forum abel varzim Agir sobre a realidade 1 Dr.ª Maria Manuela Silva i Queria começar por cumprimentar o moderador e todos os intervenientes nesta mesa mas também a assistência, onde encontro bons velhos amigos e isso é certamente uma razão para expressar a minha satisfação, o meu gosto, a minha honra de estar presente nesta sessão que também pretende ser de homenagem ao padre Abel Varzim. Eu tinha pensado que ia falar no final, visto que era essa a ordem do programa e orientei um pouco a minha intervenção nesse sentido, mas penso que não há inconveniente de maior em começar, uma vez que o moderador me deu essa oportunidade. Queria começar esta minha intervenção explicitando um pressuposto que está presente no pensamento que passarei a expor. Ao contrário de algumas teses em voga, eu acredito que quaisquer que sejam as circunstâncias, o futuro coletivo não está deterministicamente definido. Por outras palavras: é sempre possível agir sobre a realidade de modo a afeiçoá-la aos nossos objetivos e, deste modo, ter parte ativa na construção do futuro. Penso que esta é uma das características mais específicas e próprias do ser humano e que tem incidência tanto na vida pessoal de cada um(a), como na vida coletiva dos povos. Dito isto, importa acrescentar que esta afirmação nada tem de mero idealismo – e já estou a fazer esta afirmação para que ela não apareça na crítica e no debate, pois não é fruto de uma grosseira alienação em relação aos constrangimentos que, reconheço, sempre rodeiam a ação e, como tal, condicionam tanto a definição de um campo de possibilidades para intervir, como os efeitos esperados das ações empreendidas. Da conjugação destes dois pressupostos resulta que, ao debater o futuro de Portugal, que é o tema que nos reúne aqui nesta sessão, devemos, por um lado, afastar o espantalho da inevitabilidade (ou das inevitabilidades) com que diariamente somos bombardeados e bombardeadas e que nos predispõem à resignação e ao imobilismo. Por outro lado, [devemos] saber identificar quais são, onde se encontram e de que se alimentam as barreiras e resistências da mudança. Ou seja: quanto mais complexa, quanto mais difícil se torna uma situação, mais imperioso se torna aprofundar os mecanismos de legibilidade dessa situação, de procura das suas causas, das causas dessas dificuldades e, também, uma melhor, mais exata e mais rigorosa formulação de objetivos. Acrescento um terceiro pressuposto que é quase óbvio: o imperativo da lucidez, clareza e determinação, quanto aos objetivos a prosseguir no horizonte de construção de futuro. No que ao nosso tema se refere, importa saber com lucidez e clareza que objetivos visamos para o futuro de Portugal, que é como quem diz: dos portugueses e das portuguesas. Portanto este é o meu quadro de pressupostos. Começo agora por equacionar (e naturalmente que tenho presente esse quadro de pressupostos) alguns dos desafios com que presentemente estamos confrontados e de entre esses desafios quero destacar os seguintes. Doravante, Portugal só pode pensar-se no quadro da União Europeia, o que só por si coloca um conjunto de constrangimentos, mas também abre outro «536» - Painel “Que futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos” forum abel varzim conjunto de oportunidades. O desafio consistirá, pois, em saber minimizar os primeiros e potencializar os segundos. É uma tarefa que compete basicamente aos governos e, em geral, ao poder público, mas do qual os cidadãos e a cidadãs e as suas organizações não devem e não podem alhear-se. No seio da União Europeia travam-se hoje combates importantíssimos relativamente ao futuro e é fundamental sabermos posicionar-nos no lugar mais adequado para intervir na escolha dessas opções que se colocam. Isto exige um acréscimo de conhecimentos e de formação à altura das complexidades envolvidas. (Vão ver que, em toda a minha exposição, eu vou sublinhar muito esta necessidade – que penso que existe hoje na sociedade portuguesa a todos os níveis – de um maior conhecimento e de uma maior formação, para podermos intervir com maior discernimento e com maior operacionalidade). Um aspeto particular é o anunciado alargamento aos países do leste europeu, que é visto por alguns como uma séria ameaça à sobrevivência de muitas empresas portuguesas. Mas eu pergunto se não poderá antes ser encarado como uma possibilidade de expansão do mercado nacional para alguma tecnologia e alguns dos seus produtos e assim potencializar as exportações nacionais para os novos mercados, que certamente virão da entrada desses países de leste na União Europeia. Primeiro desafio. Naturalmente ele tem que ver com globalização que é outro dos vectores que marcam externamente o nosso campo de possibilidades. Nós não podemos ignorar a globalização ou sequer secundarizar esse fenómeno. Pelo contrário, temos de reconhecer que existe uma globalização e uma interpenetração crescente do sistema económico-financeiro a nível mundial e que isso condiciona seriamente a configuração da nossa economia e da nossa sociedade no futuro. Também neste plano se travam debates sérios e a primeira condição para poder entrar neste debate é o reconhecimento de que a globalização, tal como a conhecemos hoje, não é, também ela, uma inevitabilidade. Parece-me que neste debate sério que começa a existir – no qual se procuram definir alianças no plano supranacional para encontrar vias de regulação para o sistema a nível mundial e para minimizar os seus efeitos negativos no plano nacional e no plano de outras economias – também é necessário algum discernimento e alguma intervenção. Mas penso que, entre nós, se escutam, com demasiado ceticismo e com grande desconfiança (demasiada desconfiança), as vozes que se têm levantado para denunciar o lado intolerável do sistema vigente e para clamar por soluções alternativas. Também neste domínio há (a meu ver) que dar mais espaço à contestação do status quo e vir, assim, reforçar as soluções (ténues mas promissoras) de futuro, que englobo na designação genérica de “economia social” e da expansão desse sector de “economia social” no nosso país. Para além destes dois tipos de desafios, que de algum modo nos são exógenos, teremos de enfrentar também desafios que radicam na situação específica do nosso próprio país. Poderia citar múltiplos exemplos (e certamente que os meus colegas de mesa irão referir outros aspetos), mas vou destacar apenas quatro grandes desafios. E digo, desde já, que a escolha que fiz, e a ordem por que os vou mencionar, não são, no meu ponto de vista, arbitrárias. E são, essa escolha e essa ordem, certamente objeto de debate e «536» - Painel “Que futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos” 2 forum abel varzim de contestação. Do meu ponto de vista, correspondem à importância que lhes atribuo na construção do nosso futuro e que desafios são esses. Primeiro, vivemos num país marcado por fortíssimas desigualdades socioeconómicas, as quais se têm vindo a acentuar a ponto de podermos recear que Portugal se encaminhe para uma sociedade dual do tipo das que conhecemos em alguns países latino-americanos. Ou seja, com um segmento de população de muito ricos e outro de muito pobres, ficando em sanduíche uma classe média permanentemente descontente, porque se situa a olhar sofregamente para os padrões de consumo dos mais abastados e pronta a fazer todos os malabarismo para deles se aproximar, mas ao mesmo tempo, obrigada a conviver com o pânico da ameaça da miséria que a circunda. A confirmar-se esta tendência, são de esperar tensões e conflitos sociais sérios de efeitos imprevisíveis. Assim, um dos maiores desafios (a meu ver) que temos pela frente é o de conseguir, em tempo útil (e sublinho: em tempo útil), uma repartição mais equitativa do rendimento do progresso no bem estar social e das oportunidades, de modo a pôr um dique ao sistema de concentração vigente. O país não pode ser – não deve ser – uma quinta ou, para utilizar uma linguagem mais urbana, um condomínio fechado, feito dos mais espertos, dos mais competitivos ou (porque não confessá-lo?) dos mais corruptos. Pelo menos não é esse o futuro que eu desejaria para o meu país. Segundo desafio. [Temos] uma classe empresarial muito pouco esclarecida e culta, com reduzidíssimo nível de qualificação profissional, que até em termos médios é inferior ao dos trabalhadores portugueses e, ainda por cima, com baixíssimo nível de responsabilidade social. Empresários que privilegiam o lucro fácil e imediato e que não hesitam em recorrer aos expedientes do “salvese quem puder” na hora das dificuldades. Parece-me que há que reforçar as iniciativas que vão no sentido da formação das elites empresariais e fomentar o upgrading da formação dos seus quadros dirigentes. Mas há, igualmente, que cuidar de um quadro institucional em que operam estas empresas e que, a meu ver, é demasiadamente laxista e pouco responsável. Neste sentido, a atual proposta de nova legislação laboral parece-me ser um enorme retrocesso, pois reforça a figura do patrão: “o Patrão”, o patrão tradicional, aquele que pode, que quer e que manda e nada avança em matéria de maior participação dos trabalhadores na empresa ou na responsabilidade desta em matéria ecológica ou social. Ora, é cada vez mais reconhecido (e refiro-me aos estudos de investigação e de análise empresarial) que a racionalidade interna da empresa sai amplamente reforçada quando existe uma participação organizada e responsável aos vários níveis da empresa e em particular nos planos da decisão. Portanto, mesmo no interesse da própria empresa, da sua eficiência e da sua capacidade competitiva, há que cuidar da sua racionalidade interna, que está grandemente associada à participação. Ora, parece que é disso que o novo pacote laboral nos quer arredar. Terceiro desafio. O carácter, ainda incipiente, da nossa democracia (não me refiro ao plano da lei, que é abrangente e exigente, mas ao domínio da sua aplicação nas situações concretas) é responsável, por um lado, pelo baixo teor de concretização de direitos económicos e sociais e, por outro, responsável também por um défice democrático no funcionamento das instituições. Neste contexto, queria referir-me em particular ao papel que deve merecer a negociação coletiva e de como esta, em vez de ser enfraquecida tem de ser reforçada. Como tem de ser reforçada a aplicação prática do direito à igualdade «536» - Painel “Que futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos” 3 forum abel varzim de género ou a conciliação entre a vida familiar e profissional, que tem de novo de passar para o topo da agenda política e não ficar subordinada ou secundarizada a questões de mera produtividade ou de lucro de curto prazo. Então pergunto: será que o país vai continuar a assistir passivamente à precariedade do vínculo laboral, porta aberta para a desqualificação do trabalho humano e inviabilidade de estratégias de desenvolvimento pessoal e familiar? Será que continuarão a ser tolerados horários de trabalho (ou isenção deles) que esgotam precocemente os trabalhadores, sobretudo os trabalhadores em idade ativa mais jovem, e impedem uma vida familiar sadia, incluindo a educação dos próprios filhos ou a assistência de vida a familiares que dela carecem e que nenhuma instituição pode suprir? Será que vão continuar a ocorrer acidentes de trabalho devidos a pura incúria dos empregadores? Será que continuará a assistir-se a uma certa permissividade face a salários não pagos e a direitos dos trabalhadores não respeitados? Ora, a democracia não é apenas a afirmação de princípios genéricos que têm a ver com a dignidade da pessoa humana e a igualdade de todos perante a lei. A democracia é, sobretudo, um caldo de cultura que alimenta instituições vigilantes na concretização desses princípios e desses direitos. A empresa, e a economia em geral, não podem furtar-se a este enquadramento, sob nenhum pretexto. Por último, queria referir um quarto desafio que reputo também da maior importância para a construção do nosso futuro (eu prometi que só falava de quatro e são só quatro). Estou a pensar na necessidade de ultrapassar o ceticismo e a desconfiança básica que muitos sectores da população (com razão algumas vezes e sem ela outras) alimentam em relação ao Estado. Ao contrário do que certas correntes de opinião procuram fazer crer (e perguntemos porquê…), o Estado é, mais do que nunca, necessário para fazer face aos desafios da globalização das economias (sobretudo das pequenas economias) e à preponderância do mercado como meio de regulação ou desregulação da economia. Não estou a pensar apenas na necessidade de vir em socorro das vítimas, cada vez mais numerosas, duma economia desbalizada ([isso] já seria uma função de primordial importância dada a extensão do seu cortejo), mas quero referir-me, de modo particular, a um papel que cabe ao Estado, de ser garante do bem comum e da salvaguarda do futuro para as gerações vindouras. Refiro-me ao papel de árbitro na conflitualidade de interesses antagónicos, refiro-me à função de representatividade do Estado em estâncias supranacionais, onde se discutem projetos com implicações para o futuro. Ora, reconheço com muita preocupação que, não só existe por parte da opinião pública um desconhecimento relativamente ao papel do Estado nestes vários domínios, como persiste um sentimento de hostilidade, por suspeita de não identificação do Estado com os verdadeiros interesses dos cidadãos e das cidadãs. Políticos e funcionários da administração pública não podem mais aguardar, passivamente, que esta imagem se corrija por si mesma. Enquanto ela persistir, continuaremos a assistir a descontentamentos pelo modo como funcionam os serviços públicos e, com isso, à proliferação das economias paralelas, à fuga aos impostos, à corrupção, etc. – fenómenos estes que minam a Democracia e as suas bases de sustentação. «536» - Painel “Que futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos” 4 forum abel varzim Como todos sabem, eu sou economista e estariam, talvez, à espera que eu me tivesse debruçado sobre o desafio do desequilíbrio das contas públicas. Queria dizer-vos que não foi distração da minha parte. Foi uma escolha intencional, que reflete indiretamente o que eu penso sobre esse assunto. A meu ver, temse inflacionado esta dificuldade e tem-se recorrido a ela para justificar as práticas liberais mais absurdas (vide, por exemplo, a recente estratégia de privatização do modelo de gestão de hospitais públicos). O défice das contas públicas é, certamente, questão que merece atenção e zelo, mas sobre elas já existe demasiada algazarra e excessiva ênfase. Claro que temos de controlar as contas públicas e realizar as despesas com parcimónia e com discernimento. Claro que a este propósito temos compromissos comunitários a respeitar. Claro que o valor do défice tem muito a ver com a política económica e as possibilidades de crescimento da economia. Poderia continuar em louvor da contenção do défice, ou melhor, do controlo das contas públicas. Mas o que não podemos, penso eu, é converter um instrumento numa finalidade, confundir um objetivo intermédio com um objetivo final. E este objetivo final só pode ser, a meu ver, o desenvolvimento humano sustentável e equitativo de Portugal e dos portugueses. Termino, com uma palavra sobre o papel dos sindicatos neste contexto, que eu espero que não seja mal interpretada pelos meus dois colegas de mesa, peritos nesta matéria e com particulares responsabilidades no sector. É um comentário breve. Os sindicatos, enquanto organizações de trabalhadores dependentes, vocacionadas para a representatividade e defesa dos seus interesses de classe socioprofissional, estarão certamente na linha da frente das lutas que visam dignificar o trabalho e os trabalhadores, salvaguardar níveis desejáveis de emprego e empregabilidade, melhorar os níveis de remuneração do trabalho humano e zelar por uma repartição mais equitativa do rendimento gerado nas empresas, a democraticidade na vida das empresas e na vida coletiva em geral. Não podem abrir mão destas metas que são, de resto, a sua razão de ser. Contudo, no atual quadro de referência, creio que os sindicatos não poderão, também, deixar de se abrir a outras frentes de intervenção. E destaco as seguintes. Tudo o que se refere à cidadania e à concretização dos direitos humanos de segunda e terceira geração. A saber: os direitos económicos, sociais e culturais e os direitos de participação e de empoderamento; a vasta problemática na educação, tanto no que concerne ao sistema de ensino formal, como no que se refere à formação ao longo da vida, na dupla vertente cívica e profissional; a participação, em sede de concertação social, como através dos média e da ação cívica, na denúncia das disfunções do modelo dominante de capitalismo globalizado neoliberal, refutando as teses do pensamento único e forjando e/ou apoiando vias alternativas de organização da economia e da sociedade. E, porque muitos destes desafios radicam em fatores exógenos, fatores que nos são externos, há certamente que reforçar a participação e a concertação de esforços no plano supranacional, designadamente no espaço comunitário. Para estarem à altura destes novos desafios também os sindicatos portugueses carecem, a meu ver, de um certo upgrade, começando por olhar para si próprios, para o nível de qualificação de recursos humanos, para a precisão e adequação dos instrumentos de que habitualmente se servem nas suas lutas (incluindo aqui o instrumento da greve), os caminhos que seguem para a definição de estratégias consistentes no médio prazo, a «536» - Painel “Que futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos” 5 forum abel varzim experiência efetiva de democraticidade interna, as parcerias que são capazes de estabelecer e as sinergias que são capazes de criar e aproveitar com a multiplicidade de parceiros potenciais dentro do mundo sindical ou fora dele. Muito obrigada! i Texto retirado de gravação. Editado «536» - Painel “Que futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos” 6