UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE
BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Direito
OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA
DEFESA NO INQUÉRITO POLICIAL
Aluna: Islene Gomes Mateus Silva
Orientador: Prof. MSc Heli Gonçalves Nunes
BRASÍLIA
2008
ISLENE GOMES MATEUS SILVA
OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO INQUÉRITO
POLICIAL
Trabalho apresentado ao curso de graduação
em Direito da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial para o Título
de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. MSc Heli Gonçalves Nunes
Brasília
2008
Trabalho de autoria de Islene Gomes Mateus Silva, intitulado “OS
PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO INQUÉRITO
POLICIAL”, requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito,
defendida e aprovada em______________________________, pela banca
examinadora constituída por:
_________________________________________
Prof. MSc Heli Gonçalves Nunes
Orientador
_________________________________________
Professor
Curso de Direito – UCB
_________________________________________
Professor
Curso de Direito – UCB
Brasília
2008
Dedico esta monografia a Pedro Mateus e
Solange Gomes, pais maravilhosos, que me
auxiliam sempre.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus, autor da
vida, que por meio de Seu Filho Jesus Cristo,
concedeu-me
força,
paciência
e
perseverança, ao exemplo de Santa Maria,
ante
muitas
dificuldades
ao
longo
da
graduação. Agradeço também ao professor
Heli Gonçalves Nunes pela incomensurável
orientação na elaboração deste trabalho e,
por fim, ao meu irmão, Israel Gomes Mateus
Silva, bacharel em direito, cujo apoio foi
essencial.
[...] A investigação criminal (ou o inquérito
policial, que nada mais é do que o expediente
que, em nossa estrutura processual penal,
corporifica a investigação) não serve à
acusação; serve à VERDADE, único norte
eticamente aceitável para esse momento da
persecução [...]
ROVÉGNO, André. O inquérito policial e os
princípios do contraditório e da ampla defesa.
1. ed. Campinas: Bookseller, 2005. p. 13.
RESUMO
SILVA, Islene Gomes Mateus. Os princípios do contraditório e da ampla defesa no
inquérito policial. Brasília. 2008. 85 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação
em Direito)-Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2008.
O presente estudo procura definir a amplitude dos dispositivos constitucionais que
dão tratamento aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa ante o inquérito policial, procedimento administrativo de estrutura inquisitiva.
Para tal, desenvolve-se, inicialmente, um exame analítico acerca da persecução
preliminar prévia e dos sistemas de processo penal, mormente o vigente no Brasil.
Em seguida, com a mesma dedicação científica, analisa-se o inquérito policial, bem
como os princípios do contraditório e da ampla defesa, a fim de compreender, em
capítulo finalístico, a posição doutrinária e jurisprudencial acerca do tema alvitrado.
Palavras-chave: devido processo legal; contraditório; ampla defesa; inquérito policial;
procedimento administrativo; estrutura inquisitiva.
RESUMÉN
SILVA, Islene Gomes Mateus. Los princípios del contraditório y de la amplia defensa
em el inqueruto de comisária. 2008. 85 ojas. Trabajo de conclusion de cursoFaculdad de Derecho-Universidad Católica de Brasília, 2008.
El presente estúdio busca definir la amplitud de los dispositivos constitucionales que
dan tratamiento a los princípios del proceso legal, del contraditório y amplia defensa
delante del inquéruto de comisária, procedimiento admistrativo de la estrutura
inquisitivo. Para tanto desarrolla, um examén analítico, acerca de la persecución
premilinar previa e de los sistemas de proceso penal, vigente en Brasil. Seguido de
la misma dedicacíon científica se analisa el inquéruto de comisária, como en los
princípios del contraditório y de la amplia defensa, para al fin comprender en el
capitulo final, la posicíon doctrinaria y jurisprudencial acerca del tema elegido.
Palabras-Claves: proceso legal, contraditório, amplia defensa, inqueruto de
comisária, procedimiento administrativo, estrutura inquisitivo.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – PERSECUÇÃO PENAL PRELIMINAR OU PRÉVIA ....................... 12
1.1
NOÇÕES ELEMENTARES............................................................................. 12
1.2
FUNÇÕES DA PERSECUÇÃO PENAL PRELIMINAR OU PRÉVIA .............. 14
1.3
SISTEMAS DE PROCESSO PENAL .............................................................. 15
1.3.1
Sistema acusatório ................................................................................... 16
1.3.2
Sistema inquisitório .................................................................................. 17
1.3.3
Sistema misto ............................................................................................ 18
1.3.4
O sistema de processo penal brasileiro ................................................. 18
CAPÍTULO 2 – INQUÉRITO POLICIAL.................................................................... 22
2.1
HISTÓRICO DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL.................................... 22
2.2
CONCEITO ..................................................................................................... 25
2.3
CARACTERÍSTICAS ...................................................................................... 26
2.3.1
Discricionário ............................................................................................ 27
2.3.2
Escrito ........................................................................................................ 28
2.3.3
Sigiloso ...................................................................................................... 28
2.3.4
Inquisitivo .................................................................................................. 30
2.2.5
Obrigatório ................................................................................................ 31
2.3.6
Dispensável ............................................................................................... 31
2.4
FINALIDADE................................................................................................... 32
2.5
NATUREZA JURÍDICA ................................................................................... 34
2.6
VALOR PROBATÓRIO ................................................................................... 36
2.7
POSIÇÃO DO INDICIADO NO INQUÉRITO POLICIAL ................................. 37
CAPÍTULO 3 – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO ................................................. 40
3.1
PRINCÍPIOS: NOÇÕES GERAIS ................................................................... 40
3.2
DEVIDO PROCESSO LEGAL ........................................................................ 41
3.3
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO ................................................................ 43
3.3.1
Contraditório e direito de defesa ............................................................. 46
3.3.2
Contraditório diferido ............................................................................... 48
CAPÍTULO 4 – PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA ................................................... 51
4.1
CONCEITO ..................................................................................................... 51
4.2
COMPOSIÇÃO DA AMPLA DEFESA ............................................................. 52
4.2.1
Autodefesa ................................................................................................ 53
4.2.2
Defesa técnica ........................................................................................... 55
4.3
DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E PRINCÍPIO DA
AMPLA DEFESA ............................................................................................ 56
CAPÍTULO 5 – OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO
INQUÉRITO POLICIAL ............................................................................................. 60
5.1
FUNDAMENTOS DA DISCUSSÃO PROPOSTA ........................................... 60
5.2
VERIFICAÇÃO DE COMPATIBILIDADE ENTRE O PRINCÍPIO DO
CONTRADITÓRIO E O INQUÉRITO POLICIAL ............................................. 61
5.3
VERIFICAÇÃO DE COMPATIBILIDADE ENTRE O PRINCÍPIO DA AMPLA
DEFESA E O INQUÉRITO POLICIAL ............................................................ 63
5.4
POSIÇÃO DOUTRINÁRIA ACERCA DO TEMA ............................................. 67
5.5
POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL ACERCA DO TEMA .................................... 72
5.6
A RECENTE REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A
MANUTENÇÃO DO INQUISITIVO ................................................................. 74
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 76
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 78
10
INTRODUÇÃO
A promulgação da Constituição Federal de 1988 inseriu, no ordenamento
jurídico pátrio, diversos dispositivos de cunho garantidor. Dentre eles, destaca-se o
princípio do devido processo legal e seus corolários, o contraditório e a ampla
defesa, essências à manutenção da justiça nas relações processuais.
Considerada a relevância dos preceitos supramencionados, eclodiu o debate
acerca da aplicabilidade dos princípios do contraditório e da ampla defesa no
inquérito policial.
Nesse aspecto, com o fito de melhor compreender esta problemática e, por
conseguinte, obter uma solução que coadune interesses individuais e coletivos,
destina-se o presente estudo, embasado na doutrina e na jurisprudência, ao exame
do contraditório e da ampla defesa, bem como do inquérito policial, visando verificar
a existência de compatibilidade entre eles.
Ante a proposta evidenciada, o Capítulo 1 trata das bases essenciais à
compreensão do tema alvitrado, que são a persecução preliminar prévia e os
sistemas de processo penal.
Por vez, no Capítulo 2 é feito um exame detalhado do inquérito policial, a
contar de seu histórico no direito brasileiro, com ênfase para aspectos como
definição, características, finalidade, natureza jurídica, valor probatório e a posição
do indiciado nesse expediente criminal.
Já os Capítulos 3 e 4 apresentam uma análise acerca dos princípios do
contraditório e da ampla defesa, respectivamente.
Finalmente, no Capítulo 5, discute-se, com base nos fundamentos teóricos, a
possibilidade de aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa no
inquérito policial, considerando, para tal, as posições doutrinárias e jurisprudenciais,
sem desprezar a recente reforma parcial do Código de Processo Penal, que, mesmo
isenta de tratamento direcionado a primeira fase da persecução criminal, optou pela
manutenção do inquisitivo, influenciando na conclusão do estudo desenvolvido.
Em acréscimo, insta ressaltar que no desenvolvimento deste trabalho, será
utilizada a técnica de pesquisa bibliográfica, consultas a livros jurídicos,
jurisprudências, Constituição Federal, Código de Processo Penal, Estatuto da OAB,
11
leis esparsas e artigos específicos sobre o tema, cuja publicação se deu em revistas
jurídicas e na internet.
12
CAPÍTULO 1 – PERSECUÇÃO PENAL PRELIMINAR OU PRÉVIA
1.1
NOÇÕES ELEMENTARES
O Estado detém, privativamente, o dever de aplicação da pena na execução
do ius puniendi, uma vez que “assumiu a exclusividade de exercitar o direito de
punir” 1.
Dessa forma, ao ocorrer um ilícito penal, emerge a persecutio criminis, que é
“atividade estatal destinada a obter a aplicação da pena” 2, composta por duas fases
distintas.
Nesse norte, André Rovégno preleciona:
[...] cabe ao Estado, por vezes, dupla tarefa, tendente a concretização da
justiça penal: verificar preliminarmente se há indicação segura da ocorrência
de crime e, na hipótese afirmativa, dar concretude ao processo como meio
inafastável da aplicação da pena cabível. Essa tarefa é chamada
normalmente de persecutio criminis¸ podendo-se afirmar que o ius
3
persequendi é justamente o poder dever de levar a efeito tal persecução.
Posto isso, resta patente que a persecutio criminis ou persecução penal
engloba, em primeiro momento, a atividade preliminar voltada à verificação da
ocorrência do crime, na qual são definidas a materialidade e a autoria da infração
penal e, em segundo momento, a ação penal ou o processo penal propriamente dito,
no qual é proferida uma sentença definitiva, com a aplicação da pena cabível ou
absolvição do acusado.
A respeito, Julio Fabbrini Mirabete discorre:
Nos termos do art. 4º do CPP, cabe à polícia judiciária, exercida pelas
autoridades policiais, a atividade destinada à apuração das infrações penais
e da autoria por meio do inquérito policial, preliminar ou preparatório da
ação penal. À soma dessa atividade investigatória com a ação penal
promovida pelo Ministério Público ou ofendido se dà o nome de
persecução penal (persecutio criminis). Com ela se procura tornar efetivo o
jus puniendi resultante da prática do crime a fim de se impor a seu autor a
sanção penal cabível. Persecução penal significa, portanto, a ação de
perseguir o crime. Assim, além da idéia da ação da justiça para punição ou
condenação do responsável por infração penal, em processo regular, inclui
_____________
1
Direito penal: parte geral, de autoria de João Batista Texeira, a ser publicado, 2005.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas-SP: Millenium,
2000. v. 1, p. 138.
3
ROVÉGNO, André. O inquérito policial e os princípios constitucionais do contraditório e da ampla
defesa. 1. ed. Campinas-SP: Brookseller, 2005. p. 55.
2
13
ela os atos praticados para capturar ou prender o criminoso, a fim de que se
4
veja processar e sofrer a pena que lhe foi imposta.
O estudo proposto neste trabalho objetiva esmiuçar o inquérito policial,
expediente policial que materializa a primeira fase da persecução penal, atividade
estatal cuja justificação se dá “em razão do ônus que significa para o indivíduo ter
contra si um processo penal” 5.
Acerca do mencionado, Maria Thereza Rocha de Assis Moura expõe:
O processo penal, é sabido, constitui sanção negativa em si mesmo.
Carregado de simbolismo, produz efeitos indeléveis em quem o sofre,
mesmo que a ação penal ao fim termine em sentença penal absolutória. O
6
indivíduo sofre e padece o processo penal.
Tendo em vista que a persecutio criminis, envolvendo as duas fases que lhe
são inerentes, toma por fim supremo não só o interesse público de aplicação da
pena, como também a redução do dano atribuído ao indivíduo que figura no pólo de
autor da infração, a persecução penal preliminar ou prévia adquire maior relevância,
porquanto persiste, nesse sentido, a necessidade de um procedimento prévio à
instauração da ação penal, destinado a colher provas que demonstrem a
materialidade e a autoria do fato, ressaltando-se que “não pode haver atuação
persecutória do Estado sem tipicidade” 7.
Assim, para acusar, deve-se ter prova obtida por meio de uma apuração
preparatória ou prévia à ação penal de natureza condenatória que demonstre, com
alguma certeza, a materialidade do fato, aparentemente ilícito e típico, e ao menos
indícios de autoria, co-autoria ou participação, sem esquecer os elementos de
convicção quanto à provável culpabilidade do indiciado.
Enfim, a necessidade de formar um conjunto probatório preliminar que dê
suporte ao aforamento da ação penal, sedimenta a persecução penal inicial ou
prévia.
_____________
4
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 78.
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.
131.
6
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para ação penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001. p. 246.
7
ROVÉGNO, 2005, p. 141.
5
14
1.2
FUNÇÕES DA PERSECUÇÃO PENAL PRELIMINAR OU PRÉVIA
A persecução penal preliminar ou prévia, cujos objetivos manifestos são
investigar o delito, bem como sua autoria, expõe dupla função, a saber:
preservadora e preparatória. 8
No tocante a primeira função, cabe destacar a seguinte citação alocada na
Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941:
É ele [o inquérito policial] uma garantia contra apressados e errôneos juízos,
formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou
antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas
circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perpicaz e circunspecta, a
autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma
provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a
sugestões tendenciosas. 9
Analisando a colocação supramencionada, percebe-se que é feita referência
à função preservadora da persecução penal prévia, conservando-se a qualidade de
inocente, bem como a liberdade do indivíduo que figure como provável autor da
infração penal, em face das acusações infundadas que possam eventualmente
surgir por meio da investigação.
Visto isso, é possível assentar que a função preservadora da persecução
penal preliminar ou prévia, instaurada quando o crime não apresenta inteireza de
elementos essenciais, concretiza a redução de alegações desprovidas de
fundamento, impedindo a manutenção de acusações formais temerárias.
A segunda função da persecução preliminar, qual seja, a preparatória,
destina-se ao cuidado exigido na proteção dos meios de prova, posto que os
vestígios inerentes ao fato delituoso sob investigação tendem a desaparecer,
tornando, em alguns casos, inoperante a propositura da ação penal pelo órgão de
acusação, devido à deficiência do conjunto probatório obtido em sede da persecutio
criminis inicial.
Conclui-se, diante do evidenciado, que a função preparatória da persecução
penal prévia resguarda “elementos destinados a valer no debate da causa”
,
10
_____________
8
SAAD, 2004, p. 32.
BRASIL. Exposição de motivos do Código de Processo Penal. Coordenação por Luiz Flávio Gomes.
5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 383.
10
ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1973. p.17.
9
15
capazes de servir ao julgamento decisivo da ação penal, por figurarem como
importantes fatores de convicção.
Acerca do assunto esboçado neste tópico, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo
leciona:
Imprescindível, portanto, a existência das duas fases no procedimento da
persecução penal, a primeira delas dita persecução, ou instrução, preliminar
ou prévia, apresentando dupla função, ou objetivo. O primeiro deles
preservador, diminuindo, ou minimizando, acusações infundadas,
temerárias e até caluniosas e evitando o custo de acusações inúteis. O
11
segundo, preparatório, acautelando eventuais meios de prova.
Em outro verbete, André Rovégno infere, com excelência, o papel da
persecução penal preliminar ou prévia no processo penal, ao assentar que:
O processo já começa a nascer na investigação criminal, haja vista que são
elementos por ela colhidos que embasam o juízo ministerial favorável ao
processo, bem como a decisão judicial que aceita a peça inicial de
12
acusação.
Sob égide das considerações expostas, próprias a caracterizar as funções
concernentes à persecução penal preliminar ou prévia, prossegue-se a fim de
delinear as considerações inerentes aos sistemas de processo penal, pois, conforme
determina o já citado Sergio Marcos de Moraes Pitombo:
Cada sistema processual penal adotou o meio de apuração prévia que lhe
aflorou cabente. Tomou em conta aspectos políticos e sociais, visando aos
respectivos destinatários, na procura do melhor instrumento, em
13
determinado instante histórico.
1.3
SISTEMAS DE PROCESSO PENAL
Na lição de Jacinto Nelson Miranda Coutinho, sistema é “conjunto de temas,
colocados em relação, por um princípio unificador, que formam um todo
pretensamente orgânico, destinado a uma determinada finalidade” 14.
_____________
11
PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Inquérito Policial: novas tendências. Belém: CEJUP, 1987. p.
21.
12
ROVÉGNO, 2005, p. 59.
13
PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Breves notas sobre o Anteprojeto de Lei, que objetiva
modificar Código de Processo Penal, no atinente à investigação policial. São Paulo: Método, 2001. p.
344.
14
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. São
Paulo: Editora Renovar, 2001. p.22.
16
Na seara processual penal, o sistema indica o caminho a ser seguido, com o
fito de alcançar um fim colimado, que é a verificação de fatos supostamente ilícitos.
Assim, o entendimento do processo penal exige a análise dos sistemas
processuais existentes, que são o acusatório, o inquisitório e o misto.
1.3.1 Sistema acusatório
Reside, na doutrina, dificuldade de se estabelecer características inerentes a
cada sistema, uma vez que atualmente não existe consagrado, em nenhum
ordenamento jurídico, uma estrutura processual pura.
Todavia, o traço distintivo essencial do juízo acusatório consiste na separação
dos poderes exercidos no processo; por um lado, o acusador persegue o crime e
pratica as faculdades de requerente, enquanto o acusado, resistindo à acusação,
exerce plenamente o seu direito de defesa, restando, ao tribunal, o poder de decidir.
Portanto, no sistema acusatório, o tribunal aparece como um árbitro entre as
partes – acusador e acusado – que se enfrentam na defesa de seus interesses, sob
observância do princípio da igualdade e da imparcialidade do julgador.
Nesse sentido, Salo de Carvalho destaca que:
A característica principal do modelo acusatório é a concepção do juiz como
sujeito passivo tanto no que concerne à iniciativa da ação quanto à gestão
da prova, estando rigidamente separado das partes, principalmente do
órgão acusador. [...] A radical separação entre juiz e acusação é o mais
15
importante de todos os elementos do modelo acusatório.
Acrescente-se que a aplicação do princípio do contraditório, bem como a
manutenção
da
prisão
do
acusado,
somente
em
casos
de
extrema
excepcionalidade, identifica outros traços constituintes da sistemática acusatória.
Em síntese, consoante exposição do autor Guilherme de Souza Nucci, são
características do sistema acusatório:
A nítida separação entre o órgão acusador e o julgador; há liberdade de
acusação, reconhecido o direito ao ofendido e a qualquer cidadão;
predomina a liberdade de defesa e a isonomia entre as partes no processo;
vigora a publicidade do procedimento; o contraditório está presente; existe a
_____________
15
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantia: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2001. p.27-28.
17
possibilidade de recusa do julgador; há livre sistema de produção de provas;
predomina maior participação popular na justiça penal e a liberdade do réu
16
é a regra.
1.3.2 Sistema inquisitório
O processo inquisitivo surgiu para evitar as injustiças cometidas na
sistemática acusatória. No entanto, tornou-se um instrumento de tortura e opressão,
por isso a confissão, considerada rainha das provas, era obtida mediante atos que
atentavam contra a integridade física e psicológica dos indivíduos, ao tempo,
desprovidos de direitos e garantias fundamentais.
Outro aspecto significante do sistema inquisitivo encontra-se fundado na
concentração de todos os poderes inerentes ao processo em uma única mão, a do
inquisitor ou juiz.
A respeito, André Rovégno assevera:
No sistema inquisitivo, temos apenas um sujeito atuante: o juiz. Reúne sob
a sua batuta, a função de decidir e aquela de perquirir. [...] Existe apenas
um sujeito e um objeto. O juiz é o sujeito; o acusado, o objeto. [...] Na ação
do juiz entendem-se enfeixadas as funções de acusar e defender, além,
17
logicamente, daquela de julgar.
Desse modo, pode-se afirmar que o método inquisitivo está baseado no valor
do fim a ser atingido, ou seja, a verdade real, independente dos meios necessários
(investigação secreta, ausência de contraditório) para alcançá-la. É, sem objeção,
um sistema no qual a segurança social e a liberdade individual entram em choque,
devendo prevalecer o interesse coletivo.
Em resumo, Fernando da Costa Tourinho Filho assinala como traços
identificadores do sistema inquisitório:
A concentração das três funções: acusadora, defensora e julgadora, em
mãos de uma só pessoa; a sigilação; a ausência de contraditório; o
procedimento escrito; os juízes permanentes e irrecusáveis; as provas
_____________
16
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 64.
17
ROVÉGNO, 2005, p.231-232.
18
apreciadas de acordo com regras mais aritméticas que processuais; a
18
confissão era elemento suficiente para a condenação.
1.3.3 Sistema misto
O que caracteriza o sistema misto é a existência de dois formatos, o
inquisitivo e o acusatório, dentro do mesmo processo. Nesse sentido, Gilson Bonato
leciona:
No sistema misto, o procedimento é uma das suas principais facetas,
fazendo jus ao nome que o sistema recebe. Há um jogo alternado do
interesse público em sancionar os delitos e em conservar a liberdade do
cidadão. O procedimento tem início através de uma investigação preliminar
que dê suporte para uma acusação ou determine, caso contrário, o
encerramento da persecução penal. Esse procedimento preliminar mantém
as principais características do sistema inquisitório, limitando a defesa, mas,
por outro lado, não pode também servir para um juízo de condenação, que
19
somente poderá ser decretado após uma instrução contraditória.
Considerando o tratamento predecessor dado aos sistemas acusatório e
inquisitório, cabe trazer à baila a conclusão sintética do autor Guilherme de Souza
Nucci, acerca da sistemática em apreço:
O sistema misto uniu as virtudes dos dois anteriores, caracterizando-se pela
divisão do processo em duas grandes fases: a instrução preliminar, com os
elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento, com a
predominância do sistema acusatório. Num primeiro estágio, há
procedimento secreto, escrito e sem contraditório, enquanto, no segundo,
presentes se fazem a oralidade, a publicidade, o contraditório, a
concentração dos atos processuais, a intervenção de juízes populares e a
20
livre apreciação das provas.
1.3.4 O sistema de processo penal brasileiro
_____________
18
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1,
p.73.
19
BONATO, Gilson. Devido processo legal e garantias processuais penais. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2003. p.97.
20
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 64.
19
Após
examinar as principais
características
inerentes
aos
sistemas
processuais penais, busca-se delimitar qual é o sistema processual vigente no
ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse
aspecto,
encontra-se
presente
na
doutrina,
divergência
de
posicionamento. Para determinados autores, o sistema de processo penal brasileiro
é acusatório, no entanto, os partidários da investigação policial inquisitiva sustentam
que o processo penal brasileiro adota o sistema misto.
A primeira corrente doutrinária, em razão dos princípios constitucionais
vigentes, mormente o contraditório e a ampla defesa, objetos centrais deste
trabalho, ensina que o sistema processual admitido no Brasil é o acusatório.
Tal corrente assinala, inclusive, que o Código de Processo Penal, datado de
1941, apresenta profundo descompasso com o sistema implantado pela Constituição
de 1988, a qual trouxe uma nova perspectiva para o direito processual penal,
demonstrando a adoção de um modelo acusatório.
Dessa forma, segundo a posição doutrinária em consideração, mostra-se
necessário adequar o Código de Processo Penal e as demais legislações
infraconstituicionais aos ditames do modelo acusatório instituído pela Carta Magna.
Entretanto, o cerne da questão em delimitação encontra-se alocado na
existência do inquérito policial, fase marcadamente inquisitiva que, devido a sua
natureza jurídica de procedimento administrativo, não possui força para afetar a
estrutura acusatória do processo penal pátrio.
Assim, para os adeptos do sistema acusatório, o inquérito policial não
apresenta mais do que uma inquisitividade substancial, incapaz de macular a feição
exclusivamente acusatória da fase propriamente judicial do processo penal
brasileiro.
Nesse sentido, Rogério Lauria Tucci conclui:
Verifica-se, destarte, que o processo penal moderno delineia-se inquisitório,
substancialmente, na sua essencialidade; ao mesmo tempo em que é,
21
formalmente, no tocante ao procedimento, acusatório.
Diversamente do já aventado, a segunda corrente doutrinária patrocina que o
sistema pátrio é misto, visto que, por determinação do Código de Processo Penal, as
provas são coligidas no inquérito policial, com todos os elementos do sistema
_____________
21
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 38.
20
inquisitivo e, somente em sede de ação penal, passam a vigorar as garantias
previstas no sistema acusatório constitucional.
Em postura favorável ao sistema misto, Marco Antonio de Barros manifesta:
Pese todo o respeito que se devota aos nobres doutrinadores, entendo que
o nosso sistema da persecução penal continua sendo misto. Inquisitivo na
sua fase primária, depositando no inquérito policial seu principal instrumento
de perquirição do fato ilícito [...]. Acusatório, na segunda fase, porque a
ação penal depende fundamentalmente da iniciativa do órgão de acusação,
seja ele representante do Ministério Público [...] ou o próprio ofendido ou
22
seu representante legal.
Outro aspecto salientado pelos partidários do sistema misto é o peso das
provas produzidas durante a investigação, mormente as irrepetíveis, que são
consideradas pelos magistrados, embasando, inclusive, sentenças condenatórias,
nas quais são feitas expressas referências ao conjunto de elementos probatórios
coligidos no inquérito policial. Isso, na visão de Antonio Magalhães, remanesce em
virtude da “cultura processual penal ainda predominantemente inquisitória, que
valoriza tudo aquilo que possa ser útil ao esclarecimento da chamada verdade real”
23
, finalidade precípua do processo penal.
Sob forte argumentação, Guilherme de Souza Nucci assegura que o sistema
processual misto predomina no ordenamento jurídico brasileiro:
Nosso sistema é “inquisitivo garantista”, enfim misto. Defender o contrário,
classificando-o como acusatório é omitir que o juiz brasileiro produz prova
de ofício, decreta a prisão do acusado de ofício, sem que nenhuma das
partes tenha solicitado, bem como se vale, sem a menor preocupação, de
elementos produzidos longe do contraditório, para formar a sua convicção.
Fosse o inquérito, como teoricamente se afirma, destinado unicamente para
o órgão acusatório, visando a formação da opinio delicti e não haveria de
ser parte integrante dos autos do processo, permitindo-se ao magistrado
24
que possa valer-se dele para a condenação de alguém.
A par das razões que norteiam a doutrina no tocante ao sistema processual
penal brasileiro, em que pese o objeto deste trabalho, qual seja delinear se existe,
de fato, possibilidade de aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa
no inquérito policial, mostra-se pertinente entender que a sistemática processual
penal pátria adotou o modelo misto, consoante asserção de Hélio Tornaghi:
_____________
22
BARROS, Marco Antonio de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 132.
23
GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001. p. 234.
24
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 65.
21
O procedimento Inquisitório é mais eficiente para a apuração dos fatos,
enquanto o acusatório oferece maiores garantias ao acusado. No primeiro,
o suspeito, o indiciado, o processado, enfim, é objeto de investigações; no
outro é sujeito de uma relação jurídica. Mas o sistema que deveria
prevalecer seria o misto, que reúne as vantagens e elimina os
25
inconvenientes dos outros dois.
Feitas as devidas anotações introdutórias, dá-se seguimento ao estudo
proposto, a fim de delinear os aspectos relevantes do inquérito policial.
_____________
25
TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 1, p. 17-18.
22
CAPÍTULO 2 – INQUÉRITO POLICIAL
2.1
HISTÓRICO DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL
No direito pátrio, sempre existiu alguma forma de apuração preliminar ou
prévia, constituindo a primeira fase da persecução penal.
Todavia, somente em 1871, com a promulgação da Lei nº. 2.033, regulada,
posteriormente, pelo Decreto nº. 4.824, ambos do mesmo ano, é que surgiu, na
ordem jurídica brasileira, a denominação inquérito policial com a seguinte definição
legal: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o
descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e
cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito” 26.
Ressalta-se que os textos legais supramencionados não criaram o inquérito
policial, mas acabaram por consagrá-lo, nos moldes e com a denominação
consolidada hodiernamente, porquanto “suas funções, que são de natureza do
processo criminal, existem de longa data” 27.
Em acréscimo, admitia-se a defesa do acusado durante o inquérito policial em
face dos atos de natureza documental. Contudo, os atos de investigação não
comportavam atuação defensiva do indiciado.
Após a reforma de 1871, o processo penal restou estruturado sobre uma
proposta de acusação, a denúncia ou queixa, baseada no inquérito policial e
legalizada com a pronúncia, conforme ocorre para os crimes dolosos contra a vida,
de competência do Tribunal do Júri, ainda hoje.
Com o advento da República, nova ordem constitucional foi instaurada em 24
de fevereiro de 1891, trazendo, em seu bojo, duas alterações cruciais: a primeira
relativa à quebra de unidade legislativa, permitindo aos Estados-membros legislar
em matéria de processo civil e penal, e a segunda a respeito da plenitude de defesa,
na persecução penal preliminar ou prévia, que recebeu o status de garantia
constitucional.
_____________
26
NUCCI,Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 187.
27
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 61.
23
Em alusão à quebra de unidade legislativa instituída pela Constituição da
República de 1891, José Frederico Marques dispõe:
O golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para
nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu
para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistema, o que, sem
28
dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal [...].
Infere-se da citação precedente que a autonomia dada aos Estados para
legislar em matéria processual resultou em disparidades entre as legislações
estaduais, bem como na inobservância das disposições processuais constitucionais,
rendendo críticas à descentralização do processo penal brasileiro que passou a
enfrentar problemas em sua aplicabilidade.
Exemplo disso é o fato de que, em alguns Estados, o inquérito policial, apesar
de não ter sofrido grandes mudanças em sua estrutura, perdeu a sua denominação
para o uso da expressão “investigação” 29.
Promulgada em 16 de julho de 1934, a nova Constituição brasileira extinguiu
o sistema pluralista instalado em 1891, restabelecendo a unidade legislativa
processual. Dessa forma, a competência para legislar em matéria de direito
processual cabia privativamente à União.
Em atenção ao artigo 11 das Disposições Transitórias da Constituição de
1934, foi apresentado ao Presidente da República, em 15 de agosto de 1935, o
Projeto de Código de Processo Penal, com Exposição de Motivos assinada pelo
então Ministro da Justiça, Vicente Ráo, razão pela qual o referido texto ficou
conhecido como Anteprojeto Vicente Ráo.
Dentre as principais inovações elencadas no projeto, destaca-se a proposta
de supressão do inquérito policial e a criação de um juizado de instrução, destinado
à produção de provas, em contraditório regular, ante o juiz processante, conferindo
as mais seguras garantias de defesa e a simplificação da ação penal.
Acrescenta-se que o juizado de instrução explorado no projeto, trata-se de um
órgão intermediário, pois sua atuação não excluía a ação da polícia, que seria
instrumento auxiliar de função investigatória, não atuando no interrogatório do
acusado e, tão pouco, no depoimento das testemunhas.
_____________
28
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. 19. ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2000. v. 1, p. 121-122.
29
QUEIROZ FILHO, Dilermando. Manual de Inquérito Policial. São Paulo: Editora Adcoas, 2000. p.
65.
24
Outrossim, faz-se necessário ressaltar que do modo como foi concebido pelo
Anteprojeto Vicente Ráo, o juizado de instrução, na verdade, não suprimia o
inquérito policial, mas, apenas, modificava sua nomenclatura para diligências
processuais, reservando à polícia os atos de preservação dos vestígios do crime,
que são irrepetíveis e definitivos.
Contudo, o Projeto Vicente Ráo não chegou a se converter em lei, uma vez
que o Golpe de Estado ocorrido em 10 de novembro de 1937 e a Constituição que
lhe seguiu bloquearam a aprovação e discussão do intento.
Na vigência do Novo Estado, instituiu-se uma comissão com a missão de
elaborar outro projeto de Código de Processo Penal, do qual adveio o Decreto–lei
3.689, de 03 de outubro de 1941, que é o Códex Processual Penal aplicado
hodiernamente.
Ao tratar da primeira fase da persecução penal, o Código de Processo Penal
de 1941, reformado pela Lei 11.690/2008, conservou o inquérito policial na
legislação pátria. O Ministro Francisco Campos, na Exposição de Motivos do
Decreto-lei 3.689, de 03.10.1941, justificou a manutenção desse expediente, com
fulcro nas seguintes alegações:
Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da
ação penal, guardadas as suas características atuais. O ponderado exame
da realidade brasileira que não é apenas a dos centros urbanos, senão
também a dos remotos distritos das comarcas do interior, desaconselha o
repúdio ao sistema vigente.[...]O preconizado juízo de instrução, que
importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos,
averiguar a materialidade dos crimes e testemunhas, só é praticável sob a
condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam
fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em comarcas
extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação de juizados
de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz instrutor
possuísse o dom da ubiqüidade.[...]Pode ser mais expedito o sistema da
unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com o inquérito
preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mas prudente e serena.
30
Em consideração aos dispositivos constitucionais da época, o Código
deslocou para o inquérito policial as funções do suprimido sumário de culpa,
atribuindo a esse procedimento administrativo o caráter de instrução preliminar que
perdura até os dias atuais.
_____________
30
BRASIL. Exposição de motivos do Código de Processo Penal. Coordenação por Luiz Flávio
Gomes. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 383.
25
Após explanação analítica do histórico referente ao inquérito policial no Brasil,
prossegue-se no exame desse instrumento de investigação criminal, tendo como
foco seus aspectos didáticos, que constituem as bases elementares do estudo
desenvolvido neste trabalho.
2.2
CONCEITO
Não obstante à quase uniformidade de conceitos atribuídos ao inquérito
policial, uma vez que a doutrina e a jurisprudência não têm amparado grandes
discrepâncias ao defini-lo, é válido expor, a seguir, o entendimento de alguns
doutrinadores a respeito deste instrumento de persecução penal.
Destarte, o autor Vicente de Paula Vicente Azevedo, apropriando-se da
etimologia inerente ao vocabulário inquérito, assinala:
[...] inquirir é o verbo que dá origem ao substantivo inquérito, equivale a
perguntar, indagar, procurar, numa palavra, averiguar o fato, ou os fatos que
ocorreram e qual o seu autor, ou quais os seus autores. Para realizar esse
objetivo, a autoridade, além de inquirir, isto é, interrogar as testemunhas, o
ofendido, o indiciado, -promoverá diligencias, inclusive, sempre que
possível-, a reconstituição dos fatos, a que o código chama reprodução
31
simulada.
Nessa linha de pensamento, Ismar Estulano Garcia define inquérito policial
como: “[...] peça informativa, compreendendo o conjunto de diligências realizadas
pela autoridade para apuração do fato e descoberta da autoria. Relaciona-se com o
verbo inquirir [...]” 32.
Por sua vez, José Frederico Marques sintetiza: “inquérito policial é um
procedimento administrativo-persecutório de instrução provisória, destinado a
preparar a ação penal” 33.
Para Tourinho Filho, inquérito policial é:
[...] o procedimento administrativo, preparatório e inquisitivo, presidido pela
autoridade policial, e constituído por um complexo de diligências realizadas
_____________
31
AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente. Curso de direito judiciário penal. São Paulo: Saraiva, 1958. v.
1, p.140.
32
GARCIA, Ismar Estulano. Inquérito - Procedimento Policial. 8. ed. Goiânia: AB Editora, 1999. p. 17.
33
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas/SP: Editora
Millenium, 2000. v. 1, p. 153.
26
pela polícia judiciária com, vistas à apuração de uma infração penal e à
34
identificação de seus autores.
Da mesma maneira, Augusto Mondin, ao conceituar inquérito policial, faz
menção à atuação da polícia judiciária:
[...] é, pois, o instrumento clássico e legal de que dispõe a autoridade para o
desempenho de uma das suas mais importantes funções. A sua elaboração
constitui, principalmente, ato de polícia judiciária, e tem por escopo apurar
35
não só os chamados crimes comuns [...].
Finalmente, Guilherme de Souza Nucci, manifestando posição hodierna,
depreende que o inquérito policial:
[...] trata-se de um procedimento preparatório da ação penal, de caráter
administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita
preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua
36
autoria.
Portanto, com alicerce nas definições retromencionadas, infere-se que o
inquérito policial é procedimento preliminar ou prévio, de natureza administrativa,
realizado por ação da polícia judiciária, a fim de apurar o fato, supostamente ilícito e
típico, bem como sua autoria, co-autoria e participação, fornecendo, assim,
elementos para atuação do Ministério Público, do Poder Judiciário, ou do particular
(na ocorrência de crimes destinados à ação penal privada).
Além disso, em que pese o tratamento instituído pela Lei nº. 9.099/95,
convém mencionar o conceito conclusivo do mestre e professor Arnaldo Siqueira,
para quem o “inquérito policial é procedimento legal destinado á apuração dos fatos
apresentados como infrações penais, quando a pena privativa for superior a dois
anos” 37.
2.3
CARACTERÍSTICAS
_____________
34
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1, p.
192.
35
MONDIN, Augusto. Manual de Inquérito Policial. 6. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1995. p. 5.
36
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 62.
37
LIMA, Arnaldo Siqueira de. Inovações no Inquérito Policial. 7. ed. Brasília-DF: Editora Universa,
2008. p. 19.
27
Ao conceituar inquérito policial, vislumbra-se que a ínfima variação presente
nas definições elaboradas pelos doutrinadores resulta da ênfase que é dada a uma
ou outra característica atribuída a esse procedimento administrativo.
Dessa feita, faz-se pertinente tecer alguns comentários acerca das principais
características inerentes ao inquérito policial.
2.3.1 Discricionário
Nos termos do art. 14 do Código de Processo Penal: “O ofendido, ou seu
representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será
realizada, ou não, a juízo da autoridade” 38.
Essa norma legal evidencia a discricionariedade atribuída ao delegado de
polícia, autoridade que, em razão de sua independência funcional, possui a
faculdade de nortear as investigações criminais conforme o seu entendimento,
estando ausente a necessidade de requerer, para isso, autorização judiciária.
Devido à discricionariedade, os atos realizados pela autoridade policial estão
imbuídos de auto-executoriedade, visando alcançar o fim colimado no inquérito
policial, que é a elucidação do fato, verificada, por conseguinte, a sua autoria, sob
observação das disposições constantes nos artigos 6º e 7º, ambos do Código de
Processo Penal, restando irrelevante a ordem estipulada.
Destarte, não há ilicitude no poder discricionário conferido aos delegados de
polícia, porquanto, conforme leciona José Frederico Marques “têm a faculdade de
operar, dentro, porém, de um campo cujos limites são fixados estritamente pelo
direito” 39.
Assim, embora a discricionariedade atribuída à autoridade policial, por força
do artigo 107 do Código de Processo Penal, não esteja exposta à suspeição, essa
característica não corrobora com arbitrariedades, podendo, inclusive, ser objeto de
controle jurisdicional, mediante a impetração de habeas corpus, mandado de
segurança ou outros remédios legais específicos.
_____________
38
BRASIL. Código de Processo penal. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed. São Paulo:
Rideel, 2007. p. 510.
39
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas/SP: Editora
Millenium, 2000. v. 1, p. 154-155.
28
2.3.2 Escrito
Os autos do inquérito policial concretizam a investigação criminal e instruem,
oportunamente, a ação penal, devendo, por imperativo da lei, apresentar forma
escrita.
Determina o art. 9º do Código de Processo Penal: “Todas as peças do
inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e,
neste caso, rubricadas pela autoridade” 40.
Nesse sentido, Julio Fabbrini Mirabete prescreve:
[...] o inquérito policial é um procedimento escrito, já que destinado a
fornecer elementos ao titular da ação penal. [...] Embora não esteja sujeito a
formas indeclináveis, como pode servir de base para a comprovação da
materialidade do delito, [...] exigi-se algum rigor formal da peça
41
investigatória.
Depreende-se, portanto, que a forma escrita do inquérito policial aliada á
exigência da lei processual penal vigente, estipulando que a autoridade presidente
do inquérito policial rubrique todas as peças do respectivo instrumento persecutório,
confere segurança jurídica ao procedimento realizado no decurso da investigação,
uma vez que essa restaria eminentemente contestável caso fosse embasada na
oralidade.
2.3.3 Sigiloso
É notório que, na busca pela verdade real, o sigilo se mostre imprescindível
em alguns casos, sendo necessário que a autoridade policial, em fase de
investigação, mantenha certa reserva quanto aos detalhes probatórios, os quais,
conhecidos pelas partes, poderão trazer grandes prejuízos à elucidação do fato,
bem como sua autoria.
_____________
40
BRASIL. Código de Processo penal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed.
São Paulo: Rideel, 2007. p. 510.
41
MIRABETE, 2005, p. 83.
29
Preceitua o art. 20 do Código de Processo Penal: “A autoridade assegurará
no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da
sociedade” 42.
Contudo, hodiernamente, o caráter sigiloso do inquérito policial resta
exacerbadamente mitigado, havendo doutrinas e entendimentos jurisprudenciais
(STF tem precedentes para elaboração de Súmula Vinculante nesse sentido) que já
prelecionam a sua revogabilidade, mormente em virtude da atuação do advogado no
decurso das investigações, por determinação do inciso XIV, art. 7º da Lei nº.
8.906/1994 (Estatuto da Advocacia):
São direitos do advogado:[...] XIV - examinar em qualquer repartição
policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou
em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e
43
tomar apontamentos.
A revogação supramencionada é, sem objeção, uma inovação contestável,
porquanto a manutenção do sigilo pela autoridade policial, em alguns casos, mostrase necessária para completa elucidação do fato sem que se lhe oponham, no
caminho, empecilho para impedir ou dificultar a colheita de informações com
ocultação ou destruição de provas e influências sobre testemunhas, “pois caso
venha ocorrer a divulgação das atividades policiais investigatórias, poderia tal
divulgação criar sérios embaraços ao esclarecimento do delito e sua autoria” 44.
Além disso, “o sigilo no inquérito policial, necessário à elucidação do fato ou
exigido pelo interesse da sociedade, tem ação benéfica, profilática e preventiva, tudo
em benefício do Estado e do cidadão”
. Desse modo, embora os partidários do
45
exercício do direito de defesa em sede de inquérito policial visualizem na ausência
de sigilo uma medida benéfica para o indiciado, esse remanesce exposto à
insegurança jurídica que a ampla divulgação da fase de investigação tende a
oferecer, considerando que dificilmente é possível para a sociedade dissociar o
indiciado de acusado, ou pior, de autor do delito.
Encerrando o presente aspecto, salienta-se que no tocante ao sigilo do
inquérito policial, os tribunais superiores apresentam, atualmente, entendimentos
_____________
42
BRASIL. Código de Processo penal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed.
São Paulo: Rideel, 2007. p. 510.
43
BRASIL. Estatuto da advocacia e a OAB. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4.
ed. São Paulo: Rideel, 2007. p. 1036.
44
SILVA, José Geraldo da. O Inquérito Policial e a Polícia Judiciária. 4. ed. Campinas/SP: Editora
Millenium, 2002. p. 174.
45
MIRABETE, 2005, p.83.
30
divergentes. Enquanto o STJ sustenta o sigilo em fase de investigação, estendendoo ao advogado, o STF, em postura contrária, defende ser impossível a manutenção
do sigilo, devido aos direitos inerentes à defesa, embora tal entendimento provoque
ruptura com o art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal. 46
2.3.4 Inquisitivo
Apesar da revogação supramencionada, o inquérito policial permanece
inquisitivo, uma vez que a discricionariedade atribuída ao delegado de polícia
continua prevista no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, cumpre anotar o ensinamento de Edgard Magalhães Noronha:
[...] o inquérito, entre nós, tem caráter inquisitivo, gozando por isso a
autoridade policial de descrição. Certo é que não se trata de arbítrio [...].
Mas suas atribuições são discricionárias; é ela que conduzirá a investigação
preparatória e, consequentemente, lhe é facultado agir dentro dos limites
47
legais.
Embora vigente o caráter inquisitivo do inquérito policial, atribui-se ao
advogado a prerrogativa de acompanhar o seu cliente e tomar conhecimento das
provas colhidas para possível medida judicial, inclusive habeas corpus, se for o
caso, pois na fase de inquérito o investigado não está isento de constrangimentos.
Acrescente-se, com cunho conclusivo, a visão de Romeu de Almeida Salles
Júnior a respeito do caráter inquisitivo em questão:
O inquérito policial é inquisitivo porque a autoridade comanda as
investigações como melhor aprouver. Não existe um rito preestabelecido
para a elaboração do inquérito ou andamento das investigações. [...] É
inquisitivo pelo fato de a autoridade comandar as investigações com certa
discricionariedade. [...] Para que se entenda o caráter inquisitivo do inquérito
basta atentar para o que dispõe o art. 107 do Código de Processo Penal:
“Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do
inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo
48
legal”.
_____________
46
Lima, Arnaldo Siqueira de. Inovações no Inquérito Policial. 7. ed. Brasília-DF: Editora Universa,
2008. p. 30-34.
47
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva,
1998. p. 21.
48
SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Inquérito policial e ação penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
1998. p. 17-18.
31
2.2.5 Obrigatório
A obrigatoriedade inerente ao inquérito policial se encontra esculpida no art.
5º, inciso I, do Código de Processo Penal: “Nos crimes de ação pública o inquérito
policial será iniciado: I - de ofício” 49.
Por isso, ao receber a notitia criminis, a autoridade policial não pode furtar-se
do dever de investigação, atividade ulteriormente materializa no inquérito policial.
Cumpre ressaltar que a obrigatoriedade dá origem à indisponibilidade, outra
característica aplicada ao inquérito policial, cujo fundamento legal está previsto no
art. 17 do Código de Processo Penal, seguinte a redação: “A autoridade policial não
poderá mandar arquivar autos de inquérito” 50.
Desse modo, uma vez realizada a obrigação de instaurar o inquérito policial,
por parte da autoridade policial, essa não possui discricionariedade para arquivá-lo.
Nesse aspecto, Julio Fabbrini Mirabete disserta:
Na hipótese de crime que se apura mediante ação penal pública, a abertura
de inquérito policial é obrigatória pois a autoridade policial deverá instaurálo, de ofício, assim que tenha a notícia da prática da infração (art. 5º, I). É
também indisponível, pois, uma vez instaurado regularmente, em qualquer
51
hipótese, não poderá a autoridade arquivar os autos (art. 17).
2.3.6 Dispensável
Não obstante a Constituição Federal de 1988 tenha reconhecido a
importância do inquérito policial ao inserir no texto constitucional as funções de
investigação e judiciária da Polícia Civil e da Polícia Federal 52, expressiva parcela da
doutrina pátria tem sustentado a dispensabilidade do inquérito policial, com
supedâneo no art. 27 do Código de Processo Penal:
Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público,
nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito,
_____________
49
BRASIL. Código de Processo penal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed.
São Paulo: Rideel, 2007. p. 509.
50
BRASIL. Código de Processo penal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed.
São Paulo: Rideel, 2007. p. 510.
51
MIRABETE, 2005, p. 83.
52
Lima, Arnaldo Siqueira de. Inovações no Inquérito Policial. 7. ed. Brasília-DF: 2008. p. 12.
32
informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os
53
elementos de convicção.
Contudo, a Constituição Federal guarda supremacia, devendo seu imperativo
legal prevalecer. Dessa forma, faz-se coerente reconhecer a imprescindibilidade do
inquérito policial que, na prática, “quase sempre é base de que se serve o órgão
acusador para o oferecimento da denúncia” 54.
Sob essa orientação, o douto professor Arnaldo Siqueira assinala: “o
argumento de que o inquérito policial é prescindível falece diante da realidade. É
meramente de cunho filosófico e doutrinário, sem respaldo na vida prática” 55.
Logo, não se mostra adequado asseverar que o inquérito policial é
dispensável ou prescindível, tendo em vista a sua importância como atividade da
polícia judiciária e instrumento de pacificação social, devido ao aparato investigatório
que concretiza.
2.4
FINALIDADE
Doutrina e jurisprudência pacificam o entendimento de que o inquérito policial
tem por finalidade “servir à ação penal, sendo assim, instrumento de coleta de dados
que serão utilizados pela acusação” 56.
Todavia, além do fim secundário mencionado, o inquérito policial suporta
outras finalidades acessórias, pois é a única base para que o julgador avalie, tanto a
possibilidade de concessão de esporádicas medidas cautelares, em sede de
investigação, quanto para que se decida acerca da instauração do processo sobre o
fato então apurado, manifestando, assim, o juízo de admissibilidade da ação penal,
denominado justa causa. 57
_____________
53
BRASIL. Código de Processo penal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed.
São Paulo: Rideel, 2007. p. 511.
54
SILVA, José Geraldo da. O Inquérito Policial e a Polícia Judiciária. 4. ed. Campinas/SP: Editora
Millenium, 2002. p. 85.
55
Lima, Arnaldo Siqueira. Inovações no Inquérito Policial. 7. ed. Brasília-DF: Editora Universa, 2008.
p. 20.
56
ROVÉGNO, 2005, p. 135.
57
ROVÉGNO, 2005, p. 137-138.
33
Salienta-se que, em algumas hipóteses, o inquérito policial produz um
conjunto de dados que não autoriza a deflagração da ação penal, no entanto,
nessas situações, não se pode afirmar que inquérito deixou de atingir a sua
finalidade, uma vez que se presta, precipuamente, à verdade real. 58
Em outras palavras, a autoridade policial, ao presidir o inquérito policial, firma
compromisso com a verdade e não com a acusação, podendo, assim, no exercício
de suas atribuições, evidenciar a culpabilidade do averiguado ou eximi-lo de uma
acusação infundada, como divulga Cleunice Bastos Pitombo:
Não se procura, apenas, prova ou elemento de convicção, destinados a
embasar a acusação. Busca-se, também, para o encontro de provas, que
interessem à defesa. Não é, e não pode ser concebido como medida posta
59
a serviço da incriminação [...].
Desse modo, resta patente a necessidade de superar a posição costumeira
que confere ao inquérito policial a finalidade única e exclusiva de servir à acusação.
Mais do que isso, como preceitua o Código de Processo Penal, a autoridade policial,
imbuída do dever de esclarecer as circunstâncias do fato, assume a concepção de
que o inquérito policial ultrapassa o fato típico e a autoria, averiguando, inclusive,
elementos que indiquem ausência de culpabilidade ou de antijuridicidade na conduta
do suspeito, evitando, com isso, uma demanda judicial inútil.
Acerca do mencionado, é válido trazer à baila o posicionamento de Rogério
Lauria Tucci:
Assim como no processo penal, também o inquérito policial visa à
reconstrução, o mais fiel possível, da hipótese fática. [...] do necessário
contraste das averiguações, exsurgirá, com a intensidade exigível, a
60
verdade material.
Portanto, o compromisso ético e jurídico do inquérito policial é com a
reprodução legítima dos fatos: a busca da verdade. Sempre que o faz atinge sua
finalidade. Assim, dizer que o inquérito policial tem por fim precípuo fornecer
elementos à acusação, é reduzir sua função, pois não guarda compromisso com a
_____________
58
BARROS, Marco Antonio de. A Busca da Verdade no Processo Penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 211.
59
PITOMBO, Cleunice Bastos. Da Busca e Apreensão no Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. v. 2, p. 105.
60
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 185.
34
acusação ou com a defesa, mas com a verdade, sobre a qual está alicerçada a
Justiça.
2.5
61
NATUREZA JURÍDICA
Na lição de Dilermando Queiroz Filho: “o inquérito é elaborado por [...]
autoridade policial, que pertence ao poder executivo, e por isso o procedimento
possui natureza administrativa” 62.
Destarte, considerando que o inquérito policial é originado por um órgão do
Estado (Polícia Federal ou Polícias Civis, nas infrações penais não militares) e não
se caracteriza a atuação nele contida por ser legislativa, judiciária ou mesmo
política, ausente a resolução de litígio concreto, pode-se afirmar que apresenta,
indiscutivelmente, índole administrativa.
E essa feição administrativa inerente ao inquérito policial retoma o debate
voltado para a delimitação do campo de incidência do art. 5º, incisos LIV e LV, da
Constituição Federal, onde se encontram consubstanciados os princípios do devido
processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
A Carta Magna impõe a observância desses preceitos nos processos
administrativos. Assim, na hipótese do inquérito policial ser entendido como
processo administrativo, a aceitação dos princípios evidenciados seria prontamente
admitida. No entanto, prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento de
que esse instrumento de persecução criminal é procedimento administrativo. 63
Confirmando o alegado, André Rovégno, ao interpretar a posição de Canuto
afasta a caracterização do inquérito policial como processo administrativo, uma vez
que esse instrumento persecutório não ampara um conflito de partes em posições
contrárias, como persiste na relação processual:
O autor sempre deixou bem claro que litigo há, somente, quando temos
pretensão e resistência. [...] Mas há lide, sim, quando os titulares desse
conflito encontram resistência mútua no tocante à submissão das
_____________
61
QUEIROZ FILHO, Dilermano. Manual de Inquérito Policial. São Paulo: Editora Adcoas, 2000. p.
199.
62
QUEIROZ FILHO, 2000, p. 46.
63
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 30.
35
pretensões legais em conflito [...] a lide pode gerar delito, já, o simples
conflito de interesses qualificado, não. Por isso, ‘o poder público não litiga
com o indiciado’, pelo simples fato de que não há pretensão punitiva no
inquérito. [...] Afinal, no inquérito policial, em nenhum sentido, se pode
perceber a existência de qualquer pretensão; [...]. Na investigação policial o
Estado, por meio de seus agentes, simplesmente esclarece a verdade sobre
64
o que ocorreu, reconstrói o fato.
Prosseguindo, sob uma perspectiva do direito administrativo, Hely Lopes
Meirelles conceitua procedimento como “a sucessão ordenada de operações que
propiciam a formação de um ato final objetivado pela Administração. É o iter legal a
ser percorrido pelos agentes públicos” 65.
Para o referido autor, o procedimento administrativo volta-se para um ato final
isento de carga decisória, pois não há, nesse momento, a litigiosidade característica
do processo administrativo.
Acrescente-se que a posição de Heli Lopes Meirelles diverge daquela
apregoada por Maria Sylvia Di Pietro
66
, para quem o uso do termo processo
administrativo equivale à noção de procedimento administrativo.
Nesse panorama, resta superada a argumentação de que o inquérito policial
apresenta natureza jurídica de processo administrativo, porquanto não se reveste a
preparar um ato final de cunho decisório, estando, no seu desenvolvimento,
desvinculado de ação seqüencial, posto que o ato anterior não é validade do
subseqüente, dada a discricionariedade conferida ao delegado de polícia.
O entendimento supramencionado encontra abrigo na lição de Odete
Medauar:
O encadeamento sucessivo dos atos ocorre não como algo eventual ou
meramente lícito, mas como algo juridicamente necessário e obrigatório, ou
seja, é requisito da idéia de processo, a existência de um caminho a ser
seguido que se encontre previamente estabelecido em documento
juridicamente imperativo. Isso [...] não existe no inquérito policial. [...] A lei
confere ampla margem de discricionariedade para que a autoridade policial
67
aprecie os múltiplos caminhos a seguir.
Afora os ensinamentos do direito administrativo, estudos ligados ao direito
processual penal afirmam que o inquérito policial guarda natureza jurídica de
procedimento. Essa idéia ganha força, inclusive, dentre aqueles que, ampliando o
_____________
64
ROVÉGNO, 2005, p. 53-54.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
1993. p. 138.
66
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 544
67
MEDAUAR, Odete. A processualidade no Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 25.
65
36
alcance do devido processo legal previsto na Constituição Federal, aceitam a
incidência dos princípios do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial. A
título de exemplificação, Rogério Lauria Tucci assegura que o inquérito policial é
“uma das modalidades de procedimento administrativo”. 68
2.6
VALOR PROBATÓRIO
“O inquérito, como instrução provisória, tem apenas valor informativo.” 69
A respeito, Vicente Greco Filho assinala:
No sistema brasileiro, o inquérito policial simplesmente investiga, colhe
elementos probatórios, cabendo ao acusador apreciá-los no momento de
dar início à ação penal, e ao juiz, no momento do recebimento da denúncia
70
ou queixa.
A par das colocações já expostas, pode-se afirmar que a doutrina e, no
mesmo sentido, a jurisprudência, asseveram ser o inquérito policial peça meramente
informativa, por limitar-se a fornecer elementos para a acusação, ou mesmo
embasar o próprio arquivamento, podendo, ainda, servir de subsídio para a
decretação de medidas e provimentos cautelares, garantindo o indivíduo em face de
acusações infundadas, não devendo, portanto, ser utilizado como meio precípuo
para obtenção de provas, devido à ausência do contraditório.
Contudo, alguns doutrinadores têm sustentado que o valor informativo do
inquérito policial não é absoluto, tendo em vista que esse possui atos irrepetíveis,
como descreve José Frederico Marques:
No inquérito, realizam-se certas provas periciais que, embora praticadas
sem a participação do réu, contêm em si maior dose de veracidade, visto
que nelas preponderam fatores de ordem técnica que, além de mais difíceis
de serem deturpados, oferecem campo para uma apreciação objetiva e
segura de suas conclusões. Ressalvada a hipótese de terem os peritos
falseado os dados em que se baseiam o seu laudo, essas provas periciais,
_____________
68
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 115.
69
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas/SP: Editora
Millenium, 2000. v. 1, p. 171.
70
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 92.
37
notadamente quando realizadas por funcionários do Estado, devem ter valor
71
idêntico ao das provas colhidas em juízo.
Note-se que as provas irrepetíveis não têm o condão de superar o valor
informativo do inquérito policial, principalmente em razão da ausência de
contrariedade nesse expediente criminal.
Em suma, Julio Fabbrini Mirabete, ao lecionar acerca do valor informativo do
inquérito policial, com maestria, finaliza:
[...] de caráter inquisitivo, o inquérito policial tem valor informativo [...].
Entretanto, nele se realizam certas provas periciais, [...] têm elas valor
idêntico ao das provas colhidas em juízo. O conteúdo do Inquérito, tendo
por finalidade fornecer ao Ministério Público os elementos necessários para
a propositura da ação penal, não poderá deixar de fluir no espírito do juiz na
formação de seu livre convencimento para o julgamento da causa, mesmo
porque integra os autos do processo, podendo o juiz apoiar-se em
elementos coligidos na fase extrajudicial [...] de acordo com o princípio do
livre convencimento que informa o sistema processual penal [...].
Certamente, o inquérito serve para colheita de dados circunstanciais que
podem ser comprovados ou corroborados pela prova judicial e de elemento
subsidiário para reforçar o que for apurado em juízo. Não se pode, porém,
fundamentar uma decisão condenatória apoiada exclusivamente no
72
inquérito policial, o que contraria o princípio do contraditório.
2.7
POSIÇÃO DO INDICIADO NO INQUÉRITO POLICIAL
Preliminarmente, nem todo envolvido em inquérito policial é indiciado, visto
que esse é “a pessoa eleita pelo Estado-investigação, dentro da sua convicção,
como autora da infração penal” 73.
“O indiciamento [...] deve ocorrer tão logo se reúnam os indícios, ou outros
elementos de convicção, que incriminem o suspeito como praticante do ato ilícito e
típico.”
. “Assim, [...] não é um ato discricionário da autoridade policial, devendo
74
basear-se em provas suficientes para isso” 75.
_____________
71
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas/SP: Editora
Millenium, 2000. v. 1, p. 172.
72
MIRABETE, 2005, p. 85.
73
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 80.
74
SAAD, 2004, p. 254.
75
NUCCI, 2007, p. 80-81.
38
Na lição de Sergio Marcos Moraes Pitombo, o indiciamento traz sérias
implicações:
[...] o indiciado afiançado, por exemplo, não se ausenta, nem muda de
residência, sem aviso e permissão, tendo-lhe, pois, restrita a liberdade de ir
e vir [...]. Pode, ainda, sofrer apreensão e seqüestro de bens, providências
cautelares, coarctantes dos direitos de posse e propriedade [...]. No plano
76
fático, padece limitações econômicas, como o cerceamento do crédito.
“Portanto, desde quando reunida prova que aponte o suspeito como provável
autor do delito, o indiciamento deve ser visto como um marco, a partir do qual uma
série de deveres e direitos pode, e deve, ser exercida.” 77
Contudo, verifica-se, na doutrina e na jurisprudência, divergência de
entendimento com relação à posição do indiciado no curso do inquérito policial. Para
determinada corrente, ele é considerado objeto de investigação ou fonte de provas,
em contrapartida, é tomado pelos demais como sujeito de direitos.
Aqueles que militam a favor do contraditório e da ampla defesa em sede de
inquérito policial, asseveram que, indubitavelmente, o indiciado não pode mais ser
considerado mero objeto da investigação, tendo em vista que a Constituição Federal
confere direitos e garantias a serem observados pelas autoridade policial no curso
da persecução preliminar prévia.
Em posição adversa, expressiva parcela da doutrina, que refuta a incidência
do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial, permanece no entendimento
de que o indiciado é objeto da investigação.
A respeito, Guilherme de Souza Nucci assinala:
Não é ele, como no processo, sujeito de direitos, a ponto de poder requerer
provas e, havendo indeferimento injustificado, apresentar recurso ao órgão
jurisdicional superior. Não pode, no decorrer da investigação, exercitar o
contraditório, nem a ampla defesa, portanto. [...] Por isso, é considerado
78
como objeto da investigação.
No mesmo sentido, Hélio Tornaghi discorre:
[...] acertadamente evitou o Código a palavra acusado na fase do inquérito
policial. Como é óbvio, somente pode haver acusado depois da acusação,
isto é, da queixa ou da denúncia. É certo que, excepcionalmente, a lei
defere a possibilidade de defesa ao simples indiciado, colocando-o na
situação de quase imputatus. [...]. Nem por isso, entretanto, deve
considerar-se acusado [...] a defesa se exerce aqui contra a restrição, não
_____________
76
PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Inquérito Policial: Novas Tendências. São Paulo: CEJUP,
1987. p. 42-43.
77
SAAD, 2004, p. 254.
78
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 82-83.
39
contra a acusação. Tem pressuposto de direito processual, não de direito
79
penal.
Em vista disso, o debate acerca da posição ocupada pelo indiciado em sede
de inquérito policial produz, na realidade fática, efeitos limitados, pois, seja na
qualidade de sujeito de direitos ou na condição de objeto da investigação, goza das
benesses legais inerentes ao que é, de fato, ou seja, investigado.
Sob essa orientação, Guilherme de Souza Nucci arremata:
Ao afirmar-se ser o indiciado objeto da investigação não significa dizer que
ele é sujeito desprovido de direitos, isto é, uma coisa qualquer, no sentido
inanimado que o termo pode representar, mas tão-somente representa o
valor de ser o suspeito, o alvo da investigação produzida, sem que possa
80
nesta interferir, como faz, regularmente, no processo penal instaurado.
Ante as noções basilares sobre o inquérito policial, os próximos capítulos se
destinam à análise acurada dos princípios do contraditório e da ampla defesa, a fim
de ser verificada, posteriormente, a compatibilidade entre esses cânones e aquele
procedimento administrativo de caráter inquisitório e informativo.
_____________
79
TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. v. 2, p.253.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 83.
80
40
CAPÍTULO 3 – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
3.1
PRINCÍPIOS: NOÇÕES GERAIS
“Princípio, etimologicamente, significa causa primária, momento em que algo
tem origem, elemento predominante na constituição de um corpo orgânico, preceito,
regra, fonte de uma ação”. 81
Noutros termos, “os princípios traduzem os valores fundamentais da
sociedade sobre determinada matéria e têm valor superior àquele dado às regras” 82.
Em Direito, princípio jurídico:
[...] é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande
generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do
direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a
83
aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.
A partir das colocações explanadas, depreende-se que o termo princípio
enuncia começo, origem, exercendo a função de vetor destinado a adequar,
interpretar e materializar as normas que compõem o sistema jurídico.
Acerca do mencionado, é válido trazer à baila o entendimento de Guilherme
de Souza Nucci, para quem:
Cada ramo do direito possui princípios próprios, que informam todo o
sistema [...]. O processo penal não foge à regra, sendo regido,
primordialmente, por princípios, que, por vezes, suplantam a própria
literalidade da lei. Na Constituição Federal encontramos a maioria dos
84
princípios que governam o processo penal brasileiro.
Nesse sentido, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e
Cândido Rangel Dinamarco conceituam princípios constitucionais aplicados ao
processo como “preceitos fundamentais que dão forma e caráter aos sistemas
processuais” 85.
_____________
81
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 33.
82
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Direito Tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 26.
83
CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 11. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1998. p. 31.
84
NUCCI, 2007, p. 33.
85
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 50.
41
Frente a essas noções básicas, o capítulo em comento destina-se ao estudo
do princípio constitucional do contraditório, espécie do gênero devido processo legal,
cujo tratamento indispensável é feito a seguir.
3.2
DEVIDO PROCESSO LEGAL
O devido processo legal, importante princípio da ordem constitucional
brasileira, encontra-se previsto no art. 5º, LIV, da CF/88: “ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” 86.
A respeito, André Rovégno leciona:
Por devido processo legal, numa primeira aproximação, deve-se entender a
idéia de que toda ação estatal, que possa vir a repercutir negativamente no
patrimônio jurídico do indivíduo, deve vir estruturada sob a estrita
observação de todas as garantias de defesa do cidadão perante o Estado,
inscritas tanto na Constituição Federal, como nos textos que especificam o
87
seu conteúdo essencial.
Verifica-se que o constituinte, ao inserir no direito pátrio a regra do due
processo f law ou devido processo legal, englobou, em uma só cláusula legal, todos
os princípios e normas destinados à defesa do indivíduo inserido numa relação
processual.
Sob essa orientação, Fernando da Costa Tourinho Filho afirma: “nesta
expressão – due processo f law – estão todas as garantias processuais” 88.
Em outro verbete, José Joaquim Gomes Canotilho, ao conceituar o princípio
do devido processo legal, assinala:
[...] é um conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram
às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro,
são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não
servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos
[...] destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do
89
próprio processo [...].
_____________
86
BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed. São
Paulo: Rideel, 2007. p. 45.
87
ROVÉGNO, 2005, p. 242-243.
88
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1,
p.243.
89
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed.
Coimbra: Editora Almedina, 1997. p. 406.
42
Considerando a citação supramencionada, é notável que o princípio do
devido processo legal emana finalidade integrativa, pois , de um lado, assegura às
partes o exercício de suas faculdades e poderes de natureza processual e, de outro,
legitima a própria função jurisdicional.
Indubitavelmente, a regra do due process of law possui excessiva
abrangência. Nesse sentido, Alexandre de Moraes sustenta:
[...] configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material
de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal,
ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e
90
plenitude de defesa.
Assim, o princípio do devido processo legal, caracterizado por sua extensa
amplitude, tutela tanto o direito material, quanto o direito processual.
De todo o exposto, infere-se a cláusula do due processo f law “como a
garantia das garantias do indivíduo, em face do poder do Estado, com destacado
papel, obviamente, em toda a persecução criminal” 91.
A doutrina elaborou um núcleo fundamental de garantias inseridas no devido
processo legal, que seria formado pela plenitude de defesa, publicidade, motivação
de decisões, juiz natural, duplo grau de jurisdição, direito à revisão criminal,
imutabilidade das decisões favoráveis transitadas em julgada e, principalmente, pelo
contraditório e pela ampla defesa, considerados princípios especificadores do devido
processo legal.
Aliás, Alexandre de Morais, acertadamente, preleciona: “o devido processo
legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório” 92.
Feitas as ponderações necessárias acerca do devido processo legal, é
importante ressaltar a existência do devido processo penal, um substrato elaborado
pela doutrina, que se refere ao liame persistente entre o processo penal e a
Constituição Federal, conforme assinala Luiz Antonio Câmara:
[...] a ligação estreita com a matriz constitucional é facilmente explicável:
não há outro momento da vida coletiva em que o indivíduo se coloque tão à
mercê do Estado como quando é criminalmente acusado. A desproporção
de forças, em tal momento, é avassaladora. Com o fito de atenuar a
vulnerabilidade do acusado ganham corpo as normas que ostentam
_____________
90
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2. ed. São
Paulo: Atlas, 2003. p. 153.
91
ROVÉGNO, 2005, p. 244.
92
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.p. 93.
43
garantias de seus direitos, a serem opostas à atuação estatal de molde a
93
torná-la não abusiva.
Com bases nas considerações acerca do devido processo legal, mormente no
tocante a sua amplitude, vislumbra-se que o processo, como instrumento que é, não
encontra fim em si, devendo, portanto, amparar as garantias inerentes à cláusula do
due processo of law, com destaque para o princípio do contraditório, tratado adiante.
3.3
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
O princípio do contraditório, garantia constitucional esculpida no art. 5º, LVI,
da CF/88: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes” 94, carece de conceitos precisos, uma vez que reside certa dificuldade
em delimitá-lo, por caminhar ao lado do devido processo legal e da ampla defesa.
Não obstante, Marco Antonio Marques da Silva, na tentativa de conceituar o
princípio do contraditório, dispõe:
O princípio do contraditório consiste na regra segundo a qual, sendo
formulado o pedido ou oposto um argumento a ser culpada certa pessoa,
deve-se dar a esta a oportunidade de se pronunciar, não se decidindo antes
de tal oportunidade. O contraditório impõe a conduta dialética do processo.
95
Para Guilherme de Souza Nucci, princípio do contraditório:
[...] quer dizer que a toda alegação fática ou apresentação de prova, feita no
processo por uma das partes, tem a outra, adversária, o direito de se
manifestar, havendo um perfeito equilíbrio na relação estabelecida pela
96
pretensão punitiva do Estado [...].
Por sua vez, Nelson Nery Júnior, enfatizando o liame existente entre o
contraditório e a ampla defesa, preleciona:
[...] o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em
manifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da
_____________
93
CÂMARA, Luiz Antonio. Prisão e Liberdade Provisória: Lineamentos e Princípios do Processo
Penal Cautelar. Curitiba: Juruá, 1997. p. 27.
94
BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed. São
Paulo: Rideel, 2007. p. 43.
95
SILVA, Marco Antonio Marques da. Juizados especiais criminais. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 46.
96
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 35.
44
igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional [...]
quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são
97
manifestações do princípio do contraditório.
A par dos conceitos formulados por alguns dos principais doutrinadores
brasileiros, verifica-se assentada influência exercida por Joaquim Canuto Mendes de
Almeida, para quem “o contraditório é, pois, em resumo, ciência bilateral dos atos e
termos processuais e possibilidade de contrariá-los” 98.
Vislumbra-se, portanto, que o contraditório tem sua definição sedimentada na
comunhão dos fatores ciência e participação. O primeiro traduz a imprescindibilidade
de comunicação da realização de um determinado ato processual às partes,
facultando às mesmas, já na participação, a possibilidade de manifestação tendente
a influenciar no convencimento do julgador, dentro de um período razoável e préestabelecido (equilíbrio entre ação e reação).
Sob essa orientação, Aury Lopes Junior explica que os pólos da garantia do
contraditório são informação e reação, porquanto a participação se realiza por
intermédio da reação, vista como resistência a pretensão acusatória. 99
Logo, resta patente que o contraditório pressupõe a existência de partes
(bilateralidade), pelo quê, em princípio, só tem sentido lógico num processo
acusatório, conforme assinala Fernando Capez: “contraditório é um princípio típico
do processo acusatório, inexistindo no inquisitivo" 100.
Incontestavelmente, a bilateralidade promove o princípio do contraditório
como instrumento de resolução justa no processo, visto que o julgador, ao receber a
participação de cada uma das partes envolvidas, aperfeiçoa a sua decisão. Nesse
sentido, Cândido Rangel Dinamarco afirma:
[...] existe toda uma trama de incertezas, probabilidades e riscos no direito
processual. Para aumentar a segurança e, com isso, a austeridade da
Justiça, possibilitando decisões e soluções mais justas e adequadas ao
101
direito material é que está aí a garantia do contraditório [...].
_____________
97
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997. p. 122.
98
ALMEIDA, 1973, p. 214.
99
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2005. p. 225.
100
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 28.
101
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 5. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002. v. 1, p. 100.
45
Esse movimento bilateral caracteriza a natureza dialética do processo
acusatório que, sob o crivo do contraditório, fornece subsídios para a justa prestação
jurisdicional.
Vicente Greco Filho, ao discorrer sobre o princípio do contraditório, enuncia
as seguintes realidades práticas:
[...] poder contrariar a acusação; poder requerer a produção de provas que
devem, se pertinentes, obrigatoriamente ser produzidas; acompanhar a
produção das provas, fazendo, no caso das testemunhas, as perguntas
pertinentes [...]; falar sempre depois da acusação; manifestar-se sempre em
todos os atos e termos do processo aos quais deve estar presente; recorrer
102
quando inconformado”.
Oportunamente, Edgard Magalhães Noronha, também dedicado ao estudo do
princípio em comento, salienta:
Além da participação na elaboração da prova [...], tem o contraditório como
característicos: que a partes sejam avisadas, com a necessária
antecedência, da data e lugar da prova ou diligência; sejam reveladas a
natureza e a finalidade da prova; admitida a presença do acusador e do
acusado; que se lhes faculte, provocar a atenção do juiz para certos
aspectos ou particularidades da prova. É que não há, no crime, provas de
defesa ou provas de acusação. Devem ser eles, sempre, provas da
103
verdade.
Nesse contexto, aplica-se o princípio do contraditório a toda atividade
desenvolvida no curso do processo penal, tendo em vista que “todo o resultado do
processo (em especial do processo penal) se assenta na verdade reconstruída em
juízo” 104.
Por fim, destaca-se o liame existente entre o contraditório e a isonomia
processual, que “se relacionam, pois ao se garantir a ambos contentores o
contraditório também se assegura tratamento igualitário” 105.
Sob essa orientação, Fernando da Costa Tourinho Filho assinala:
[...] vigora no processo penal tipo acusatório, a regra da igualdade
processual, segundo a qual as partes – acusadora e acusada – se
106
encontram no mesmo plano, com iguais direitos.
_____________
102
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 58.
NORONHA, 1998, p. 236.
104
ROVÉGNO, 2005, p. 255.
105
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 63.
106
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1,
p. 78.
103
46
Assim, é inegável a concomitância existente entre as idéias de contraditório e
isonomia, ressaltando-se que não são noções análogas.
Depreendido o princípio do contraditório, dá-se seguimento ao exame
alvitrado, a fim de distinguir o preceito em apreço do direito de defesa.
3.3.1 Contraditório e direito de defesa
Defesa é “ato ou efeito de defender, que é proteger-se, resguardar-se, agir
para evitar dano, prevenir, evitar ou repelir um ataque, responder a uma acusação”
.
107
A respeito, José Frederico Marques doutrina:
[...] o direito de defesa, em sua significação mais ampla, está latente em
todos os preceitos emanados do Estado, como substractum da ordem legal,
por ser fundamento primário de segurança jurídica na vida social organizada
108
[...].
Assim como o direito de ação, a defesa é um direito público (prestação da
tutela jurisdicional), subjetivo (o direito em tela é mera faculdade do acusado),
autônomo (independe o seu exercício de possuir o imputado efetivo direito que o
socorra) e abstrato (não depende da existência de direito concreto em prol do réu).
109
No processo penal, a defesa tem como escopo preservar os direitos do
acusado e, por isso, consiste em um momento infalível no processo, funcionando
como instrumento indispensável à realização da justiça.
Por sua vez, o contraditório, conforme as exposições anteriores, é:
[...] o contraste dialético entre posições assertivas opostas, dirigidas a se
elidirem reciprocamente, no esquema processual essa contraposição só
adquire sentido quando destinada à persecução de um terceiro imparcial,
110
[...] assim [...] o contraditório processual implica uma relação triádica.
_____________
107
CUNHA, Sérgio Sérvulo. Dicionário Compacto de Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 82.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed.Campinas-SP:
Millenium, 2000. v.1, p. 61.
109
PEDROSO, Fernando Almeida. Processo Penal. O Direito de Defesa: repercussão, amplitude e
limites. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 31.
110
GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001. p. 39.
108
47
Note-se que o contraditório e o direito de defesa devem ser vistos
separadamente, por não apresentarem unidade conceitual. É certo que para o
exercício da defesa exigi-se prévia ciência dos fatos e imputação, tal como ocorre
para a efetivação do contraditório, mas, nem por isso, eles se confundem. O
contraditório exige partes, em sentidos opostos. No entanto, se essas não existem e
não se instaura o contraditório, não se pode afirmar a inexistência de defesa. 111
Sob essa orientação, Aury Lopes Júnior disserta:
[...] quando falamos em “contraditório” na fase pré-processual, estamos
fazendo alusão ao seu primeiro momento, da informação. Isto porque, em
sentido estrito, não pode existir contraditório no inquérito porque não existe
uma relação jurídico-processual, não está presente a estrutura dialética que
caracteriza o processo. Não havendo o exercício de uma pretensão
acusatória, não pode existir a resistência. [...] esse direito à informação –
importante faceta do contraditório – adquire relevância na medida em que
112
será através dele exercida a defesa.
Indubitavelmente, o princípio do contraditório resta apartado do direito de
defesa. Este começa antes de se iniciar aquele, persistindo no decurso da marcha
processual. O direito de defesa é visível no contraditório, mas pode ser exercido de
modo autônomo, inclusive na primeira fase da persecução penal, em que não se
pode cogitar contraditoriedade. 113
Com efeito, no inquérito policial não se pode estabelecer contraditório, na
acepção técnica do termo, pois ainda não há parte acusadora, em sentido formal, ou
seja, “não há parte e contraparte” 114, nem tampouco há sujeito imparcial destinatário
do resultado. Todavia, a autoridade policial concentra em si poderes e funções que,
posteriormente, serão bipartidos entre o acusador – público ou privado – e o juiz.
Portanto, embora inadequado falar em contraditório no inquérito policial, não
se mostra pertinente asseverar como inadmissível, nessa fase, o direito de defesa.
Assim, Antonio Scarance Fernandes prescreve:
Há, sem dúvida, necessidade de se admitir a atuação da defesa na
investigação, ainda que não se exija o contraditório, ou seja, não se
115
imponha a necessidade de previa intimação dos atos a serem realizados.
_____________
111
SAAD, 2004, p. 218-219.
LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2001. p. 303.
113
BARBOSA, Marcelo Fontes. Garantias constitucionais de direito penal e de processo penal na
Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 81.
114
SOUZA, José Barcelos de. A defesa na polícia e em juízo: teoria e prática no processo penal. 6.
ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 29.
115
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 59.
112
48
Além disso, consoante ensinamento de Aury Lopes Júnior, diversos atos do
inquérito policial, em interpretação extensiva, estão imbuídos de coerção,
justificando garantir, ao investigado, o direito de defesa, como oposição de forças,
sob a assistência de um advogado, verificada a possibilidade de manter-se silente
ou de requerer provas que demonstrem sua inocência ou reduzam a sua
culpabilidade. 116
Infere-se das colocações explicitadas que o exercício da defesa no inquérito
policial independe do contraditório, pois comungando realidades diversas, o
afastamento de um não implica na inexistência do outro.
3.3.2 Contraditório diferido
Ao tratar do princípio do contraditório, emerge a possibilidade de sua
realização sob a forma diferida, posto que: “a Constituição não exige, nem jamais
exigiu, que o contraditório fosse prévio ou concomitante ao ato” 117.
Existem situações na persecução penal preliminar que não guardam
compatibilidade com o contraditório prévio, a saber: interceptação telefônica, busca
e apreensão, dentre outras hipóteses. Nesse sentido, o processo penal, destinado à
aferição da verdade real, tem admitido a realização do contraditório postergado, ou
seja, contrariedade adiada no tempo (diferido).
A idéia do contraditório diferido ganha força ante as provas periciais, que são
realizadas, imediatamente, ao longo da investigação criminal. Essas, dotadas do que
a doutrina denomina periculum in mora, são produzidas de maneira antecipada, na
ausência do contraditório prévio.
A respeito, vale a pena citar a lição de André Rovégno:
Não nos esqueçamos ainda que, muitas vezes, ao se realizar um exame
pericial (por exemplo, num local de encontro de cadáver), não se tem a mais
remota idéia de quem seja o autor de eventual homicídio, de tal forma que o
acusado, num eventual e futuro processo criminal é absolutamente
desconhecido. Pelas circunstâncias já mencionadas, sabe-se que os
_____________
116
LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2001. p. 34-35.
117
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.
47.
49
vestígios não subsistirão até o desfecho da investigação e eventual
instauração de processo. Assim, os exames têm de ser feitos
118
imediatamente.
Logo, conhecida a realidade da investigação criminal consubstanciada no
procedimento administrativo denominado inquérito policial, resta patente a aplicação
do contraditório diferido no tempo, a fim de resguardar os direitos e garantias
pertinentes ao indiciado, que em juízo, figura como acusado.
Nesse diapasão, opera-se o contraditório diferido naquelas situações em que
seria inconcebível a realização da modalidade preliminar, por impossibilidade de
efetivação (desconhecimento da identidade do autor da conduta supostamente ilícita
ou inconveniência para o resultado das diligências). Portanto, nas hipóteses de
afastamento do contraditório, este seria realizado ulteriormente, como precedente do
provimento definitivo, coadunando os interesses relativos à segurança social e à
liberdade individual.
Incontestavelmente, a previsão constitucional da cláusula do due processo of
law, bem como de seus corolários, os princípios do contraditório e da ampla defesa,
fez erigir, na sistemática processual hodierna, a nulidade dos atos que não zelem
pela observância desses preceitos primários.
Sendo assim, a efetivação do contraditório diferido, atende ao imperativo
constitucional supramencionado, uma vez que as provas coligidas no curso da
instrução criminal é que fornecerão subsídios para a prolação da sentença, sendo,
quase sempre, as mesmas provas do inquérito policial, renovadas e esmiuçadas em
juízo.
Em vista disso, remanesce evidenciado o valor atribuído à observância do
princípio do contraditório, que implica no reconhecimento da dignidade do acusado,
auxiliando na promoção da Justiça, quando do provimento final proferido pelo
julgador, no processo.
Acrescente-se que o contraditório diferido atende ao clamor da doutrina e da
jurisprudência, que têm exigido a aplicação desse princípio nos termos e limites
legais, para a apregoada democratização do processo 119, por intermédio da absoluta
_____________
118
ROVÉGNO, 2005, p. 264-265.
DELGADO, José Augusto. Princípio da instrumentalidade, do contraditório, da ampla defesa e
modernização do processo civil. Revista Jurídica, ano 49, n. 285, 2007, p. 31-60.
119
50
transparência e efetiva participação das partes, influenciado no encontro da verdade
real a ser fixada no julgamento final.
Importante salientar que o contraditório postergado no tempo tem sido
reconhecido devido à natureza jurídica do inquérito policial, procedimento
administrativo, caracterizado pela inquisitoriedade, cujas provas nele produzidas
somente serão submetidas a essa garantia constitucional na segunda fase da
persecução penal.
Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel
Dinamarco, ao lecionarem sobre o tema em questão, prescrevem:
O inquérito policial é mero procedimento administrativo que visa à colheita
de provas para informações sobre o fato infringente da norma e sua autoria.
Não existe acusação nessa fase, onde se fala em indiciado (e não acusado,
ou réu), mas não se pode negar que após o indiciamento surja o conflito de
interesses, [...]. Por isso, se não houver contraditório, os elementos
probatórios do inquérito não poderão ser aproveitados no processo, salvo
quando se tratar de provas antecipadas, de natureza cautelar (como o
120
exame de corpo de delito), em que o contraditório é diferido.
De todo o exposto, resta inegável o relevante papel exercido pelo princípio do
contraditório, mormente nos expedientes realizados na seara penal, onde o
investigado encontra exposição extrema. Por isso, a previsão constitucional deste
preceito tem movimentado a doutrina e a jurisprudência no sentido de delinear, com
maior precisão, seu campo de aplicação, que engloba, para alguns estudiosos,
como melhor será explanado em capítulo próprio, o inquérito policial.
Contudo, antes de ingressar no debate principal alvitrado neste trabalho, fazse necessário explorar o princípio da ampla defesa com a mesma acuidade
empregada no estudo do contraditório, a fim de fornecer guarita para os argumentos
expostos no último capítulo.
_____________
120
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 57.
51
CAPÍTULO 4 – PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA
4.1
CONCEITO
Tal como o contraditório, cujos aspectos relevantes para o estudo proposto
foram abordados preteritamente, o princípio da ampla defesa está inserido no rol de
garantias que compõem o devido processo legal.
A existência da cláusula do due processo of law na Constituição Federal é
pressuposto para a imposição da ampla defesa, que se encontra ligada ao princípio
do contraditório, em razão do que prescreve o art. 5º, LV, da Constituição Federal.
Por força do que foi enunciado, infere-se que a ampla defesa possui um liame
estrito com o devido processo legal, base legislativa para a aplicação de todos os
demais princípios, dos quais erige o contraditório, outro elemento indissociável da
ampla defesa.
Devido a esse entrelaçamento principiológico, a doutrina demonstra
dificuldades para fornecer um conceito individualizado ao princípio da ampla defesa.
Contudo, superando a colocação retromencionada, Alexandre de Moraes
compreende:
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de
condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos
tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se
121
entender necessário.
Nessa direção, Celso Ribeiro Bastos define ampla defesa como:
O asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem
trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a
verdade. É por isso que ela assume múltiplas direções [...]. Não é só em
juízo que se impõe a observância de procedimento que possibilite a defesa.
122
Por sua vez, Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é a:
[...] oportunidade de o réu contraditar a acusação através da previsão legal
de termos processuais que possibilitem a eficiência da defesa [...]
constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro
da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder
acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica
_____________
121
122
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 93.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. Saraiva, 2001. p. 234-235.
52
por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da
123
Justiça [...]; e e) poder recorrer da decisão desfavorável.
Oportunamente, Guilherme de Souza Nucci, em acepção voltada para o
processo penal, assinala:
Princípio da ampla defesa: significa que ao réu é concedido o direito de se
valer de amplos e extensos métodos para se defender da imputação feita
pela acusação. Encontra fundamento constitucional no art. 5º, LV. [...]
Assim, no processo criminal, perante o juiz togado, tem o acusado
assegurada a ampla defesa, isto é, vasta possibilidade de se defender [...]
oferecendo os dados técnicos suficientes para que o magistrado possa
considerar equilibrada a demanda, estando de um lado o órgão acusador e
124
de outro uma defesa eficiente.
Mediante as ponderações expostas, conclui-se que o princípio constitucional
da ampla defesa é garantia destinada, precipuamente, ao réu, que detém, em razão
dessa previsão legal, “o direito de ser ouvido, de apresentar suas razões e de
contra-argumentar as alegações do demandante, a fim de elidir a pretensão
deduzida em juízo” 125.
Embora as definições apregoadas tratem da ampla defesa destinada ao réu,
é importante ressaltar que essa visão resta equívoca, porquanto, devido ao princípio
da igualdade, a garantia em comento se volta a todas as partes envolvidas no
processo.
4.2
COMPOSIÇÃO DA AMPLA DEFESA
A
ampla
defesa
compõe-se
de
defesa
técnica
e
de
autodefesa.
Sinteticamente, o defensor exerce a defesa técnica, específica, profissional ou
processual, que exige a capacidade postulatória e o entendimento teórico. O
acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (por exemplo, quando é
_____________
123
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p.
179.
124
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais. p. 33-34.
125
ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Breves anotações sobre o princípio da ampla defesa. Jus
Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3166>. Acesso em: 05 ago. 2008.
53
interrogado) a intitulada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas
compõem a ampla defesa e serão abordadas, com maior clareza, a seguir.
4.2.1 Autodefesa
Na lição de Marta Saad:
A defesa comporta algumas classificações, podendo ser apartada em
defesa em sentido amplo e em sentido restrito, defesa em sentido subjetivo
e defesa em sentido objetivo e, por fim, defesa privada ou autodefesa e
126
defesa pública ou técnica.
A defesa em sentido amplo confunde-se com a defesa subjetiva,
configurando-se no direito individual ou na expressão de liberdade jurídica. É,
noutros termos, o “ato pelo qual o acusado, pessoalmente, ou por defensor,
contraria, ou repele a acusação, que lhe é feita” 127.
Em sentido restrito, defesa pode ser tomada como defesa objetiva,
exprimindo o direito de alguém “opor-se ao intento, a fim de garantir um direito, que
afirma existir e de que entende ser o titular” 128.
A defesa, subjetivamente considerada, toma-se como a faculdade, em
abstrato, de contrariar a ação penal e o que nela se deduz. Já a sua feição objetiva
remonta a defesa efetivada em um processo, consubstanciando o conjunto de
matérias, provas e argumentos de fato ou de direito que o acusado argüir em seu
favor.
Contudo, a mais relevante das classificações aparta a defesa segundo o
sujeito que a exerce. Assim, quando praticada pelo próprio indivíduo acusado no
processo penal, tem-se autodefesa. Se praticada por profissional habilitado, ocorre a
defesa técnica ou defesa pública. Ressalta-se que ambas compõem o princípio da
ampla defesa.
No entendimento de Antonio Scarance Fernandes:
_____________
126
SAAD, 2004, p. 225.
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim . Defesa penal: direito ou
garantia? Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 13, n. 144, 2005, p. 114.
128
MOURA, 2005, p. 114.
127
54
[...] autodefesa [...] é aquela exercida pelo próprio réu, em momentos
fundamentais do processo, não a que é patrocinada por advogado em seu
próprio benefício, quando acusado em processo criminal [...] Ela se
manifesta no processo de várias formas: direito de audiência, direito de
129
presença, direito a postular pessoalmente.
Diversamente, Fernando de Almeida Pedroso depreende que não se
confundem defesa pessoal e autodefesa, porquanto “esta é patrocínio próprio, vale
dizer, tem vislumbre quando o acusado, possuindo habilitação técnico-jurídica,
postula e debate em causa própria” 130.
Todavia, a posição supramencionada não é majoritária, razão pela qual Aury
Lopes Júnior, em vertente discrepante, afirma que:
[...] junto à defesa técnica, existem também atuações do sujeito passivo no
sentido de resistir pessoalmente à pretensão estatal. [...] o sujeito atua
pessoalmente, defendendo-se a si mesmo como indivíduo singular, fazendo
131
valer seu critério individual e seu interesse privado.
Sob essa orientação, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e
Antonio Magalhães Gomes Filho lecionam:
Com relação à autodefesa [...] se compõe ela de dois aspectos, a serem
escrupulosamente observados: o direito de audiência e o direito de
presença. O primeiro traduz-se na possibilidade de o acusado influir sobre
a formação do convencimento do juiz [...]. O segundo manifesta-se pela
oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações
132
e as provas produzidas [...].
Em suma, a autodefesa, também denominada defesa material ou genérica, é
exercida por meio de atuação pessoal do acusado, especialmente no ato do
interrogatório, momento em que este oferece sua versão acerca dos fatos ou invoca
o direito ao silêncio, ou ainda, quando, por si próprio, solicita a realização de provas,
traz à colação meios de convicção, requer a sua participação em diligências,
acompanha os atos de instrução. Assim, a autodefesa se torna efetiva no direito de
audiência ou na presença e participação, podendo ser exercida ou não, tendo em
vista que é um direito renunciável.
_____________
129
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 263.
130
PEDROSO, 1994, p. 27.
131
LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2001. p. 313.
132
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio. As
nulidades no processo penal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 79.
55
4.2.2 Defesa técnica
A defesa técnica, segundo componente da ampla defesa, é exercida por meio
de profissional habilitado, dotado de capacidade postulatória.
Essa espécie de defesa é indisponível, porquanto o Código de Processo
Penal, em seu art. 261, determina: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou
foragido, será processado ou julgado sem defensor”133.
Tem-se, portanto, que a defesa técnica deve ser sempre exercida
privativamente por advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do
Brasil, em todos os atos processuais, desde a instauração do processo,
Marta Saad, ao dissertar sobre a defesa técnica, destaca os fundamentos que
justificam a necessidade de assistência por profissional habilitado:
Fundamento político, segundo o qual o direito de defesa é garantia contra
as agressões e despotismo; o fundamento lógico, pelo qual a toda acusação
deve corresponder uma defesa, [...]; o fundamento natural ou psicológico,
segundo o qual o acusado carece de tranqüilidade para se defender; o
fundamento deontológico, pelo qual o acusado necessita de conhecimento,
experiência e serenidade para se defender; e, por fim, o fundamento
processual, segundo o qual a defesa trabalha a serviço do descobrimento
134
da verdade [...].
A respeito, Aury Lopes Junior acrescenta:
[...] a justificação da defesa técnica está na presunção de hipossuficiência
do sujeito passivo, de que ele não tem conhecimentos necessários e
suficientes como o acusador. Essa hipossuficiência leva o imputado a uma
135
situação de inferioridade ante o poder da autoridade estatal [...].
A efetivação do princípio da ampla defesa, no âmbito do processo, sujeita-se
à atuação conjunta da autodefesa e da defesa técnica, em que é estabelecida uma
relação de complementariedade e diversidade, por meio da defesa negativa ou
indireta, limitada à negativa dos fatos, ou da defesa positiva ou direta, sedimentada
em alguma prova da inocência.
Diversamente, Fernando Almeida Pedroso leciona que a defesa indireta tem
seu exercício em face do processo, enquanto a defesa direita combate o mérito. 136
_____________
133
BRASIL. Código de Processo penal. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed. São Paulo:
Rideel, 2007. p. 524.
134
SAAD, 2004, p. 205.
135
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2001. p. 306.
136
PEDROSO, 1994, p. 29.
56
Em suma, não desprezando algumas classificações esboçadas, basta, para a
realização da ampla defesa, que haja atuação conjunta da autodefesa e da defesa
técnica.
Conhecidos os aspectos basilares inerentes ao princípio da ampla defesa,
prossegue-se no estudo alvitrado, com o fito de estabelecer as diferenças existentes
entre esse preceito e seu corolário, o princípio do contraditório.
4.3
DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E PRINCÍPIO DA
AMPLA DEFESA
Com
espeque
nas
disposições
doutrinárias
acerca
dos
princípios
constitucionais do contraditório e da ampla defesa, infere-se que distingui-los não é
uma tarefa fácil, porquanto, embora Constituição Federal (art. 5º, LV) insira os dois
princípios em uma relação de complementariedade, grande parte da doutrina não
oferece um diferenciação segura para tais preceitos.
Nessa perspectiva, Gil Ferreira de Mesquita assinala:
[...] há uma certa confusão da doutrina ao tratar dos dois princípios ora em
análise. Talvez porque venham tratados no mesmo dispositivo
constitucional, são comentados em conjunto, restando dúvidas ao leitor a
137
respeito da sua distinção.
Marta Saad, ao discorrer sobre o assunto em tela, preleciona:
Embora a doutrina afirme que ampla defesa e contraditório não se
confundem, sustenta a maior parte, todavia, que ambos são indissociáveis,
variando apenas o entendimento acerca da relação que se estabelece entre
138
eles. Contudo, tal posição não é pacífica.
Feitos os comentários introdutórios, verifica-se a carência da doutrina em
fornecer critérios distintivos incontestáveis, quando se volta ao estudo do
contraditório e da ampla defesa.
A respeito, André Rovégno, fazendo alusão ao pensamento de exímios
doutrinadores brasileiros, disserta:
_____________
137
MESQUITA, Gil Ferreira de. Princípios do Contraditório e da Ampla defesa no Processo Civil
Brasileiro. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. p. 177.
138
SAAD, 2004, p. 217.
57
Araújo Cintra, Ada Pellegrini e Candido Dinamarco sustentam que o direito
de defesa se estriba no princípio do contraditório, o que faria supor que a
idéia forte, geradores da outra, seria a do contraditório. Também nesse
sentido é a lição de Evandro Fernandes de Pontes e Flávio Boechat
Albernaz, para quem a defesa é um elemento do contraditório, mas que
139
guarda com eles pontos de intersecção.
Contudo, o entendimento predominante na doutrina, depreende que o
contraditório estaria imbuído na ampla defesa, pois esta seria mais abrangente,
amparando a noção daquele.
Em vista disso, Marco Antonio Marques da Silva afirma estar “o contraditório
inserido no princípio maior que é a ampla defesa, com ele não se confundindo e a
ele não se restringindo” 140.
Sob essa orientação, Vicente Greco Filho assinala que “o contraditório pode
ser definido como o meio ou instrumento técnico para a efetivação da ampla defesa”
141
. E Alexandre de Moraes arremata: “o contraditório é a própria exteriorização da
ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio)” 142.
De fato, parcela da doutrina vislumbra na ampla defesa o princípio maior,
alegando que a idéia de defesa supera a noção de contraditoriedade.
Nessa seara, interessa trazer a colação o estudo desenvolvido por Gil
Ferreira de Mesquita, que na tentativa de apartar os princípios do contraditório e da
ampla defesa, utiliza os seguintes critérios: 1) distinção quanto aos destinatários; e
2) diferenciação quanto ao grau de dependência. 143
Com relação aos destinatários, o doutrinador supramencionado defende que
as garantias do contraditório e da ampla defesa devem ter seus efeitos estendidos
tanto ao autor quanto ao réu, ou seja, os corolários do due process of law são
destinados a todos os envolvidos na relação jurídica processual, respeitando-se,
com isso, outro mandamento constitucional, que é o da isonomia.
Ressalta-se que o conteúdo do contraditório tem por fundamento a expressão
audiatur et altera pars, garantidora da ciência bilateral dos atos e termos processuais
que é realizada por meio de atos de comunicação (citação, intimação, notificação),
alcançando tanto o autor, quanto o réu. Em contrapartida, a ampla defesa tem por
_____________
139
ROVÉGNO, 2005, p. 274.
SILVA, Marco Antonio Marques da. Tratado Temático de Processo Penal. São Paulo: Editora
Juarez de Oliveira, 2002. p. 132.
141
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1,
p. 58.
142
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 93.
143
MESQUITA, 2003, p. 177.
140
58
fundamento o direito de alegar fatos relevantes juridicamente e a possibilidade de
comprová-los por quaisquer provas lícitas. Assim, “ao contrário do que ocorre com o
contraditório, a ampla defesa é garantia que atinge somente o réu. O autor [...]
produz provas [...] mas isso decorre do direito de ação” 144.
Em vista disso, embora a doutrina estenda a ampla defesa a ambos os
litigantes, seus efeitos são inerentes e exclusivos à figura do réu, cabendo ao autor
promover a defesa de seus interesses com base no direito de ação.
Além disso, o direito de ação e o direito de defesa devem ser considerados
como conseqüentes diretos um do outro. Por isso, ambos devem ser entendidos
como direito público subjetivo abstrato (tese já defendida no capítulo 2) de acionar o
Estado para que este tutele seus interesses. Nesse sentido, Antonio Carlos de
Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, manifestam:
”tanto o direito de ação como o de defesa compreendem uma série de poderes,
faculdades e ônus, que visam à preparação da prestação jurisdicional” 145.
Logo, o autor, quando se defende, permanece no exercício de seu direito de
ação, que lhe garante os mesmo direitos de defesa conferidos ao réu pelo princípio
da ampla defesa.
No tocante às partes, Gil Ferreira de Mesquita conclui que a bilateralidade,
envolvendo ação e atuação defensiva, torna o exercício da defesa dos interesses
das partes distinto em base principiológica: o autor o exerce em razão do princípio
da ação; o réu, em face do princípio da ampla defesa. 146
Outro aspecto desenhado por pequena parcela da doutrina, refere-se à
dependência existente entre os princípios do contraditório e da ampla defesa,
fazendo erigir um conceito inovador denominado “ampla defesa através do
contraditório”, ou ainda, “contraditório adequado à ampla defesa” 147.
Todavia, a visão retromencionada não tem maior sustentáculo na doutrina
brasileira, permanecendo a idéia de que a Carta Magna trouxe, no mesmo
dispositivo legal, dois princípios apartados, que são o contraditório e ampla defesa.
_____________
144
SAAD, 2004, p. 179.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 228-229.
146
MESQUITA, 2003, p. 184.
147
MENDONÇA JÚNIOR, Delosmar Domingos de. Princípios da ampla defesa e da efetividade no
processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 112.
145
59
Gil Ferreira de Mesquita infere que o contraditório é que possibilita a ampla
defesa. O réu somente poderá contestar aquilo que tem conhecimento. “O
contraditório funcionará como um gatilho para a ampla defesa, é o plus necessário
para o desencadeamento de todas as suas conseqüências” 148.
Comunga da mesma opinião Rui Portanova, para quem:
O princípio da ampla defesa é uma conseqüência do contraditório, mas tem
características próprias. Além do direito de tomar conhecimento de todos os
termos do processo (princípio do contraditório), a parte também tem o
149
direito de alegar e provar o que alega [...].
Portanto, a relação de dependência entre o contraditório e a ampla defesa,
remanesce a partir do binômio informação-reação, em que a ampla defesa demarca
os limites desta. Caso o entendimento fosse diverso, o conteúdo inerente ao
contraditório seria ampliado perante a ampla defesa, o que é incabível.
Outrossim, o contraditório e a ampla defesa têm seus limites diferenciadores
firmados na idéia de sofisticação e de rusticidade, já que o contraditório manifesta-se
mecanicamente
através
da
fórmula
informação-reação,
utilizando-se
de
instrumentos de comunicação processual, mas a qualidade da reação, sua
amplitude, sua forma e teor são regulados pela ampla defesa, capaz de dar
complexidade à ação. 150
Embora o tratamento dado à matéria pelo doutrinador Gil Ferreira de
Mesquita se destine ao processo civil, os fundamentos por ele elaborados são
claramente aproveitados na sistemática processual penal, conferindo subsídios para,
no próximo capítulo, examinar a efetivação ou o afastamento dos princípios do
contraditório e da ampla defesa no inquérito policial.
_____________
148
MESQUITA, 2003, p. 184.
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
p. 125.
150
MESQUITA, 2003, p. 184.
149
60
CAPÍTULO 5 – OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO
INQUÉRITO POLICIAL
5.1
FUNDAMENTOS DA DISCUSSÃO PROPOSTA
Em breve síntese, uma vez que as bases para o estudo proposto já foram
esmiuçadas alhures, a análise dos princípios do contraditório e da ampla defesa em
sede de inquérito policial funda-se no art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição
Federal, seguinte a redação:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa,
151
com os meios e recursos a ela inerentes;
O princípio do devido processo legal, esculpido no primeiro inciso
supracitado, é depreendido, segundo os ensinamentos explorados no capítulo 03,
como a égide de todas as garantias, não se limitando à seara processual, posto que
o legislador constituinte estipulou a observação desse princípio sempre que haja
possibilidade de privação da liberdade ou do patrimônio, ou seja, é aplicável em toda
e qualquer forma de atuação do Estado
que resulte na restrição de direitos
inerentes ao indivíduo.
Por inteligência jurídica, uma vez que normas destinadas à proteção dos
direitos e garantias fundamentais são submetidas à interpretação extensiva, o
segundo inciso mencionado ampara os princípios do contraditório e da ampla
defesa, os quais, assim como todas as demais garantias, encontram-se imbuídos no
alcance e na efetivação do devido processo legal.
A respeito dessas duas garantias evidenciadas e sua aplicabilidade em sede
de inquérito policial, a análise se volta para a redação do art. 5º, inciso LV, da Carta
Magna, mormente no tocante à expressão acusados em geral, tendo em vista que a
primeira parte desse dispositivo resta afastada, pois, como fora demonstrado no
capítulo 02, o inquérito policial não é processo administrativo ou judicial, mas sim
procedimento.
_____________
151
BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum. Coordenação por Anne Joyce Angher. 4. ed. São
Paulo: Rideel, 2007. p. 44.
61
Aliás, com relação à citação acusados em geral, André Rovégno preleciona:
[...] ao garantir a incidência dos princípios do contraditório e da ampla
defesa, aos acusados em geral, alcançou, indiscutivelmente, o inquérito
policial. Essa conclusão fica evidenciada pela utilização da expressão “em
geral”, a qualificar o termo “acusados”. Se o legislador estivesse
pretendendo se referir apenas ao acusado, existente no processo penal,
não teria acrescido o qualificativo “em geral” ao termo “acusados”. [...] E se
o fez, falando em “acusados em geral”, por certo aí incluiu aquele que, no
152
inquérito policial, é tratado como suspeito, averiguado ou indiciado.
Note-se, sem adentrar profundamente na discussão alvitrada, que permanece
latente o debate acerca da aplicabilidade do contraditório e da ampla defesa no
inquérito policial, em razão da expressão acusados em geral, conforme o esboçado
preteritamente.
Portanto, destacadas as bases normativas nas quais se assenta a proposta
de estudo aventada neste trabalho, faz-se, a seguir, uma análise do contraditório e,
posteriormente, da ampla defesa perante o inquérito policial, a fim de verificar a
compatibilidade jurídica entre eles.
5.2
VERIFICAÇÃO DE COMPATIBILIDADE
CONTRADITÓRIO E O INQUÉRITO POLICIAL
ENTRE
O
PRINCÍPIO
DO
Consoante o tratamento dado ao contraditório no capítulo 03, esse princípio
guarda estrita ligação com o processo acusatório, o qual se estrutura na posição
inerte do julgador, autoridade destinatária do conjunto probatório desenvolvido pelas
partes.
Nesse aspecto, salienta-se que a inatividade do julgador preceitua o
acusatório puro, sistema processual inexistente no ordenamento jurídico pátrio,
porquanto o processo judicial penal brasileiro assume apenas estrutura acusatória,
sob a manutenção do inquisitivo, em que a autoridade julgadora deve atuar
ativamente, na busca pela verdade real. 153
_____________
152
ROVÉGNO, 2005, p. 323-324.
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 38.
153
62
Ante o mencionado, infere-se que o contraditório é instrumento abalizador do
processo acusatório, permitindo às partes igual participação no convencimento do
julgador.
Diversamente, o inquérito policial é orientado pela atuação de uma autoridade
imparcial, que busca, exaustivamente, a autoria e a materialidade dos fatos,
remanescendo, às partes, em sede de investigação, inércia de participação,
podendo, inclusive, permanecerem alheios a ela.
A postura do delegado de polícia dentro do inquérito policial aduz o caráter
inquisitivo da persecução preliminar e afasta a incidência do princípio do
contraditório, pois não há mínima intervenção das partes nessa fase.
Importante ressaltar que o exercício do direito de defesa no inquérito policial
não é maculado pela não atuação do contraditório, afirmação que será analisada
com maior precisão no exame da ampla defesa.
Além disso, o contraditório objetiva uma decisão definitiva, inexistente no
inquérito policial, uma vez que esse, em razão de seu valor informativo, volta-se
unicamente para a coleta de dados, sem cunho decisório de índole definitiva.
Corrobora com o afastamento do contraditório em sede de inquérito policial, o
fato desse instrumento persecutório não possuir atos sujeitos à preclusão.
Sob outra perspectiva, a bilateralidade inerente ao contraditório tende a
repercutir na celeridade e na eficácia dos atos realizados pela Administração
Pública, uma vez que permitir a aplicabilidade desse princípio em inquérito policial
resultaria em exacerbada burocratização dos procedimentos, além de exigir a
elaboração de dispositivos legais que determinassem a notificação das partes no
decurso da investigação, posto que a contrariedade implica em ciência dos atos.
Por fim, destacam-se os incidentes jurisdicionalizados e cautelares existentes
no inquérito policial, nos quais ocorrendo medidas assecuratórias pleiteadas pelo
ofendido ou pelo Ministério Público, haverá relação processual e, portanto, plena
incidência do contraditório.
Em suma, são argumentos para justificar a incompatibilidade entre o inquérito
policial e o principio do contraditório: a estrita ligação persistente entre o princípio do
contraditório e o processo acusatório; a bilateralidade do contraditório e a ausência
de intervenção das partes em sede de inquérito policial, uma vez que nesse
procedimento vige a discricionariedade da autoridade policial; a manutenção da
sistemática processual inquisitória, conferindo ao processo judicial penal pátrio
63
apenas uma estrutura acusatória; a razão de ser do inquérito policial, consignada na
obtenção de informes capazes de precisar a autoria e a materialidade dos fatos
ilícitos na construção da verdade material; o objetivo do contraditório, que é de obter
uma decisão definitiva; e a inexistência de preclusão para os atos realizados no
decurso do inquérito policial. 154
Por todo o exposto, infere-se a impossibilidade de aplicação do contraditório
em sede de inquérito policial, excetuadas as medidas assecuratórias requeridas pelo
Ministério Público ou pelo ofendido, nas quais existe relação processual,
adequando-se essa realidade à exigência do legislador constituinte esculpida no art.
5º, LV, da Carta Magna.
Além disso, insta ressaltar que afastar a incidência do contraditório no
inquérito policial não implica em afetação aos direitos do indivíduo, uma vez que o
exercício da defesa está reconhecido nesse expediente.
5.3
VERIFICAÇÃO DE COMPATIBILIDADE ENTRE O PRINCÍPIO DA AMPLA
DEFESA E O INQUÉRITO POLICIAL
Analisar o princípio da ampla defesa em sede de inquérito policial exige a
delimitação do direito à atuação defensiva dentro desse expediente criminal.
Sabe-se que o inquérito policial possui caráter inquisitivo, no entanto, tal
característica limita-se à estrutura das atividades desenvolvidas no curso da
investigação criminal, não funcionando como óbice às garantias e direitos
destinados aos indivíduos que figurem na qualidade de supostos autores de um
ilícito. Dentre essas garantias, encontra-se o exercício da defesa.
Nesse diapasão, faz-se importante salientar o pensamento de Joaquim
Canuto Mendes de Almeida, que ao lecionar acerca do tema em apreço, assevera “a
inquisitoriedade não é incompatível com o exercício do direito de defesa pelo
indiciado durante o inquérito policial” 155.
_____________
154
SILVA, André Ricardo Dias. O princípio do contraditório no Inquérito Policial. Boletim Jurídico¸ São
Paulo, 10 ago. 2006. Disponível em: < http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1476>.
Acesso em: 06 maio 2008.
155
ALMEIDA, 1973, p. 214.
64
Assim, depreende-se não haver incompatibilidade entre o exercício do direito
de defesa e o inquérito policial, ainda que este tenha alicerces oriundos do sistema
inquisitivo.
Além disso, conforme fora trabalhado no capítulo destinado ao princípio do
contraditório, o inquérito policial é imbuído de significado e importância, por isso a
Constituição Federal garantiu o direito de defesa e a assistência de advogado nesse
procedimento administrativo.
Sob essa orientação, Marta Saad, com maestria, conclui:
[...] por ser o inquérito [...] etapa importante para a obtenção de meios de
provas, [...] o acusado deve contar com a assistência de defensor já nessa
156
fase preliminar, preparando adequada e tempestivamente sua defesa.
Expostos os argumentos que justificam o exercício do direito de defesa no
inquérito policial, passa-se ao exame de seu princípio garantidor, qual seja a ampla
defesa.
Segundo o capítulo 03 deste trabalho, a ampla defesa pode ser
compreendida como a possibilidade mais abrangente de reação do indivíduo a toda
atuação estatal que implique em ameaça a sua liberdade e ao seu patrimônio.
Indubitavelmente, o indivíduo incurso na investigação encontra-se sujeito a
riscos, porquanto, a título de exemplificação, poderá sofrer busca e apreensão,
seqüestro de bens, prisão provisória, agressão à honra e à imagem, etc. Em razão
disso, mostra-se necessário efetivar o direito de defesa no decurso do inquérito
policial, consoante os ditames estabelecidos pelo princípio da ampla defesa.
Anote-se que não deve ser temerária a atuação defensiva do indivíduo em
sede de inquérito policial, embora seu exercício se dê da forma mais ampla possível,
observados, logicamente, os limites próprios da investigação. Disso deriva a
compatibilidade da ampla defesa perante o inquérito policial.
Em outras palavras, a defesa que se desenvolve na fase extrajudicial,
preparatória ou administrativa da ação penal, exige, inicialmente, âmbito menor do
que aquele disponível na fase judicial.
O reconhecimento da ampla defesa no inquérito policial está assentado na
imprecisão do art. 5º, LV, da Constituição Federal, mormente em razão da
expressão acusados em geral, cujo alcance é pontuado por uma interpretação
extensiva. Portanto, toda vez que alguém figurar em inquérito policial como suposto
_____________
156
SAAD, 2004, p. 203-204.
65
autor do ilícito penal lhe será assegurado o exercício da ampla defesa. Nesse
sentido, Hélio Tornaghi afirma que:
[...]acertadamente evitou o Código a palavra acusado na fase do inquérito
policial. Como é óbvio, somente pode haver acusado depois da acusação,
isto é, da queixa ou denuncia. É certo que, excepcionalmente, a lei defere a
possibilidade de defesa ao simples indiciado, colocando-o na situação de
quasi imputatus. [...] Nem por isso, entretanto, deve considerar-se acusado,
embora possa parecer paradoxal que alguém se defenda sem ter sido
acusado. É que a defesa se exerce aqui contra a restrição, não contra a
157
acusação. Tem pressuposto de direito processual, não de direito penal.
Superada a questão da compatibilidade existente entre o princípio da ampla
defesa e o inquérito policial, emerge a dificuldade de se precisar o momento em que
é dado início ao exercício da atividade defensiva nesse procedimento administrativo,
devido à subjetividade da autoridade policial que conduz a investigação e define,
com bases nos elementos coligidos, quem seria o eventual autor do ilícito, por meio
do indiciamento.
Assim, erigi a necessidade de previsão legal a fixar o momento do
indiciamento, inserindo, no ordenamento jurídico brasileiro, bases objetivas, a fim de
corroborar com a eliminação de margens ao arbítrio.
Todavia, apesar da omissão supramencionada, é possível concluir que a
pessoa, quando suspeita do cometimento da infração penal, passa a figurar como
indiciada, ainda que essa condição não tenha sido formalizada, exercendo, daí, o
direito de defesa.
Voltado para a solução, ainda que parcial, dessa questão, tramita o Projeto de
Lei 4.209/01, exigindo fundamentação para o indiciamento, momento em que, sem
objeção, inicia-se o exercício da defesa. Com base nessa proposta legislativa,
postergado esse direito, todas as provas produzidas sem a participação do sujeito
acusado devem ser tomadas como ilícitas.
Importante salientar que a compatibilidade existente entre o princípio da
ampla defesa e o inquérito policial não revoga o caráter dispositivo ou facultativo do
direito de defesa pertinente ao suposto autor do ilícito.
Além disso, sob outro enfoque, o fato de o inquérito policial ser escrito
corrobora com o exercício do direito de defesa, pois a documentação dos dados
coligidos no decurso da investigação fornece os elementos em face dos quais o
investigado deverá dirigir a sua atuação defensiva.
_____________
157
TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 1, p. 171.
66
Por fim, insta trazer à baila os argumentos desenvolvidos por André Rovégno,
um dos raros doutrinadores dedicados ao estudo individualizado da ampla defesa
em sede de inquérito policial.
O autor supramencionado estabelece o conteúdo da ampla defesa durante a
investigação criminal, consoante os argumentos reproduzidos a seguir:
- A possibilidade de se constituir defesa técnica, uma decorrência do próprio
princípio da ampla defesa, cujos fundamentos legais são: art. 5º, inciso LXIII e art.
133, ambos da Constituição Federal e art. 6º, III, VI, “b”, XI, XIV, Estatuto da OAB;
- A efetivação do direito previsto no art. 14 do CPP, dispositivo que embasa a
possibilidade de requerimento de diligências no inquérito policial, faculdade
conferida ao ofendido, ao indiciado e, logicamente, ao advogado representante de
seus interesses;
- Assegurar que as medidas defensivas alcancem não apenas o indivíduo
formalmente indiciado, mas todo aquele sobre o qual recaia atividade estatal que
possibilite a responsabilização, por meio de processo penal;
- A motivação das decisões, especialmente daquelas que maculem interesses
do indivíduo investigado. Esse dever é decorrência do direito de defesa, posto que
as razões da autoridade policial consubstanciam os objetos de direção da atividade
defensiva. Ressalta-se que este aspecto possui controvérsias devido à discussão
doutrinária acerca da motivação dos atos da Administração Pública, na qual
prevalece a ausência de obrigatoriedade em motivar;
- O direito inerente àquele que se encontre envolvido com a investigação
criminal de ser ouvido pessoalmente pela autoridade policial que preside o inquérito
policial, com fulcro no art. 6º, inciso V, do Código de Processo Penal;
- A faculdade conferida ao indivíduo envolvido com a persecução penal
extraprocessual de indicar quesitos para as perícias realizadas no decurso do
inquérito policial;
- Ser facultada à defesa a possibilidade plena de participação, por escrito,
comentando, criticando ou apreciando o resultado ou o conteúdo dos atos
produzidos no decurso do inquérito policial. Assim, para o autor, devem ser aceitas
as manifestações da defesa, ainda que nada requeiram;
- As possibilidades de o defensor, no interesse de seu constituinte, requerer
providências, a saber:
67
[...] relaxamento de prisão em flagrante; liberdade provisória com ou sem
fiança; habeas corpus, visando sanar ilegalidades em prisões provisórias,
ou pleiteando trancamento de inquérito policiais que não se fundem em
dados fáticos ou razões jurídicas aceitáveis (o que a doutrina e a
jurisprudência costumam chamar de falta de justa causa); mandado de
158
segurança para liberação de bens apreendidos de forma abusiva.
- No tocante à possibilidade de recursos, o autor sustenta não ser cabível tal
interposição perante o delegado de polícia que preside o inquérito policial, devido à
autonomia funcional que rege a ação das autoridades policiais, cuja natureza é
exclusivamente administrativa. Em contrapartida, há ampla recorribilidade quanto às
medidas assecuratórias originadas de pedido do Ministério Público ou do ofendido,
haja vista que nessas situações, perpetua-se relação processual;
- Sempre que obstado o exercício de qualquer faculdade inerente à ampla
defesa, haverá ato ilícito, passível de correção judicial, por meio dos remédios
constitucionais pertinentes ao inquérito policial, que são o Habeas Corpus e o
Mandado de Segurança. Assim, toda vez que a autoridade policial afrontar o direito
à ampla defesa, impossibilitando a inclusão de dado relevante aos autos, caberá
Habeas Corpus. Diversamente, quando o direito instrumental, como o acesso aos
autos ou a presença física do defensor nos atos do inquérito policial não for
observado, cabível será a impetração de Mandado de Segurança. Note-se que o rol
apresentado não é exaustivo, sendo, portanto, pertinente a utilização dos remédios
constitucionais mencionados em outras hipóteses em que a privação se demonstre
ilícita.
Anotadas as correlações e as diferenças existentes entre o inquérito policial e
os princípios do contraditório e da ampla defesa, conclui-se, de forma prematura,
que há incompatibilidade do primeiro princípio mencionado perante o instrumento de
persecução penal em apreço. No entanto, a fim de fomentar essa simplória
colocação, analisa-se, a seguir, o posicionamento da doutrina e, posteriormente, da
jurisprudência acerca do tema suscitado.
5.4
POSIÇÃO DOUTRINÁRIA ACERCA DO TEMA
_____________
158
ROVÉGNO, 2005, p. 362.
68
Como
fora
exaustivamente
demonstrado,
a
questão
envolvendo
o
contraditório e a ampla defesa no inquérito policial encontra fundamento na
insuficiência conceitual que padece a matéria.
Nesse contexto, a doutrina pátria tem manifestado três posições discrepantes
a respeito do assunto suscitado neste trabalho.
A primeira corrente, contrária à aplicabilidade dos princípios do contraditório e
da ampla defesa no inquérito policial, predomina na doutrina brasileira e tem como
fundamentos a ausência de acusado na investigação criminal e a natureza
administrativa e inquisitiva do inquérito policial.
Sob essa orientação, há um rol extenso de doutrinadores que afastam a
adoção dos princípios do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial.
Nesse sentido, Pedro Lenza assinala:
Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal. Corolário a este princípio, asseguram-se aos litigantes, em processo
judicial e administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. E em relação ao inquérito
policial, devem tais princípios ser assegurados? Não, pois não há ainda
acusação. Fala-se em indiciado¸ já que o inquérito policial é mero
procedimento administrativo que busca colher provas sobre o fato
159
infringente da norma e sua autoria.
E Alexandre de Morais, dando ênfase ao princípio do contraditório, leciona:
O contraditório nos procedimentos penais não se aplica aos inquéritos
policiais, pois a fase investigatória é preparatória da acusação, inexistindo,
ainda, acusado, constituindo, pois, mero procedimento administrativo, de
caráter investigatório, destinado a subsidiar a atuação do titular da ação
160
penal, o Ministério Público.
Na mesma direção, Manoel Messias Barbosa, refutando a ação defensiva no
transcorrer da investigação criminal, afirma que ”o inquérito policial, por sua
natureza, é inquisitório, sigiloso e não permite defesa” 161.
Dentre os autores que apartam o contraditório e a ampla defesa do inquérito
policial, destaca-se José Frederico Marques, cujas palavras incisivas determinam:
O vigente Código de Processo Penal distingue perfeitamente a “instrução
criminal” (arts. 394 a 405) do “inquérito policial” (arts. 4º a 23), como o
fazem as legislações da atualidade. Só a primeira é contraditória, de acordo,
aliás, com o que impões o mandamento constitucional. Não se pode, pois,
interpretar com simplismo o texto constitucional sobre a instrução
contraditória, para estendê-lo ao inquérito policial. [...] A investigação
_____________
159
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 628.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 93.
161
BARBOSA, Manoel Messias. Inquérito Policial. 5. ed. São Paulo: Editora Método, 2006. p. 64-65.
160
69
policial, ou inquérito policial, tem mesmo de plasmar-se por um
procedimento não contraditório, porque ali ainda não existe acusado, mas
apenas indiciado. O individualismo exagerado de alguns é que pretende o
162
absurdo de adotar sistema diverso [...].
Nota-se que o autor repudia a aplicação do contraditório no inquérito policial
por depreender que a possibilidade de adoção desse princípio implica em perda da
eficiência da investigação, comprometendo o interesse público e a propositura de
ações penais pertinentes.
Em outro enfoque, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e
Cândido Rangel Dinamarco reconhecem que no inquérito policial “os direitos
fundamentais do indiciado hão de ser plenamento tutelados” 163, independentemente
da inaplicabilidade do princípio do contraditório, pois isso não afeta o exercício do
direito de defesa, conferido a todo indivíduo considerado suspeito no decurso da
investigação policial.
Por sua vez, ao tratar da ampla defesa, mormente no tocante à possibilidade
de atuação defensiva no inquérito policial, Fernando de Almeida Pedroso assinala:
[...] o direito de defesa dirige-se ao Juiz da causa, não à autoridade policial,
atinando, consequentemente, com a instrução do feito “na fase processual”.
Isso porque a instrução policial do fato não tem como destinatário principal o
164
Juiz, mas o representante do Ministério Público [...].
Assim, ante a manifestação doutrinária esboçada, não desprezando o
advento da Constituição Federal de 1988, infere-se que a inaplicabilidade dos
princípios do contraditório e da ampla defesa na primeira fase da persecução penal,
funda-se na ausência de acusação em sede de inquérito policial, na ameaça que a
atuação defensiva poderia conferir à atividade investigatória, na inexistência de
acusação nessa etapa, e, por fim, na natureza jurídica do instrumento persecutório
que é procedimental, inquisitiva e administrativa.
A segunda corrente doutrinária evidencia um posicionamento intermediário,
por isso afasta o princípio do contraditório devido à incompatibilidade demonstrada
em um dos itens anteriores, mas defende a incidência da ampla defesa em razão da
atuação defensiva que é conferida ao investigado.
_____________
162
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas-SP:
Millenium, 2000. v. 1, p. 89.
163
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 54.
164
PEDROSO, 1994, p. 56.
70
Nesse contexto, Marta Saad, em alusão à Carta Magna, preleciona:
A defesa se insere no devido processo legal. A Constituição Federal
assegura, no art. 5º, LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Com essa
redação [...] aparta não só litigantes de acusados, mas também contraditório
de ampla defesa, [...]. Assim, [...] no inquérito policial, procedimento
administrativo com fins judiciais, não há possibilidade de se estabelecer
165
contraditório, mas sim exercício do direito de defesa.
Outrossim, Antonio Scarance Fernandes
166
assinala que o contraditório é
incompatível com o inquérito policial, contudo, determinados atos que nele ocorrem
devem estar amparados pelo exercício do direito de defesa em prol do suspeito.
Os atos mencionados seriam de duas espécies distintas, conforme assevera
André Rovégno:
[...] atos próprios da investigação, nos quais seria inviável – por
incompatível com a finalidade do ato – a cientificação prévia do suspeito, e
atos em que tal notificação não se mostra prejudicial à atividade
investigatória, sendo possível a participação do suspeito e aceitável seu
167
prévio chamamento.
A título de exemplificação, prisão, quebra de sigilo, autorização para busca e
apreensão em domicílio, ainda que não tenha havido efetivo indiciamento, são atos
não definidos como próprios de investigação e, portanto, consoante a posição
doutrinaria intermediária, passíveis de incidência da ampla defesa.
Evandro Fernandes de Pontes e Flávio Boechat Albernaz
168
, também
partidários da corrente intermediária, apresentam um pensamento inovador, ao
entenderem que, por razões políticas, é necessário restringir o princípio do
contraditório à fase acusatória, uma vez que a adoção desse princípio, durante o
inquérito policial, culminaria na ineficácia do controle da criminalidade.
Em acréscimo, os autores supramencionados destacam não serem contrários
ao exercício do contraditório em determinados atos ocorridos no curso da
investigação, firmando, assim, uma postura intermediária diversa.
_____________
165
SAAD, 2004, p. 216.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 64.
167
ROVÉGNO, 2005, p. 292.
168
ALBENAZ, Flávio Boechat; PONTES, Evandro Fernandes de. Estudos de Processo Penal - O
Mundo à Revelia. Coordenação por Fauzi Hassan Choukr. Campinas/SP: Agá-Juris, 2000. p. 181196.
166
71
Portanto, expedientes probatórios irrepetíveis ou de difícil repetição, perícias,
direito de ter ciência da imputação e de ser ouvido sobre ela, conhecer o rumo da
investigação e trazer para os autos dados favoráveis à defesa, são hipóteses, nas
quais, segundo os referidos autores, é possível aceitar a adoção do princípio do
contraditório.
A terceira e última corrente doutrinária, favorável à aplicação dos princípios
do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial, não é o posicionamento
predominante, no entanto, muitos doutrinadores, influenciados pelo garantismo, têm
militado nesse sentido.
São argumentos que justificam esse posicionamento:
a) ser esta etapa um verdadeiro “processo administrativo” preparatório ao
exercício da ação penal; b) haver neste processo um conflito de interesses,
portanto existindo litígio e, por conseqüência, litigantes. O contraditório
surge, então, exatamente dentro do quadro garantidor do novo direito
169
processual administrativo.
Note-se que a favor do contraditório no inquérito policial, essa corrente refuta
o caráter administrativo do procedimento em comento, atendendo ao princípio do
due
processo
f
law,
conforme
preceitua
uma
tendência
denominada
“processualização” 170.
Com efeito, o entendimento de que o inquérito policial é processo gera a
superação inerente ao vocabulário acusados, constante no texto constitucional, uma
vez que essa nomenclatura é própria da relação processual.
Indubitavelmente, a presente corrente adapta a lei fundamental a uma
interpretação garantista, sugerindo, com o fito da contrariedade, inúmeras inovações
no inquérito policial brasileiro, a saber:
[...] a criação de um mecanismo de filtragem de plausibilidade da ação, isto
com um momento jurisdicional entre o oferecimento da inicial acusatória e o
seu recebimento, onde haja a plena possibilidade de atuação da defesa.
Ainda que localizada sistematicamente fora do procedimento investigatório,
a construção de tal fase possui reflexos na política de condução das
investigações, servindo como obstáculo a futuros inquéritos cerebrinos,
onde nada alem de especulação infundada e gratuita exista. Além dessa
nova fase, a remodelação do ato de indiciamento ganha em importância [...].
O suspeito, numa estrutura coerente como a preconizada, não fica sem
armas para lutar contra eventuais arbítrios do Estado na investigação, ao
_____________
169
CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na investigação criminal. 3. ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2006. p. 126.
170
JORGE, Higor Vinicius Nogueira. A processualização do inquérito policial. É possível o
contraditório no inquérito?Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 471, 21 out. 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5840>. Acesso em: 25 ago. 2008.
72
mesmo tempo em que é permitido o funcionamento eficaz da máquina
171
repressiva.
Por todo o exposto, infere-se que a posição favorável à adoção do
contraditório e da ampla defesa em sede de inquérito policial tem como razões a
inclusão do investigado no rol extensivo da expressão acusados em geral, bem
como o entendimento de que o inquérito policial é processo administrativo e não
procedimento, discordando, assim, do que fora pacificado pela doutrina pátria
predominante.
Traçado o perfil da doutrina nacional a respeito do assunto alvitrado neste
trabalho, em que pese a predominância da primeira corrente, para qual os princípios
do contraditório e da ampla defesa não são aplicáveis no inquérito policial, verificase, a seguir, a postura adotada pela jurisprudência brasileira, com relação ao tema
suscitado.
5.5
POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL ACERCA DO TEMA
Verificando a jurisprudência dos tribunais superiores pátrios, uma vez que
estes, de maneira geral, orientam o posicionamento dos demais tribunais nacionais,
tem-se que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, pautam-se
pelo entendimento de que os princípios do contraditório e da ampla defesa não
incidem no inquérito policial, raras as decisões em sentido contrário.
Para os tribunais superiores nacionais, a regra esculpida no art. 5º, LV, da
Constituição Federal não se aplica ao inquérito policial, pois esse expediente, como
procedimento administrativo, não admite acusado. Assim, o Ministro Sepúlveda
Pertence assinala:
[...] penso que a discussão do problema da oponibilidade ao advogado do
indiciado do sigilo do inquérito policial tem sido conturbada pela intromissão
indevida do art. 5º, LV, da Constituição [...] A extensão inovadora do alcance
172
do preceito ao processo administrativo não atinge o inquérito policial.
_____________
171
CHOUKR, 2006, p. 132.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 87.827/RJ. Primeira Turma. Relator: Ministro
Sepúlveda Pertence. Julgamento: 25/04/2006. DOU, 23 jun. 2006.
172
73
No mesmo sentido, o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Hamilton
Carvalhido, defeso aos princípios do contraditório e da ampla defesa em sede de
inquérito policial, consignou a seguinte ementa: “A natureza inquisitorial do inquérito
policial não se ajusta à ampla defesa e ao contraditório, próprios do processo, até
porque visa preparar e instruir a ação penal” 173.
Além dessas premissas, os tribunais superiores já pacificaram: “ofende a
garantia constitucional do contraditório fundar-se a condenação exclusivamente em
elementos informativos do inquérito policial não ratificados em juízo” 174.
Outrossim, insta salientar que esses tribunais, embora contrários à incidência
dos princípios do contraditório e da ampla defesa em inquérito policial, têm
reconhecido a possibilidade de exercício das faculdades defensivas nessa fase da
persecução penal, mormente em razão da participação do advogado.
Sob essa orientação, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda
Pertence, como relator em um habeas corpus, dispõe:
Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla
defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a
decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não
obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre
os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de
175
manter-se em silêncio.
Corrobora com esse entendimento, a ementa elaborada pelo ministro do
Superior Tribunal de Justiça, Hélio Guaglia Barbosa:
A defesa é de ordem pública primária (Carrara); sua função consiste em ser
a voz dos direitos legais – inocente ou criminoso o acusado. De mais a
mais, é direito do advogado examinar autos de flagrante e de inquérito,
176
findos ou em andamento (Lei nº 8.906/94, art. 7º, inciso XIV).
A par dos apontamentos predecessores, não há motivos para estender este
aspecto do estudo, uma vez que os tribunais superiores optaram por afastar o
contraditório e a ampla defesa do inquérito policial.
_____________
173
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus 11124/RS. Sexta Turma.
Relator: Hamilton Carvalhido. Julgamento: 19/06/2001. DOU, 24 set. 2001.
174
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 84.517/SP. Primeira Turma. Relator: Ministro
Sepúlveda Pertence. Julgamento: 09/11/2004. DOU¸ 19 nov. 2004.
175
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 90.232-7/AM. Primeira Turma. Relator:
Ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento: 18/12/2006. DOU, 09 fev. 2007.
176
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 45.258/RJ. Sexta Turma. Relator: Ministro
Hélio Quaglia Barbosa. Julgamento: 02/08/2007. DOU, 05 nov. 2007.
74
Todavia, de maneira rara e adversa, o Ministro Gilmar Mendes, demonstrando
uma tendência que pode culminar na mudança de posicionamento dos tribunais
acerca do tema em exame, assinala:
Com relação à argumentação expendida pelo acórdão ora impugnado,
reforço as razões que apresentei na decisão liminar, para rechaçar a
premissa de que o inquérito policial corresponderia a procedimento
177
investigatório e inquisitorial imune ao contraditório e à ampla defesa.
5.6
A RECENTE REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A
MANUTENÇÃO DO INQUISITIVO
A recente reforma do Código de Processo Penal brasileiro não tratou,
diretamente, do inquérito policial. No entanto, ao disciplinar a questão das provas, o
legislador optou pela manutenção do sistema inquisitivo, repercutindo, assim, na
condução da investigação criminal. 178
A conservação do inquisitório foi refutada pelos garantistas, sob alegação de
que o devido processo legal, previsto na Constituição da República, não guarda
compatibilidade com o sistema do Código de Processo Penal, parcialmente
inquisitorial.
Nesse sentido, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, ao elaborar o artigo “As
reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo”,
publicado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, disserta extensivamente:
O modelo de sistema misto [...] com a primeira fase inquisitória e a segunda
fase, processual, amplamente contraditória [...] foi a estrutura dual:
investigação preliminar/ processo [...] adotada no Brasil na recente história
de sua legislação processual penal, ainda piorada com a adoção do
inquérito policial em 1871. Ele nasce (o IP), assim (Lei nº 2.033, de
20.09.1871 e Decreto nº 4.824, de 22.11.1871), com a desvantagem de ser
um procedimento administrativo e, de conseqüência, inviabiliza a extensão,
para si, do contraditório, até porque a CR de 88 só o impôs como um direito
individual quando houvesse processo, conforme art. 5º, LV [...]. A matéria é
polêmica, todavia; mas no rigor conceitual não cabe falar de processo em
IP. [...] Nesta esteira, o sistema processual penal brasileiro é,
indubitavelmente, inquisitório, porque seu princípio unificador é o inquisitivo,
já que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz, senhor do
_____________
177
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 92.599/BA. Segunda Turma. Relator: Ministro
Gilmar Mendes. Julgamento: 18/03/2008. DOU, 25 abr. 2008.
178
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2008. v. 1, p. 491.
75
processo. A solução parece estar na superação da estrutura inquisitória [...].
O que se há de reafirmar, enfim, é que reformas parciais não mudam o
sistema porque não vão no núcleo do problema, ou seja, no princípio
inquisitivo. [...] Se a salvaguarda dos direitos e garantias individuais no
processo penal é o melhor critério pelo qual se pode medir o grau de
civilidade de um povo, mais cuidado se pede ao se reformar aquele que
talvez seja, dentre todos os ramos do direito, o que maior impacto exercer
sobre a vida humana e especialmente sobre aquela vitimada pela
desigualdade no acesso às condições mínimas de vida. [...] Necessário,
portanto – e mais que isso, urgente –, é ousar pensar em uma reforma
179
global, o que significa dizer: um novo Código de Processo Penal.
A citação supra evidencia um momento em que o autor, fazendo eco às vozes
que prenunciam o garantismo, aduz as justificativas relativas à insatisfatória reforma
do Código de Processo Penal nacional.
Em contrapartida, nota-se que é reconhecido o caráter inquisitivo do inquérito
policial, bem como a sua natureza jurídica procedimental administrativa, restando,
portanto, afastado o art. 5º, LV, da CF/88, no qual estão alocados o contraditório e a
ampla defesa.
Assim, ante todo o exposto neste capítulo finalístico, considerando, inclusive,
a recente reforma do Código de Processo Penal, pode-se concluir que, devido ao
embasamento teórico demonstrado, remanesce a inaplicabilidade dos princípios do
contraditório e da ampla defesa em sede de inquérito policial, pois os conceitos
esmiuçados, mormente aqueles relativos a este procedimento administrativo e
inquisitivo, não coadunem com a redação esculpida no art. 5º, LV, da Carta Magna,
conceitualmente dirigida às relações processuais.
Contudo, insta ressaltar que o investigado em inquérito policial não se
encontra, hodiernamente, desamparado, posto que exerce o direito de defesa, com
limitações próprias da investigação, por meio da assistência judiciária de um
profissional habilitado, que é o advogado, podendo, inclusive, requerer diligências.
_____________
179
COUTINHO, Nelson Jacinto de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue
o princípio inquisitivo. Boletim do IBCCRIM, ano 16, n. 188, 2008, p. 13.
76
CONCLUSÃO
Com espeque nas exposições trabalhadas ao longo deste estudo, depreendese que a questão inerente à incidência do contraditório e da ampla defesa no
inquérito policial exige, em razão da conotação social que envolve a matéria, mais
do que uma simplista adequação de conceitos.
Nesse diapasão, prevalece o entendimento majoritário de que os princípios do
contraditório e da ampla defesa não têm aplicabilidade no inquérito policial, pois este
instrumento de persecução penal prévia tem natureza administrativa e alicerces
inquisitoriais.
Contudo, evadindo-se da literalidade presente na Constituição Federal, cujas
expressões “processo administrativo” e “acusados em geral” acabaram por afastar o
contraditório e a ampla defesa do inquérito policial, foi admitida a atuação do
advogado nesse expediente criminal, com o fito de suprimir o relegado papel do
suspeito, frequentemente reduzido a nada.
Note-se que a possibilidade de assistência judiciária por meio de um
profissional habilitado aliada à faculdade do investigado em requerer diligências
expressam ações pontuais do princípio da ampla defesa.
Todavia, a exercício dessas prerrogativas defensivas não torna cabível a
assertiva levantada por alguns doutrinadores de que, em virtude delas, observadas,
logicamente, as restrições inerentes à investigação, haveria plena incidência do
princípio da ampla defesa, isso porque é controverso assinalar que o direito de
defesa é vasto, quando, na verdade, há limites claros em sua atuação.
Assim, afastar o contraditório e a ampla defesa do inquérito policial não
implica em tratar de forma desumana o suspeito (entenda-se aqui o investigado,
bem como o indiciado), porquanto tem este o direito ao exercício de defesa, por
intermédio do advogado. Ademais, o próprio inquérito policial exerce função
protetiva, uma vez que as investigações, pautadas pela busca da verdade material,
podem culminar na ausência de imputação.
Em suma, concretizar a justiça engloba a resolução da complicada equação:
direitos coletivos versus direitos individuais, e o debate alvitrado neste estudo não
foge a essa realidade. Consequentemente, sedimentar o afastamento do
contraditório e da ampla defesa em sede de inquérito policial, mas conceder ao
77
investigado assistência de advogado, requisição de diligências e outras faculdades
defensivas limitadas aos ditames da investigação penal, é a solução que se entende
melhor coadunar interesses da sociedade e liberdades individuais, em prol da
verdade real, objetivo precípuo do inquérito policial.
78
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Islene Gomes Mateus Silva - Universidade Católica de Brasília