Latusa Digital Ano 9 – N. 48 – Março de 2012.
O “procedimento” de Raymond Roussel: suplência e nomeação
Maria Fátima Pinheiro1
O “procedimento” que joga com o duplo sentido das palavras, nas quatro obras
centrais de Raymond Roussel, Impressions d’Afrique, Locus Solus, L’Etoile au Front,
Poussière de Soleils aponta para questões importantes sobre a relação entre suplência e
nomeação em função da relevância dada ao engendramento dos textos pela letra (lettre).
Embora possua a função de suplência, uma vez que coloca um ponto de basta
ao deslizamento simbólico, o procedimento de Roussel, conforme foi descrito por JeanClaude Maleval,2 detém-se diante de nomes próprios. Nos seus textos, Roussel deixa em
branco os espaços que se referem aos nomes de seus personagens e, ao enviá-los ao
impressor, apela por sugestões. Maleval observa, de forma precisa, que a dificuldade de
Roussel está relacionada ao nome próprio, aos significantes mais apropriados para evocar o
traço unário. Apesar dessa dificuldade, Maleval verifica que há uma exceção: um dos
personagens de Impressões de África, um imitador habilidoso, possui um patronímico não
só gerado pelo procedimento, mas que pode valer como nomeação do próprio
procedimento. Trata-se de Bob Boucharessas — bouche à ressasse (boca que repete
palavras), em que a homofonia permite ver a cifra operada pelo procedimento. Através de
suas observações, Maleval, levanta a hipótese de o significante Bob Boucharessas ser o
pseudônimo do autor e de funcionar como uma autonomeação, uma vez que Roussel teve
que elaborá-lo para representá-lo e localizar o seu gozo.
Destacam-se dois aspectos principais observados a partir do “procedimento” de
Roussel relativo ao seu trabalho com a letra (lettre). O primeiro aspecto diz respeito ao
tratamento dado à linguagem, e o segundo, como desdobramento do primeiro, remete à
questão do nome próprio.
Michel Foucault3 chama atenção para o fato de que o tratamento dado à
linguagem por Roussel foi o de enriquecê-la com a sua miséria, recurso bastante conhecido
pelos gramáticos do século VIII, em função da concepção empírica que possuíam dos
signos. Essa propriedade faz com que a palavra se desprenda da imagem à qual ela está
1
Psicanalista, participante do Núcleo de Pesquisa de Topologia- ICP-RJ
Maleval, J.-C. “La elaboración de una suplencia por un proceso de escritura — Raymond Roussel”.
Em: Psicosis actualis: hacia un programa de investigación acerca de las psicoses ordinarias. Buenos
Aires: Grama, 2008, p.115-124. A tradução deste texto está nesta mesma edição de Latusa Digital.
3
Foucault, M. Raymond Roussel (1963). Mexico, D.F: Siglo XXI Editores, 2007.
2
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ligada pela sua significação, colocando-a sobre outra, marcando, assim, a sua ambiguidade.
O significante pode-se metamorfosear sem que sua forma sofra mudança, as palavras se
deslocam de seu sentido de origem para adquirir um sentido novo. Esse novo sentido
chama-se tropológico,4 e desse espaço de deslocamento, no giro que o significante faz
sobre si mesmo, originam-se as figuras de retórica, tais como: a metonímia, a metáfora, a
catacrese, a sinédoque, etc. Foucault, contudo, considera que o espaço rousseliano não é o
mesmo dos gramáticos, não sendo considerado como o espaço de origem das figuras
canônicas da palavra, mas sim algo como um “branco incerto na linguagem e que abre no
interior mesmo da palavra um vazio insidioso, desértico e cheio de observações”.5 Esse
expediente, ao mesmo tempo que permite que o discurso seja mais potente e atrativo,
converte-o em jogo, em prazer, aproximando-se da rima, do trocadilho, da musicalidade.
Para Roussel, o jogo de duplicação das palavras é uma lacuna, um vazio, visto como uma
vacância absoluta do ser que está remetida à invenção pura. A frase expressa pelo escritor
“a minha imaginação é tudo” se opõe à realidade e parece de fato enunciar, de acordo com
Foucault, a dimensão própria da invenção que não é a de duplicar a realidade com outro
mundo, mas descobrir a partir das duplicações da linguagem um espaço insuspeitado e
recobri-lo com coisas nunca ditas. Observa-se que é no ponto exato do procedimento, em
que surge o branco, abrindo na palavra um vazio, que Roussel dá tratamento ao nome
próprio. Esse é o segundo aspecto que destacamos no procedimento em que a dimensão
da invenção está presente.
Roussel ensina que é no momento em que ele não avança na sua escrita, em
que ele deixa em branco o espaço referente ao nome, que uma cifra de gozo pode ser
localizada. Ele testemunha em que ponto o erro se deu e como o supre, isso remete ao
enodamento existente entre real e imaginário, entretanto, sem a fixação do simbólico. Com o
patronímico Bob Boucharessas — bouche (boca que repete palavras), Roussel localiza o
seu gozo, estanca o deslizamento simbólico e remedeia o erro de estrutura.
O nome próprio, por ser um significante puro, ou seja, um designador rígido,
como definiu Lacan,6 por ele não ter outra significação que seu enunciado mesmo, é que
permite a escritura da operação da nomeação de um sujeito. O nome próprio, na concepção
lacaniana,7 vai-se colocar no ponto em que a rhesis tropeça,8 isto é, diante do furo, de um
4
Dumarsais. Les tropes. Paris, 1818. v.2 apud Foucault, M. Raymond Roussel (1963). Mexico, D.F:
Siglo XXI Editores, 2007, p.27
5
Foucault, M. Raymond Roussel. Buenos Aires: Siglo XXI Ed., 1973, p.27.
6
Lacan, J. “Subversão do sujeito e a dialética do desejo” (1960). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,
1998. p.833-835.
7
Lacan, J. O Seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise (1964-65). Inédito.
8
Ibidem.
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rasgão, justamente para suturá-lo. Nessa perspectiva, o nome próprio tem uma função
volante, aquela de obturar o furo e lhe dar uma aparência de fechamento. Além disso, ele é
um significante insubstituível e intraduzível, aspecto que o aproxima do matema, tornando-o
susceptível de uma transmissão integral.
Essa função de transmissão inerente ao nome próprio foi exemplificada por
Lacan,9 através da decifração dos hieróglifos egípcios, uma vez que, em todas as línguas,
Cleópatra é Cleópatra, e Ptolomeu é Ptolomeu.
O nome próprio é apresentado, de acordo com a concepção lacaniana, como
algo que tem afinidade com a marca, com o traço unário, e se situa como designação direta
do significante como objeto. Nos anos 70, Lacan10 aponta para o esforço inerente ao nome
próprio de se fazer mais que o S1, o significante-mestre que se dirige ao S2, ao saber, e o
aproxima do sintoma. Os dois, o nome próprio e o sintoma, encobrem o furo pela falha do
real. O nome próprio é o ponto de amarração, em que o sujeito se constitui e de onde se
situa a questão da identificação.
Sob a vertente da identificação, Lacan, no Seminário “Os Nomes-do-Pai”, de
acordo com Miller,11 trabalha a falta de identidade do sujeito e a justifica a partir da
sustentação de que não há o Nome–do-Pai, mas que há os Nomes-do-Pai, no plural. Essa
concepção é sustentada pela proposição de que o sujeito não precisa se apoiar somente no
traço unário, ele pode também, como Lacan12 enfatizou em Lituraterra, apoiar-se em um céu
constelado, a partir de seu trabalho com a letra, para a sua identificação fundamental, como
nos mostram Roussel e Joyce. A nomeação se dá porque, ao se marcar cada elo com uma
letra, possibilita-se situar cada um deles no campo da identidade, o que permite assim que
eles não se confundam. Raymond Roussel nos revela que o procedimento, equivalente ao
Nome-do-Pai, faz a amarração dos outros três registros, e que a estabilização promovida
pelo seu trabalho, realizado a partir da letra, é o testemunho vivo da maneira que ele se
escreve com o nó para dar conta do seu gozo, na tentativa de criar o vazio do objeto.
9
Lacan, J. O Seminário, livro 9: a identificação (1961). Inédito.
Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
11
Miller, J.-A. Comentario del seminario inexistente. Buenos Aires: Manatial, 1992.
12
Lacan, J. Outros escritos (1971). Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
10
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