ANPED-SUL SANTA MARIA - JUNHO /2006 PROPOSTA DE MESA REDONDA TEMA-TÍTULO: “A (re)constituição da posição de sujeito-professor no discurso pedagógico: efeitos de sentidos” Eixo-temático (1) : Currículo e Saberes Participantes: 1. Dra.Regina Maria Varini Mutti – PPGEDU/UFRGS (Coordenadora) Título: “ Deslocamentos da memória no discurso pedagógico” 2. Dra. Marleni Nascimento Matte – UFRGS Título: “O discurso pedagógico: novas práticas discursivas” 3. Dra. Dóris Maria Luzzardi Fiss – UERGS Título: “Identidades e processos: o sujeito-professor da rede pública estadual em análise” RESUMO Os trabalhos reunidos nesta mesa se propõem a discutir efeitos de sentidos sobre a produção de deslocamentos da posição de professor no discurso pedagógico, com variados enfoques. Integrando-se ao “Grupo de Pesquisas sobre Educação e Análise de Discurso – PPGEDU/UFRGS/CNPq”, as três pesquisas aqui apresentadas tomam como ponto de partida o referencial teórico-metodológico da Análise de Discurso na linha fundada por Michel Pêcheux , destacando-se aqui especialmente o diálogo com Bakhtin e H.Bhabha, tendo em vista a construção dos objetos de pesquisa no campo da educação. Buscam o estranhamento de sentidos naturalizados na linguagem, conduzindo as análises a partir de marcas lingüísticas, presentes no nível das formulações intradiscursivas do sujeito-professor, na busca de relações interdiscursivas, apontando à heterogeneidade do sujeito e do discurso. Concebem que os sentidos são produzidos pelos sujeitos sob condições sócio-históricas, mediante o uso da língua, sendo (re)formulados a cada enunciação, numa dinâmica de significação que se abre a novos sentidos, tendo em vista a estreita relação entre estrutura e acontecimento. O trabalho n.1 enfoca efeitos de sentidos sobre o modo como o sujeito-professor, com a sua interpretação, está constituindo seu lugar de dizer no discurso pedagógico que acolhe a informática, na escola, abrindo espaço, a partir de suas práticas de ensino, para a constituição de nova rede de memória pedagógica. O trabalho n.2, que também incide nas novas tecnologias educacionais, faz uma reflexão sobre os deslocamentos dos sujeitos no discurso pedagógico, referindo-se à prática de ensino mediada pelo ambiente telemático na universidade, caracterizada pela escrita interativa, de gênero conversacional, que propicia a polissemia. O trabalho n.3, discutindo os processos de subjetivação das professoras da rede pública estadual, aponta ao modo de constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos, como condições de produção de entre-lugares e de processos de autoria no discurso pedagógico, pelo sujeito-professor. Palavras-chave: Discurso pedagógico – sujeito-professor – efeitos de sentidos – práticas escolares IDENTIDADES E PROCESSOS: O SUJEITO-PROFESSOR DA REDE PÚBLICA ESTADUAL EM ANÁLISE Dóris Maria Luzzardi Fiss UERGS – Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Resumo: Este artigo discorre sobre pesquisa desenvolvida em dois momentos distintos (Mestrado e Doutorado) envolvendo professores da rede pública estadual. Tal estudo busca analisar os processos de constituição da autoria, suas relações com as práticas pedagógicas e com as formas de subjetivação assumidas pelos professores – o que remete a um modo de constituição heterogêneo e intervalar tanto dos sujeitos quanto dos sentidos dispersos no discurso pedagógico. Palavras-chave: discurso, sujeitos, sentidos, autoria, identidade Este trabalho decorre de uma pesquisa que foi desenvolvida em dois momentos: janeiro/1996-maio/1998 (Mestrado) e agosto/1999-agosto/2003 (Doutorado). Das análises do discurso pedagógico realizadas derivaram conclusões referentes aos modos de constituição dos processos de autoria e mal-estar. Identifiquei, então, sentidos instituintes e sentidos instituídos tanto de permanência quanto de ruptura do mal-estar, potencializando, pois, a abertura de espaços de produção de autoria. Do desdobramento do estudo desenvolvido sobre autoria e mal-estar decorreu uma investigação envolvendo o trabalho de evidenciação analítica da constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos. Por conseguinte, ficaram amarrados a este tema os objetivos da análise: perceber que efeitos de sentido sobre a condição do ser professor hoje e as diferentes relações estabelecidas nas práticas de que ele participa na escola e fora dela estão presentes nas formulações dos sujeitos; evidenciar deslocamentos do sujeito articulados à produção de efeitos de sentidos de autoria, vinculados às marcas lingüísticas destacadas. O campo discursivo de referência compreendeu o discurso pedagógico. O recorte sobre o qual se centra a análise, apresentada neste artigo, consiste em fala escolhida a partir de critérios que representam objetivos do estudo. Dentre o universo de falas obtidas durante o processo de pesquisa-assessoria desenvolvido na escola, selecionei aquela cuja marca lingüística evidenciada servisse de pista para mostrar o funcionamento do discurso em análise. A direção dada à análise levou à indicação de várias áreas nas quais se manifestam ressonâncias de efeitos de sentidos de autoria - o que reivindica a consideração da autoria numa constelação de lugares de sentidos atravessados pelo registro do social, enfocando os modos pelos quais a professora significa, do interior da prática pedagógica, elementos que são da ordem do cultural, do econômico, do social, de gênero, de geração, entre outros. Meus eixos de análise referem pontos de uma constelação que pode ser assim representada: Nem todos os enfoques serão evidenciados na análise desenvolvida neste trabalho, permanecendo a possibilidade de novos desdobramentos em análises futuras. Para a reflexão em torno da marca lingüística de referência destacada ao longo desta análise, realizo três movimentos inter-relacionados e fundamentais: ela é investigada a partir do que diz dela o dicionário, agregando-se a isto o seu estudo do ponto de vista sintático, e retomando-a do ponto de vista da análise de discurso de terceira época - o que introduz a análise do sentido-outro, do discurso-outro, dos interditos e não-ditos. Enfim, um tal processo termina por buscar dar visibilidade ao que se objetiva com a análise - a identificação de marcas de heterogeneidade, a partir das quais talvez sejam estabelecidas relações como as supostas na figura acima, tendo por finalidade a evidenciação de efeitos de sentidos articulados à condição do ser professor e às negociações que ele assume, de forma mais ou menos consciente. De certa maneira, este conjunto de fatores, que faz parte da construção de uma abordagem relacionada à noção de memória e acontecimento (Michel Pêcheux), de hibridismo cultural e entre-lugares (Homi K. Bhabha), de heterogeneidade constitutiva e mostrada (Jaqueline Authier-Revuz), de constelação de poderes sociais (Boaventura de Souza Santos) e de sujeito dividido (Jacques Lacan), conduz também a uma forma diferente de compreender autoria e de constituir os dispositivos teórico-analíticos condizentes a uma análise de discurso inscrita na 3a época de Michel Pêcheux. Assim sendo, há que se abrir mão das certezas relacionadas ao estabelecimento de sentidos fixos (e certos!). E abrir mão do suposto garantido é buscar contemplar, em referência ao professor, o que Santos (2000) designa como “constelação de poderes” que constituem esse sujeito: o poder cultural, o poder político, o poder econômico, o poder religioso, o poder profissional, o poder local, o poder nacional, o poder transnacional, entre outros. Além disso, abrir mão desse suposto garantido é transitar no limite e entre limites de sentidos - o que remete à problematização, no interior/exterior do campo de significações, de uma dialética constitutiva do sujeito-professor: a dialética da estabilização/desestabilização simbólica dos professores nos limites de diferentes paradigmas epistemológicos e político-pedagógicos. A esse respeito Pêcheux oferece contribuições interessantes, principalmente, em seus dois últimos trabalhos - O papel da memória e Discurso - estrutura ou acontecimento, produzidos em 1983. Lembra o autor que, em se tratando de estabilização/desestabilização dos sentidos, a memória tende a absorver o acontecimento (...), mas o acontecimento discursivo, provocando interrupção, pode desmanchar essa ‘regularização’ e produzir retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar o aparecimento de uma nova série que não estava constituída enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior (PÊCHEUX, 1999, p. 52). Incluir tais elementos à discussão não nega, de forma alguma, os efeitos da contradição na produção de efeitos de sentidos pelos sujeitos. Incluí-los parece possibilitar, por outro lado, um movimento menos contido em e por dualismos, permite talvez o trabalho no interior/exterior dessa “constelação de poderes” (SANTOS, 2000) que circulam socialmente. E tudo isto remete à crescente presença de pessoas, coisas, fenômenos e lugares que parecem se situar em entre-lugares ou, como pontua Bhabha (1998, p. 20) - em lugares deslizantes, em “momentos e processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”. Buscarei situar o entre-lugares através da análise de uma formulação em específico. Numa de nossas reuniões, determinada professora das séries finais do Ensino Fundamental declarou que: “Eu acho que nós ainda somos heroínas: com tudo isso aí, nós entramos em sala de aula, damos a nossa aula, fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Deixamos a coisa fluir”. A fim de efetuar o trabalho analítico-discursivo, destaquei uma marca lingüística de ênfase relativamente. Se buscarmos no dicionário (FERREIRA, 1986, 1999) elementos para o entendimento deste índice lexical, seremos surpreendidos pela ausência de qualquer referência a ele. É possível, no entanto, verificar o adjetivo de que deriva esta palavra - relativo. Em Ferreira (1999, p. 1736), encontra-se a seguinte definição: “Que indica relação; referente, respeitante, concernente. Casual, fortuito, acidental. Julgado por comparação; proporcional”. Já, na gramática, alguns outros caminhos são propostos. Barros (1985), sobre os advérbios em geral, afirma que são palavras adjuntas, modificadoras, porque podem ser determinantes do adjetivo, do advérbio, do pronome, do verbo e mesmo de orações e substantivos. Acrescenta, igualmente, que “só o contexto caracteriza e define o advérbio. Só o contexto indica-lhe as circunstâncias” (ibid., p. 203). No que concerne aos advérbios em -mente, sublinha que eles não apenas comunicam idéia de tempo, de modo, mas também de qualidade. “A anteposição comunica ao advérbio o valor adjetival que atinge o sujeito e a oração inteira” (ibid., p. 205). Assim sendo, no enunciado em questão: numa boa, relativamente boa, a anteposição do advérbio faz com que a ênfase decorra do sujeito e envolva toda a frase. Vale mencionar que relativamente é classificado, segundo os cânones gramaticais, como advérbio que indica uma circunstância de modo. Pensar, pois, no funcionamento sintático de um tal advérbio parece imprescindível agora. Tomaremos, para uma tal análise lingüística, a formulação fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Mateus el al (1989) observam que são elementos constituintes de uma frase o sintagma nominal e o sintagma verbal tomados enquanto núcleo da oração. Já, o sintagma adverbial não se constitui enquanto argumento do predicador, sendo composto por elementos adverbiais que modificam toda a proposição e não fazem parte do sintagma verbal. Luft (2000) confirma uma tal afirmação quando lembra que esses elementos com valor adverbial não são rigorosamente necessários à compreensão básica do enunciado, tendo a (sub)função de determinar, qualificar e modificar outros termos. Segundo Luft, tem-se a seguinte classificação: fazemos é verbo transitivo direto que constitui o núcleo do sintagma verbal; tudo o que temos que fazer é sintagma nominal que serve de complemento ao sintagma verbal e tem função de objeto direto; numa boa, relativamente boa é sintagma adverbial - sendo que relativamente é advérbio (adjunto adverbial) de modo. Na formulação acima, o sintagma nominal (ou tópico) referente ao sujeito da frase não está explicitamente representado, se constituindo elipticamente (Luft o representaria pela convenção: SS PrPess , na qual SS significa sintagma substantivo e PrPess significa Pronome Pessoal). Considerando a transitividade do verbo fazer, Luft acrescentaria que os elementos que a ele se seguem podem ser considerados complementos verbais na medida em que integram a significação transitiva do verbo - esse é o caso de tudo o que temos que fazer. Com relação, especificamente, ao relativamente, ele se apresenta como adjunto adverbial de modo expresso por advérbio de modo que se anexa, no caso, ao adjetivo boa, modificando tanto a este quanto à locução adverbial com um elemento adjetivador que o antecede - o numa boa. Dessa forma, fica evidenciada aqui a função de modificador e de intensificador do adjunto adverbial que, uma vez considerado o funcionamento sintático, influencia, no caso da formulação em estudo, tanto os elementos que imediatamente o antecedem quanto àquele que imediatamente o sucede. Pensando em termos de processo discursivo e efeitos de sentidos produzidos, é necessária a inserção de uma perspectiva interpretativa que permita considerar tais relações pelo nível do enunciado. Nesse sentido, chama a atenção o funcionamento opacificante que se deixa ver na fala da professora quando ela diz que: “Eu acho que nós ainda somos heroínas - com tudo isso aí, nós entramos em sala de aula, fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Deixamos a coisa fluir.” Em numa boa, relativamente boa, a partícula relativamente parece se constituir em marca da heterogeneidade mostrada. Impossibilitado de escapar da heterogeneidade constitutiva de todo discurso, o falante, ao explicitar a presença do outro através da marca da heterogeneidade mostrada relativamente, expressa no fundo seu desejo de dominância. Isto é, movido pela ilusão do centro, do domínio e da origem (os esquecimentos a que faz referência Pêcheux), o falante pontua o seu discurso numa tentativa de circunscrever e delimitar o um. Como lembra Authier-Revuz (1998a, p. 62), “preso na ‘impenetrável’ estranheza de sua própria palavra, o locutor, quando marca explicitamente pelas formas de distância - pontos de heterogeneidade em seu discurso -, delimita e circunscreve o outro e, fazendo isso, afirma que o outro não está em toda a parte”. Dito de outra forma, é possível intuir que as marcas explícitas de heterogeneidade, como é o caso de relativamente, respondem à ameaça que representa, para o desejo de domínio/centro/origem do sujeito falante, o fato de que não lhe é possível escapar de uma fala fundamentalmente heterogênea, portanto, habitada por processos de equivocação. Através da marca, é possível perceber que o sujeito realiza um significativo esforço visando ao fortalecimento do um - o que parece se evidenciar quando, através do relativamente, a enunciação desdobra-se como um comentário de si mesma: o sujeito não refere X (nós fazemos tudo numa boa), mas um X relativizado por uma espécie de comentário ou desdobramento metaenunciativo (nós fazemos tudo numa relativamente boa). Ocorre, pois, conforme Authier-Revuz (1998a, 1998b), a “opacificação ou reflexividade opacificante” de um fragmento auto-representado do dizer através do qual é possível indiciar a não-coincidência entre as palavras e as coisas. Isto é, a relativização construída pelo sujeito-professor termina por indicar o acionamento de uma operação de busca da palavra mais certa, mais adequada, àquela que talvez pudesse expressar o sentido verdadeiro conforme as expectativas ilusórias da professora, as expectativas de manutenção do um enquanto ilusão de univocidade e de que se pode ser autor/origem do que se diz. A autora agrega a esta discussão elementos trazidos por Jacques Lacan e que, de algum modo, se costuram à operação de opacificação reflexiva. A este respeito, convém referir Lacan quando discute a “castração simbólica”. O sujeito é dividido pela própria ordem da linguagem: Lacan, nesse sentido, parece remeter a uma compreensão segundo a qual a linguagem (da ordem do simbólico) é entendida como uma estrutura que preexiste a um sujeito que se torna sujeito exatamente por se assujeitar a ela e, também, como uma estrutura que, por incluir esse sujeito dividido, não só o constitui sob formas singulares como pode por ele ser singularmente rompida. Talvez seja possível admitir que ocorreu uma espécie de “rompimento” da linguagem pelo sujeito quando se deu a operação de inserção de um laço metaenunciativo (relativizando X) no dizer - momento em que a palavra parece repetir a palavra na busca de um conceito exato e simples. Mas o sentido se derrama, disseminado, porque a palavra não cessa de se escrever e constituir, por assim dizer, lugares de afloramento, no discurso, da não-coincidência entre as palavras e as coisas. Em uma tal situação discursiva, a marca lingüística relativamente termina por provocar uma volta completa (no sentido de que remete a um todo de dizeres e fazeres que é impossível precisar) e incompleta (no sentido de que o próprio sujeito é inconcluso) do enunciado sobre si mesmo e do sujeito sobre si mesmo. Mas, de que modos e por quais caminhos se constitui essa hibridização (para empregar uma palavra tomada por empréstimo de Bhabha)? Relativamente parece evidenciar um trabalho de diluição dos sentidos de mal-estar na própria constelação de lugares de sentidos, sugerindo sentidos vinculados a uma estabilização e desestabilização tão simbólica quanto imaginária do sujeito-professor nos e entre os limites de diferentes paradigmas epistemológicos que não se prendem somente à imagem do educador e aos conseqüentes vínculos político-pedagógicos que aí ele constitui, mas dizem, de uma forma mais ampla, do poder cultural, político, econômico, de classe social, religioso, de gênero, de geração, de raça e etnia que o atravessam e nos quais se dispersam os sujeitos e os sentidos. Sem dúvida, relativamente é marca de dispersões que funcionam na ambígüa/ambivalente constituição dos sujeitos enquanto sujeitos divididos já na função nomeadora da palavra que, ao mesmo tempo, refere um todo significativo coerente e se defronta com a impossibilidade de dizer tudo, ou melhor, de dizer o todo. Como lembra Lacan (1993, p. 11), “digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real”, isto é, toca no indizível, no incapturável. E se configura enquanto um entre-lugar de sujeitos e sentidos dispersos. Entre-lugar de movimentos sociais diferenciados (no caso, movimentos vinculados às políticas de educação que estão atravessados por movimentos de outras naturezas sociais) e sujeitos divididos que mostram formas ambivalentes e divididas de identificação. Nesse sentido, relativamente parece produzir a “diferença do mesmo” no discurso do mal-estar justamente por existir na realidade intervalar entre duas polaridades: os sentidos de ruptura e os sentidos de permanência do mal-estar - o que permite supor a ligação do discurso ao acontecimento e à conseqüente deriva dos sentidos pela produção de múltiplos gestos de interpretação, como pontua Pêcheux (1997b). Enfim, todos os elementos articulados me levam a pensar num sujeito que se constitui nas bordas de uma realidade intervalar, nas margens deslizantes do deslocamento cultural. Ademais, se buscarmos em Pêcheux (1999) a problematização sobre o “papel da memória”, será possível supor que existem situações em que a diversidade de memórias discursivas é o que predomina no discurso. A heterogeneidade funcionaria, pois, na relação entre essas memórias, aí se constituindo o sujeito - nos entre-lugares culturais, nas entre-memórias discursivas. Em tais espaços torna-se difícil definir uma dominância na direção do discurso, isto é, na memória discursiva. Como declara o próprio autor, uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (PÊCHEUX, 1999, p. 56). Idéia a que ele retorna, em outro texto, quando adverte que Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo o discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (...) de deslocamentos no seu espaço: não há identificação plenamente bem-sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido performático do termo (PÊCHEUX, 1997b, p. 56). Em outras palavras, se o sujeito insiste para manter(-se) (em) um espaço de regularidade dos sentidos, da mesma forma esse controle se rompe, tornando possível que esses espaços se movimentem sobre e entre si mesmos, na relação com os outros. Por conseguinte, é a partir dos encontros e desencontros entre memórias discursivas que os sentidos se trabalham, se movem, deslocam-se através dos seus conflitos de regularização. Processo que Pêcheux termina justificando quando situa a sua origem - o outro. Relativamente, dessa forma, não nos interessa pelos sentidos que parece evidenciar, mas sobretudo porque o trabalho de evidenciação de tais sentidos remete aos deslocamentos dos sujeitos por entre-lugares, para além do aqui e agora do sentido, quiçá costurando o efeito da ideologia e o efeito do inconsciente na constituição mesma do sujeito em falta-a-ser representada em um discurso de algum modo fora de controle. Assim, a imagem do sujeito-professor é que se faz representar num relativamente que refere descontinuidades e desigualdades desse mesmo sujeito pelo estabelecimento de relações intra e interdiscursivas com outros elementos do dizer. Em outras palavras, remete a memórias discursivas diversas, como a da política, a do gênero, a de classe, a da religião, entre outras. Assim sendo, se pensarmos sobre a professora e seus relativamente desdobrados por uma memória múltipla, indícios de que sentidos encontraremos? Que deslizamentos evidenciaremos no trânsito do sujeito-professor por esse conjunto de poderes e de lugares de sentidos que compõem a constelação? Ou melhor, que tipo de constelação se constituirá se forem considerados os efeitos de sentidos produzidos pela professora? Quais são os sentidos que concernem a cada poder? Bem no início de seu pronunciamento, a professora (doravante, referida como P) declara que fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Ainda é possível ouvir, nas palavras de P, ressonâncias de um sentido de bem-estar diante da organização das propostas de ação pedagógicas caracterizadas por ela como procedimentos que envolveriam o entrar em sala de aula, o dar a aula e o deixar a coisa fluir. Uma vez tendo percorrido estas etapas todas, o professor poderia declarar tranqüilamente que faz tudo o que tem que fazer numa boa, ainda que não saibamos exatamente a que se refere este tudo ou a que remete o numa boa. Quer dizer, relativamente numa boa em relação a quê? Ao aluno? Aos pais? Aos colegas? Às instituições sociais de modo geral? À auto-imagem de P? No entanto, apesar de parecer satisfeita e afirmar sua competência, ela parece ter se arrependido do que disse. O índice relativamente termina por se constituir em índice desse provável arrependimento. O que se destaca, no entanto, são os efeitos provocados por uma tal relativização: quando ela busca corrigir suas palavras, além de atenuar o bem-estar evidenciado anteriormente, ela provoca uma mexida nas filiações anteriores que resumiam o ato pedagógico a três procedimentos mecânicos: entrar em sala de aula, dar a aula, deixar a coisa fluir. Ela termina por questionar a validade dessas atitudes, talvez, a validade de suas próprias escolhas epistemológicas, didático-pedagógicas etc. Portanto, P revela um sutil deslocamento sem se definir por uma direção do discurso em específico, mas evidenciando marcas de uma história que se inscreve em suas falas, em seus gestos, enfim, em suas práticas discursivas. Fazer uma exposição como tal quer significar os caminhos para os quais os dizeres de P parecem apontar. Marcadas em seu corpo, cingidas em sua fronte e atravessadas em suas práticas sociais estão resquícios, vestígios de uma história que não envolve apenas P, mas fala de todo um grupo social - os professores da rede pública estadual. Igualmente, tais vestígios, que podem se articular também à condição heterogênea do sujeito e da linguagem, deixam escapar por suas frestas sentidos que não estão ligados apenas ao ato pedagógico relativizado por P. Pode-se supor, pois, que, se pensarmos sobre a professora e seus relativamente desdobrados por uma memória múltipla, seremos obrigados a considerar a condição do ser professor hoje e a constituição de suas identidades a partir de um conjunto de poderes e de lugares de sentidos nos quais constitui sua subjetividade. Por ser mulher, o poder de gênero - o que parece estar evidenciado pelos sentidos de doação, de busca de inclusão e de expropriação de condições mínimas para o exercício da cidadania. Na verdade, ao fazer corresponder ao trabalho docente os dispositivos por ela elencados - entrar na sala de aula, dar aula, fazer tudo o que tem que fazer e deixar a coisa fluir, escoam pelos dizeres manifestados pela professora P sentidos que remetem às pressões sobre o magistério as quais têm assumido a forma de aumento do controle e fragmentação do trabalho. Pressões de que derivam a perda de autonomia, a degradação salarial, a rejeição e a falta de perspectiva para o futuro. Além disso, os dispositivos ou ações a que P faz referência parecem se constituir numa espécie de núcleo duro do discurso pedagógico, ou melhor, num espaço de memória, em indícios do repetível e em elementos interdiscursivos que têm circulado, ao longo dos tempos, pelo discurso sobre o magistério e, também, sobre a formação docente. Ao longo do trabalho analítico construído aqui, foi possível perceber que o sujeito-professor, representado por P, transita por diferentes pontos nas constelações de sentidos e de poderes. Este trabalho analítico-discursivo fez com que se passasse a falar em memória social, memória profissional, memória de gênero em decorrência da articulação entre pontos de sentidos (a condição de mulher mãe-esposa-professora-proletária, a condição de funcionária pública, o ato pedagógico enquanto trabalho intelectual e caminho investigativo, o sujeito-aluno, as ações do sindicato, o plano de carreira, as políticas públicas de educação) e pontos de poderes (poder de gênero, profissional, político, social, econômico). Além disso, ele conduziu ao reconhecimento de um modo de funcionamento que permite cogitar sobre o quanto tais pontos de sentidos e de poder habitam o sujeito-professor e são por ele habitados, conduzindo a deslocamentos que fazem supor uma espécie de sujeito que se constitui nos e pelos processos que protagoniza ou, como diria Bhabha (1998), um sujeito que se forma nas bordas intervalares da realidade, nos “entre-lugares”. Falar em entre-lugares, aqui, quer remeter a processos que se constituem a partir de diferenças culturais as quais, embora muito específicas do universo pedagógico, são oriundas de diferentes instâncias sociais. O sujeito se forma nos pontos de encontro entre elementos que são da ordem do político, do econômico, do social, das relações de gênero, do profissional. Tais elementos se constituem, por conseguinte, numa espécie de fronteira que dissolve a polarização: ao mesmo tempo em que ela estabelece um sentido em relação a outro (X em oposição a Y, por exemplo), dá visibilidade a uma espécie de processo de descascamento dos sentidos pelo qual a linguagem se hibridiza - o sentido pode ser um, pode ser outro, pode ser nenhum, pode ser todos ao mesmo tempo. Bhabha, de certa forma, desenvolve tal idéia quando nos fala da linguagem da diferença no mesmo, a linguagem que desestabiliza, rompe, fura fronteiras dicotômicas pelo apelo à multiplicidade dos sentidos, ao seu descascamento. Segundo o autor, Apesar dos esquemas de uso e aplicação que constituem um campo estabilização para a afirmativa, qualquer mudança nas condições de uso e reinvestimento afirmativa, qualquer alteração em seu campo de experiência ou comprovação, ou, verdade, qualquer diferença nos problemas a serem resolvidos, pode levar à emergência uma nova afirmativa: a diferença do mesmo (BHABHA, 1998, p. 47). de da na de Tal assertiva permite a pergunta sobre o que produziria a diferença do mesmo num discurso pedagógico marcado por sentidos de crise do magistério e do trabalho docente. Uma possível resposta remete à necessária identificação de movimentos intervalares manifestados pelos sujeitos quando transitam pelos pontos de sentidos e de poderes supracitados. Ao transitar, tais sujeitos e sentidos se constituem e se desconstituem de modo permanente. Sendo esta a condição primeira para a constituição de suas identidades e filiações, por extensão, é também condição de possibilidade de autoria no momento em que, como pontua Santos (2000), revela diferentes combinações dos sentidos e das formas de poder que circulam na sociedade. Neste momento, é lícito aventar o encontro das perspectivas de Pêcheux, Bhabha, Authier-Revuz e Lacan. Falar em trânsitos, deslocamentos ou derivas dos sujeitos e dos sentidos está relacionado aos processos de estabilização/desestabilização dos sentidos a que faz referência Pêcheux (1997a, 1999) - o que se articula, por extensão, ao desdobramento do dizer ou, para citar Authier-Revuz (1998a, 1998b), às operações de desdobramento metaenunciativo ou reflexividade opacificante do dizer. De alguma maneira, também se costuram tais considerações aos acenos de Lacan para a produção de descontinuidades por um real necessariamente faltoso, em função de o real ser impossível de se escrever enquanto tal, remetendo a uma dimensão que poderia ser caracterizada como inassimilável e que acionaria o surgimento de possibilidades de reviramento dos sentidos pela via da equivocidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidades de evocar o dizer em sua totalidade. Seria como dizer que aquele que utiliza a linguagem não pode manter com ela uma relação de pura literalidade, buscando negligenciar os movimentos de escapância de sentidos-outros/Outros que são constitutivos tanto da linguagem quanto dos sujeitos e que, talvez, possam remeter a estranhos momentos marginais, lapsos de língua, irrupções do inconsciente que se instituem na perda de controle do falante e se manifestam como que simulando faíscas crepusculares da linguagem. Conforme lembra Lacan (1983, p. 129), “o que parece harmonioso e compreensível é que encerra alguma opacidade. E é, inversamente, (...) na dificuldade que encontramos chances de transparência”. Parece-me que, em um tal contexto, o desafio que está posto ao professor é a construção de processos de autoria para além do mal-estar enquanto degeneração da prática docente que se sustenta no discurso da incompetência inerente ao discurso pedagógico. Em decorrência disso, “professores e alunos terão de se tornar exímios nas pedagogias das ausências, ou seja, na imaginação da experiência passada e presente se outras opções tivessem sido tomadas” (SANTOS, 1996, p. 23). Nesse sentido, os deslocamentos de sentidos e de sujeitos é que terminam por constituir condições de possibilidade de produção de entre-lugares e, por extensão, de processos de autoria inspirados em imagens desestabilizasdoras do passado e do presente (que já não são compreendidos de maneira linear e seqüencial), portanto, imagens suscetíveis de desenvolver nos professores a capacidade de espanto e indignação e a vontade de inconformismo. Talvez possam derivar das perguntas de P, de suas perplexidades e mesmo de seu mal-estar, aprendizagens de novos relacionamentos entre saberes e, assim, entre pessoas, grupos sociais e culturas. REFERÊNCIAS AUTHIER-REVUZ, J. A. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do “outro”no discurso (Hétérogénéité montreé et hétérogénéité constitutive: elements pour une approache de l’autre dans lê discours). Trad. por Alda Scher & Elsa Maria Nitsche-Ortiz. 1998a. Texto digitado. 72 pp. ____. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1998b. BARROS, E. M. Nova gramática da língua portuguesa. São Paulo: Atlas, 1985. BHABHA, H. K. O local da cultura. Trad. por Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima reis & Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998. Coleção Humanitas. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. ____. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. LACAN, J. A tópica do imaginário. In: Os livros técnicos de Freud – livro 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. p. 90-186. ____. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. Coleção O Campo Freudiano no Brasil. LUFT, Celso Pedro. Moderna gramática brasileira. 14. ed. São Paulo: Globo, 2000. MATEUS, M. H. M. et al. Gramática da língua portuguesa. 2. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1989. (Série Lingüística) PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. de Eni P. Odi. 2. ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 1997b. ____. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Trad. por José Horta Nunes. Campinas, São Paulo: Pontes, 1999. p49-57. SANTOS, B. S. Para uma pedagogia do conflito. In: SILVA, L. H. Reestruturação curricular: novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. ____. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000. O DISCURSO PEDAGÓGICO: NOVAS PRÁTICAS DISCURSIVAS Marleni Nascimento Matte UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Resumo: Este trabalho retoma os resultados da pesquisa de doutorado, desenvolvida entre 2001 e 2005, no PPGEDU/UFRGS. Ele tem como referencial teórico a Análise de Discurso de linha francesa, de Michel Pêcheux, e o trabalho de Mikhail Bakhtin sobre gêneros do discurso. Seu objetivo é refletir sobre os deslocamentos dos sujeitos no discurso pedagógico, a partir da análise de formulações originadas do uso de um ambiente telemático, numa prática de educação a distância, no contexto da educação superior. Os resultados apontam para uma re-significação da prática pedagógica, a partir da mediação de um ambiente telemático, que propicia a polissemia. Palavras-chave: Análise de discurso, gênero discursivo, discurso pedagógico, telemática. Este trabalho mostra o funcionamento do discurso pedagógico numa prática pedagógica diferenciada, que envolveu o trabalho em um seminário de pós-graduação, no qual foi utilizado um ambiente telemático interativo. A análise aqui mostrada faz parte dos resultados da tese de doutorado, defendida em 2005, no PPGEDU-UFRGS, e está ligado aos grupos de pesquisa PROVIA – Programa Comunidades Virtuais de Aprendizagem, e Educação e Análise de Discurso, ambos do PPGEDU-UFRGS. O trabalho é embasado na concepção de discurso da linha francesa, desenvolvida por Michel Pêcheux, e na concepção de gênero discursivo, de Mikhail Bakhtin. A pesquisa foi realizada no contexto da educação universitária, em nível de pós-graduação, entre 2001 e 2005. O trabalho observado foi um seminário de pós-graduação, transcorrido no primeiro semestre de 2002, para o qual foi desenvolvido e utilizado um ambiente telemático interativo, o for-chat. Este ambiente foi direcionado para a conversação escrita. Ele recebeu essa denominação em virtude de reunir as características de chat de conversação e de fórum de debates. O seminário se desenvolveu na modalidade de ensino a distância, de maneira mista: parte dos encontros teve regime presencial e parte se deu via on-line. As participações via rede podiam ser síncronas, uma vez por semana, em horário de aula, ou assíncronas, com o envio de mensagens ao longo da semana. O semestre foi dividido em 19 semanas de trabalho. Ao final, foram geradas 1.072 páginas impressas, padrão ofício, que eram uma representação hipertextual do for-chat. O corpus deste trabalho foi selecionado das primeiras três semanas de atividades, a partir de uma impressão do for-chat. Os nomes dos participantes foram mudados, para garantir o anonimato, em atendimento à ética na pesquisa. O funcionamento do discurso pedagógico no for-chat Orlandi (1996) divide os discursos em três tipos fundamentais: lúdico, polêmico e autoritário. As distinções apóiam-se em termos que dizem respeito às relações existentes entre interlocutores e condições de produção do discurso. Além disso, cada uma das formas do discurso mostra diferentes maneiras de exposição à polissemia, entendendo-se por polissemia a faculdade de um texto possibilitar múltiplos sentidos. No discurso lúdico, há maior expansão da polissemia; no polêmico, a polissemia é controlada, e no autoritário, haveria uma maior contenção desta. Os diferentes tipos de discurso se caracterizam por uma dominância de sentido, que está sujeita às condições de produção e que se sustenta a partir de processos parafrásticos ou polissêmicos. Desse modo, o lúdico tende para o polissêmico, o autoritário para o parafrástico e o polêmico para um equilíbrio entre os dois. Especificamente em relação ao discurso pedagógico, este tenderia para o tipo autoritário. No funcionamento, esse tipo de discurso se dissimula como transmissor de informações, mostrando-se como uma metalinguagem apropriada pelo professor. Como conseqüência das condições que derivam do funcionamento autoritário apresentado pelo discurso pedagógico, o aluno constitui uma imagem assujeitada de si mesmo ao professor e ao conhecimento. Um modo de romper com o autoritarismo seria encaminhar o discurso pedagógico para o tipo polêmico ou mesmo para o lúdico. Conseqüentemente, haveria uma possibilidade de deslocamentos das posições já consagradas de aluno e de professor. Instalar-se-ia uma ruptura com a ilusão de sentido único, de efeito de unidade, resultando no restabelecimento da polissemia, através da explicitação dos efeitos de sentido presentes na evidência da informação. A reflexão que aqui se efetiva, a partir da análise de recortes das mensagens enviadas pela professora da disciplina pesquisada, leva em conta essas teorizações, sem desconhecer que o discurso pedagógico é heterogêneo, em conseqüência da diversidade de saberes e de fontes ideológicas que o integram. Sendo assim, entender-se-á esse autoritarismo como uma propensão à autoridade. Esta poderá ser mais vertical, apenas centrada no professor, ou mais horizontalizada, dividida, podendo envolver também o aluno. Também integra o referencial teórico o conceito de gênero de discurso. Para Bakhtin (2000), gêneros são tipos de enunciados relativamente estáveis, gerados nas diferentes instâncias da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições e finalidades das atividades em que se originam. São bastante heterogêneos, mas se demarcam por uma diferença essencial que os divide em: primários ou simples, àqueles ligados à vida cotidiana, e secundários, as formas mais complexas (romance, teatro, discurso científico). O gênero conversacional remete ao gênero primário e se caracteriza pela coloquialidade, promovendo a interação e visa à participação do outro, chama-o para o diálogo. A linguagem utilizada no for-chat seguiu uma tendência de gênero conversacional, que é bastante usual nos chats de conversação. Baseando-me nessas duas concepções, procuro analisar o funcionamento do discurso da professora no referido ambiente, durante as atividades. Formulação 1 Usuário: Violeta Data: 28/06/2002 Hora: 10:46:19 Mensagem: Queridos participantes deste seminário, o nosso "for-chat" ainda se encontra em construção, espero, no entanto, que ele se constitua num elemento a mais para compor as condições de que falamos como condições de possibilidade para alavancar a produção intensa de sentidos por parte de cada um, bem como favorecer uma troca de sentidos cooperativa de maneira mais leve, quase "natural". o que acham? Formulação 2 Usuário: Violeta Data: 05/07/2002 Hora: 11:12:57 Mensagem: Oi, vcs. não acham que podemos fazer alguma diferenciação entre Escrita colaborativa (em que o produto é um texto concreto) e produção coletiva de sentidos (que poderia ser esta mistura de idéias, posições, escritas, argumentos etc. que se põe em movimento) num certo tempo-espaço? Formulação 3 Usuário: Violeta Data: 11/07/2002 Hora: 11:47:28 Mensagem: Temos tido contribuições extremamente comprometidas com o foco do nosso seminário já nessas primeiras semanas, independentemente, inclusive, de quanto alguém domina, mais ou menos, a área de conhecimento relacionada com as leituras do módulo 1. O importante é que todos estão procurando ler e comentar as questões que dizem respeito a partir destas e de outras leituras, fazer perguntas... Há questões importantes postas nas discussões, Formulação 4 Usuário: Violeta Hora: 11:56:08 Mensagem: Gostaria de convidar a todos muito fortemente para que tragam suas questões, suas reflexões, suas intuições, suas leituras... o forum vive e se alimenta dessas contribuições-intervenções. As formulações aqui apresentadas foram originalmente mensagens da professora, dirigidas aos alunos, e enviadas ao meio virtual, onde permaneciam, eram respondidas, enfim, entravam numa rede de diálogo. Elas são aqui trazidas como formulações em que se pode analisar o funcionamento discursivo, buscando compreender os deslocamentos do sujeito-professor no discurso pedagógico. A intenção inicial da professora era de sair de uma prática mais tradicional, que possui a função de transmitir informação, para uma tomada de posição em que os alunos pudessem participar das atividades pedagógicas de uma forma autoral, mostrando a sua interpretação subjetiva, conseqüente às leituras de textos recomendados para discussão no seminário virtual. Podemos destacar nessas formulações, primeiramente, o caráter conversacional que se evidencia na forma coloquial impressa pelo vocativo: (F1- Queridos participantes deste seminário, F2- Oi, vcs.). A professora escolheu uma forma carinhosa em F1, e outra bastante coloquial, direta, e já integrada às regras dos grupos que participam de chats, abreviando a escrita, de modo a inserir-se igualmente entre os participantes, sem utilizar a formalidade da sua posição. Em segundo lugar, destaca-se o apelo à interpretação, que se evidencia através de perguntas que visam a levar o aluno a emitir opiniões, a adotar uma posição crítica, dar a sua palavra: (F1- o que acham?, F2- vcs. não acham?). Através da forma de pergunta é possível estender ao aluno a responsabilidade pela interpretação. E se o aluno pode opinar e deixar a sua palavra inscrita na rede, ele poderá repartir com o professor a autoridade que decorre do domínio do saber. Desse modo, o poder já não é mais “tão centralizado” no discurso pedagógico, ele pode ser dividido entre todos os participantes. Outro índice que aponta para o funcionamento discursivo é a presença de enunciados que possuem um teor avaliatório (F3- Temos tido contribuições extremamente comprometidas/ O importante é que todos estão procurando ler e comentar...). As expressões - extremamente comprometidas e o importante - destacam a importância de ocupar esse lugar de interpretação. Essas avaliações cumprem duas funções: primeiro, elas permitem que os alunos criem uma imagem do que o professor espera deles. A partir de sinais que lhes vão sendo dados, eles vão percebendo a direção que devem seguir para ser positivamente avaliados, podem prever o que o professor espera deles. Essa imagem é ilusória, mas fundamental para estabelecer o lugar de enunciador, pois o falante, de acordo com Pêcheux (1997), sempre emite a partir de um lugar social imaginário. Segundo, as expressões avaliativas cumprem o papel de determinar para o aluno como deve ser essa interpretação. Elas funcionam como uma espécie de teoria que o professor possui a respeito do que, nessa disciplina, significa autoria. O professor não espera que o texto seja apenas recuperado na forma literal, mas que haja reflexão, ou seja, posicionamento crítico, avaliações, dúvidas. O professor espera que o aluno se desloque da posição de repetidor, ele espera um aluno-autor. ((F4tragam suas questões, suas reflexões, suas intuições, suas leituras... ). Podemos perceber que o discurso da professora estabelece uma relação de horizontalidade entre o lugar de aluno e de professor, ao sinalizar que os textos recomendados para debate estão abertos a suas interpretações, indicando, ainda, de que maneira podem fazê-lo: comentar com base em suas leituras anteriores, fazer perguntas, levantar questões, refletir, seguir a intuição, ou seja, expor os sentidos que vão constituindo enquanto leitores. Nesse discurso, encontram-se ecos de teorias que questionam o ensino tradicional da língua e também a compreensão da leitura apenas como decifração. Opondo-se a essa noção, a Análise de Discurso percebe o espaço de leitura como um desmontar de estratégias e encontro de vestígios do sujeito, apenas para exemplificar. A professora também se opõe, para ela, a leitura é antes de tudo interpretação. Sua idéia de interpretação passa pela subjetividade e, desse modo, o aluno pode ocupar também uma posição de sujeito. Pode se deslocar de uma posição para outra, em relação aos seus próprios sentidos, pode apelar para a memória das suas leituras anteriores. Ele passa a ter um papel ativo no seu próprio aprendizado. Destacando este aspecto, vemos aí um deslocamento em relação ao discurso mais tradicional para formas mais polissêmicas. Através de uma ruptura com a ilusória fixidez textual, a professora expõe a relação do discurso pedagógico com o conhecimento. Orlandi (1996) diz que o discurso pedagógico é um discurso circular, isto é, um discurso institucionalizado sobre as coisas, que se garante ao mesmo tempo em que garante a instituição. Já pelo seu lado, a escola obtém prestígio e se legitima através desse discurso, que funciona como máximas e regulamentos. Ao se dissimular como metalinguagem, o discurso pedagógico esconde a natureza da relação com o referente. Ao expor o texto à “livre interpretação”, a professora permite que o aluno tenha a sua própria experiência, que ele perceba as vozes que ali estão presentes e que reconstitua as condições de apropriação do conhecimento. Dessa maneira, é o aluno que se torna o detentor do conhecimento. As análises levam a pensar que o discurso pedagógico, neste caso, se aproxima do discurso polêmico, pois ao romper com o sentido único, cria-se uma abertura que deriva para o restabelecimento da polissemia, o que tornaria possível o deslocamento das posições ideológicas mais radicais. No entanto, é preciso considerar que esta abertura também possui limites. Talvez pela função do discurso pedagógico, que se guia por temas, por certas áreas de sentidos, que são normalmente pré-estabelecidos, a professora também demarca zonas dentro das quais o aluno deve manter-se. O sentido a priori já se projeta mesmo quando o aluno se matricula numa determinada disciplina, pois ele possui uma idéia, ainda que imprecisa, do conteúdo que esta deverá tratar. Tomemos, por exemplo, (F2 -vocês não acham), que é uma pergunta; logo após perguntar, a professora faz uma definição: Oi, vcs. não acham que podemos fazer alguma diferenciação entre Escrita colaborativa (em que o produto é um texto concreto) e produção coletiva de sentidos (que poderia ser esta mistura de idéias, posições, escritas, argumentos etc. que se põe em movimento) num certo tempo-espaço?. Ao mesmo tempo em que abre para a interpretação, há uma limitação que, por um lado, reduz, mas por outro, pretende ajudar o aluno mostrando em que direção deve seguir. O aluno também espera por isso, caso contrário, sente-se abandonado. A questão da interpretação é que não pode haver liberdade total, pois o sujeito interpreta sempre a partir de uma posição que é também ideológica. Na leitura, sempre se escolhe algumas ideologias e se refutam outras. O professor tem as suas fontes e busca defendê-las, por isso, é preciso que haja uma negociação quanto aos sentidos que vão se constituir em “verdades”. Por outro lado, a linguagem utilizada no for-chat seguiu uma tendência de gênero conversacional, que sugere reciprocidade para que possa ter sucesso. A forma de diálogo quebrou a verticalidade das posições de professor e de aluno, diminuindo a desigualdade que normalmente existe entre essas posições. Ainda que a tradição da figura de autoridade do professor tenha permanecido, esse fator criou condições favoráveis à interação. Na sala de aula tradicional, há um outro funcionamento, o diálogo é menos freqüente, porque os métodos e as ferramentas requerem, geralmente, o silêncio e a atenção por parte do aluno e horas de fala e explicações pelo professor. Na sala virtual, há pouca chance de o aluno não participar. Ele até pode permanecer algum tempo em silêncio, mas logo a sua falta passa a ser sentida. Nesse trabalho, entretanto, percebeu-se que os alunos estavam muito animados para trocarem mensagens e experiências e isso se deve às condições de produção. O formato do ambiente, a possibilidade de conversar parece ter atuado nesse caso. O gênero conversacional permite que o sujeito elabore uma imagem de si e do outro, através do ser respondido, de ter sua fala reconhecida, e, conseqüentemente, ser também reconhecido. Uma das preocupações freqüentes da professora era responder às mensagens dos alunos ou solicitar que as mensagens enviadas jamais ficassem sem resposta ou comentário dos colegas. Por outro lado, o aspecto conversacional também se sobressaiu no uso de vocativos e do tom de pergunta muitas vezes utilizado. A presença de vocativos subjetivos, inspiradores ou carinhosos, mostram um professor interessado, que está próximo do aluno. Do mesmo modo, o tom interrogativo faz parte da estrutura do diálogo, servindo como “deixa” para que o outro entre na conversa. Além disso, a sinalização “avaliativa” sobre a participação dos alunos também ajudou, pois no trabalho pedagógico, sempre existe a expectativa de ser avaliado. Saber que está atuando da maneira esperada ou justa (participações importantes, o domínio do assunto não é imprescindível), que está sendo compreendido, esses são sinais de que o interlocutor necessita para se sentir encorajado a falar (mandar mensagem). Todos esses índices fazem parte da aparência conversacional que o for-chat buscou apresentar. Conclusão O discurso pedagógico envolve uma relação entre sujeitos não-simetrizáveis. O professor é tradicionalmente entendido como alguém que detém o saber, supondo-se, ainda, que domine as estratégias do ensino-aprendizagem. Mesmo numa proposta de re-significação dos papéis habituais, resta sempre uma certa necessidade de assunção do lugar de aprendiz por parte do aluno, que coincide com uma posição de menos poder. A busca de ultrapassar o caráter autoritário do discurso pedagógico, em direção às formas de polissemia mais aberta, e a adoção do gênero conversacional possibilitaram ao professor o deslocamento para um novo lugar de sujeito. Nesse lugar, o discurso pedagógico assume um funcionamento mais horizontalizado, sem perder, contudo, a sua principal atribuição, que é levar a constituir novos lugares de sujeito a partir do contato com novos conhecimentos e leituras. Neste caso, percebeu-se que o uso de um ambiente virtual interativo ajudou a construir a proposta de deslocamento, favorecendo os resultados. Não que o ambiente em si tenha sido a razão do sucesso, mas ele se constituiu numa ferramenta importante para criar um trabalho pedagógico com um novo viés, possibilitando uma nova prática. Quando embasado por uma proposta pedagógica que visa à autoria, à abertura de sentidos, pode se constituir numa ferramenta para a adoção de novas práticas pedagógicas. Esse é um ponto significativo na prática de adoção das novas tecnologias no ensino que vale destacar, pois pode vir a ser uma boa forma de tornar a prática pedagógica mais dialogada e um meio de levar o aluno a maior participação no trabalho em sala de aula. Referências AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio. Tradução de Maria Onice Payer. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, SP: Ed. 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DESLOCAMENTOS DA MEMÓRIA NO DISCURSO PEDAGÓGICO Regina Maria varini Mutti – (PPGEDU/UFRGS) RESUMO : Visando a discutir o funcionamento da noção de memória no enfoque do discurso pedagógico, considerado em seu espaço de abertura a outros sentidos, este trabalho situa a perspectiva do sujeito-professor que é afetado pelo discurso das novas tecnologias na educação, na sua prática na escola. Busca-se apreender o modo como o professor historiciza o acontecimento presente, em se filiando a essa nova rede de memória em construção, em sua potência de mudanças. No confronto de sentidos diversos, vai emergindo uma outra identidade imaginária na memória do ensinar e aprender na escola, capaz de levar ao esquecimento algumas práticas resultantes de interpretações muito arraigadas que fazem parte da memória social, que dificultam pensar o pedagógico de lugares diferentes. No novo espaço de significação que busca afirmar-se, revela-se o jogo de disputa entre a memória estabilizada e a nova filiação discursiva que está se afirmando, encontrando lugar na memória sobre ensinar e aprender na escola. A interpretação do professor, com a sua singularidade, busca registro na memória pedagógica, coexistindo com sentidos por ora apagados mas nem por isso suprimidos totalmente, pois o interdiscurso suporta a diversidade e a mobilidade. O discurso pedagógico tradicional, cuja tendência é a conservação, é passível de se desestabilizar por meio do trabalho de significar do sujeito, que passa pela língua que usa. Palavras-chave: discurso pedagógico – sujeito-professor – efeitos de sentidos – memória A análise destacada neste texto representa resultados de pesquisa mais ampla que vimos realizando sobre o discurso pedagógico que acolhe a informática na escola. Situamos aqui a perspectiva do sujeito-professor, tomando a perspectiva teórica de Pêcheux (1999), que concebe que a memória é mobilizada pelo acontecimento, numa tensão entre a regulação e a desregulação. Partimos da hipótese de que a constituição de uma nova posição enunciativa no discurso pedagógico, como “gesto de interpretação” (Pêcheux, 1990) do sujeito-professor, significa uma tensão entre a memória estabelecida e sentidos novos. Assumir posição no discurso demanda ser capturado numa “forma-sujeito” de um modo que, ao identificar-se, marcando-se pois a regularidade, abre-se também espaço para que o sentido diferente venha participar da rede de memória discursiva. A deriva do sentido é possível porque a identificação discursiva não se dá sem falha. Reiteramos as palavras de Pêcheux (1999, p.56), que situa a memória como um “... espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos”, um espaço, portanto, sempre aberto à diferença, a cada enunciação do sujeito histórico; enunciação caracterizada por operações que regulam a retomada e a circulação do discurso nas práticas sociais pela ação dos sujeitos. Em decorrência, ressalta o autor que um acontecimento pode escapar à inscrição na memória, não ficando nela registrado, bem como também pode ser “absorvido na memória, como se não tivesse acontecido” (p.50). Na atividade de reconstituição do acontecimento pela memória, o sujeito mobiliza implícitos, sentidos pré-construídos que tendem a reforçar a regularização, pois surtem o efeito de já-lá; no entanto, se desestabilizam pelo sujeito que os resgata na sua enunciação, sempre única. A heterogeneidade e dinamicidade, atribuídas à memória, está imbricada no conceito de discurso, que está na dependência da implicação dos conceitos de estrutura e acontecimento que estão na origem dos enunciados. Conforme o autor, “todo enunciado, toda seqüência de enunciados” apresenta “pontos de deriva possíveis”, “oferecendo lugar à interpretação” do sujeito (Pêcheux, 1990, p.53). “O acontecimento discursivo novo”, diz o autor, “vem perturbar a memória”, podendo “desmanchar a ‘regularização’ ... o acontecimento desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior”, podendo inaugurar-se uma nova série (Pêcheux, 1999, p.52), ou estabelecer-se a paráfrase mediante a integração do acontecimento (p.53). A dialética de reprodução/desestabilização pode ser apreendida nas materialidades discursivas - os enunciados, e desse modo se conduz a análise. “Sob o mesmo da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva... Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase.” (p.53) Ao designar a memória como “espaço móvel”, Pêcheux destaca a variância que a caracteriza, bem como a condição de plurivocidade dos sentidos que coexiste com a ilusão do homogêneo no processo de produção dos sentidos. Os enunciados resultam de enunciações concretas dos sujeitos no mundo, e por isso é importante destacar que a memória não está isenta do “real histórico”, a contradição, e ao mesmo tempo do “real da língua”, a equivocidade. Toda retomada dá-se em condições de produção históricas específicas e atesta também que a língua que o sujeito usa para dar sentido não é um produto pronto e acabado, mas se amolda para a constituição dos referentes do discurso, levando-se em conta que a realidade reclama sempre sentido. O referencial destacado nos leva a interrogar o discurso pedagógico em sua tendência conservadora, embora também esteja potencialmente sujeito a mudanças, e a acreditar que as práticas concretas, protagonizadas pelos sujeitos, dão margem a questionamentos. Nesse sentido, as práticas de emprego das novas tecnologias estão sendo significadas, medindo forças com as práticas tradicionais. Os laboratórios de informática estão ocupando espaço pelo menos espaço físico – nas escolas, “olhando” para o sujeito-professor: como usá-lo? Mexe-se a rede de memória, num “conflito de regularização”, no momento em que o sujeito se posiciona, dando sentido ao acontecimento, constituindo memória. Nossa questão é: que efeitos de sentidos evidenciam esse novo lugar de enunciar em que o professor está se posicionando no discurso pedagógico com o aporte da informática? Achard (1999) acentua que se deve à estrutura do discursivo a constituição da materialidade de uma memória social, esta sempre re-formulada via novas enunciações concretas, pelas quais o sujeito temporaliza o mundo, a partir de lembranças ou esquecimentos. Neste estudo, nos propomos a escutar o sujeito-professor, enquanto protagonista dessa nova posição enunciativa, no discurso pedagógico que está se estabelecendo. Nas formulações aparecem sentidos tradicionais, arraigados, cotejados com sentidos desestabilizantes, refletindo as contradições da realidade, onde as práticas pedagógicas acontecem, não independentes do desejo dos sujeitos. Efeitos de sentidos A investigação toma três entrevistas realizadas com professores de escolas da cidade de Porto Alegre, em 2004 e 2005, os quais se reportam às experiências educativas relacionadas à informática no contexto escolar. O objetivo da análise são os “gestos de designação” que apontam aos “procedimentos de montagem” do trajeto da memória, conforme sugere Pêcheux (1999, p.55). Enfoca-se o modo como o repetível do discurso pedagógico se desloca, no posicionamento discursivo do sujeito-professor que narra a sua história de filiação no discurso da informática educativa na escola. Para tanto, destacamos as designações: (a) “projeto”, em referência à especificidade das atividades os computadores no currículo escolar, e, dentro do projeto, (b) “orientadora”, em substituição ao termo “professora”. Essas palavras apareceram como marcas de ênfase, na posição enunciativa analisada. Um “projeto” na escola Nos pronunciamentos dos professores, as atividades de informática das quais participaram estavam vinculadas a um “projeto”, e a este se reportam. O projeto de que falam dois professores foi promovido e coordenado pela universidade, enquanto que uma professora se referiu a um projeto coordenado pela própria escola. Um “projeto” para efetivar a informática educativa na escola tornou-se a condição de efetivar a prática de ensino com os computadores no currículo escolar. Fica bem marcado, na formulação a seguir, que antes da entrada do projeto da universidade não havia trabalho pedagógico com a informática, mesmo que a escola já tivesse instalado os computadores, conforme política governamental de implantação da informática nas escolas, cujo início data dos anos 80, no contexto rio-grandense, desenvolvida a partir de projetos. A palavra projeto, no discurso pedagógico, indica maior sofisticação quanto ao que se costuma entender como planejamento, uma vez que parece abranger também o sentido de pesquisa – projeto de pesquisa - ou uma programação de metas a serem alcançadas. Em se tratando da tecnologia, que é relativamente nova no contexto escolar, o termo projeto parece dar conta da especificidade da inovação que é pretendida, e ao mesmo tempo desaloja o professor de seu habitat; pois ele passa a depender de experts no domínio da ferramenta tecnológica, bem como de aplicações pedagógicas desta, elaboradas pelos outros. Isso o coloca na posição daquele que não sabe, precisa aprender para se inserir num dado projeto de informática e, só depois, poder formular o seu próprio projeto. Vejamos: (1) Antes desse projeto eu tentei usar, mas não cheguei a fazer projeto, eu não cheguei a elaborar... tinha uns estagiários... eu combinava e às vezes eu ia, mas era mais para jogos. Mas quando não tinha estagiários eu não me animava a ir, pois a turma era muito grande, eu tinha 30 alunos. O projeto próprio do professor está distante, para depois de sua alfabetização digital; de qualquer maneira, para poder usar o computador no ensino, não basta o trabalho isolado do professor, como é a tradição na escola, mas o trabalho conjunto com outros profissionais, pelo menos o especialista que se ocupa da base tecnológica: “os estagiários”. Desse modo, o emprego do computador se torna esporádico, apenas “para jogos”. A possibilidade de usar o laboratório não ajuda o professor no controle da turma numerosa, mas isso continua sendo cobrado dele. O objetivo principal do projeto da universidade , tal como um professor sintetiza é amplo, abrangendo a alfabetização digital e o pedagógico: (2) ... promover o uso do computador entre os alunos e professores , bem como o que se pode fazer com o computador. Na formulação a seguir, destaca-se a importância do projeto como oportunidade de aprender a usar a máquina na escola: (3) Passei a usar [os computadores] com o projeto (...), que aí tinha todo o acompanhamento dos bolsistas e todo o trabalho de formação onde discutíamos bastante sobre o trabalho realizado. ... eu acho uma mão na roda trabalhar com os alunos usando o computador e eles adoravam também. O fato de que a participação no projeto demandava que todo um grupo de pessoas, e não mais um só professor assumisse o trabalho pedagógico, implicava que a responsabilidade de professor se diluísse entre o grupo do projeto, facilitando que o professor se deslocasse para o lugar de aprendente, nesse espaço especial: (4) Eu e minha colega pensamos e elaboramos alguma coisa em relação ao projeto, mas as pessoas que estavam lá davam bastantes idéias... o que a gente podia fazer... mas como nós não entendíamos bem sobre as ferramentas, o que eu posso utilizar e o que o computador pode me oferecer em relação a isso... por isso é importante as pessoas que estavam lá. ... eu sempre sentia uma falta de apoio de profissionais em termos técnicos e em termos pedagógicos, eu sentia falta de uma orientação...aqui na escola não temos professor de informática ... na sala tinha no mínimo duas pessoas para dar apoio e dar esse atendimento quase que individualizado aos alunos. Mas como esse trabalho conjunto se restringia ao período de trabalho do projeto, no laboratório de informática, na sala de aula, sem o computador e a equipe do projeto, as atividades se desenvolviam de modo tradicional. No entanto, as experiências eram lembradas: (5) Quando eu fazia algumas atividades com letras eles [os alunos] diziam: lá no laboratório nós trabalhamos com essas palavras ... as crianças faziam uma relação com as atividades de sala de aula e do laboratório de informática. Quando a professora diz que os alunos não desenvolveram projetos de aprendizagem, ela separa o que seria liderado pelo pessoal do projeto e o que teria uma maior participação dela mesma, enquanto professora. (6) Não... eles começaram fazendo páginas, o início do trabalho foi uma página com algumas perguntinhas sobre o que eles mais gostavam. Foi mais em relação à identidade deles, depois eles adoraram colocar as fotos deles e da turma, as quais foram tiradas no laboratório, eles procuravam também figuras para enfeitar. Constata-se que uma das atividades visando ao letramento digital previstas no projeto era a confecção da sua “página” pelos alunos, procedimento para iniciantes já conhecido na área da informática educacional, que parece ter aproveitado de outro modo a idéia de trabalhar a “identidade” do aluno na primeira série. O prosseguimento dessa atividade seria a realização dos “projetos de aprendizagem”, mas a experiência foi encerrada: (7) Quando eles iam começar com os projetos de aprendizagem, terminou o projeto Mas outro professor afirma que dentro do projeto da universidade ele pôde desenvolver várias modalidades de experiência com o computador, com seus alunos adolescentes, e para isso interagia bastante com os bolsistas: (8) ...eu sempre procurava conversar com os bolsistas buscando estratégias de como utilizar... qual a maneira adequada de introduzir a informática para adolescentes ... eu tinha muitas dúvidas e a gente não recebe formação específica da escola ... nós desenvolvemos páginas pessoais, projetos ... fazendo pesquisas ..., trabalhamos com chat, mail e jogos ... se utilizava a internet e assim dia que não tínhamos a internet era um caos porque toda a informação era da internet, pois aqui na escola faltam CD com enciclopédias e outras fontes de pesquisa O professor se refere ao ensino por meio de projetos de conhecimento a partir do emprego do computador, mostrando ter levado em conta o propósito da universidade, e acena para a facilidade que a internet representa para efetivar esse tipo de ensino, inclusive para suprir a falta de outros materiais de consulta na escola. No entanto, não é seguro que possa transformar a experiência especial, desenvolvida no laboratório de informática no tempo do projeto, numa prática de ensino usual, sugerindo que o ensino tradicional continua sendo feito nas bases tradicionais: (9) ...novamente a falta de existir uma aula específica de informática... eu tenho conteúdos indispensáveis , o tempo é curto e a agitação é muita. Acaba faltando tempo e um planejamento mais pontual, mais criterioso para se desenvolver um projeto bem amarrado que permita um debate e um trabalho mais aprofundado do projeto.... A questão do debate e da discussão com adolescentes é muito complexa, eles vivem numa idade muito agitada e têm sérios problemas de comportamento, então a gente consegue fazer uma troca mais a nível emocional do que intelectual Aparece na formulação acima a resistência a mudar o tradicional, particularmente em relação ao debate, que não é pensado para a modalidade do ambiente virtual mas no presencial; destaca-se ainda a importância dada à ajuda que o professor pode dar ao aluno em seus problemas, bem como a falta de uma aula específica de informática é indicada como uma grande restrição, pois garantiria um espaço-tempo em que haveria apoio tecnológico ao trabalho docente. E prevalece o sentido de que o professor tem o dever de cumprir os conteúdos, de que o trabalho com a informática seria restrito e não central, até porque dependeria de uma aula específica apenas. Referindo-se ao tempo em que participou do projeto, as aprendizagens que realizou ficaram assim representadas para uma professora: (10) Eu aprendi tanta coisa que não tenho nem como contar! Eu nunca fui uma expert em computação, fazia meus textos, mandava uns e-mails, então eu nunca fui uma usuária. E cada coisa que a gente aprendeu, aqueles blog, a trilha virtual, o chat com os professores. Me lembro que várias coisas que nós fizemos eu realmente não sabia. Lembra, pois, a variedade de atividades específicas de base tecnológica e dirigidas a modos diversos de interação que lhe foram propiciados. E sintetiza, afirmando que o contato com a máquina foi muito significativo, embora o tempo não tenha permitido maior apropriação: (11) ...o contato com a máquina, na nossa realidade são raríssimos os casos de crianças que têm contato fora da escola. Este contato que eles tiveram foi muito significativo, não conseguiram se apropriar, mas só essa coisa deles sentarem em dupla, de conseguirem compartilhar, embora às vezes tivéssemos algumas brigas, foi muito importante para eles. Falando em compartilhar, o professor se refere a uma mudança em relação ao trabalho pedagógico tradicional, mais individual. Mas a indisciplina, gerada na escola tradicional, mostra-se como um problema que se estendia às aulas no laboratório, durante o projeto: (12) ...na verdade eu não fui muitas vezes, muitas vezes por restrição , a minha turma, eles estavam num nível de indisciplina muito grande, mesmo assim eu consegui alguns avanços mas acabava sendo tão estressante... a punição era não ir ao laboratório ... insegurança em controlar os alunos lá na sala e de fato um professor só para controlar uma turma inteira é muito cansativo Situa-se a dificuldade do professor de manter um trabalho especial, que envolvia outros profissionais, máquinas caras e exigia a colaboração entre os pares, sem as condições mínimas de disciplina. Esse tema, bastante recorrente, merece reflexão mais acurada. De qualquer forma, o professor refere que esses alunos mudaram com o trabalho no laboratório, pois: (13) ...antes do projeto, qualquer coisa que eu pedisse para eles trazerem para a aula era um custo e para trabalhar no laboratório eles procuravam material por conta própria e traziam ... Ao mesmo tempo, a colaboração entre os professores da escola se intensificou, motivada pela participação no projeto, bem como a instrumentalização para a comunicação entre escolas: (14) ...eu conversava bastante com a professora A, que me dava uma dicas de sites que eles poderiam encontrar jogos de alfabetização, ela sempre levava a turma dela e dizia onde procurar coisas ...eu acho extremamente positivo pelo lado da comunicação ... instrumentalizá-los na troca de e-mails entre si, e eu acredito que essa seja uma forma de capacitá-los na informática, deles conseguirem receber e enviar e-mails Nas formulações que se seguem, situa-se a designação projeto não mais em referência a um projeto do qual a escola participou, mas que atualmente está suspenso. Diferentemente, a escola criou seu próprio espaço de inserção da informática, dentro de um projeto especial, que recebeu a designação de “disciplina de projeto”. A disciplina de projetos é caracterizada como uma disciplina complementar ao currículo; destaca a professora, que se trata de (15) ... uma disciplina que não envolve menções nem notas... está embutida dentro da disciplina do professor ... eles [os professores] trabalham, digamos , mais light, né [do que os orientadores] ....nós somos atualmente somos três professores de projetos que somos os orientadores ...eu sou professora de português Além da responsabilidade para com a gestão da disciplina de projeto, a professora mantém sua função em relação à disciplina regular que ministra. O trabalho de orientação está embasado em documento de elaboração coletiva. Buscando em seus materiais escritos uma definição da disciplina de projetos, ela lê os objetivos: (16) ... oportunizar ao educando a construção e aprimoramento dos seus conhecimentos através da pesquisa ”... dentro disso trabalhamos a competência do saber selecionar, classificar as informações ... perceber de maneira crítica os diferentes meios de comunicação, para melhor desenvolver a sua personalidade, estar a altura de agir com cada vez...com cada vez... com mais autonomia e discernimento, seria isso, tá? A orientadora assume a proposta da disciplina que representa a sua escola, empregando a primeira pessoa do plural: “trabalhamos”, reforçando a sua inclusão no trabalho coletivo. Constata-se que o emprego pedagógico da informática, nessa atividade de projeto, está associada à “pesquisa”, no sentido de fonte de consulta, uma alternativa de “pesquisar o que tem através da internet... quais são os sites, ou selecionar gravuras enfim...”, para atender ao projeto de conhecimento no qual a classe está empenhada, entendido no sentido de pesquisa. O ensino nessa disciplina propõe que o aluno se movimente para buscar saber, não recebendo conhecimentos prontos. Para isso pode dirigir-se ao “laboratório de informática”. Conclui-se que a informática não ocupa lugar exclusivo no desenvolvimento da pedagogia relatada, considerada como a mais relevante da escola, embora pareça ter sido idealizada com a finalidade de uso pedagógico do laboratório de informática . O trabalho de projeto faz parte da memória pedagógica da instituição, sendo referido com orgulho pela orientadora da disciplina de projeto, que não dá destaque nesse relato à dimensão ocupada pela informática no mesmo, mas sim à relação entre escola e comunidade: (17) ... o projeto Solidariedade ...mexeu assim com a escola inteira. Até hoje eles falam, colocam... de como foi bom...foi uma experiência muito positiva pra alguns alunos que eram mais difíceis em sala de aula... a nossa escola foi representante do Rio Grande do Sul ...mediante esse trabalho de cidadania solidária. Constata-se nesse relato que nessas ações pedagógicas voltadas à comunidade, as posições de aluno e de profissionais da escola se diferenciam. Essa experiência se caracterizou por ampliar as condições de diálogo para além dos muros da escola, e a escola soube de alguma forma transformar em conteúdos os saberes diversos que surgiram com essa abertura. Não obstante o contexto estimulante propiciado pelos projetos, as práticas de informática, já viabilizadas, embora com restrições, aparecem como facultativas na disciplina regular: (18) ...olha, esse trabalho [ de produção textual], hã ... nós vamos fazer as reuniões agora, para fazer o planejamento. Mas com certeza vamos utilizar a informática como um instrumento né, pra esse momento assim... com certeza. Nas aulas de produção textual, a gente utiliza muito. Os trabalhos, muitas vezes, são enviados pro meu e-mail. Não obstante, planejar em conjunto, criar novas estratégias, inclusive com a informática, surgem nas formulações professora. O ensino que emprega os computadores da escola surge como uma possibilidade a sua disposição, mas ainda não bem explorada em sua potencialidade de promover mudanças. Efeitos de sentidos sobre essa possibilidade latente podem ser relacionados à liberdade de “pesquisar” de que o aluno dispõe, sua autorização para usar a internet em seu projeto, caso seja essa a sua opção, e esse uso não é prejudicado pelo excesso de controle, pois o que se valoriza é o resultado das respostas às questões que formulou em seu projeto de conhecimento. A escola está proporcionando mudanças, a partir da “disciplina de projeto”: (19) No laboratório de informática, durante a apresentação do fórum existem computadores à disposição... além disso eles também têm a possibilidade de que o professor de informática vem à tarde [além do] período de informática. A sistemática de efetivação do projeto demanda rigor no cumprimento das etapas, e a orientadora não abre mão de controlar o tempo de uso do laboratório durante a realização dos projetos: o período da “disciplina de projeto” pode coincidir com o “período de informática”: (20 )...até o ano passado, nós tínhamos dois períodos de infor... de projetos. A troca mostra que a disciplina de projeto é proposta junto com o uso da informática na escola, de modo que o horário da informática é ocupado pela disciplina de projeto, dentro de um objetivo pedagógico integrado. A escola está gerindo o laboratório de informática com os seus próprios meios. A solução que esta escola encontrou para fazer uso pedagógico da informática foi incluí-la nessa disciplina especial, a disciplina de projetos. Constata-se assim que o discurso pedagógico, re-criado na disciplina de projeto, está disciplinarizando a informática. A escola parece apostar que essa disciplinação possa efetivar-se sem pressa e sem pressão, ao natural. Assim, a ação dos computadores sobre o aluno, bem como a eficácia do ensino-aprendizagem, mantêm-se sob controle. No andar das ousadias e retrocessos, efeitos de sentidos de transformações emergem O ensino não é ministrado só no ambiente da sala de aula, ampliando-se para outros espaços; o aluno fica mais livre do olhar de um mesmo professor, e passa a ser afetado por outros ambientes de aprendizagem, onde é autorizado a circular, vivenciando outras normas e outras possibilidades de observar e de se relacionar. Outros profissionais dividem com o professor, em certa medida, nessa disciplina de projeto, a responsabilidade de orientação do aluno, a qual não é mais exclusiva de um único professor; o próprio aluno é “livre” para colocar questões relativas ao projeto, desenvolvendo uma temática, tomando decisões. (21) Eles são livres para trabalhar e nós ficamos acompanhando, né. Nesses locais a gente vai, sugere ou fica orientando o tempo todo. Outro efeito de sentido é a intensificação da comunicação, pelo próprio aluno, a quem cabe relatar o andamento de seu projeto, discuti-lo e apresentar as conclusões. O aluno fala e escreve mais, movimenta-se mais, no percurso das diferentes etapas de realização do projeto. A orientadora refere-se à culminância das atividades, designada como o “fórum das apresentações”. Refere-se então ao emprego da informática no sentido de mais um recurso, quando diz que, para essas apresentações: (22) ... existem computadores à disposição”: “eles [os alunos] trazem lâminas, eles trazem murais, eles trazem o trabalho no power point, né ... e mais o seu portfólio. Embora sem mudanças radicais devidas ao trabalho com os computadores, a “disciplina de projeto” aponta à dimensão coletiva de trabalho na escola, onde, de modos diferentes, professor de classe, de informática, supervisor assumem seus papéis, e os alunos são vistos como mais ativos na busca e troca de saberes. A tecnologia está no meio da proposta pedagógica, embora esta, de certa forma, a subestime quanto as suas condições de ajudar na própria efetivação da posição pedagógica assumida na disciplina de projeto. A posição de orientadora de projeto requer conhecimento de informática, como está enfatizado na formulação que se segue : (23) ... todos nós orientadores temos conhecimento de informática ... também possuímos computadores ... a gente consegue se sair bem ... nós conseguimos transitar bem dentro disso... eu mesma fiz curso de informática há muito tempo atrás, fiz curso de informática. No entanto, “sair-se bem”, como diz, “não significa que a gente tenha todos os conhecimentos”. Reconhece que é difícil mas agora está satisfeita: (24) “Olha, pensei assim: Meu Deus, acho que nunca vou conseguir aprender isso ... hoje em dia, tranqüilamente, sabe? Uma relação tranqüila”. Em conclusão Foi considerada a perspectiva do sujeito-professor que é afetado pelo discurso das novas tecnologias na educação. Buscamos apreender o processo de filiação do professor, historicamente, a uma nova rede de memória em construção, em sua potência de mudanças. Supomos que, na interposição entre o velho e o novo sentido, vai emergindo na opacidade do espaço de memória uma outra identidade imaginária, por meio da qual o sujeito-professor constrói a história de ensinar e aprender na escola, o diferente se insinuando de alguma forma. No novo espaço de significação que busca afirmar-se, revela-se o jogo de disputa entre a memória estabilizada e a nova filiação discursiva emergente. Conforme as análises, o sujeito, narrando suas pedagogias, ocupa lugar de dizer nessa posição enunciativa que representa, no discurso pedagógico que inclui a informática. Com a “disciplina de projeto”, está realizando uma prática pedagógica que demonstra algumas mudanças em relação ao ensino tradicional. O ensino e a aprendizagem, tal como é significado nessa nova disciplina, estimula experiências novas, situando o aprender enquanto ação de pesquisar; a função tradicional de professor não tem sentido nesse novo lugar de significação do pedagógico, por isso o surgimento da designação orientador. A professora, na posição de orientadora, produziu sentidos nessa nova posição. No espaço entre a memória pedagógica tradicional, do é porque é, e um outro sentido confrontado, o sujeito se deslocou, passando a constituir memória sob outra filiação discursiva, e desse lugar agora narra a sua pedagogia. Nota 1.As entrevistas foram realizadas por ........., aluna do curso ... ..... - Bolsista Voluntária do Projeto de Pesquisa ............, coordenado pela Profa. .......... – e pela aluna ........ Referências ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido. In: ACHARD, P. et al. (org.) Papel da memória. Campinas, Pontes, 1999, p.11-17. PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. (org.) Papel da memória. Campinas, Pontes, 1999, p.49-57. PÊCHEUX, Michel. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes, 1990.