de soluções pontuais, que seriam deslocadas, mas em análise, pessoal e certamente modesta, da complexidade da dimensão política dos actuais desafios cruzados que confrontam a justiça. Manifestando, porém, o sentimento de que a complexidade exige respostas adequadas que, no essencial, têm que interpretar os sinais da contemporaneidade, ser eficazes na razoabilidade do tempo de decisão, com intervenção, quando necessária, de medidas pragmáticas de gestão nos nódulos identificados de bloqueio, e apresentar-se com qualidade que possa constituir força de convencimento, e com coerência nas decisões para segurança e realização da igualdade. 19 E por fim, ou melhor, antes de tudo, com atenção e cuidado dos actores. Atenção e cuidado para transmitir a segurança e a certeza que resultam da previsibilidade das decisões em função de jurisprudência que se exige coerente; será muito relevante a função dos tribunais superiores, mas também de todos os outros, sem a tentação de rebeliões judiciais mascaradas de independência. Atenção e cuidado no estabelecimento e aceitação de «boas práticas» instrumentais, e em ouvir, em dar o tempo necessário, em compreender, e com a inteligência para perceber a importância dos “pequenos nadas” de todos os dias onde a confiança se começa a ganhar ou irremediavelmente se perde. (António Henriques Gaspar) 20