DUAS OBRAS E A METANARRATIVA: UM LIVRO, UM FILME
Maria Eugênia Bonocore Morais *
Na literatura e no cinema, como se apresenta o narrador? Traçaremos paralelos entre o
filme Mais estranho que a ficção, de Marc Forster, de 2007, e o livro O triunfo da morte, do
português Augusto Abelaira, de 1981. Histórias são narradas desde sempre, e como já
sabemos a origem da literatura é a oralidade. Então, entre os fatos narrados e o público, se
interpõe um narrador. Com o passar do tempo as narrativas sem complicam, o público muda,
o meio de contar histórias muda e o narrador também muda. A sua tendência é se ocultar, até
o ponto em que a narrativa parece ter vida própria.
Platão, em A república apresenta dois conceitos: imitar e narrar. Para ele, o ideal em
um discurso é a alternação entre os dois, sendo que a imitação seria reservada a ações, tipos e
gestos nobres. Platão considera a imitação como cópia infiel, enquanto o homem nobre narra
e não tão nobre imita. Os conceitos de Platão são carregados de valor.
Como diz Platão (s/d) “Há uma maneira de falar e contar que acompanha o verdadeiro
homem honesto, quando tem alguma coisa a dizer; e há uma outra, diferente, à qual se prende
e se conforma sempre o homem de natureza e educação contrárias”. Para Aristóteles a
imitação é simplesmente mimese do real, e como o próprio diz, “Imitar é natural ao homem
desde a infância”, (Aristóteles, s/d). Aristóteles afirma as teorias de Platão, mas também às
complementa: para ele, tanto imitar é a forma de conhecer a si mesmo e a natureza, que
diferencia os homens do outros animais.
Hegel, na sua Estética, parte dos conceitos platônicos e aristotélicos e sintetiza-os nas
visões que temos hoje de gêneros literários: Épico, lírico e dramático. Hegel chama o romance
de “epopeia burguesa moderna”, onde o narrador perde a oralidade e passa a falar para um
leitor individual. Anteriormente, o narrador era um intermédio entre a história
(acontecimento) e o público. Agora o narrador fala pessoalmente para um leitor também
pessoal. Antes, o narrador possuía uma visão de conjunto e se colocava distante do objeto
narrado, que ficava sempre no passado. No Romance o narrador torna-se íntimo, dirige-se
diretamente ao leitor, aproximando-o dos objetos narrados. Cria uma ilusão de confidência
entre duas pessoas.
* Atualmente é graduanda em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e é bolsista de
iniciação científica pelo Grupo de Pesquisa O narrador desestabilizador na Literatura Portuguesa do século 21,
vinculado ao Programa de Pós Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul.
Um grande conceito aristotélico se apresenta aqui: a verossimilhança. Não é mesma
coisa que verdade, aqui há um intrincado jogo de coerência da apresentação-representação
fictícia. A verossimilhança da obra é sempre interna. Um pacto entre leitor e autor.
A Teoria do Foco Narrativo parte justamente desse conceito. A relação entre ficção e
realidade. O escritor Henry James, por volta do fim do século XIX e início do XX parte para
reflexões a cerca de diversas questões narrativas, na forma de prefácios em suas obras. Mais
tarde, em 1921, o crítico inglês Percy Lubbock retoma as idéias de James, nas quais postula
que o narrador possua um ponto de vista único, que digressões desviam o leitor da história.
Ambos atacam a narrativa em primeira pessoa, afirmando que o ideal é que a história conte a
si própria, ocorrendo assim um desaparecimento estratégico do narrador. Apoiado em
conceitos platônicos, Lubbock distingue narrar (telling) e mostrar (showing), conceitos que
tem a ver com a intervenção ou não do narrador. Quanto mais ele intervém, mais ele conta e
menos ele mostra.
A Teoria do Foco Narrativo ainda traz mais conceitos como cena e sumário, porém
este artigo não aprofunda essas questões.
Baseado em alguns pontos de Lubbock e em diversas teorias que surgiram adiante, é
que Norman Friedman cria a Tipologia do Narrador. Deixando claro que sua tipologia trata de
questões de predominância de não de exclusividade, Friedman classificará o narrador da
seguinte maneira:
1) Autor onisciente intruso;
2) Narrador onisciente neutro;
3) Narrador testemunha;
4) Narrador protagonista;
5) Onisciência seletiva múltipla;
6) Onisciência seletiva;
7) Modo dramático;
8) Câmera.
Para este nosso estudo aprofundaremos o autor onisciente intruso. Este tem uma forte
tendência ao sumário, ou seja, o narrador conta ao leitor os acontecimentos da história. Tem a
liberdade de narrar à vontade, mudando seu ponto de vista sempre que quiser. Pode adotar
várias posições, narrando da periferia dos acontecimentos, de dentro deles, como preferir.
Seus canais de informação são suas próprias palavras, seus conceitos e suas percepções. Seu
traço mais característico é a intrusão, seus comentários, sobre vida, costumes, moral, que
podem ou não estar ligados à história. É o espaço da metanarrativa, onde o narrador muitas
vezes reflete sobre o narrar.
Este é um narrador bastante presente nas obras portuguesas. O próprio Augusto
Abelaira, José Saramago, Almeida Garret. Na literatura brasileira, Machado de Assis, entre
outros. É o narrador que chama “às leitoras”, o principal público na época, o tempo todo.
Convida à ficção, aponta ao leitor que aquilo se trata de um livro, um objeto, uma estrutura
narrativa.
A partir de agora veremos a presença desse narrador nas duas obras selecionadas.
Começamos por Abelaira. O triunfo da Morte inicia-se pelo capitulo dois, pois o próprio autor
confessa que o capítulo um ele não gostou e jogou fora, já um traço da metanarrativa.
As páginas anteriores parecerão um tanto pretensiosas, mas conquistar logo de
início, logo nas primeiras linhas, um estilo ultrapassa as minhas possibilidades – se
não me perder pelo caminho, se adquirir confiança em mim próprio, se chegar ao
fim, deito-as então fora, substituindo-as por outras. (ABELAIRA, 1981, p. 1).
O autor ainda começará a narrativa por um terceiro capítulo. ”De qualquer modo, e
mais preso à terra, poderia ter começado da seguinte maneira:” (ABELAIRA, 1981, p. 1).
No filme Mais Estranho que a ficção, na medida em que uma voz feminina narra
sobre Harold, as imagens na tela são das ações de Harold. Aí temos um contar e mostrar
simultâneo. Até este momento estamos diante de uma narradora Onisciente neutra, passando
suas impressões sobre Harold. Um bom exemplo de elemento de verossimilhança é o relógio
de Harold, que nesse caso, tem opiniões sobre ele e também é uma personagem da história.
Esta é a história de um homem chamado Harold Crick e seu relógio de pulso. Harold
Crick era um homem de infinitos números cálculos intermináveis e pouquíssimas
palavras. E seu relógio falava menos ainda. Todos os dias, há doze anos Harold
escovava cada um dos seus trinta e dois dentes setenta e seis vezes. Trinta e oito
vezes para frente e para trás. Trinta e oito vezes para cima e para baixo. Todos os
dias de semana, há doze anos Harold amarrava a gravata num nó Windsor simples,
não duplo, economizando, assim, quarenta e três segundos. Seu relógio achava que o
nó Windsor simples engordava seu pescoço, mas não falava nada. Todos os dias da
semana por doze anos, Harold corria seis quadras, a cerca de cinquenta e sete passos
por quadra para pegar ônibus de oito e dezessete para Kronecker. Seu relógio amava
o vento fresco batendo contra o mostrador. (FORSTER, 2007).
Voltando ao livro de Abelaira, neste terceiro capítulo onde começa a narrativa, vemos
que o narrador já assume outra posição, poderíamos dizer que ele se coloca como narrador
protagonista.
Pondo o preto no branco: subia eu a Avenida da República, quando descobri no
outro passeio a Maria Luísa, que perdera de vista há muito tempo. Dando por mim, e
sem pensar nos automóveis, correu ao meu encontro, mas foi atropelada, voou, eu
desatei a fugir e só no dia seguinte li a notícia nos jornais, morrera. (ABELAIRA,
1981, p. 2).
No filme logo em seguida da apresentação de Harold, temos uma cena em que ele
escova os dentes. A voz narradora volta, “Se perguntado, Harold teria dito que esta quartafeira em particular era exatamente igual às anteriores. E ele a começou do mesmo jeito”,
(FORSTER, 2007). Aqui temos uma interrupção brusca. Harold ouve uma voz o narrando.
Duvida. Continua. A voz retoma a narrativa. Harold para novamente. Assustado chama por
alguém, até que começa a falar com a voz, já que ela parece narrar o que se passa na cabeça
de Harold. Até o ponto em que pergunta a uma mulher na rua se ela também ouve a voz.
Mais uma vez, em O Triunfo da morte, o narrador de Abelaira fala sobre o seu papel
de narrador, “mas se alguma coisa pretendo insinuar é que no meu espírito se meteu a ideia do
livro, a ideia dos leitores, não o simples e adolescente anseio de falar comigo próprio. (...) Em
resumo: procuro cúmplices!”, (ABELAIRA, 1981 p. 3) Aqui, poderia estar o autor revelando
um medo de não ser lido, pedindo ao leitor que divida esse texto com ele?
Mais adiante, expondo mais ainda as engrenagens de sua narrativa, diz Abelaira (1981,
p. 7). “Deixarei para mais tarde essa história (por falta de paciência ou para manter a
expectativa)?”.
Chamo a atenção para mais uma passagem do filme. A voz narradora aparece. Toma
forma. Há então, uma personagem, secundária que narra o protagonista. Seria, segundo
Friedman, um narrador-testemunha? Certamente preenche alguns requisitos, mas nem todos,
como na cena em que diz, “Não sei como matar Harold Crick”, (FORSTER, 2007). Viria essa
confissão do mesmo lugar que vêm as de Abelaira? A voz que Harold escuta vem e vai.
Assim, a voz seleciona o que Harold escutará, tem domínio sobre o destino de Harold. E mais
tarde quando a voz narra que Harold morrerá, ele se desespera.
E chamo agora para outra passagem do livro, em que apresenta um elemento de
verossimilhança muito bem construído, pela primeira vez na narrativa, nosso narrador é
reconhecido e as suspeitas que até então o leitor e o narrador tinham (se o narrador era ou não
a morte), são esclarecidas.
Inesperadamente, perguntei-lhe como se alguém falasse pela minha voz: <<Sabes
quem sou eu?>> Olhou para mim, dir-se-ia reconhecer-me, conhecer-me melhor que
eu próprio me conhecia. <<Não me leves!>> Falava em espanhol, o terro no rosto.
<<Dou-te quanto quiseres!>>. (ABELAIRA, 1981, p. 22).
Escolhi essas duas obras, pois nelas o narrador tem um papel central e decisivo. A
questão principal que levantei com este artigo é o papel do narrador na literatura, e penso que
a Tipologia de Friedman é muito mais livre e muito mais plural, assim como o narrador pode
ser, se assim quiser. Discordo de alguns pontos da Teoria do Foco narrativo, quando, por
exemplo, condena a metanarrativa. Justamente na literatura portuguesa, a metanarrativa é tão
presente e tão bem utilizada. Como já disse José Saramago: “Narrador, não sei quem é”.
Referências
ABELAIRA, Augusto. O triunfo da morte. Lisboa, Sá da Costa, 1981.
ARISTÓTELES. A poética clássica. São Paulo, Cultrix, 2005.
LEITE, Lígia Chiappini Morais. O foco narrativo. São Paulo, Ática, 1985.
BOOTH, Wayne. The rhetoric of fiction. Chicago, The University of Chicago press, 1961.
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