REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA JUSTIÇA:
A EXPECTATIVA DO CIDADÃO E A RESPOSTA DO SISTEMA
1. A expressão “representações sociais da justiça”, sendo um
modo de transmitir ou de formular uma síntese compreensiva das
percepções externas sobre a Justiça contém, contudo, uma sublinhada
amplitude.
Representações como sentimentos e percepções da justiça como
modo de realização de um ideal, como ideologia, como forma de
concretização de um sistema de valores, mas também como exercício
e acção e manifestação exterior e funcionalmente visível, apreensível
e cénica do exercício ou da acção.
Na expressão vai contida a «compreensão simultaneamente
estática e dinâmica» - «justiça observada», por um lado, mas também
«justiça recriada»1.
As representações da justiça são polissémicas, ou mesmo
exasperadamente polissémicas. E por isso, plurais. Mas, sobretudo,
revelam e exteriorizam os olhares diversos e complexos sobre a
justiça, confundidos os valores, os ideais, o sistema e os actores. A
justiça, na sua exposição, aparência e expressão externa mais visível,
identificada com o «mundo dos tribunais», sempre seduziu quer as
expressões artísticas diversas, quer o universo quotidiano das
referências e das apreensões do sentimento do homem comum.
1
Cfr. CUNHA RODRIGUES, “Representações da Justiça em Miguel Torga”, 1994, p. 4.
1
Na literatura, por exemplo, só para deixar muito breves
referências à literatura nacional, a justiça tem sido objecto de
“representações”
quer
como
juízo
de
cultura,
quer,
muito
especialmente, em feição incidental, de resvalamento crítico, por
vezes em forte densidade caricatural.
Nas representações, o erudito mescla-se e veste-se pelo olhar
popular, e deixa a justiça muitas vezes em plano disfuncional pela
negatividade ficcional dos seus actores.
Desde o «juiz da Beira» de Gil Vicente, e as suas «sentenças
disformes», à intensidade da desconfiança em Aquilino no
“Malhadinhas” e em “Quando os lobos uivam”, passando por Camilo
ou pelas dimensões caricaturais em Eça – o desembargador Amado no
“Conde de Abranhos”; a personagem intensamente exausta de “Em
nome da terra” de Vergílio, ou a força e a permanência, ou mesmo a
recorrência do sentimento e do valor da justiça em toda a obra de
Torga2, as representações da justiça despertaram sempre o interesse da
literatura.
Mas também nos sentimentos populares a justiça é ideia sempre
muito presente, centradas as perspectivas especialmente nos valores
comuns – a rectidão, a equidade, enfim, no sentimento difuso de
justiça de atribuição, de adjudicação, de guarda e reconforto dos
simples como instância de retemperação.
Na literatura popular oral podemos encontrar também algumas
manifestações. Na Beira interior transmitem-se de avós a netos os
contos do “juiz de Fajão”, das suas sentenças, e da sua chamada à
2
Idem, p. 16.
2
relação do Porto para se explicar, em que se encontram, em registo de
cultura popular, refracções de conteúdos que ainda hoje poderemos
considerar actuais: a volatilidade e as dificuldades da prova pessoal; o
princípio da justiça; a fundamentação e a reapreciação das decisões3.
Nas percepções da cultura popular, pode dizer-se que a justiça é
vista e sentida pelo lado da injustiça, pois só pela injustiça se pode
compreender o valor da justiça4.
Na expressão de CUNHA RODRIGUES, a justiça é, nesta
perspectiva, «um ponto privilegiado de observação da ordem e da
desordem – dois pólos e dois limites da estruturação da vida em
comunidade; tacteia a intimidade da pessoa e encerra os
acontecimentos reproduzindo o real num único tempo e espaço
dramáticos».
Mas também a justiça «dá a cada pessoa a oportunidade de ser
figurante»; «expõe e amplifica os factos, diminuindo a distância de
observação»; «envolve numa mesma acção a vida, o conhecimento e o
poder» e «funciona entre as margens estreitas da razão e do arbítrio»5.
2. As representações sociais da justiça têm sido, na história,
marcadas
e
mutuamente
influenciadas
pelas
representações
simbólicas. As formas simbólicas apresentam-se como «verdadeiras
3
No julgamento de um crime de homicídio, o juiz de Fajão, sabendo de ciência que o acusado não
era culpado, foi confrontado com prova testemunhal intensa no sentido de que o autor tinha sido o
acusado. Então proferiu a seguinte sentença: «Julgo que bem julgo, posto que bem mal julgado
está! Vi que não vi; morra que não morra; dêem um nó na corda que não corra». Cfr. Pe. A. Nunes
Pereira, O juiz de Fajão na Relação do Porto, “Os Contos de Fajão”, ed. do Museu e Laboratório
Antropológico da Universidade de Coimbra, p. 11.
4
YVES-HENRI BONELLO, “L’injustice”, ed, Galilée, p. 15 ss.
5
Cfr. CUNHA RODRIGUES, loc. cit., p. 16.
3
categorias sociais», em «interacção entre pensamento e representação
simbólica» e em consenso social quanto ao significado do símbolo6.
Na classificação simbólica, a justiça e os valores da justiça
apresentam-se sob as formas de alegoria, metáfora e arquétipo7. As
representações simbólicas, historicamente contextualizadas, encerram
uma analogia de linguagem e de significação do pensamento, em que
se misturam cultura erudita e cultura popular.
Enquanto arquétipo, a representação da justiça é a declaração do
justo como virtude; as alegorias, sobretudo a figura feminina da
justiça, com a balança, a espada e os olhos vendados, contêm, a par da
representação estética, uma gramática de linguagem que transmite a
essência da função da justiça nas representações histórico-culturais: a
equidade, a igualdade e a execução; ou na representação alegórica da
justiça na figuração do bom e do mau juiz de Monsaraz, das
qualidades do juiz como identificação da justiça em acção, numa
«visão simultaneamente ingénua e realista» e de «continuidade
simbólica da justiça»8.
Não obstante o descrédito moderno e pós-moderno dos
símbolos, consequência de manifestações de sentimentos realistas
quanto aos limites e imperfeições da justiça dos homens, as
representações simbólicas da justiça, porventura sem a exaltação das
referências de outros tempos, permanecem como narrativa de valores
sentidos como federadores sociais e como metáforas da equidade e da
igualdade.
6
ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM, “Judex Perfectus, Função Jurisdicional e Estatuto
Judicial em Portugal, 1640-1820”, p. 795-796.
7
Cfr, idem, p. 797.
8
Cfr., idem, p. 800.
4
Na cultura popular, pode dizer-se que a representação da justiça
encerra, porventura e ainda, valores comuns e identificações
comunitárias de agregação e de virtudes que ligam e tecem a
multiplicidade de relações: a justiça foi, e continuará a ser o cimento
da confiança do viver social.
3. Não existem, é certo, investigações empíricas, com campo de
recolha e análise que permitam, neste tempo de urgência, revelar e
medir, com o rigor aproximado das ciências sociais, o sentido das
representações sobre a justiça. Algumas sondagens e pequenos
estudos
de
opinião,
com
fragmentaridade
e
sem
critérios
suficientemente estudados, não permitem identificar percepções
assentes.
Pressente-se uma mudança, mais ou menos intensa, mas não
suficientemente apreensível para poder ser considerada e revelar (ou
revelar-nos) uma mudança efectiva e real de paradigma. Observa-se,
no entanto, um desencontro de culturas na expressão externa e na
leitura das representações.
De um lado, uma exposição exasperada (e quando não
contraditória) de representações da justiça disfuncionais, que tomam
conta da comunicação e da opinião publicada e do espaço público que
ocupam – que tem sido a quase totalidade do espaço público.
Mas, de outro, e contraditoriamente com o real construído,
assiste-se a um recurso acrescido à justiça, exigindo das instituições
respostas a problemas novos ou a novas formas de problemas velhos,
para reconforto e amparo nas incertezas e fragilidades dos indivíduos
5
isolados em sociedades complexas que se transformaram radicalmente
nas últimas duas décadas.
Por isso, hoje, a justiça confronta-se com representações sociais
que parecem revelar uma alteração de paradigma.
A sociedade fragmentada produz novos conflitos; o indivíduo,
segregado e atomizado pelo desmoronar das redes de segurança e
resguardo que caracterizaram os modelos mais recentes, encontra na
Justiça o lugar de expressão de conflitos e de interesses divergentes na
sociedade, de reclamação de direitos, e o ponto de equilíbrio entre o
Estado e o cidadão; um espaço dinâmico e de fronteiras amplas onde
se discutem desde os pequenos conflitos do quotidiano até à protecção
dos direitos fundamentais. A fragilidade dos indivíduos isolados numa
sociedade em acelerada mudança tem determinado uma procura
acrescida de justiça como refúgio no isolamento e na perda de
referências.
Mas também a Justiça tem sido transformada em instância de
regulação política. A fractura e a incerteza determinaram a
modificação de sociedades sedimentadas em estratos para sociedades
efervescentes e de hiper-direito, exponenciando a complexidade das
regras e criando o que se designa mesmo de «horror jurídico»9. O
regresso do direito e, a par, do judicial transformaram as instituições
judiciárias em actores de primeiro plano de regulação política.
4. Enquanto modelo de análise, as representações sociais da
justiça que, particularmente nos anos mais recentes tomaram o espaço,
9
VALÉRY TURCEY, “L’horreur juridique, Vers une société de procès”, ed. Plon.
6
são essencialmente comunicacionais e de opinião. E pela força da
expressão e intensidade dos meios condicionam a agenda e expandem
influência; o registo que fica é o registo que se comunica e que
conforma outras representações da justiça.
Notícias, em recomposição factual de fragmentos que lhes retira
rigor e sentido e que não permitem ler o conjunto, artigos de
“fazedores de opinião”, discussões em espécie de democracia em
directo em formato popular dos vários fóruns que preenchem horas de
emissão na rádio e na televisão, constituem elementos de
recomposição, e muito provavelmente de reordenamento das
representações.
Há, para tanto, certamente explicações. Razões dos tempos e
das circunstâncias, mas também uma razão política (de policy, e não
de politics) que se encontra nas novas exigências e em outras formas
ou modos de acção e de funcionamento da democracia.
As
complexas
sociedades
da
contemporaneidade
transformaram-se em sociedades de desconfiança. A confiança como
«instituição invisível» erodiu-se, e a legitimidade e a confiança só
excepcionalmente e por breves tempos se encontram acidentalmente
confundidas; mesmo quando se revela nos sentimentos e no discurso,
o «estado de graça» é efémero.
As sociedades de desconfiança, com entropias representativas,
geram mecanismos de verificação: a democracia, sendo, hoje, em
muito, democracia de opinião, é também democracia de fiscalização.
As formas de desconfiança em relação às instituições e aos
poderes assumem uma confrontação permanente, emergindo contra-
7
poderes
ou
poderes
complementares,
que
se
estruturam,
informalmente, em modelos pluriformes já teorizados como “contrademocracia”
(ROSANVALLON)10.
Não
como
mecanismos
a-
democráticos ou anti-democráticos, mas enquanto formas inseridas
numa dimensão maior e mais complexa de intervenção democrática,
pondo à prova os poderes, e radicalizando e desenvolvendo a ideia de
fiscalização ou vigilância.
Os cidadãos procuram intervir como juízes. Juízes não em
sentido judiciário, mas político, participando sob diversas formas no
julgamento dos poderes, sobretudo pela mediação comunicacional (a
televisão e a intensidade que permite tem sido exponencial), mas
também sob formas mais ou menos organizadas de actividade
militante – embora os media se assumam a um tempo como
catalizadores e provocativos da exacerbação da ideia de fiscalização
do povo-juiz.
Nas manifestações dos «poderes complementares» emerge uma
ideia de julgamento – julgamento dos poderes da sociedade, imediata
e directamente, sem as mediações institucionais, por vezes em deriva
de populismo como «patologia específica da contra-democracia»11.
A justiça e as suas instituições, porventura em tempo mais
tardio que outras instituições, encontram-se também no centro do
julgamento numa contradição entre uma «atribuição ex ante de
confiança» e um «exercício ex post de desconfiança»12.
10
PIERRE ROSANVALLON, “La contre-démocratie. La politique à l’age de la défiance”, ed.
Seuil, 2006.
11
Cfr., idem, p. 269.
12
Cfr. idem, p. 205.
8
A propensão da opinião para alargar a sua jurisdição imediata e
informal ao conjunto da vida pública, assume, no entanto, por regra,
uma forma negativa de apropriação social dos poderes. A verificação
e a fiscalização transmutam-se, não raras vezes, em pretensão de
sobreposição de critérios e mesmo de decisão.
Nas esferas de actividade das instituições de justiça, as
manifestações de vigilância ou reacção dos meios não institucionais
parecem produzir ou actuar em revolução conceptual: a justiça não é
mais julgada pela aplicação da lei, mas apenas pelos resultados.
Parece estabelecer-se a centralidade de uma espécie de “tribunal
do povo”, em que se revelam todas as contradições da democracia de
opinião e de fiscalização, inimiga das mediações institucionais. Em
relação aos casos judiciais – específicos, fragmentários, de apelo
moral ou sublinhados por coligações negativas – a exterioridade da
vigilância caracteriza-se sobretudo por uma grande reactividade ao
escândalo, uma sensibilidade exacerbada pelo sofrimento individual
mais do que à transgressão moral, polarização na segurança,
impaciência e urgência em saber e em denunciar, tudo acrescentado
pela pressão dos medias13.
Mas também, não raro, o que se revela parece ser uma
aspiração, porventura sectorial ou mesmo organizada, de correcção
social discreta da ordem normativa: pela via do julgamento das
decisões, o que, na verdade, está presente é a pressão para correcção
ou alterações normativas que se não obtêm pela força da intervenção
política institucional.
13
Cfr., ANTOINE GARAPON e DENIS SALAS, “Les nouvelles sorcières de Salem; leçons
d’Outreau”, ed. Seuil, p. 57.
9
E também a afirmação de uma concepção político-empírica do
justo e do injusto, em acções de influência para tentar obter decisões
específicas para casos considerados exemplares.
Mas, na exteriorização das acusações populares no espaço
público cedido para manifestação dos desconfortos mais ou menos
construídos, surpreendem-se, por vezes, fórmulas que contêm alguma
deriva demagógica de opiniões avulsas e impulsivas, marcadas por
impaciências que longe de serem racionalmente fundamentadas, são,
por vezes, muito dominadas pela obsessão de denúncia, numa espécie
de versão moderna dos sicofantes da antiga Grécia14.
5. Vivemos, assim, tempos de passagem de democracias de
confrontação e de representação para democracias de imputação,
próprias das sociedades de risco e cada vez mais complexas.
E se as instituições não podem ceder às exigências voláteis da
mera sensibilidade da época e à tirania da imagem, também não
podem ficar indiferentes às leituras que a complexidade e as mutações
sociais quotidianamente lhes impõem.
Por debaixo da espuma dos dias, têm de saber identificar as
expectativas dos cidadãos e encontrar os meios adequados de resposta.
Está será a tarefa mais intensa que a contemporaneidade trouxe
para a justiça, sobretudo pela fragmentação dos valores em esferas
com linguagens próprias e que pretendem ser absolutos ou
totalizantes.
14
Cfr. PIERRE ROSANVALLON, cit., p. 204.
10
Podemos observar, na nossa realidade, alguns exemplos
recentes que deverão ser vistos, interpretados e lidos pelas grelhas
metodológicas que sumariamente ficaram enunciadas.
Em artigos de opinião publicados em jornais de referência,
como é do léxico dizer, a justiça, em misto de desencanto e esperança,
fica colocada no centro, mas encostada ao pelourinho.
Por causa da justiça - escreve-se - «sempre ela», «ou da falta
dela», uns tantos não aprenderam a ser honestos, afirmando-se mesmo
que «se chegou onde se chegou, porque faltou a justiça». Por ser
«lenta e desatenta». «Por não ter as leis que necessita». «Por ser
burocrática e obsoleta»15.
Mas de par com a afirmação de que «recorrer à justiça é hoje
sinal de impotência», conclui-se que «sem justiça não há volta a
dar»16.
No tratamento mediático de casos de justiça recentes no nosso
espaço, têm-se revelado, exasperadamente, fórmulas comunicacionais
de desconfiança, uma patologia de confrontação sem o rigor exigível,
e manifestações de sobreposição de papéis. O “julgamento do povo”
efectuado na arena mediática, sem factos e com impressões, parcelar,
redutor, imediato, sem contraditório, emocional, sobrepõe-se no
tempo e aos tempos do processo, num modelo antagónico de
expressão do número e da razão.
Pela natureza exemplar que revelam, refiram-se alguns casos de
decisões do Supremo Tribunal que foram objecto de intenso
tratamento mediático, sem a consideração total dos pressupostos, do
15
16
ANTÓNIO BARRETO, jornal Público, de 28 de Janeiro de 2007.
ANTÓNIO BARRETO, jornal Público, de 18 de Fevereiro de 2007.
11
conteúdo e do sentido das decisões, fazendo passar para a opinião por
vezes exactamente o contrário do que foi decidido; ou a desproporção
comunicacional em redor de uma questão relativa à guarda de uma
menor, com projecções mediáticas de referência e vocabulário de
crise, com parcialidade instrumental, e ruído de confronto antiinstitucional.
Pelo modo como os casos foram apresentados, não saiu
reforçada a democracia, nem foram usados responsavelmente
mecanismos, formas e critérios não institucionais; o rigor da
intervenção foi tomado pela deriva populista.
E, contudo, as instituições de justiça têm de saber compreender
as formas de verificação, interpretar os sinais de desconfiança
democrática, desconstruir os desvios de racionalidade e apreender as
expectativas dos cidadãos.
Tendo consciência das dificuldades de explicação entre os
agentes da justiça e os cidadãos, e do risco inerente de as explicações
serem consideradas como cortinas de fumo de feição corporativa e
desqualificadas com referências populistas.
6. A acrescida complexidade das sociedades contemporâneas, a
diversificação das funções do Estado e a emergência de novas e
complexas regulações, bem como a afirmação cada vez mais intensa
do indivíduo e dos seus direitos na centralidade política, alteraram
decisivamente
as
expectativas.
A
Justiça
autonomizou-se
progressivamente, sobretudo a partir dos anos 80 do séc. XX,
assumindo-se como poder modelador da democracia, não por uma
12
transferência de soberania para o juiz, mas antes por uma
transformação do modelo da democracia, acrescentando dimensão
jurídica às formas de exercício da democracia política.
O juiz tornou-se, malgré lui, actor político central e verdadeiro
garante das liberdades fundamentais, referente de forte densidade e
consciência moral da vida social, política e económica – ou, em
expressão marcada, «guardador das promessas» republicanas17.
Na identificação dos modelos de desconfiança, a maior
expectativa dos cidadãos remete-se à urgência das respostas – a
chamada e usada lentidão da justiça constitui o primeiro dos motivos
de denúncia.
É nesta dimensão de celeridade e de resposta pronta que se
situam igualmente as criticas endereçadas sobre as consequências
económicas e o efeito, que se afirma negativo, do funcionamento da
justiça na economia.
Em outra perspectiva, não de urgência, mas de matéria, as
expectativas são extensas, esperando-se da justiça respostas para as
mais diversas questões, com forte procura e exigências sociais, e como
garante último da legalidade e da democracia. As expectativas em
relação à justiça significam exigências de democracia jurídica.
As questões de segurança – a começar pela segurança física –
conformam expectativas em que o cidadão se acolhe nas garantias que
o sistema de justiça lhe deve oferecer: a perseguição penal dos
factores mais ou menos difusos produtores de insegurança.
17
ANTOINE GARAPON, “Le Gardien des promesses, Justice et démocratie”, Ed. Odile Jacob,
p. 24.
13
A intervenção do direito penal é, dir-se-ia, aqui emblemática.
Pela força do arsenal cujo uso possibilita (a coacção e os meios de
investigação; a privação de liberdade), e pela visibilidade e
intensidade do espaço dramático em que decorre a acção no processo.
A reposta que for percebida e interiorizada pelo cidadão pode aquietar
o sentimento e transmitir confiança.
Sendo – ou devendo ser – o direito penal o direito do senso
comum, na protecção mais forte dos valores mais essenciais, o
equilíbrio só poderá ser encontrado na conjugação entre a
interpretação do sentido social dos valores e a proporcionalidade nos
modelos humanizados e reequilibrados das reacções; aqui em resposta
da justiça, mas também, e bem antes, do legislador.
As emoções, os sentimentos e o círculo mais resguardado da
personalidade têm de se revelar, por vezes, em ambiente de exposição
da intimidade. Quer nas mediações possíveis, quer no sistema formal,
o espaço de equidade, de atenção e compreensão, o tempo, a
capacidade e a inteira disponibilidade para ouvir, podem responder às
expectativas do cidadão que, em momento de fragilidade, se teve de
acolher à arbitragem da justiça.
Por todas estas exigências, a justiça deve encontrar as respostas
que os instrumentos de intervenção possam proporcionar, no uso
adequado e racional dos meios de que dispõe.
Haverá, contudo, como base, que ensaiar a desconstrução de
alguns mitos que a repetição foi criando, especialmente o mito ou a
ideia da lentidão.
14
A primeira resposta tem, pois, que ver com os tempos da
justiça, que constituem o ponto maior de denúncia critica.
Tem sido esclarecido, com elementos objectivos e através da
comparação de realidades, que existe, a este respeito, uma distância
entre a realidade efectiva e o real construído. Basta verificar o que a
este respeito consta, em termos reais e comparados, de Relatórios
produzidos no âmbito do Conselho da Europa.
Existindo, certamente, situações que revelam dificuldades, a
justiça, em geral e enquanto sistema, responde em tempos que podem
ser medidos aceitavelmente segundo critérios de razoabilidade.
A justiça, no entanto, precisa de tempo. A rapidez não poderá
ser a sua primeira prioridade, porque uma justiça urgente gera riscos
de afectação de direitos.
Relevante é a qualidade das decisões, que não poderá ser
alcançada se a cada processo não for consagrado o tempo que exige; a
celeridade não pode ser um valor em si, mas apenas um instrumento
de eficácia, e a resposta da justiça tem de ser medida pelo equilíbrio
entre a eficácia, a qualidade e a segurança das decisões.
7. Para responder às expectativas, a justiça, tem de ser eficiente
e eficaz ou efectiva.
A eficiência significa capacidade das instituições para responder
às expectativas, avaliada numa perspectiva geral e qualitativa.
A justiça será eficiente tanto quanto o conjunto do sistema e das
instituições que o integram possam responder às exigências da sua
15
função e competências, e realizar as finalidades com qualidade e em
tempo adequado e razoável.
Eficiência, pois, como capacidade de organização para a melhor
gestão dos recursos humanos e materiais, de modo a permitir a melhor
razão entre custos e resultados; a eficiência tem muito a ver com a
gestão e com a medida de comparação entre o esforço orçamental e os
resultados esperados e efectivamente alcançados.
Na eficácia ou efectividade – justiça efectiva – vai a verificação,
ou melhor, a coincidência, entre os resultados obtidos e o grau de
satisfação dos cidadãos que as instituições devem servir.
Aqui, os critérios são qualitativos: as possibilidades de acesso, o
equilíbrio, adequação e razoabilidade dos meios processuais
disponíveis, a garantia da legalidade e a realização do princípio
constitucional da igualdade, decisões apreensíveis e compreendidas,
custos não excessivos.
A eficácia significa que o sistema deverá saber identificar e
responder às expectativas dos cidadãos; significa realização e
acabamento das finalidades da justiça: decidir a divergência,
apaziguar o conflito, reintegrar direitos afectados, permitir a resolução
democrática da contestação sobre direitos no respeito pelas garantias
do processo equitativo.
A eficácia – e a justiça efectiva – supõe qualidade para
acrescentar qualidade à democracia.
Nas dimensões de eficiência e eficácia, que acrescentam
qualidade e permitem dar substância à «instituição invisível» da
16
confiança, vai muito das respostas que a justiça pode dar para
satisfazer as expectativas dos cidadãos.
Voltemos às representações. Nas leituras da História e no
sentido comum que poderemos interpretar para além do fumo das
generalizações apressadas, a justiça permanece como o cimento da
agregação nos laços que tece e que vinculam e que garantem a coesão
da comunidade. É um ideal, mas tem de ser também concretização e
acção.
Mas, para tanto, as respostas têm que ser claras e percebidas, e
supõem também capacidade de esclarecimento e informação e
modelos de abordagem que permitam reduzir a complexidade. A
justiça que se afaste da vida e da cultura perderá a noção da realidade
transformando-se em mera ideologia18.
Em perspectiva contígua, as respostas têm de corresponder e
constituir um elemento de contribuição para funcionamento da
economia em ambiente equilibrado.
Mas, aqui, impõe-se que sejam esbatidos estereótipos, definindo
os limites do contributo da justiça na definição de critérios de decisão
económica e para a prestação da economia. É que a justiça só
intervém se for solicitada, e apenas para a solução de alguma
patologia na dimensão jurídica das relações económicas que reclame a
definição de direitos ou, especialmente, a execução.
A justiça não pode ser responsável, como por vezes se vê
escrito, pelo difícil desempenho da economia. A acusação é muito
redutora e, em rigor, centra-se apenas, ou querer-se-á referir apenas, às
18
Cfr. CUNHA RODRIGUES, “Comunicar e Julgar”, ed. Minerva, 1999, p. 84.
17
dificuldades do processo de execução e especialmente aos
procedimentos de insolvência e de execução para pagamento.
Mas, neste campo, reconhecendo dificuldades que não serão
apenas conjunturais, será necessário esclarecer os cidadãos, por um
lado, sobre a complexidade organizativa do sistema legal, que procura
construir um outro modelo de procedimento de execução, e por outro,
sobre a pressão acrescida resultante da ocupação do sistema por
utilizadores de massa em busca de remédio marginal para
consequências de políticas comerciais agressivas, com larga margem
de risco de incumprimento de um vasto conjunto de obrigações de
pequeno valor.
Existe, neste campo, uma assinalável desproporção entre o
desgaste de meios, a pressão sobre o sistema de justiça e os efeitos
económicos.
As respostas – ou o nível das respostas – têm de ser avaliadas
com prudência, no plano da proporcionalidade entre processo, meios,
recursos alocados e resultados obtidos.
Mas onde o sentimento empírico do justo e da justiça
condiciona mais intensamente as representações é em matéria de
direito penal. Os valores, a força de intervenção, a lógica sacrificial, o
crime como representação do mal e a dimensão real e simbólica da
intervenção penal determinam a intensidade.
As respostas da justiça, ou melhor, as leituras externas das
respostas serão as mais complexas e as mais expostas a desvios de
compreensão em virtude da intromissão acentuada de emoções. É em
matéria penal que mais se acentuam os julgamentos externos em
18
sobreposição de papéis; os trial by newspaper e os julgamentos
paralelos condicionam e podem fazer reordenar as representações.
Neste tempo estará, aqui, porventura, a mais complexa
exigência das respostas da justiça, apesar de não ser a matéria penal
estatisticamente a mais relevante no conjunto da actividade. É
necessário, nesta como em outras matérias, apreender o sentido
comum de justiça, que tem de ser administrada no tempo e no espaço
democrático e contraditório do processo, em resguardo do
imediatismo das emoções e das certezas voláteis firmadas na urgência
dos tempos que não podem ser os tempos da justiça.
8. É esta a leitura e a interpretação que faço das representações
sociais da justiça, em época marcada por desconfianças institucionais,
e das respostas que os cidadãos exigem.
Não para formulação ou invenção de soluções pontuais, que
seriam deslocadas, mas em análise, pessoal e certamente modesta, da
complexidade da dimensão política dos actuais desafios cruzados que
confrontam a justiça.
Manifestando, porém, o sentimento de que a complexidade
exige respostas adequadas que, no essencial, têm que interpretar os
sinais da contemporaneidade, ser eficazes na razoabilidade do tempo
de decisão, com intervenção, quando necessária, de medidas
pragmáticas de gestão nos nódulos identificados de bloqueio, e
apresentar-se
com qualidade que possa
constituir
força de
convencimento, e com coerência nas decisões para segurança e
realização da igualdade.
19
E por fim, ou melhor, antes de tudo, com atenção e cuidado dos
actores.
Atenção e cuidado para transmitir a segurança e a certeza que
resultam da previsibilidade das decisões em função de jurisprudência
que se exige coerente; será muito relevante a função dos tribunais
superiores, mas também de todos os outros, sem a tentação de
rebeliões judiciais mascaradas de independência.
Atenção e cuidado no estabelecimento e aceitação de «boas
práticas» instrumentais, e em ouvir, em dar o tempo necessário, em
compreender, e com a inteligência para perceber a importância dos
“pequenos nadas” de todos os dias onde a confiança se começa a
ganhar ou irremediavelmente se perde.
(António Henriques Gaspar)
20
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Vice-Presidente do STJ, Juiz Conselheiro Dr. Henriques Gaspar