Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Filosofia, Arte e Cultura
Departamento de Filosofia
ESTÉTICA AFIRMATIVA EM ARTHUR SCHOPENHAUER
Eduardo Reina Bastos
Ouro Preto - MG
2012.
1
EDUARDO REINA BASTOS
Estética Afirmativa em Arthur Schopenhauer
Dissertação apresentada ao
programa de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia,
Arte e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Douglas Garcia Alves Júnior.
Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura
OURO PRETO – MG
2012
2
B327e
Bastos, Eduardo Reina.
Estética afirmativa em Arthur Schopenhauer [manuscrito] / Eduardo Reina
Bastos - 2011.
111f. : il. color.
Orientador: Prof. Dr. Douglas Garcia Alves Junior.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto.
Instituto de Filosofia Artes e Cultura. Departamento de filosofia. Programa de
Pós-Graduação em Filosofia.
Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.
1. Estética - Teses. 2. Contemplação - Teses. 3. Intuição - Teses. 4. Idéia
(Filosofia) - Teses. 5. Schopenhauer, Arthur, 1788-1860 - Teses. I. Universidade
Federal de Ouro Preto. II. Título.
CDU: 111.852:1(430)
Catalogação: [email protected]
CDU: 616.993.161
4
AGRADECIMENTOS
Nesta verdadeira jornada de mais de dez anos de estudos de filosofia,
pude seguir em frente graças a ajuda de pessoas que, muitas vezes, estenderam
suas mãos sem esperar retorno, me fazendo acreditar na bondade e boa vontade do
ser humano. Agradeço:
A Deus e a todos Aqueles que abriram caminhos para que eu pudesse
continuar os estudos filosóficos.
Aos meus pais, Renato Bastos Junior e Maria de Los Angeles Reina
Sanches, que sempre me proporcionaram liberdade para que eu escolhesse as
direções de meus estudos e me acolheram e fortaleceram na saúde e na doença.
Aos meus irmãos e meus amigos que me apoiaram durante todo este
tempo e possibilitaram visões sobre meus estudos para além da universidade,
possibilitando também que esta tese pudesse possuir também valor fora dos
domínios acadêmicos.
Ao Prof. Dr. José Fernandes Weber da Universidade Estadual de
Londrina, verdadeiro titã da filosofia e amigo, cuja oratória, capacidade
intelectual, emocional e modelo de vida faz com que quem quer que tenha tido
contato com ele acredite que existem deuses entre nós. Durante a graduação soube
feito ninguém intuir exatamente quais eram os pontos principais de meus
questionamentos e graças às suas indicações iniciais o projeto desta tese foi
possível. E agradeço pela sublime disciplina, o que não é excessão se tratando de
suas aulas, ofertada no primeiro semestre de 2011: FIL 164 – “TÓPICOS EM
ESTÉTICA E SUBJETIVIDADE: O trágico e a crítica ao fundamento subjetivo
da arte em Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche.”
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Ao psicólogo e amigo Álvaro de Oliveira que me estimulou a seguir em
frente, independentemente das dificuldades e por todas as visitas alegres e
descontraídas.
A colaboração de Prof. Dr. D. Garcia, por me proporcionar liberdade
argumentativa e ter me enviado indicações importantes para a conclusão da obra.
Aos colegas de graduação da Universidade Estadual de Londrina,
Micael Rosa Silva, Vinícius Simões, Claudia Galassi, Ronie Peterson da Silva
pelo apoio acadêmico e ajuda mútua com bibliografias, discussões, correções e
todos os colegas que ajudaram indiretamente.
Aos colegas de mestrado, em especial, Marília Siqueira Gratão e Carlos
Alberto Dahora.
À República Diretoria, que, apesar dos desentendimentos, me acolheu
durante minha estada em Ouro Preto.
Aos funcionários da UFOP que, com paciência e diligência, facilitaram
o envio de documentos necessários para o término do curso. Aos funcionários da
PROPPG da UEL e, mais uma vez, ao Prof. Dr. José Fernades Weber, por
proporcionarem aproveitamento de disciplina sem a qual não seria possível
terminar este mestrado.
Aos membros da banca que se dispuseram a avaliar esta dissertação: Prof.
Dr. Olímpio Pimenta e Prof. Dr. José Fernandes Weber.
À bolsa da UFOP pelo apoio aos estudos.
Eduardo Reina Bastos.
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RESUMO
A tradição filosófica caracteriza a filosofia de Arhur Schopenhauer
como
pessimista como dado acabado e incontornável. Esta dissertação tem como principal
objetivo demonstrar que sua parte estética se insere como uma alternativa a esta
constatação e demonstrar que existe um grande contraste entre criação e negação.
Através de uma reconstrução de sua teoria do conhecimento, a chamada pré-estética,
e reconstrução de sua estética, nos alçamos àquela que serve como força apaziguadora
da Vontade, a intuição estética e seu produto, a contemplação estética.
PALAVRAS-CHAVE: Princípio de Razão Suficiente - Contemplação Estética Intuição Empírica - Intuição Estética - Idéia - Gênio Artístico-Belo
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SUMÁRIO
Introdução..................................................................................…... 8
O Filósofo e Seu Mundo.
Capítulo Primeiro ………..........................................................….....21
Intuição – Substrato do Mundo.
Capítulo Segundo …......................................................................... 30
A Intuição Estética.
Capítulo Terceiro ………..............................................................… 44
A Classificação das Artes.
Capítulo Quarto……………………………………………………. 60
Considerações Sobre a Tragédia Grega.
Capítulo Quinto……………………………………………………. 80
O Impulso Criativo como Fuga do Pessimismo em Schopenhauer.
Conclusão ......................................................................................... 90
Bibliografia ............……………...............……............................... 105
8
INTRODUÇÃO: O FILÓSOFO E SEU MUNDO.
• O Júpiter Tonante.
“Se quiseres regozizar-te do teu valor, é preciso que dês valor ao mundo.”
Frase que Johann Wolfgang von Goethe endereçou ao jovem desencantado Arthur Schopenhauer, a qual ele carregara por toda
a vida.
Arthur Schopenhauer contatou com as letras desde a mais tenra idade.
O ensino das línguas desde a infância, por parte de seus preceptores , fez com que
seu leque de opções literárias se extendesse e ele pudesse conhecer não apenas a
literatura universal clássica dos mais variados países e dos mais variados
continentes, e aqui se leia também países orientais, mas se entusiasmar também
por literatura de autores cujas obras eram pouco difundidas nas Bibliotecas as
mais eruditas da Alemanha. Mas o determinado rapaz de Danzig, o qual teria
nascido na Inglaterra, não fosse um acaso do destino, não se deixou seduzir pelo
canto das musas. Seus conhecimentos de medicina e ciências naturais e sua
propensão a procurar os ‘quês’ do mundo, fizeram com que ele buscasse com
intensidade crescente e cada vez mais fervor na maturidade o que os escolásticos
chamavam de ‘aeternae veritates’ , as verdades eternas. E quando um dos
guardiães de um jardim botânico, estupefato, quando se sentiu incomodado com
sua observação durante horas a um pé de laranja - observação da frutificação-,
questionou quem ele era, ele respondera: - Gostaria muito que você me dissesse –
e Arthur Schopenhauer deixou o local.
Seu pendor por seguir a direção para a estrela guia da verdade, em
concentrar quase todos os anseios na busca de um sentido para o mundo, fez com
que a Alemanha do século XIX testemunhasse um tipo de obstinação única. Qual
não foi a surpresa de um conhecido ao vê-lo em uma taberna, conversando ao
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longe com um amigo, repleto de tanto brilho nos olhos e com tanta satisfação
expressa em cada traço do rosto, que logo supôs que falava da mais adorável das
mulheres, qual não foi a surpresa, dizia eu, ao se aproximar da mesa e perceber
que ele explicava apaixonadamente ao amigo o princípio de não-contradição, uma
das quatro leis fundamentais da lógica formal clássica?
Essa obstinação, que beirava ao desespero, e a magnanimidade grave com
que tratava questões éticas e filosóficas de toda sorte, fizeram com que os poucos
que aceitaram seu espírito duro e intratável, e os poucos que ele julgava dignos de
participar de seus questionamentos, rendessem a ele o designativo de Júpiter
Tonante. O que não é de todo exagerado para quem detinha aspecto tão altivo e
sabedoria tão fértil e ao mesmo tempo possuía uma conduta tão rígida.
Um espírito rígido sim, mas com a rigidez da responsabilidade de um pai
que toma pra si o dever de ensinar os filhos. Um espírito obstinado sim, mas com
a obstinação de alguém que toma pra si o compromisso do filósofo para com a
verdade. Um espírito aparentemente frio sim, mas com a frieza de quem
terrificadamente percebeu que seria a pior das friezas ignorar os horrores da época
para livremente aproveitar os prazeres da fortuna, aquecendo o coração com bons
vinhos e companhias agradáveis. Aparentemente porque não é possível alguém
escrever com tal intuito de clareza e didática, com tamanho anseio de se fazer
entender, possuindo coração de gelo. ‘Os maiores pensamentos vêm do coração’ –
quem afirma isto não pode ser um Vlad cuja simples presença enregela as pessoas,
um Vlad sem sangue nas veias. Apenas para quem toma o conteúdo pela forma.
Diferentemente do método filosófico cada vez mais em voga na
Alemanha da época, o método de Arthur Schopenhauer consistia em negar todos
os argumentos que apresentassem o mínimo motivo para isso, como quem fura em
várias partes uma caneca e se põe a girá-la em torno do eixo do corpo, aos modos
de uma centrifugadora1 : pois bem, o que restasse no fundo da caneca poderia ser
OBS: Como todas as obras aqui citadas constarão nas referências bibliográficas com o nome do autor,
nome da obra, cidade, editora, ano de publicação, edição, far-se-á a citação no decorrer do texto indicando
apenas o nome do autor, o título da obra e o número da página da citação e, se constar, tradutor da obra, o
aforismo ou a referência de linha.
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chamado de algo sólido. Não era um método que contrapunha a antítese à tese e
daí concluía a síntese, era um método em que apenas se negava, o que restasse
depois de todas as negações seria o que mais se aproximaria da verdade.
Esse fervor por conhecimentos sólidos, e ao mesmo tempo a certeza da
existência de princípios subjacentes à matéria dada, fez com que ele construísse
um dos edifícios do conhecimento mais sólidos da história da filosofia ocidental o
qual, simultaneamente, não negou o fundo escuro sobre o qual foi construído.
Fundo escuro destes princípios subjacentes que, se não é passível de ser
conhecido, ao menos, mediante seus efeitos no mundo, pode ter algumas de suas
forças extrínsecas tateadas, e algumas intrínsecas induzidas.
Essa predisposição e o reconhecimento da necessidade metafísica
desprovido da desvinculação dos dados do mundo engendrou sua metafísica
empírica ou, para usar uma expressão mais justa, sua metafísica encarnada, ou
metafísica voltada para a imanência do empírico.
• O Mundo Destrinçado.
“Este mundo é o primado do acaso e do engano. Por isso, só devemos aspirar àquilo que nenhum
acaso nos possa roubar, só afirmar e agir onde o engano não seja possível.”
Diário de Arthur Schopenhauer, 1813.
A exemplo da manifestação da vontade no mundo, o filósofo engendra a
organização do seu pensamento tal como a organização de um corpo. Alçou
organização de pensamento tal que uma ínfima extirpação de suas partes seria
sentida por toda estrutura – feito o corpo -.
Ao contrário da esmagadora maioria da produção literária, cujo conteúdo
poderia ter boas parcelas suprimidas sem causar ônus algum à cultura (inclusive o
espírito da humanidade só teria a ganhar se utilizasse muitos desses livros como
1
Hoje os físicos chamam de inerciadora.
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combustível de termoelétricas2), qualquer parte talhada da obra principal de Arthur
Schopenhauer seria sentida por todo o sistema nervoso central. Com efeito, como
compreender a ultrapassagem das características fenomênicas dos objetos
permitida pela contemplação estética descrita no terceiro livro, sem conhecer o
princípio de razão ou o princípio de individuação, elucidados no primeiro e
segundo livro? Assim, sua metafísica, sua lógica, seus estudos sobre a matemática,
sobre a etiologia, sua estética, teoria moral e mesmo até seus estudos mais
controversos como a fisiognomia, frenologia e palingenesia, dentre outros, estão
intimamente ligados. É claro que existem partes acessórias presentes para
reafirmar argumentos. Partes acessórias cuja supressão não lesaria a obra.
Contudo, até passagens aparentemente desnecessárias e estranhas ao
desenvolvimento da obra, como a teoria do riso, são partes orgânicas deste
grandioso corpo filosófico chamado Mundo Como Vontade e Representação.
Desobedecendo a epígrafe deste tópico, arrisco a afirmar mesmo que a
evolução da cronologia, do desenvolvimento e do encadeamento da obra
assemelham-se à evolução da vida do homem. O que poderia ser traduzido assim:
Abrem-se os olhos e logo as organelas responsáveis pelo reconhecimento
do mundo entram em ação. E lá está ele, causa não causada: O Mundo como
Representação.
Em um segundo momento toda aquela vida jorrando por uma torrente
inefável de representações, como um espetáculo sem script, parece poder ser
delimitada: causas e efeitos mais constantes adquirem universalidade, todo o
colorido parece poder ser subsumido a certa aquarela e o mesmo impulso que
irrompe em seu próprio corpo parece irromper em todos os outros seres. Sim,
princípios ocultos, forças naturais, leis naturais e os mais diferentes reinos, todos
construídos e regidos por um impulso que é um e o mesmo, cuja máxima
expressão em cada reino encontra sua particularidade e imprime a respectiva
singularidade. Causalidade, excitação e motivação: O Mundo como Vontade.
2
Friedrich Nietzsche afirma algo parecido na sua Intempestiva
‘Sobre o Futuro de Nossos
Estabelecimentos de Ensino’. Arthur Schopenhauer manifesta os motivos para seu desprezo por produções
literárias do tipo ‘best-seller’ no seu capítulo dos Parerga ‘Sobre livros e leituras.’
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Logo é chegada a primavera do ser. É chegada a juventude com seus
ardores, suas necessidades poéticas, com seu idealismo e desejo de encontrar o
universal no particular, sua necessidade de afirmar a existência. O mundo tal como
se apresenta à primeira vista não é o suficiente, deve existir um coração primordial
das coisas, deve existir um fundo essencial imagístico, algo pelo qual todas as
coisas tendem: a Idéia.
Também os homens têm uma história e também são causa. Natureza,
morada, homem e civilização. A justiça e a injustiça dependem da maneira que os
homens lidam com seu egoísmo, pela maneira que afirmam sua vontade. Se o
egoísmo de um não prejudica nada do egoísmo de outro, se tem a justiça. Mas o
homem é tanto mais injusto quanto mais a afirmação da sua vontade nega a
vontade de outros, seu egoísmo lesa o egoísmo dos outros. A moralidade começa a
ser compreendida .
Por fim, no quinto ato desta tragédia chamada vida, da qual todos
sabemos o final, o espírito se serena. Toda a aparência de separação do princípio
de individuação já não ilude mais. O sofrimento de um é o sofrimento de outro, a
compaixão se torna unipaixão e as malhas do véu de Maia começam a serem
desenredadas pela negação da vontade. A flor de lótus perde suas pétalas e a vida
aos poucos se esvanece: O nada.
Uma obra fruto de tamanha intuição que já nascera acabada. O próprio
filósofo a descreve como um só raio intuitivo refletido em várias facetas de um
mesmo prisma. Todas as obras posteriores serão, em suma, apenas
acrescentamentos a esse pensamento único, o que fez de seu criador um filósofo
livre de “fases” como é comum acontecer entre os filosofastros.
Obra tão completa e produto de uma inteligência tão grande que
grandiosos e sensatos filósofos e poetas do século XIX não conseguiram terminar
sua leitura sem exclamar: ‘Então é isto!’
• O Pessimismo do Pessimismo.
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A filosofia de Arthur Schopenhauer sempre foi apresentada mediante seu
teor pessimista. Muito se falou desse preconceito, como se estivesse impregnado
em todos os aspectos da obra, e pouco se falou das soluções apresentadas.
A visão medonha proporcionada por Pandora ao Brás Cubas de Machado
de Assis poderia sim apresentar o descontentamento do filósofo diante das
vicissitudes do acaso no mundo:
“Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de
todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a
guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das
coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do
homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem
a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação
mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos
os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos
desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são
outros, eu via tudo o que passava diante de mim, -- flagelos e delícias, -desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e
via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade.
Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a
enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a
melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um
chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um
mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava
eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A
dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem
sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado
e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura
nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de
improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a
agulha da imaginação; e essa figura, -- nada menos que a quimera da
felicidade, -- ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela
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fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e
sumia-se, como uma ilusão “ 3.
Ele próprio afirma n’O Mundo:
“ Suponhamos que nos seja permitido lançar um olhar claro
sobre o domínio do possível, para além da cadeia das causas e dos efeitos: o
gênio da terra surgiria e mostrar-nos-ia num quadro os indivíduos mais
perfeitos, os iniciadores da humanidade, os heróis que o destino levou antes
que a hora da ação tivesse soado para eles. - Depois far-nos-ia ver os
grandes acontecimentos que teriam modificado a história do mundo, que
teriam trazido épocas de luz e civilização supremas, se o acaso mais cego, o
incidente mais insignificante, não os tivesse asfixiado à nascença. –
Representar-nos-ia, enfim, as forças imponentes das grandes
individualidades que teriam sido suficientes para fecundar toda uma série
de séculos, mas que se perderam por erro ou por paixões ou ainda que, sob
pressão da necessidade, se empregaram inutilmente em indignas e estéreis
causas, ou ainda que se dissiparam por puro divertimento. Veríamos tudo
isto e seria para nós um luto: choraríamos sobre os tesouros que os séculos
perderam “ 4.
O filósofo é extremamente desapontado com as ações dos homens, o que
pode sim lhe render o rótulo de pessimista diante das ações humanas. Não
reprovamos e condenamos os seres que agem conforme seus impulsos primevos se
esta é a única opção lhes dada e, como tal, é uma tendência natural; reprovamos
sim um ser que, podendo agir contrariamente a impulsos primevos cujos efeitos
não são desejáveis, ainda assim cede a essas forças pungentes. Contudo, não
apenas as ações abomináveis dos homens sedimentam no mundo a característica
horrível do sofrimento constante, mas o próprio cerne do mundo é sofrimento.
3
Feito consta em: ROSA, Maria Dias. A influência de Schopenhauer na filosofia da arte de Nietzsche
em O nascimento da Tragédia. e ASSIS, Machado. Memória Póstumas de Brás Cubas. Cap. 7.
4
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação . § 35 ps. 192 e 193.
(As
citações do Mundo Como Vontade e Representação presentes aqui referem-se à edição da Contraponto,
2004.).
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A vida é constituída por necessidade, falta e desejo. A falta, condição do
desejo, é regra tão constante que o prazer não encontra nenhum lugar na existência
afora um lugar negativo. E, uma vez satisfeito, o prazer acaba logo por ceder
espaço a um novo desejo. E mais, para cada desejo realizado, pelo menos dez são
negados. Para pensar o quanto o sofrimento é maior do que o prazer
qualitativamente falando também, basta comparar o prazer do predador com o
sofrimento da presa. Não é à toa que, para se referir a uma imagem explícita, o
filósofo recorre ao mito das Danaides para ilustrar o insaciabilidade do desejo. Por
mais que tentemos encher o tonel da satisfação, ele jamais se completa. Eis o
sofrimento no cerne da existência.
Se os homens colocaram os sofrimentos no inferno, para o céu só restou o
tédio. Quando a vida não é constituída por necessidade, desejo e falta, resta o
tédio. O filósofo compara a necessidade da vida aos dias de trabalho e busca da
semana e o tédio com o dia do descanso.
O mundo de contingências conflitantes não oferece amparo ao sofrimento
agudo do indivíduo. A natureza não se aflige pois a ela apenas interessa a
perpetuação da espécie; uma vez realizado esse anseio da natureza, o homem
como indivíduo não tem importância alguma. Diante da natureza, mais forte do
que o egoísmo, apresenta-se o gênio da espécie. O homem e outros seres
importam apenas como instrumentos de perpetuação das espécies. E o sofrimento
do homem será tanto mais adiado e extendido quanto mais ele procurar apoio em
esperanças, seja esperança de mundos outros, seja esperança que ultrapasse suas
próprias forças.
Nossa constituição do eu querente, a parte responsável pelos desejos e
anseios, é também responsável pelos sofrimentos – é o ego que se infla pela
incompletude dos desejos, pela insaciedade dos anseios; que se recolhe na
melancolia, é a fonte de desejos sem fim, o querer estar em lugares outros, tempos
outros, em companhias outras; são preocupações intermináveis – basta perceber
como, após o término de uma grande preocupação, uma outra sem nome começa a
sussurrar sutilmente até ocupar o buraco deixado por aquela, logo apresentando
16
sua identidade e a que veio -, como se isso, essa vontade individual, fosse o
próprio âmago do sofrimento no ser.
Vida feliz é uma contraditio in adjecto. O máximo que se pode esperar é
uma vida heróica. Tanto impalpável e arisca é a felicidade que nas peças de teatro,
uma vez alcançada a felicidade, fecham-se as cortinas.
Quanto mais o indivíduo buscar a satisfação fora de si, menos a
encontrará. Se é difícil encontrá-la dentro da gente, é impossível alhures. Portanto,
conclui o filósofo, que conhecia demasiadamente as condições da felicidade para
quem tem a alcunha de pessimista, quanto mais próximo da solidão, mais longe
das contingências do mundo, logo, mais próximo da felicidade. Quem não ama a
solidão, não ama a liberdade.
Deveríamos invejar o homem feliz não pelo o que tem, nem pelo que
representa, mas pela maneira que acolhe o que tem e o que representa. Não é de
se espantar que muitos ricos extremamente infelizes não consigam conceber que
pessoas relativamente pobres sejam felizes: é que eles colocaram a felicidade no
trono opulento das riquezas, enquanto ela se encontra na natureza de cada um, na
alegria de contentar-se com pouco, na maneira que cada um recebe e se desprende
com facilidade dos bens 5.
É possível que o filósofo tenha se auto-estigmatizado com este caráter
pessimista. Suas críticas ácidas, desnudantes a partir dos Parerga unt
Paralipomena, foram o ponto de partida para sua notoriedade no final da vida. A
vontade ou não de encontrar reconhecimento em vida é uma das discussões
recorrentes em algumas biografias de Arthur Schopenhauer. Suas manias de
perseguição, a tendência de culpar seus contemporâneos das cátedras pelo
impedimento do seu reconhecimento pode legitimar a afirmação desta hipótese.
Diz ele no seu capítulo Sobre a Filosofia Universitária: “Não nos enganemos
quanto a isso, pois existe, em todos os tempos, por todo globo terrestre e em
todas as situações uma conspiração tramada pela própria natureza das
5
Observe-se aqui que este dois últimos parágrafos foram redigidos embasados nos Aforismos sobre a
Sabedoria de Vida onde Arthur Schopenhauer esclarece ser uma meditação objetiva, afastada “do
ponto de vista superior, ético metafísico, ao qual conduz [sua, ERB] Filosofia propriamente dita.”
17
inteligências medíocres, ruins e tolas contra o espírito e o entendimento “ 6.
Contudo, podemos colocar na balança que, se ele tivesse alcançado a glória cedo,
perderia muito tempo defendendo ou consagrando sua filosofia, para aludir aos
filósofos-teólogos de sua época, e não teria produzido tudo que nos legou7. Poderse-ia objetar que isto serviria para injetar-lhe mais ânimo para escrever ainda mais,
contudo, sabemos que é fundamental para o filósofo o distanciamento para a
obtenção e manutenção da visão panorâmica. Seja o distanciamento das
atribulações acadêmicas, seja o distanciamento das atribulações políticas. Ter que
defender e repetir incansavelmente suas teses seria muito prejudicial e poderia
transformar
sua filosofia em um invólucro de frases sem referência,
extremamente adaptável a evasivas rápidas, como o pensamento de F. Hegel.
Minha primeira e definitiva impressão sobre a sua obra principal, com
exceção do Livro IV, consistiu de, longe de impressão de uma filosofia pessimista,
a impressão de uma filosofia de constatação e consolo. Constatação porque o que
nela nos é apresentado como de teor pessimista, não passa do desenvolvimento
filosófico de inferências mais grosseiras ou refinadas da realidade da vida as quais
qualquer pessoa em condições normais de suas faculdades e vivendo na
civilização cedo ou tarde pode concluir. Consolo, porque ele ainda nos apresenta
alívios. Se não, vejamos: ele conclui o pensamento acima citado assim:
“Mas o espírito da terra responder-nos-ia com um sorriso: A
fonte de onde emanam os indivíduos e as suas forças é inesgotável e
infinita, tanto como o tempo e o espaço, visto que, como o tempo e o
espaço, ela é apenas o fenômeno e a representação da vontade. Nenhuma
medida finita pode avaliar esta fonte infinita: do mesmo modo cada
acontecimento, cada obra asfixiada em germe tem ainda e sempre a
eternidade inteira para se reproduzir. Neste mundo dos fenômenos toda
perda absoluta é impossível, assim como todo ganho absoluto. Só a vontade
existe: ela é a coisa em si, ela é a fonte de todos estes fenômenos. A
6
7
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Filosofia Universitária. p. 43.
Diz Epicuro : “ Viva ignorado”.
18
consciência que ela toma de si mesma, a afirmação ou a negação que ela se
decide a tirar daí, tal é o único fato em si” 8 .
É um erro peculiar da tradição de comentadores, principalmente a
tangente à filosofia de Arthur Schopenhauer, difundir a característica mais intensa
das obras do autor para todos os aspectos das obras. A estética de Arthur
Schopenhauer padeceu deste exagero.
A renúncia ao conhecimento individual não significa renúncia à vida e
quando o filósofo alemão usa a palavra ‘negação’, seja nos trechos que diz
“negação do conhecimento individual”, seja como “negação da vontade”, isto não
significa fatalmente negação da vida ou pessimismo. Dizer que o sofrimento está
no âmago do mundo seria um pessimismo acabado se esta característica não fosse
superável.
A parte da sua filosofia que aborda o sofrimento do mundo se aproxima
mais de uma filosofia constatativa, que constata e aprofunda o que qualquer
pessoa pode constatar se lançar um olhar profundo à natureza dos estímulos
presentes no mundo e em si mesmo: somos impelidos constantemente a tentarmos
nos completar. O problema é que não sabemos o que possa ser isso que poderia
nos completar.
• A Estética na Metafísica do Belo.
A contemplação estética vem a ser uma das soluções à inconstância
sofrível no mundo fenomênico. Mais do que uma filosofia constatativa e de
consolação, temos na parte estética, não apenas no que tange à solução temporária
dos males do mundo, como também na sua estruturação das variadas
manifestações da arte, uma filosofia passível de desenvolvimento e até mesmo
evolução, ao contrário da chamada Fenomenologia da vida ética, na qual o
8
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 35 p. 193.
19
filósofo apresenta saída ou resposta tão definitiva e hermêtica à inconstância da
vida que parece não nos permitir flexões9.
A filosofia da arte de Arthur Schopenhauer não pode ser considerada
estética no sentido difundido por tantas academias de arte. Ele não está tanto
interessado no tipo de iluminação mais louvável para cada tipo de pintura. Não
está tanto interessado em como o poeta trabalha a transfusão das paixões com as
palavras. E nem como o músico trabalha as notas para sensibilizar os mais
diversos sentimentos. Ainda que ele elenque as mais diversas manifestações da
arte segundo o grau de manifestação da beleza, em parte através dos efeitos
causados nos nossos sentidos, em parte através dos embates entre as forças de
manifestação da Vontade, desde a arquitetura até a música – a excelência da arte -,
ainda assim ele está interessado nos mecanismos pelos quais o sujeito é alçado ao
belo, pelos quais ele se furta de todo o mundo fenomênico, e por isso nomeia sua
teoria estética de Metafísica do Belo. A estética, tal como é difundida nas
academias, trata da arte, já a metafísica do belo, da contemplação da arte.
Contudo, é objetivo desta dissertação não apenas abordar a contemplação
estética, como também mostrar que ela depende dos elementos tirados do mundo
fenomênico para cintilar o que se encontra velado no próprio mundo fenomênico.
A metafísica do belo consiste na valorização nobre do trabalho do artista unindo
metafísica à arte ao traduzir os efeitos e qualidades ocultas incidentes na obraprima. Desde a arquitetura, com a contraposição entre gravidade e
impenetrabilidade, até a música com a expressão máxima de sentimentos
metafísicos e das cadeias dos seres nas notas clássicas. Isto somado a um estilo de
escrita fluído e único que nos permite nos surpreender e rechaçar a tendência
retrógrada da tradição filosófica a qual retrata o filósofo de Danzig apenas como
um niilista ou um pessimista acabado. Assim, junto a Alexis Philonenko, podemos
9
É como Alexis Philonenko se refere, em muitos pontos de sua obra, principalmente ao Livro IV d’O
Mundo. PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer; una filosofia de la tragedia.
20
afirmar que a filosofia de Arthur Schopenhauer constitui-se em uma espiral aberta
e, como tal, não trata-se de um pessimismo, acabado e hermético10.
10
PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer; una filosofia de la tragedia.
21
CAPÍTULO PRIMEIRO - INTUIÇÃO: SUBSTRATO DO MUNDO.
“O que é este cérebro, cuja função traz à tona um tal fenômeno de todos os fenômenos? O que é a
matéria, que se pode tornar uma tão refinada e potencializada massa pastosa, que, através da irritação de
algumas de suas partículas, torna-se o portador condicionante da existência de um mundo objetivo?”
Arthur Schopenhauer – Complementos ao Mundo Como Vontade e Representação (Tradução de Muriel Maia)
Como afirmado acima, a obra principal de Arthur Schopenhauer é uma
das construções mais vigorosas e sólidas de toda a filosofia. Enredada com um fio
único, a Vontade como princípio irracional, ímpeto cego, ela atinge seu ápice na
exaltação da produção artística, para, de forma abrupta, o filósofo nos incitar a
desenredá-la. No cume deste ápice está a distinção do gênio. A capacidade de
ultrapassar as formas gerais do princípio de razão permite ao gênio o
conhecimento mais objetivo possível, e nisto consiste a superioridade da arte em
relação à ciência, esta conhece somente mediante aquelas formas, mediante as
relações dadas no espaço e no tempo. Entretanto, para saber no que consiste esta
ultrapassagem, é necessário saber como é o terreno ultrapassado, o princípio de
razão, delimitando quais são essas formas gerais.
• A Teoria do Conhecimento ou a Chamada Pré-estética.
Somos iniciados no mundo como representação antes de o
reconhecermos como vontade. Nossa iniciação no conhecimento do mundo e de
nós mesmos têm seu ponto de partida com a representação. Ainda que este todo
cognoscente e querente imbuído do princípio de razão como condição de
possibilidade de conhecimento, chamado sujeito, seja dependente de todo o
desenvolvimento orgânico engendrado pela Vontade, o mundo só adquire
existência no momento em que pode ser representado. Sei que é necessário o
objeto para existir representação e sub-jecto, mas sei também que o objeto não
22
existiria sem o sujeito. Todo o engano da metafísica clássica funda-se nisto:
procurar determinar o sujeito como efeito do objeto ou, em teorias mais ousadas, o
objeto como efeito do sujeito.
A existência do mundo depende desta dupla e inalienável relação entre
sujeito e objeto. Um não é causa de outro, pois existe causalidade entre objetos
apenas11 . Neste sentido, nosso corpo nos é apresentado sob dupla qualidade: como
objeto imediato, um objeto dentre objetos, representação, e como vontade, chave
para o reconhecimento da vontade em outros seres vivos e corpos12 .
Graças a esta característica do corpo, qual seja, objeto imediato, é
possível a intuição dos outros objetos. Com efeito, o entendimento, faculdade da
intuição, jamais entraria em atividade se não existisse um ponto de partida que não
fosse ele mesmo. Este ponto de partida é o corpo que , através da sensibilidade,
fornece a matéria própria do entendimento. Este é um dos principais elementos
inovadores na filosofia de Arthur Schopenhauer, o que lhe rendeu a designação de
filósofo do corpo. Ele reconheceu a importância do corpo para o conhecimento:
Não somos cabeças aladas de anjos sem corpos 13.
11
Lembrando aqui que nesta expressão “entre objetos” está implícito ‘entre estados de objetos’, já que,
sendo a matéria indestrutível e incriada, um objeto jamais será causa de outro. Não é um objeto a causa de
um efeito, mas um estado. A causalidade não provoca geração nem destruição, apenas mutação. Insistir no
contrário pode nos levar à quimérica concepção de causa primeira e tentaríamos ressuscitar o cadáver do
argumento cosmológico enterrado por Immanuel Kant (Na Crítica da Razão Pura). Arthur Schopenhauer
afirma categoricamente: “La ley de causalidad, que es la única forma bajo la que podemos en general
pensar mutaciones, siempre se refiere sólo a los estados de los cuerpos, y de ningún modo a la existencia
del portador de todos los estados, la materia.” SCHOPENHAUER, Arthur. De La Cuádruple Raíz del
Principio de Razón Suficiente. § 7 p. 40. Para um estudo aprofundado sobre as mutações, conferir:
SCHOPENHAUER, Arthur. De La Cuádruple Raíz del Principio de Razón Suficiente. § 20 ps. 69-89.
12
Ao se aproximar de sua última década de vida, contando com 59 anos, Arthur Schopenhauer retifica esse
termo ‘objeto imediato’ na revisão de sua obra Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente.
Em um primeiro momento pode parecer estranho ele corrigir o termo na sua antiga dissertação de
doutorado mas mantê-lo em sua obra capital, entretanto a incongruência foi mantida por conta da função
que cada acepção possui em cada obra. Objeto imediato é um termo inapropriado pois, “si bien la
percepción de sus sensaciones es enteramente inmediata, no por ello el cuerpo se presenta él a si mismo
como objeto, sino que hasta ahí todo sigue siendo subjetivo, es decir, sensación.” SCHOPENHAUER,
Arthur. De La Cuádruple Raíz del Principio de Razón Suficiente, § 22 p. 132 e 133. O corpo seria um
objeto mediato. Preservar-se-á a acepção menos precisa ou primeira para realçar sua característica de ponto
de partida para o conhecimento. Importante ressaltar que o corpo é a chave para o reconhecimento da
vontade nos outros corpos através da analogia, sem a qual poderíamos cair em um egoísmo teórico.
Portanto, é por analogia à vontade em nosso corpo que os objetos externos a nós, conhecidos realmente
apenas como representação, devem se apresentar também como fenômenos da vontade. Para a cura do
sofisma cético do egoísmo teórico, o filósofo aconselha uma boa ducha fria. SCHOPENHAUER, Arthur. O
Mundo Como Vontade e Representação. § 19 p. 114 .
13
Ver: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. §18 p.109.
23
Contudo, primeiramente, antes de pensarmos o mundo pela relação entre
sujeitos e objetos, tal como o conhecemos, é preciso explicitar o princípio que
promove a separação dos corpos, a disjunção da unidade primordal da Vontade.
Tal princípio dissociador é o princípio de individuação, o principium
individuationis, que nada mais é do que o elemento responsável pela dissociação
dos corpos pelo espaço e tempo. Agora, para que esses corpos sejam entendidos
em um eu cognoscente, no sujeito cognoscente, é preciso uma terceira
determinação que constitui o princípio de razão suficiente: a lei de causalidade
subjacente à intuição. Assim, quando falamos do princípio que distingue os
objetos por si só, falamos do princípio de individuação, mas esses objetos só são
objetos quando existe o sujeito cognoscente para compreendê-los: quando falamos
do princípio que compreende os objetos mediante o sujeito, falamos da intuição e
do princípio de razão suficiente.
A intuição é o mediador entre as sensações e o entendimento, não é por
menos que é chamada entendimento puro, e opera sob as condições da
propriedade que os objetos têm de agir uns sobre os outros, modificando-se, a
propriedade objetiva de certos corpos, a condição da sensibilidade própria do
animal e o próprio entendimento que a orienta.
A qualidade apriorística do entendimento tem sua caracterização
inalienável comprovada empiricamente por vários exemplos de ilusões óticas e
sensoriais de todo o tipo; a consciência do processo da ilusão não anula a mesma.
Assim, mesmo tendo-se consciência que o fato da lua parecer maior no horizonte
do que no alto da abóbada celeste se explica pelo fato de existir outra atmosfera na
linha do horizonte e pelo fato de que qualquer objeto situado rente ou próximo ao
solo parece maior do que o mesmo objeto pairando no ar com a mesma distância e
longe de objetos que possam fornecer referência de fundo, mesmo se tendo
consciência disso, sempre ter-se-á a ilusão de que ela é maior no horizonte. A
transformação da imagem dupla em imagem única é o exemplo mais convincente
24
disto14. O engano do entendimento produz a ilusão; nenhuma operação da razão
pode dissipá-la. O engano da razão é o erro; basta a demonstração para corrigi-lo.
Os objetos reais apenas são apresentados à intuição enquanto mudança,
através da lei de causalidade e, como tais, são representados como princípio de
existência (ontológico) e não como princípio de conhecimento (lógico) como as
representações abstratas. Para concebê-los não se é exigido mais do que a
qualidade pela qual tornam-se reconhecidos pela lei de causalidade: ação. Em
função disto, desta simplicidade, o mundo da intuição por si mesmo não abre
margem para erros e dúvidas, tendo para seus espectadores, em sua imediatidade,
“ingênua franqueza”.
O princípio de conhecimento não tem valor algum no mundo da intuição
já que este não abre espaço para a dúvida ou inquietude enquanto não tentamos
ultrapassá-lo. Não há espaço aqui para a reflexão, para o domínio do abstrato.
“Não é a título de princípio de conhecimento que o princípio de razão rege os
objetos reais ou representações intuitivas, mas a título de princípio de mudança,
através da lei de causalidade.”15
A realidade da matéria consiste na sua ação e o termo alemão
Wirklichkeit (efetividade) é muito mais preciso ao significar realidade do que o
próprio Realität. Matéria, que significa o mesmo que dizer causalidade, assenta na
determinação do tempo e espaço, apenas através da qual há ação. O tempo
proporciona a duração e o espaço a situação da matéria, a condição a priori da
14
Na sua ânsia didática de se fazer entender – ainda bem para nós!Arthur Schopenhauer nos ensina
uma experiência interessante a respeito disto: “ Únanse dos tubos de cartón de unas 8 pulgadas de largo y 1
1/2 de diámetro [Duas folhas de sulfite enroladas, deixando o diâmetro de aproximadamente 4
centímetros é o suficiente, ERB.], enteramente paralelos, a manera de un anteojo binocular, y sujétese
ante el orificio de los dos una moneda de tamaño conveniente [Duas moedas iguais. Uma moeda em cada
tubo. ERB.]. Si ahora se mira por el otro extremo de los tubos aplicándolo a los ojos, soló se percibirá una
sola moneda rodeada de un solo tubo.” Em seguida ele explica o fenômeno: “ Pues ambos ojos, forzados
por los tubos a una posición enteramente paralela, son heridos de modo totalmente uniforme por ambas
monedas precisamente en el centro de la retina y en lugares circundantes de este centro que se
corresponden simétricamente entre sí; y entonces el entendimiento, presuponiendo la posición convergente
de los ejes oculares, que para los objetos cercanos suele ser la habitual, e incluso la necesaria, admite un
solo objeto como causa de la luz así reflejada, esto es, admite que sólo vemos una cosa: tan inmediata es la
aprehensión causal del entendimiento.” SCHOPENHAUER, Arthur. De La Cuádruple Raíz del Principio
de Razón Suficiente. §21 p. 105.
15
Schopenhauer, Arthur. Mundo Como Vontade e Representação. §5 p. 22.
25
causalidade apreende a sucessão e a permanência da matéria: eis as formas gerais
do princípio de razão através das quais os objetos reais são representados pelo
sujeito.
A intuição empírica (ainda não chegamos à intuição própria do gênio, a
intuição estética) consiste no conhecimento da causa pelo efeito, depende portanto
da lei de causalidade a qual subsiste aprioristicamente no entendimento (intelecto)
e é um pressuposto e condição da experiência e não conseqüência dela, como
pretende David Hume16 . A lei de causalidade repousa já na intuição, veículo pelo
qual o entendimento se organiza. O entendimento, faculdade da intuição, consiste
em “Conhecer pelas causas, eis, com efeito, a sua única função e todo o seu
poder”17 . Immanuel Kant teria sido negligente ao negar à intuição a lei de
causalidade porque, para Arthur Schopenhauer, a causalidade é a forma necessária
da percepção dos objetos e não pode ser relegada ao domínio da razão18 .
Para reafirmar sua teoria, quando fala sobre entendimento e sensibilidade,
Arthur Schopenhauer refere-se ao “De Anima” (III, 8) de Aristóteles (ao qual
refere-se como “Uma poderosa mistura de profundidade e superficialidade.”) :
“ O entendimento é a forma das formas e a sensibilidade é a
forma dos objetos sensíveis. Segundo isso, dizer ‘a sensibilidade e o
entendimento desapareceram’ é o mesmo que dizer ‘ o mundo terminou.’”
19
.
Todo o mundo é depreendido do conhecimento intuitivo, das
representações intuitivas. O erro da filosofia realista foi considerar o
conhecimento intuitivo como uma forma confusa de conhecimento abstrato. Parte
desta vertente zombou de concepções que relacionaram diretamente a força do
gênio com a grande capacidade de intuição simplesmente porque os movimentos
16
Referência: HUME, David. An Enquiry Concerning Human Understanding.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. §4 p. 18 .
18
Isto é um dos motivos que fez com que Immanuel Kant incidisse nos erros dos dogmas da tradição
filosófica, confundir princípio ontológico com princípio lógico de causalidade ao submeter o conhecimento
intuitivo ao conhecimento abstrato. SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica à Filosofia Kantiana. p. 115 .
19
SCHOPENHAUER, Arthur. De La Cuádruple Raíz del Principio de Razón Suficiente. §41 ps. 204 e
205 [Tradução minha, ERB].
17
26
necessários ao conhecimento intuitivo eram por ela considerados forças anímicas
inferiores. E o conhecimento intuitivo foi considerado derivado de forças anímicas
inferiores pelo fato de tais forças serem atribuídas também aos animais irracionais.
Não se considerou que todo o conhecimento propriamente dito advém de
representações intuitivas. Esta é a grande virtude do gênio, grande capacidade de
intuição, e por isso ele adentra com mais facilidade na essência dos fenômenos.
Pela exclusividade da razão ser o principal diferencial entre o homem e o restante
dos animais, julgou-se que esta instância do conhecimento fosse a mais
importante20. Contudo, não há nada que a razão possa formar (e empregar ou
alargar no conhecimento) que não esteja, tão longínquo se pense, escorado em
uma representação intuitiva. Por esse motivo a palavra reflexão para designar as
representações abstratas, a razão, seja tão precisa. As representações abstratas são
raios das representações intuitivas refletidos no espelho da raiz lógica do princípio
de razão21 .
• Porque a Razão é Secundária no Conhecimento:
Formação de conceitos é a função da razão, e conceitos são
representações de representações, objetos mediatos advindos de objetos mediatos.
Sendo assim, quanto mais refletida é uma representação abstrata, mais ela depende
de uma quantidade significativa de conceitos para ser inteligida ou mais outros
conceitos de referência próximos de determinada representação intuitiva ou,
muitas vezes, vinculados às referências semelhantes a determinada representação
intuitiva, que devem ser trazidos à consciência para se encontrar seu significado
20
Mesmo tal diferencial não faz do homem a espécie distancianda à anos luz das restantes. Não há
colossais diferenças entre homens e animais. “Hoje em dia, a despeito da filosofia kantiana e da verdade,
essa gente [ os filosofastros, ERB] incumbiu-se da tarefa de ensinar a teologia especulativa, a psicologia
racional, a liberdade da vontade e, com desconhecimento da gradação sucessiva do intelecto na série
animal, a diferença total e absoluta ente os homens e os animais.” SCHOPENHAUER, Arthur . Sobre a
Filosofia Universitária. p.66.
21
Trata-se do princípio de razão do conhecer, que rege as representações abstratas, os conceitos da razão.
SCHOPENHAUER, Arthur. De La Cuádruple Raíz del Principio de Razón Suficiente. Cap. V.
27
originário, a origem dos ecos. Por isso os filósofos devem ser cuidadosos com
palavras insossas, invólucros aparentemente vazios como idéia, energia, essência e
sujeito.
É perfeitamente possível engendrar novos conhecimentos apenas pela via
da intuição e muitos inventos são ensejados apenas por ela. As descobertas
científicas são ensejadas pelo entendimento e não pela razão. Novas teorias
resultam da visão aprofundada na cadeia de causalidade por parte da agudeza de
espírito de alguns privilegiados pela “natureza aristocrática”. É o que Arthur
Schopenhauer confirma nas palavras:
“Os inábeis adversários da teoria das cores censuraram Goethe,
até a saciedade, por sua ignorância das matemáticas: contudo, ele não
chegou a um cálculo nem a uma medida, segundo uma hipótese dada; ele
chegou diretamente a um conhecimento intuitivo da causa e do efeito;”22.
É o entendimento aguçado o responsável e não cálculos abstratos, estes
são conseqüência da intuição, cabe à razão aqui somente reproduzir pela
linguagem dos conceitos os fatos intuídos:
“ (…) as noções abstratas desta última faculdade
[razão, ERB] servem apenas para fixar, classificar e combinar os
conhecimentos imediatos do entendimento sem nunca produzir nenhum
conhecimento propriamente dito”23 .
O conhecimento racional, abstrato, consiste no alargamento do
conhecimento intuito. Para o conhecimento sobre o mundo, para o entendimento,
o conhecimento intuitivo basta. Contudo, esse conhecimento, legado apenas a sua
jurisdição, em primeira instância tem utilidade somente para o indivíduo isolado.
Se os objetos que se fizeram presentes para o conhecimento imediato de
22
23
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 36 p. 199.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 6 p. 28.
28
determinado sujeito não se encontram mais presentes, e ele deseja transmitir este
conhecimento, apenas o fará por vias mediatas, a conceitualização é uma delas.
Assim, a história nos dá testemunho de vários inventores os quais intuitivamente
construíram máquinas maravilhosas. Se fosse necessário transmitir a outrém a
cadeia de causalidade compreendida para fazê-lo, para a repetição e execução de
trabalhos que demandam uso coletivo de forças, tais inventores necessariamente
teriam de recorrer à limitação dos conceitos para projetar tudo compreendido pelas
vias da intuição. Quando percorremos certo caminho de uma ponta a outra, temos
a noção intuitiva do seu espaço. Para transmiti-lo temos que recorrer a números e
descrições, pois o conhecimento racional se apropria principalmente de grandezas
temporais, relativas ao sentido interno do tempo, isto é, de números.
Os conhecimentos abstratos estão para os conhecimentos intuitivos como
o mosaico está para a pintura natural. Pode-se dividir os conceitos em inúmeras
partes sem no entanto atingir a efluência, ‘a mistura’, de um conhecimento
intuitivo. Assim, “ Se um cantor ou um virtuoso quiser regular a sua execução
pela reflexão, está tudo acabado para ele. Acontece o mesmo com o compositor, o
pintor, o poeta. O conceito é sempre estéril para a arte”24.
A razão apenas explica o caminho, a intuição percorre o caminho.
Nisto consiste a secundaridade da razão frente à faculdade da intuição: a
incapacidade de fornecer a ‘matéria’ com a qual trabalha.
“Algo que deve ficar bem claro para que se possa compreender o
mundo de Schopenhauer, é sua concepção da razão enquanto impotente em
“fornecer tecido, por seus próprios meios” ao conhecimento ” 25
Arthur Schopenhauer diz ainda:
24
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 12 p. 66.
MAIA, Muriel. A Outra Face do Nada. p. 36 (Citação dentro da citação: Complementos do Mundo
como Vontade e Representação de Arthur Schopenhauer.)
25
29
“Não existe nenhuma verdade que possa sair inteiramente de um
silogismo; (…) Nenhuma ciência pode ser absolutamente dedutiva, tal
como não se pode construir no ar; todas as provas devem reconduzir-nos a
uma intuição que já não é demonstrável, visto que todo o mundo da
reflexão repousa sobre o mundo da intuição e tem aí as suas raízes”26 .
26
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 14 p. 74.
30
CAPÍTULO SEGUNDO – A INTUIÇÃO ESTÉTICA
• A Intuição Estética
Existe uma outra forma de conhecimento que supera o princípio de razão
suficiente, que eleva o modo de conhecimento da intuição empírica, um outro
conhecimento que reconhece as formas atemporais e fora do espaço: A intuição
estética.
Através da intuição estética o gênio contempla o fundo essencial dos
fenômenos, sua Idéia. O filósofo de Danzig incorpora aspectos da teoria das idéias
de Platão com a sua imaterialidade e seu apriorismo com a ressalva de que para
aquele a arte não está a três graus da verdade, ao contrário, a verdadeira obra de
arte é a coisa mesma, é o agente facilitador para o acesso às Idéias.
A intuição estética permite ao gênio suprimir dos objetos tudo o
que relaciona-se com o princípio de razão, todo o fenomenal do objeto e, em um
movimento análogo no sujeito, permite-o suprimir toda a vontade individual
transfigurando a estúrdia composição de eu cognoscente somada ao eu querente
em puro sujeito do conhecimento. Essa supressão da fenomenalidade dos objetos
presentes no mundo faz com que puro sujeito que conhece seja acometido por uma
visão única e abrangente do objeto, vislumbrando não diversas facetas possíveis e
mutáveis no objeto mas sim o objeto ideático e único, sendo tal experiência tão
surpreendente quanto a constatação de uma pessoa, que, vendo pela primeira vez,
percebe que ao se aproximar e distanciar dos objetos, eles não aumentaram ou
diminuíram, mas permaneceram sempre os mesmos. A volição interior é cessada e
o indivíduo transforma-se em gênio, este cocheiro que através da carruagem da
obra de arte nos encaminha até o reino das Idéias. Assim, enquanto a ciência
compreende os conceitos, é estruturada após a coisa, a intuição estética
compreende a Idéia ou a unidade antes da coisa27, pois como já mencionou-se, a
27
É a tradução da expressão escolástica
Unitas ante rem. “A idéia é a unidade que se transforma em
pluralidade por meio do espaço e do tempo [ou seja, do principium individuationis, ERB.], formas da
31
ciência trabalha no terreno dos conceitos, das representações abstratas; o gênio
não cria abstratamente, mas sim intuitivamente, até mesmo instintivamente, sem a
necessidade do contato direto com as coisas, é o sol, luz inextinguível, rodeado
pelos planetas, os imitadores, os quais procuram formar conceitos daquele, em vão
procurando fórmulas garantidas para o sucesso artístico. Em vão, porque os
conceitos são inférteis para a arte. Mas poder-se-ia perguntar: Como o gênio
conhece fora do princípio de razão e, pior, antes da coisa, se só podemos conhecer
pela experiência? Acontece que conhecemos apenas através do princípio de razão
como indivíduos. Se não fossemos indivíduos, mas apenas olho cósmico puro,
puro sujeito do conhecimento, não veríamos mais os objetos como fenômenos,
perecíveis, mutantes, ou seja, manifestados sob o princípio de individuação e
subordinados ao princípio de razão, mas teríamos uma noção da sua Idéia, o
mundo inteiro se afiguraria como uma essência imutável, desprovido da ilusão e o
sofrimento decorrentes do tempo, espaço e a matéria. Todas as formas do
princípio de razão aqui elencadas, e com elas o princípio de razão, são anuladas na
intuição genial, a intuição estética; já não importa se o objeto contemplado é o
objeto de agora ou de um século atrás, se o objeto está aqui ou a centenas de
quilômetros, se o objeto foi causado por tal ou qual estado, pois o gênio irá
representar o que nele há de universal, essencial, o seu ser-objeto para um sujeito,
a Idéia.
“A idéia apenas se despiu das formas subordinadas do
fenômeno, todas expressas pelo princípio de razão, ou, para dizer de
maneira mais correta: ela ainda não entrou nessas formas”28 .
Afirmar que o conhecimento apenas se efetiva com a experiência e que o
gênio concebe a unidade, ou idéia antes das coisas, ou seja, antes da experiência,
pareceria contraditório se o gênio não estivesse livre das formas de conhecimento
nossa percepção intuitiva; o conceito, pelo contrário, é a unidade extraída da pluralidade, por meio da
abstração que é um procedimento do nosso entendimento; o conceito pode ser chamado unitas post rem, a
idéia, unitas ante rem.” SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 49 p.
247.
28
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. p. 39.
32
dos fenômenos e, portanto, livre do conhecimento individual. Ainda, a acuidade
de um espírito munido com um entendimento com grau de intuição mais intenso e
sua maior capacidade para fantasiar29 permite que ele não só descubra novos
fenômenos dentro da cadeia de causalidade até então tidos por inobserváveis,
como também anteceda a idéia nas coisas com um mínimo de contato com elas,
expandindo sua intuição para além dos fenômenos. Por isso é afirmado na
Metafísica do Belo: “a fantasia põe o gênio na condição de, a partir do pouco que
chegou à sua apercepção efetiva, também construir todo o resto e assim deixar
desfilar diante de si quase todas as imagens possíveis da vida”30 .
• Características do Gênio.
A natureza que nunca dá saltos, salta, mas de alegria quando seu
abundante dispêndio de forças finalmente produz o gênio31. Agraciado por um
poder de cognição muito forte e favorecido por uma boa sorte, a qual lhe permitira
o desvio de todas as distrações do acaso, sem a qual ele jamais perceberia e
manifestaria o seu próprio centro de gravidade, o filho preferido da terra consegue
“ver nas coisas não o que a natureza aí colocou efetivamente, mas o que ela se
esforçava por aí realizar (…)”32.
Sua capacidade única de ver os objetos faz com que ele raramente
demonstre estar de corpo e mente presente pois sua ocupação mental direciona-o
29
Conferir: SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo . p. 64. Não só a grande capacidade para
fantasia é considerada essencial ao gênio como também os traços de loucura como ver-se-á mais a frente.
Platão já o disse, além de considerar a concepção artística como um estado alheio à própria individualidade
do gênio, sedução das musas (Ver, por exemplo, Platão. Fedro. 248 a p.56). Friedrich Schiller nos disse
que a produção poética inicia-se muitas vezes como estado musical, onde não há palavras formadas
ainda.(Ver: NIETZSCHE, Friedrich. Nascimento da Tragédia. p.43.)
30
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. p. 64 e Mundo Como Vontade e Representação § 34
p. 196.
31
Evoco aqui diretamente a concepção de gênio de Friedrich Nietzsche: Considerações Extemporâneas Schopenhauer como Educador.
32
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 36 p. 196 .
33
muito mais àquilo vislumbrado por trás dos objetos do que efetivamente o quê os
objetos aparentam.
Esse desprendimento do presente, essa descomunal compenetração no
fundo das coisas, faz com que o homem em que o gênio encarna se esqueça de si
mesmo e, não raro, raramente encontre seus pares. Por isso não é difícil encontrálo na companhia da solidão, sussurrando monólogos.
Por conceber o mundo aparente realidade adentro, ao contrário do
“homem comum”, o qual vê apenas o mundo aparente, o homem munido de tal
argúcia do espírito, comumente é considerado limítrofe, ou seja, situado na
fronteira entre a genialidade e a loucura. Ele comunga com a loucura pois esta,
quando não resultada de um pedido de socorro da razão diante de dor moral,
quando é manifestação plena de um entendimento fora do comum e desprovida de
exageradas fantasias, nada mais é do que a força imaginativa necessária para o
vislumbre da realidade por trás do mundo aparente. O louco mesmo não conseguiu
domá-la.
Como adenda à teoria de Arthur Schopenhauer, penso que talvez a
diferença entre o louco e o gênio está em que o gênio transpôs suas concepções
apuradas acerca da essência dos objetos desenvolvendo mecanismos e habilidades
para moldá-las, dar forma a elas, expressá-las, mediante a arte. Assim, pôde
delimitar apuradamente a realidade essencial e distingui-la do mundo fenomênico
que, em verdade, contém aquela, mas não é o que parece, entretanto, aos olhos da
imensa maioria dos homens que estão predispostos a amarrar quem balbucia
visões diferentes. Hoje, como diz Friedrich Nietzsche no seu Zaratustra, nem é
preciso mais amarrar quem pensa diferente. A própria ditadura dos padrões de
conduta dos seres humanos e a ditadura de contenção de impulsos faz com que
quem pensa diferente e não encontra meios de expressar isso, acabe ele próprio se
internando no manicômio mais próximo.
Mesmo assim, não só o louco, como o gênio também não é bem visto
pelos coetâneos. Isso porque a luz lançada pelo gênio à sua obra, direcionada para
a beleza de sua concepção, e que permite ao mundo sua fusão para seu estado
essencial, longe do princípio de individuação, ilumina despropositadamente os
34
defeitos das produções de seus contemporâneos e por isso é confundida com uma
rajada forte de vento impetuosa ameaçando suas estruturas a longo tempo erigidas
sob conceitos prontos, erigidas na surdina mediante plantas de outros, e que lhes
proporcionaram tantas honras. Por isso eles constroem muralhas para isolar as
influências daquele, esperando que, isolado, ele não abale mais suas vigas.
Contudo, dentro em breve, elas se desmoronarão sozinhas enquanto as construções
do gênio permanecerão firmes e vigorosas, servindo de modelo para as
construções da posteridade.
A marca indelével do artista é o estilo. O gênio possui esta característica
ainda mais acentuada e onde ele a crava sua própria identidade é perpetuada. É
apenas um o ímpeto. É semelhante à expressão popular ‘estilo de vida’, este estilo
a marcar o querer, o agir da pessoa o qual, como bem assinala Muriel Maia, não se
esvanece mas tentativas de ‘ novas vidas’. O estilo não se ensina, não se aprende,
é a identidade, a digital do espírito do artista. E, supondo que apareçam
imitadores, como é comum acontecer posteriormente ao reconhecimento da obra
do gênio, a imitação só vem a elevar a pureza do estilo único e a acusar, de portas
abertas, a desfaçatez do imitador, chamando-se pastiche a cópia literária e cópia
barata a cópia da pintura. Portanto, não há do que se preocupar o artista quando
sua obra invade os saguões; se seu estilo é puro, para todo o sempre se perpetuará
como inconfundível e, ainda que não reconhecido na contemporaneidade, terá o
devido valor na posteridade.
A característica de imortalização do espírito mediante a arte também nos
oferece o que pensar. Se ao homem foi oferecida a oportunidade de se perpetuar
mediante o corpo, pela procriação, também lhe foi concedida a oportunidade de se
perpetuar mediante o espírito, pela composição artística. Resta ao artista decidir se
é oportuno ou não apresentar sua obra para o mundo, se é ou não este mundo bom
lugar para perpetuar seu espírito. A. Schopenhauer desconsiderava seu tempo
como digno de conhecer suas convicções, contudo, assim como apreciava os
clássicos, assim também poderia surgir aqueles dignos de poderem contar com sua
35
produção para fugir da mediocridade no futuro, poderia haver cabeças pensantes
merecedoras de conhecer seu trabalho. Sua época era tão medíocre no montante da
filosofia, tão repleta de filosofastros que ele diz: “ Me consolo por não ser
homem de meu tempo.”33
O alívio da mediocridade é o resultado da obra genial. Por conta desse
conhecimento alçado pelo engenho esforçado do gênio, por esse produto da labuta
tão exigente de transpiração quanto de inspiração proporcionar ao público da arte
um breve distanciamento do tempo e do espaço e de si mesmo, levando-o até o
fundo essencial das coisas, por tudo isso, o conhecimento advindo da intuição
estética é o conhecimento mais objetivo possível; cessa-se o conhecimento
interessado, o conhecimento individual, subserviente da vontade e resultado
refinado de todo um complicado e longo desenvolvimento dos tecidos nervosos e
do cérebro, manifestados no mais perfeito grau de objetivação da vontade, o
homem; cessa-se o conhecimento individual dependente das relações dos objetos
manifestados pelo princípio de individuação sem as quais os objetos como
fenômeno desapareceriam: pois ele apenas conhece-os mediante essas relações;
cessa-se o conhecimento relativo da ciência, que também subsiste nas relações de
tempo e por isso tanto pode ser chamado de existente como não-existente e
assemelha-se ao conhecimento vulgar com a diferença que é sistematizado, e
graças à subordinação por conceitos permite universalidade mediante a síntese dos
casos particulares, mas limita-se aos particulares, lhe sendo vetado não só o
conhecimento das forças primitivas da natureza como toda a essência do mundo34.
A consciência solitária do gênio é contrária aos desígnios da Vontade, a
saber, os desígnios de perpetuação da espécie, quando a própria natureza precisa
de reprodutores no sentido sexual da palavra mesma e não produtores35. Ademais,
33
Schopenhauer, Arthur. Sobre La Voluntad en la Naturaleza. [tradução minha, ERB] p. 140.
A revolução permitida pela filosofia schopenhaueriana, juntamente com a kantiana: o reconhecimento
dos limites do conhecimento, jamais conheceremos os princípios ocultos da natureza tais como eles são.
35
“ (…) quanto mais alguém tem em si mesmo, tanto menos necessita de fora e tanto menos também
podem os demais significar para ele. Por isto a eminência do espírito leva à solidão… Porque tem-se no
mundo não muito mais do que a escolha entre a solidão e a vulgaridade.” Schopenhauer, Arthur. Parerga
und Paraliponema. I 394-395. Tradução de Muriel Maia. A Outra Face do Nada. p.235.
34
36
quanto mais o povo se torna culto, menos propensão ele tem à perpetuação da
espécie, mais calmo, mais sereno e mais idoso ele se torna alcançando até o
patamar de déficit de jovens como já acontece em alguns países mais cultos da
Europa. O gênio, do ponto de vista dos desígnios da Vontade, já não faria a
“natureza saltar”, mas amargar mais um produtor artístico a revelar o fundo desta
natureza e com ele a decisão de não continuá-la, a não ser na medida satisfatória.
Neste quesito não apenas o ascetismo é o inimigo dos planos da Vontade como
também a arte, mas esta desvincula-se do desgosto para com a afirmação da vida
no sentido em que a torna mais desejável de modo prudente e , ao mesmo tempo,
forma o caráter de seus apreciadores para apresentar à continuidade da vida
solução inteligente, quando o eu querente é domado pelo eu cognoscente, pelo
intelecto, pela intuição estética. Aqui é claro, intelecto não significa razão e está
extremamente vinculado às representações intuitivas e não às representações
abstratas. É o intelecto da infância, em um primeiro instante, quando o querer não
está contamidado pelas conclusões abstratas trazidas com o tempo e as relações
com o mundo são diretas. É o intelecto do artista e do apreciador da arte, em um
segundo momento, quando os conceitos parecem incapazes de trazer, diante de
suas incansáveis relações, veracidade e profundidade de interpretação do mundo.
Sempre a intuição, seja a empírica e direta, como mantenedora do caráter empírico
e individual, seja a estética, como reveladora das objetividades representativas
primeiras, do fundo do mundo, as Idéias presentes e escondidas no imo dos
objetos. Assim, mesmo que a sensibilidade tenha se enjeitado, tenha seu querer
torporizado diante de múltiplas relações e conclusões errôneas durante a vida,
mesmo que o sujeito tenha anestesiado seu querer com relações que aumentaram
negativamente a carapaça de seu intelecto distanciando-o do real sentir dos
objetos, mesmo assim, para todo sempre, está aberta a saída da formação estética e
o acesso ao fundo translúcido dos fenômenos. Em vista disto, ignorando o
ascetismo, quem ousaria chamar esta estética de negativa ou pessimista?
• A Contemplação Estética
37
Embora o grau de genialidade presente no gênio seja muito elevado,
todos os homens são imbuídos de capacidade para contemplação estética. A
faculdade estética faz parte do aparato cognoscente do homem. Se assim não
fosse, não seria possível aos homens apreciarem a arte. Todos os homens são
capazes de contemplação estética. Este salto estético, como diz Muriel Maia,
mediante o qual os homens acessam as idéias, é movimentado principalmente pela
obra de arte. Mas, de maneira alguma essa contemplação é transcendente. Muriel
Maia nos diz:
“Este “salto” no conhecimento significaria, acaso, um ocuparse com a transcendência? A resposta é, sem dúvida, um não; pois, o
sabemos, a metafísica de Schopenhauer é de caráter empírico. Não há, neste
universo filosófico, a pretensão de atingir a transcendência, e nisto
Schopenhauer mantém-se firmemente apoiado em Kant. Ainda que a
metafísica schopenhaueriana ultrapasse o aparecer e alcance a essência do
mundo, o faz a partir da natureza, para desvelar o que ‘nela ou atrás dela se
oculta, considerando-o sempre apenas enquanto isto que nela aparece, não
entretanto independentemente de todo o aparecimento’ “36 .
Mesmo assim, uma legião de homens não externou ou manteve essa
capacidade de contemplação estética. O “homem comum” atrofiou ou não
permitiu o desenvolvimento desta faculdade, porquanto seu conhecimento se
prendeu ao princípio de razão. Quando no máximo, ele se porta diante da obra de
arte como diante de um jogo de palavras cruzadas: tão logo encontre conceitos ou
significados que preencham os quadros, abandona a obra. É que seu conhecimento
é demasiado bruto, ou demasiado racional, e está demasiado preso ao serviço da
vontade, serve incessantemente aos seus desígnios autofágicos, procurando encher
com a satisfação de desejos sua caneca furada, para se prender ao objeto da arte e
contemplar a beleza. “(…) ele só pode fazer incidir a sua atenção sobre as coisas
na medida em que elas têm uma certa relação com a sua própria vontade, por
36
MAIA, Muriel. A Outra Face do Nada. ps. 142 e 143.
38
mais longínqua que seja tal relação”37. Johann Goethe nos apresenta definição
maravilhosa a respeito disto:
“Sim – replicou o abade -, e assim se formam reciprocamente o
amador e o artista; o amador busca apenas um prazer e indeterminado; a
obra de arte deva agradá-lo pouco mais ou menos como uma obra da
natureza, e os homens crêem que os orgãos com que se desfruta uma obra
de arte formaram-se por si mesmos, como a língua e o palato, que se julga
uma obra de arte como se julga uma comida. Não compreendem que se
carece de uma outra formação para se elevar até a verdadeira fruição
artística. O mais difícil, penso eu, é essa espécie de distinção que o homem
deve deixar agir dentro de si, caso queira mesmo cultivar-se; por isso
encontramos tantas formações unilaterais das quais cada uma tem a
pretensão de anular todas as outras ”38
Mesmo assim o ignorante de arte não protesta contra a obra de arte:
“Apesar de tudo, os mais tolos dos homens não confiam menos
nas obras de arte consagradas, visto que não querem transparecer sua tolice,
mas eles estão dispostos, no seu foro íntimo, a condenar essas mesmas
obras de arte, desde que se lhes faça esperar que eles podem fazê-lo sem
nenhum perigo de se revelarem; então descarregam com deleite esse ódio
por muito tempo alimentado em segredo contra o belo e contra aqueles que
o realizam; não podem perdoar às obras de arte o terem-vos humilhado não
lhes dizendo nada ”39.
A beleza da natureza também não lhe diz nada. Mesmo tendo à
disposição a mais deslumbrante paisagem, logo procurará algum livro, algo para
mastigar, alguém para conversar, enfim, algum meio para se livrar do tédio e do
horror à solidão.
Que o demasiado bruto não se preste à contemplação é facilmente
compreensível. Aprendeu, coagido pela dor, às duras penas sobrepor sensibilidade
37
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 36 p. 196 .
GOETHE, Johann. Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. p. 553
39
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 49 p. 246 .
38
39
sutil com a força, feito o ferido que, não encontrando remédio para a aflição
causada pela urtiga – que nada mais é do que comichão intensificado, várias
pequenas sarnas -, cauteriza a ferida. Quer se livrar de pronto de tudo que não
apresente logo a que veio, de tudo que aparente não se definir, de tudo que exija
compenetração, tempo, a dizer, sensibilidade e predisposição para ser
compreendido. Mas que dizer do demasiado racional, aquele que precisa
compartimentar significados para que a obra o agrade? Quem com certa formação
cultural não se sentiu bem à vontade – e aqui emprego o uso popular da palavra –
ao, com orgulho, atestar sua cultura com a ligação de significados antes mesmo de
contemplar a obra? E inclusive tal agregação de significados, por vezes, leva mais
rapidamente
à
contemplacão.
pintura40:
40
DELACROIX, Eugene. Barca de Dante.
Ao
se
deparar
com
a
seguinte
40
; a pessoa poderia velozmente arrebatar-se pela
grandiosidade do
contraste entre sombra e luz, pela sensação do odor acre do desespero trazido de
imediato aos sentidos e a surrealidade dos corpos sob o barco atacado por homens
irados, enfurecidos, apodrecidos, isto é, desesperados, com facilidade poderia
remeter à panorâmica de um verdadeiro inferno. Mas quem não sentiria tanto ou
mais prazer ou assombro ao perceber que os homens jogados sob a quilha, o irado
a quase deslocar a mandíbula de raiva, o barqueiro já adaptado ao meio quase sem
roupa, remetem diretamente aos ciclos do inferno de Dante? Ao perceber que o
próprio se encontra acima do barco com sua piedade vitoriana quase a se tornar
asco e , mais do que isso, o próprio Virgílio a sensivelmente, com posição nobre,
coagir à deixá-los, com o olhar que nos diz que de nada vale se apiedar por estes
homens e que quem se compadece de pobres diabos não os modifica mas é
modificado por eles e até mesmo piora seu estado de ânimo? Entretanto, a seguir a
interpretação schopenhaueriana, é preciso fugir da propensão a isto, ou seja, a
procura das ligações dos traços das obras com outras obras conhecidas pois é
obstáculo para a livre contemplação. Deve ser por isso que os legítimos
contempladores fogem do espertinho que de pronto se propõe a ostentar
conhecimentos que remetem à obra. Não querem saber da época, da alegoria, das
condições psíquicas nas quais o autor se encontrava no momento da produção, se
o seu cão se acidentara antes de escrever, se havia lido Goethe quando compunha
a partitura, se ele representava o movimento romântico, sequer querem saber o
nome do autor. Querem admirar a obra virgem para que a carga de pensamentos
não interrompa a livre e virgem contemplação.
No cuidadoso uso de palavras do universo prismático de A.
Schopenhauer, com muita precaução se usa a palavra prazer, haja visto o conjunto
de ligações primárias, dado o desgaste do uso popular, que a palavra tem no léxico
de palavras que compreendem o conjunto de sentimentos. Precaução tomada por
A. Schopenhauer ao agregar segundas palavras à palavra estética. Nem mesmo as
palavras agrado ou fruição são usados majoritariamente. I. Kant usa-as com menos
41
sensibilidade41. Nas diferenciações de A. Schopenhauer de bonito e belo pode-se
perceber melhor as causas para todo este cuidado e já se sabe a superioridade e
desenvoltura de A. Schopenhauer – junto a F. Nietzsche - em relação aos outros
filósofos alemães ao empregar a língua.
A beleza será tanto mais impactante se nos pegar de surpresa. Assim,
conceitos, alusões e referências mais nos distanciam do que nos aproximam da
contemplação.
Na linha do horizonte schopenhaueriano vigora a força do intelecto como
elemento principal para a execução da contemplação estética. Intelecto, vale
ressaltar, é sinônimo de entendimento, faculdade da intuição, e diferencia-se de
Razão. É claro, o grau de beleza do objeto é importante – tanto maior quanto
maior for o grau de objetivação da Vontade – mas mais importante é a capacidade
intelectual do criador e observador.
• A Incomunicabilidade da Contemplação.
A contemplação, sendo de todo intuitiva, é incomunicável. Feito
assinalado no capítulo da intuição empírica, a intuição segue incomunicável pois
prescinde dos elementos do tempo e espaço do princípio de razão. O artista
isolado abre janelas de aproximação do que ele vislumbrara. Se fosse
41
Com facilidade se percebe isto ao se ler a Crítica da Faculdade de Juízo depois de ler a Metafísica do
Belo. Muriel Maia também percebeu isto: “Schopenhauer utiliza-se, nesta caracterização do sentimento do
belo, da expressão kantiana do “agrado” (Wohlgefallen); não, porém, no mesmo sentido de Kant. Para ele,
não se trata aí de uma contemplação metafísica, senão da parcial suspensão do interesse do observador no
observado (...) o que importa a Kant neste processo é unicamente o Juízo do belo, isto é, a forma de relação
que o Entendimento estabelece com a Imaginação no seu “Jogo Livre” (referência Kant, Immanuel. Kritik
der Urteilskraft edição de Wilhelm Weischedel, Frankfurt am Main Suhrkam Tarchenbuch
Wissenschaft, 1974) (…) Em todo o caso, “agrado” ou “prazer” são palavras muito acanhadas para
exprimir o que Schopenhauer compreende por “sentimento estético”” e antes desta última frase ela cita A.
Schopenhauer: “ É talvez a melhor expressão para as faltas de Kant, se se diz: ele não conheceu a
contemplação.” (referência: Schopenhauer, Arthur . Des Handschriftliche Nachlass in fünf Bänden.
Editado por Arthur Hübscher. Munique, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1985.) Maia, Muriel. A Outra
Face do Nada. ps. 178 e 179 (nota). Vale sublinhar que , dentro da obra kantiana, isto é inválido, ou seja,
essas obervações apenas tem validade se tratando da comparação da obra de Schopenhauer em relação a
obra kantiana. “Cumpre sublinhar que a estética de I.Kant não é uma estética do agrado (das Angenehme),
do prazer meramente na sensação (ver as observações de Valério Rohden na tradução da Crítica da
Faculdade do Juízo, § 2, p.49, nota 22. Ver também § 3, onde I. Kant explica bem o ponto.” D. Garcia,
autor da obra Dialética da Vertigem.
42
conhecimento racional poderia enumerar ponto a ponto pelo sentido do tempo a
duração assim como poderia assinalar traço a traço o espaço percorrido. Mas então
seria representação abstrata e não representação intuitiva. A representação abstrata
é exata para a comunicação, contudo é incapaz de ultrapassar o elemento
fenomênico do mundo e, portanto, o que nele há de mais objetivo. A intuição
estética, sendo o passaporte às Ideias, com sua característica de promover apenas
ao indivíduo o conhecimento mais objetivo, garante sua irreprodutibilidade e
assim a qualidade de indecifrável para a sociedade como um todo. Não há
métodos definitivos, teorias matemáticas ou projetos científicos para alçar o
sujeito à contemplação. Essa segue de todo individual ainda que universal. Esse é
o grande paradoxo do juízo estético em I. Kant. Ele é universal e subjetivo. A que
A. Schopenhauer acrescenta o paradoxo de ser objetivo e incomunicável.
• Todas as Coisas são Belas.
Todas as coisas são belas. Ninguém que conhecesse o filósofo da
vontade apenas de ‘ouvir falar’, o conhecesse somente pelo rótulo de pessimista,
diria que ele afirmou isto. Apenas esta parte concernente à metafísica do belo já
seria suficiente para dar esta dissertação por encerrada. Mas redigi esta dissertação
não para defender o pensador – ele não é tão frágil assim –, mas o fiz sim, para
mostrar que sua obra, com seu enaltecimento da arte, pode servir sim de base para
um estudo profundo da estética filosófica para além de uma filosofia que apenas
serve para recolocação de tristonhos desencantados e sofredores de toda a espécie
no mundo , para além de uma filosofia de terapia individual ou auto-terapia pela
qual o sofredor pudesse chorar suas mágoas e ainda sair da terapia orgulhoso, com
a certeza de que todas suas queixas diante do mundo procedem. Não é uma
filosofia de encontro de companheiros no sofrimento como se difunde nas
tendências bizarras do culto ao diferente onde, tudo que não tem estatuto
científico, é tratado como um animal de zoológico perigoso que todos querem ver,
mas têm medo de por a mão. Isso não apenas com a filosofia de Arthur
Schopenhauer, acontece com todas as filosofias que fogem da servilidade ao
43
conhecimento formal, como a filosofia de Friedrich Nietzsche e outras filosofias
‘diferentes’.
É possível pensar um desenvolvimento da filosofia schopenhauriana.
Inclusive sua caracterização da música como arché universal, como significação
do cosmos, serviu de ponto de partida para a filosofia dionisíaca de Friedrich
Nietzsche. É neste sentido que Alexis Philonenko afirma que a filosofia de Arthur
Schopenhauer constitui-se em uma espiral aberta e, como tal, não trata-se de um
pessimismo, acabado e hermético42.
Todas as coisas são belas. Não apenas a capacidade de contemplação da
arte é democrática mas também a participação na beleza. Pela capacidade de
arrebatamento que uma obra de arte ou objeto na natureza proporciona, medimos
o grau de manifestação da beleza presente nela. Se não podemos afirmar uma
hierarquia das artes, já que todas revelam no mundo seu fundo à sua maneira e por
isso cada tipo de arte é insubstituível, podemos ao menos afirmar que existe uma
classificação das artes na metafísica do belo.
42
PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer; una filosofia de la tragedia.
44
CAPÍTULO TERCEIRO - A CLASSIFICAÇÃO DAS ARTES
“Nosso Pai Homero, que
[atualmente estais no céu…
Santificado seja vosso nome…
Fazei com que os acordes de
[Vossa lira desapareça da nossa
Alma a preocupação
[pelo pão de cada dia.
Não nos deixeis cair em tentação
[de uma lira desigual,
Mas livrai-nos, ao menos por
[alguns momentos,
Da sorte deste mundo!”
Arthur Schopenhauer – Escrito da juventude.
A classificação das artes parte da arquitetura para chegar na música.
A arquitetura tem como mérito nos mostrar a natureza da luz
43
. Sendo o
fundo dessa filosofia tenebroso, notável contraste é sua aparência essencial repleta
de luz. Luz esta, que é “o mais belo diamante na coroa da beleza”, constituinte da
essência da beleza. A beleza da arquitetura está na sua aptidão a refletir e
manifestar a beleza da luz. Deve ser por isso que hoje a arquitetura minimalista, a
qual é uma arquitetura desprovida de adornos, esteja tão em voga: ela permite
maior observação dos diferentes ângulos de incidência da luz.
A arquitetura pertence à forma mais básica da arte pois sua beleza está
no conflito das forças mais primitivas da Vontade: Gravidade e Impenetrabilidade,
Gravidade e Resistência. Quanto mais a obra arquitetônica permitir o vislumbre
desse embate com graça, quanto mais sutil se apresenta a luta das colunas contra a
gravidade, mais bela se mostra a edificação. Este quesito faz com que a simetria
tenha função secundária na apreciação da beleza das obras arquitetônicas. Ruínas
43
Sobre arquitetura: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 43 p.
225 .
45
também podem ser belas. Por outro lado, a matéria empregada influi na beleza da
obra arquitetônica. Construções de madeira possuem valor menor por caracterizar
este tipo de matéria menor solidez e, portanto, menor luta entre a gravidade e a
impenetrabilidade e, concomitantemente, menor se apresenta a visão da coesão da
obra. A decepção é ainda maior se a pintura procura forjar outro tipo de matéria,
como o mármore.
Já sabendo que, junto a Kant, o interesse configura-se negativamente para
a fruição estética, a arquitetura não pode possuir seu grau de valor estético
avaliado pela utilidade e conforto proporcionado pela estalagem da construção,
contudo, a utilidade e o conforto influenciam na maior ou menor liberdade com
que o arquiteto erige suas obras e isto justifica o fato dos climas mais amenos da
Grécia e Itália, bem como as exigências de enormes acomodações, permitirem
traços mais livres e formas mais abertas para o livre curso do vento e a plena
incidência da luz, diferente de climas mais gelados como o da Alemanha cujos
resultados consistem em construções fechadas e lúgubres cujos adornos - os quais
inserem-se na escultura e não na arquitetura – se prestam a compensação de tal
configuração semelhante a fortificações. A arquitetura gótica também situa-se
nestas características. É óbvio, não se pode nem mesmo comparar a falta de
curvas de construções semelhantes a fortificações, com a desenvoltura dos traços
de um Parthenon. Platão mesmo não apreciava esta obra. Não se sabe se ele
desgostava mesmo de sua forma ou se tal desapreciação era consequência de suas
discordâncias a respeito do pensamento democrático de Péricles. O Parthenon
assombra não apenas pela vultosa figura em contraste com a paisagem causada
pela escolha deliberada do local de construção e pela coloração – um vulto branco
a despontar no alto do horizonte como se do próprio Olimpo se tratasse -, mas pela
grandeza dos blocos de suas colunas e também por logo imaginarmos a demanda
de forças para se arrastar e alojar tais colossais pedaços de pedra, dadas as
condições e circunstâncias da época. O que não pode ser considerado, segundo A.
Schopenhauer, junto a I. Kant, como elemento de maior ou menor fruição estética:
46
a história da construção da obra afigura-se repleta de particulares interesses e fatos
e, portanto, contrapõe-se à contemplação desinteressada44.
Ao lado da arquitetura existe a hidráulica que manifesta na fluidez
características as mais louváveis daquelas forças primitivas - gravidade e
impenetrabilidade- . A Fontana di Trevi em Roma é um belo exemplo deste tipo
de arte. Em seguida temos o paisagismo que é uma espécie de tentativa do homem
tentar domar o que existe de mais esplendoroso na organização do mundo
vegetal45. No paisagismo podemos inferir dentro do eixo da filosofia
schopenhaueriana a mesma propensão de I. Kant e F. Schiller a qualificar sua
superioridade quanto mais liga-se a manifestação pura da livre exteriorização da
natureza. Bem se sabe o menosprezo de I. Kant e F. Schiller em relação à
demasiada interferência das formas simétricas da razão no livre desenvolvimento
do crescimento das plantas em um jardim. Quando F. Schiller condena a
regularidade e simetria de alguns jardins franceses, ele assinala, junto à I. Kant, a
artificialização que consiste na transposição das formas matemáticas da razão à
constituição assimétrica e irregular da vegetação. É claro que em A. Schopenhauer
isto não é motivo para considerar que ele enalteça mais a beleza artística da
natureza do que a beleza artística das obras produzidas pela mão do homem. Com
A. Schopenhauer isto apenas nos leva a constatar que cada forma de arte é mais
apreciável quanto mais se apresenta em conformidade com o seu domínio e com
as forças da vontade as quais refere-se. Jair Barboza também destaca isto: “ Uma
flor é mais bela quando encontrada entre outras no bosque, não num jarro. Um
jardim é mais belo se feito a partir do respeito ao desenho original da natureza,
44
Na Crítica da Faculdade do Juízo , I. Kant apresenta situação diversa: O observador não pode diminuir o
efeito de sua contemplação estética, contemplação da suntuosidade das pirâmides – e todo seu efeito do
sublime-matemático – devido a freio moral, pelo fato de saber de todo o esforço do trabalho escravo que foi
empregado para as erigir. Este é fator preponderante, sabendo-se que A. Schopenhauer concorda com esta
conclusão, para ver na contemplação estética terreno completamente livre de moralismos. Abordarei a
questão adiante quando criticarei certa concepção de Alexis Philonenko. D. Garcia, autor da obra Dialética
da Vertigem indicou ponto definitivo para essa questão o qual resolve a questão de forma decisiva e
completa: “Trata-se de desvincular o moralismo, bem como o interesse, da contemplação estética, tanto em
Kant como em Schopenhauer.”
45
Sobre paisagismo: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 44 p.
229.
47
não a partir de cuidadosos raciocínios.46” Conclui-se, portanto, que no
paisagismo quanto menos se exterioriza a interferência humana, mais belo será o
jardim. Isso vale também para a pintura de paisagens. Esse teor naturalista da sua
concepção estética transparece com mais ou menos intensidade conforme percebese o quanto ele considera melhor os traços objetivos do que os traços subjetivos na
pintura de animais47. Quanto mais a pintura remonta à idéia de sua espécie, melhor
é. Todo animal carrega a assinatura de sua espécie na sua compleição e nos seus
gestos
e isto caracteriza a objetivação da vontade neles. Retratar ou não
semelhantes características distingue o bom artista do ruim. Acrescenta-se ao
enaltecimento dos traços objetivos e a depreciação dos traços subjetivos o fato de
que os animais não possuem propriamente traços individuais. Após a pintura de
paisagens temos a pintura e escultura de animais e finalmente a pintura e escultura
de homens que, sendo a máxima expressão da objetividade da Vontade, também
representa a máxima expressão da beleza no mundo.
A pintura histórica tem duas características: a nominal ou alegórica e a
real48. A alegórica determina a parte conceitual da pintura que mais quer significar
do que deslumbra. A parte real nos leva até a Idéia cujo vislumbre inspirou o
pintor. Assim, mesmo se desconhecessemos a história de Moisés, agraciada em
uma pintura com o tema religioso de sua infância, contemplaríamos a idéia de uma
criança humilde sendo resgatada em no leito de um rio por uma mulher poderosa.
A pintura de homens arrebata esteticamente com mais facilidade do que a
pintura de animais49. Isto porque a beleza do rosto e da forma humana representa
os maiores graus de objetivação da vontade e facilmente livra o contemplador das
misérias da vontade, livra o contemplador das misérias da vontade individual, o
distancia dos atributos fenomênicos do objeto e de si próprio. Lembremos que a
46
BARBOZA, Jair. Schopenhauer – a Decifração do Enigma do Mundo. p.68
Sobre pintura de animais: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. §
44 p. 230 .
48
Ver: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 48 p. 241 .
49
Ver: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 45 p. 231 .
47
48
beleza em Platão, de acordo com seu Fedro e O Banquete, é a via mais rápida de
acesso às Idéias. Por esse e outros inúmeros motivos que também Platão foi vítima
da tradição de comentadores quando esta o coloca como inimigo dos poetas.
Como se, não obstante as críticas da República, ele não citasse positivamente e
enaltecesse em diversas obras Homero, como se sua filosofia não estivesse durante
todo o percurso imiscuída de linguagens poéticas. Um dos meus objetivos para
produções futuras é fazer justiça para com os estudantes iniciantes de filosofia –
já que para bons entendedores de Platão isto já é óbvio – e redigir uma tese
intitulada “Platão, amigo dos poetas.”
O labor da pintura de homens envolve outro ponto essencial além do
caráter específico. O pintor deve retratar o caráter individual na obra, colaborando
para a expressão bela. Se o caráter específico suprime o individual, tem-se uma
obra sem significância; se o oposto acontece, tem-se a caricatura.
Nesta passagem da metafísica do belo de A. Schopenhauer percebe-se
sua concepção a respeito da imitação da natureza. O pintor encarna mais do que
um reprodutor de imagens jogadas pela natureza, sua obra já não pode ser vista
como a compilação de observações de diversas partes alojadas em locais
diferentes, aqui um pescoço, ali um rosto, acolá belo par de pernas. Como a
natureza dificilmente reune múltiplas qualidades belas num só indivíduo, a visão
empírica da arte julgou que o ideal de beleza grego era constituído pela junção de
várias observações mutiladas de múltiplos indivíduos da realidade. Para a
concepção de A. Schopenhauer isto é absurdo. A pintura e a escultura não se
constitui de franksteins cujos pedaços são retirados da experiência50. O mesmo
vale para a poesia. O artista consegue, a priori, vislumbrar a elevação das
qualidades apresentadas no mundo fenomênico e, assim, completar o modelo da
experiência ou até mesmo criar belas formas totalmente livres de qualquer modelo
na natureza. Justifica-se então a definição do artista como vidente.
Ao imbuir o artista com esta incrível capacidade de aprioridade, o
filósofo o posiciona entre as mais altas possessões intuitivas da natureza. Superior
50
Sobre escultura: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 45,
§46,§47 ps. 231 a 240 .
49
ao cientista, o qual apenas consegue descobrir, mediante aguçada visão, cadeias de
causalidade antes desconhecidas, é um descobridor, o artista é um criador
porquanto completa os atributos da natureza.
Além da beleza vinculada ao espaço – a bela proporção das formas -, a
pintura e a escultura têm como elemento principal a graça, a qual se trata da
vinculação do fenômeno do belo ao tempo pelo qual o artista capta qual
movimento melhor se adapta às características e conjunções com o ideal de
humanidade da pintura. Ele deve, tanto em pintura quanto na escultura, se livrar de
posições afetadas e desarmonizadas com o carácteres específico e individual
representativos do ideal de humaninade do modelo pintado. A graça consiste,
logo, nas belas posições e proporções de membros pintados ou lapidados. Cabe ao
escultor e ao pintor captar o melhor momento e posição a ser retratado e executar
isto bem também é arte. Carácter indispensável, para além da expressão forma, o
exímio escultor deve possuir grande capacidade de expressar o espírito humano e
a isso ele chama graça. Captar a melhor posição do espírito humano em
determinada conjuntura e circunstância é tão trabalhoso quanto dilapidar os
contornos da bela forma e o escultor será tanto mais habilidoso quanto mais
estiver desenvolvida tal habilidade.
Já se falou aqui sobre a insuficiência dos conceitos para a contemplação.
Quando a alegoria nas artes plásticas é abordada, isto se torna mais claro. A
alegoria serve para inscrição de uma obra, mas remete-se às representações
abstratas, aos conceitos, portanto é contrária às prioridades intuitivas da
contemplação. A alegoria nas artes plásticas passa da intuição para os conceitos, o
que promove a queda da idéia para a simples abstração. Contudo, quadros
alegóricos podem ser extremamente belos, desde que seu conteúdo alegórico,
nominal, pode tranquilamente se separar do seu conteúdo ideático, real, sem que a
apreciação se lese por isso. O quadro alegórico belo é aquele que , destituído de
sua alegoria, apresenta correspondência imediata com as Idéias. Mas um quadro
em que uma figura representando o Tempo retira o véu de uma figura
representando a Verdade não possui maior valor e capacidade de chocar do que a
simples frase: “ O tempo descobre a verdade.” A desvalorização da alegoria na
50
arte plástica consiste no fato de submeter o domínio rico da imagem ao domínio
pobre, neste caso, das palavras e dos conceitos. Maior é a depreciação do filósofo
no que diz respeito à alegoria simbólica: ela é aleatória haja visto que a cruz que
representa a fé e a redenção poderia representar força e bravura sob os brasões de
guerreiros semelhantes aos templários se o cristianismo jamais tivesse existido.
A poesia aparece na classificação seguinte e , apesar de se munir de
conceitos, é legítima arte pois o faz para projetar as idéias: aqui os conceitos nada
mais são do que tecidos da roupagem intuitiva, logo, Arthur Schopenhauer não cai
em contradição51. Se a poesia se apropria de metáforas e as metáforas constituem
uma espécie de alegoria, aqui a alegoria já não é vista como negativa. A partir de
conceitos se alcança as noções intuitivas na poesia.
Dois constituintes da poesia persuadem nossa atenção, nos prendem à
poesia quanto mais cadenciados se situam: o ritmo e a rima. Com eles a voz da
leitura interna se torna mais cantada, ressonante e, nesse movimento intuitivo, nos
alçamos mais facilmente ao significado e sentimos mais intensamente a transfusão
das paixões própria da poesia e da literatura nas quais o escritor tem livre espaço
para trabalhar e aflorar os mais diversos sentimentos. Na poesia e na prosa o ritmo
e cadeia de acontecimentos e sentimentos não se situam de forma aleatória. Não, o
exímio poeta e escritor inserem passagens de dor, de sofrimento, de assombro,
demonstração de força e alegria de forma voluntária de acordo com os diferentes
propósitos: embasbacar, rir, expressar estados de espírito melancólicos, isto é, rir
ou chorar. A ponto de podermos afirmar que na excelsa obra de arte inexistem
passagens ou falas destacáveis, inúteis, isto significa que, na obra do gênio
artístico, ao contrário do que se possa pensar, ao contrário da visão do louco
sonhador, há construção tão precisa quanto a obra do arquiteto, do engenheiro e se
não se pode batizar este processo de criação de matemática do artista, é porque os
princípios e elementos pelos quais mediante sua singularidade e particularidade o
artista constrói universalidades, são de todo intuitivos, ou seja, não se pode
formular expressões matemáticas que abranjam a criação e produção artísticas.
Talvez seja matemática oculta, mais extensa, intuitiva e natural a do artista. Já se
51
Sobre poesia: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 51 p. 255 .
51
sabe o cuidado que o filósofo tem ao avaliar as diferenças entre os conhecimentos
matemáticos e físicos e os conhecimentos intuitivos, artísticos. Em vista disto, a
ininteligibilidade da produção artística, já não podemos nos espantar quando
físicos e matemáticos renomados, ao se depararem com peças teatrais e outras
obras de arte, questionam-se: ‘ O que isto prova?’ É que seu conhecimento é
demasiado racional e lógico no qual a necessidade de conclusão após uma
proposição é mais imediata e já não se consegue tolerar a continuidade da leitura
ou apreciação de uma peça se para se chegar à conclusão vários aparentes
absurdos permaneceram, dentro do seu raciocínio lógico e imediato, insolúveis.
Isto explica a diferença do raciocínio mais longo e mais tolerante do romancista e
seus apreciadores, envolve a lógica oculta dos sentimentos, da cadeia de eventos
as quais exigem paciência e paixão bem como afinidades sentimentais com o
poeta. Enquanto o contemplador pensa a respeito da obra de arte “ Tudo pode ser
explicado ou sentido” o demasiado lógico, aquele em que o entendimento se
escora no princípio de conhecer, na face lógica da cadeia de espelhos da razão, do
monstruário do conhecimento, já pensa “Tudo deve ser explicado.” É o estatuto do
não explicável, mas sim perceptível, o que difere propriamente o domínio
intuitivo, próprio da arte, do domínio abstrato e o que eleva o romantismo como
um dos maiores movimentos artísticos da humanidade. Naquele em quem a lógica
dos conceitos se aguçou tanto que se exige conclusões e demonstrações a todo
tempo, a sensibilidade e, junto a ela, a intuição estética, se atrofiaram.
O que pode ser propriamente afinidades sentimentais? Esboçam-se pelo
dimensionamento de semelhanças entre o criador e o contemplador. A lógica
interna do criador só se expressa pelas imagens ou sons ou representações destas e
destes mediante o uso das palavras. A sensação de melancolia e estrago
incontornável da perda da amada, a desconfiguração de todo um futuro de uma
casta consequente da não realização da união de amantes só pode ser vislumbrada
por quem se encontra e sente semelhantes sensações. O idoso destituído de
ímpetos das paixões e descrente do amor já não pode sentir a melancolia do jovem
Werther com a mesma intensidade dos jovens desesperados pela rejeição ou
desesperados pela suposta incompreensibilidade da sociedade e a falta de
52
hospitalidade do mundo no concernete ao amor arrebatador. Interessante perceber
o intimismo de J. Goethe com a sua própria natureza ao se constatar que em Os
Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister já se configura o legado do jovem
que abandona sua amada para realizar seus anseios pela arte. Já nas Afinidades
Eletivas parece se pré-configurar o amor mais maduro, mais nobre, porém não
menos trágico. Trata-se do livre desenvolvimento natural do íntimo interior
contraposto às causas naturais exteriores, como se a verdadeira felicidade
encontrasse por todos os lados inimigos na sociedade e nas forças exteriores,
como se essa incompatibilidade fosse o próprio motor do mundo. Em vista desta
incompatibilidade ( ou não), podemos elencar três tipos de poetas:
Aquele para o qual a constituição da Natureza parece inferior a seu
diálogo interno e sua glorificação e definição da poesia constitui-se apenas na
tentativa de justificar sua injustificada situação no mundo. Sua ausência procura se
justificar estabelecendo diálogos que não encontram pares no meio e, assim, se
torna o eterno injustificado perante a Natureza. Como se a Natureza devesse se
prostar diante dele e pouco a pouco ou, para se aproximar mais a este tipo, de um
só movimento, reconhecer sua superioridade. Não é por menos que tal tipo se
recolhe nos porões de sua subjetividade, já não consegue perdoar à Natureza o seu
abandono e procura, seja com a destruição de tudo e de todos, seja com a imersão
nos próprios sonhos, fazer de seu conhecimento regra ou o fim total nos meandros
de sua injustiça. Se trata do Empédocles de F. Hölderlin, insaciável diante dos
favores divinos, desencantado com a perda de seus próprios poderes. Se uma vez
algo que é extraordinário se repete muitas vezes, esse algo logo se torna ordinário.
Aquele que exige sempre mais repetições do milagroso, da experiência mística
com as musas, do enlevo dos deuses, em algum momento se tornará insaciável.
Cessa-se o esforço cansativo da Natureza e o sujeito que parece louvá-la na
realidade mais a culpa por não o enredar mais e mais nas malhas do
extraordinário. O canto se torna amarga culpa e seu infeliz possuidor só encontra
na morte a saída para a desesperada fuga.
O segundo tipo poético retrata com beleza e versatilidade a Natureza. Seu
enlace feliz com ela já não encontra muitas palavras para discorrer muito, pois este
53
mundo é o primado da infelicidade. Seu gênio lírico é idílico e a ausência de
prolixidade se justifica pelo fato de que onde se sente muito não há espaços para
as palavras. A Natureza precisa, na superfície do complexo, de simplicidade. O
canto do poeta deve seguir o curso dos fluídos das plantas, ser calmo e contínuo.
Aqui podemos inserir o Hipérion de F. Hölderlin o qual, deixado de lado os
acessos de exageros sentimentalistas românticos próprios do primeiro tipo, possui
relação idílica com a Natureza. O prolixo também encontra seu lugar, mas
demanda muitos esforços para, muitaz vezes, desabrochar estranhas flores.
Mas se o excesso de narcisismo culpabilizador se perde na escuridão da
subjetividade, a plena realização do eu com a Natureza já não gera a tensão da
possível perda. Em analogia com a mortalidade da humanidade, o terceiro tipo de
poeta atenta para a possibilidade de perda. A incompletude reconhecida não é
motivo de incapacidade para lidar com a plenitude uma vez alcançada, é saber que
tudo está disposto a um fim. Ele canta a Natureza e procura realizar seus anseios
uma vez que está de mãos dadas com ela. Reconhece a superioridade dela e a
busca com verdadeiro ímpeto, mas sabe que, uma vez encontrada, o canto pode
cessar. O que seria das obras de Goethe se ele tivesse realizado o amor com a
mulher que inspirou Charlote? Certa insatisfação é necessária para a produção. Os
tempos mais atrozes de sofrimentos foram os tempos de maior produção espiritual.
O artista anda, lado a lado, com o sofrimento até encontrar temporário alívio a ele
com a manifestação da obra de arte. A tensão entre a possibilidade de felicidade e
sofrimento constitui a pedra de toque da arte. E parece se situar entre aqueles dois
extremos: entre o eterno insatisfeito e o realizado com a Natureza.
O primeiro tipo sempre manterá a relação inconciliável com a Natureza.
Ela sempre oferecerá menos do que ele mesmo julga possuir. Pode até parecer
existir nesta relação tentativa de conciliação, contudo ele enseja linguagem tão
incompatível com o livre desenvolvimento dela que a ela, aos seus auspícios,
parece eternamente estranho. Quando parece glorificá-la, é a si mesmo que
glorifica. É quando se enreda cheio de nós nas malhas da subjetividade e, quando
parece flertar com a Natureza, é a completa aniquilação o fim, consciente ou não,
54
alcançado. Insere-se aqui os poetas da segunda geração romântica, o movimento
nomeado ‘ mal do século’ no qual tantos poetas aniquilaram-se cedo.
O terceiro tipo já desconsidera o infinito interior superior ao finito
exterior. Sua linguagem consiste na tentativa de seduzir verdadeiramente a
natureza, por isso procura a versatilidade e a moderação. Sua perda ou perdas já
não é injustificada e se o trágico acerca-se dele não é devido diretamente as suas
decisões deliberadas, mas por acontecimentos fortuitos, malogrados, do inexorável
destino. Percebe-se na versatilidade das palavras para descrição da natureza, o que
diferenciou tanto o Romantismo do Simbolismo e Parnasianismo, na liberdade
frente à metrificação, a busca pela simplicidade e a imediata projeção das Idéias
sem necessidade de ornamentos linguísticos. Aqui define-se as obras de J. Goethe,
com exceção de Os Sofrimentos do Jovem Werther - exemplo de exarcerbação
de sentimentalismos - , aqui insere-se o Romantismo Clássico. No Werther
destaca-se o primeiro tipo, sofrimentos exagerados preponderantes diantes dos
quais inúmeras saídas poderiam ser elencadas, a visão de uma natureza intocável,
a inaceitação da sociedade, a rejeição do amor como fim inconciliável. Bem
diferente apresenta-se Afinidades Eletivas e Os Anos de Aprendizagem de
Wilhelm Meister onde, menos lá e mais aqui, as decisões não sobrepõem as
circunstâncias, os protagonistas não colocam seu arbítrio acima da cadeia de
causalidade. No caso de Afinidades Eletivas pode-se ver inclusive a transição de
um estado a outro. O protagonista tenta forçar o destino para além das convenções
e estatutos da sociedade, mas o realiza sempre os levando em conta até quando a
paixão sobrepõe a razão e ele decide enfrentar corajosamente as consequências.
Aqui não há mais decisão, pensando dentro do pensamento trágico clássico, é
claro. Uma vez que aparece a Ate, a cegueira da razão, já não há mais decisão, já
que se não há razão não há decisão. O primeiro amor de Wilhelm Meister já
evidencia as circunstâncias acima das decisões. Ele vai embora devido à
interferência da mãe de sua amada e o ardor por conseguir sua emancipação na
carreira de ator. Resume-se na, independente dos fatos trágicos ocorrentes, feliz
confluência dos acontencimentos para a formação do homem, no sentido da
Bildung alemã. A obra nos faz crer que liberdade e prosperidade possam
55
caminhar juntas e que o destino também pode trabalhar a favor do ousado, do
espírito livre, desde que a força da paixão esteja conjugada com a ação. Esta força
da paixão não parece desvinculada de entendimento e aqui, como em tantos outros
aspectos, a teoria de A. Schopenhauer parece amigada a obra do admirado J.
Goethe. Se em outras obras J. Goethe a força da paixão está direcionada à pessoa
amada, em Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister ela direciona-se aos
objetivos cênicos do protagonista. O fervor e a conscienciosidade com a qual a
força da paixão constrói-se demonstra que é possível entendimento mesmo onde
não há razão e as circunstâncias acabam aliadas a este ímpeto. Força da paixão e
entendimento enlaçam-se com harmonia e representam a mais bela dança. A
aceitação de jovens deserdados pelos pais na trupe bem como a plena
hospitalidade dos acasos fortuitos – ações e encontros ocasionados pelo destino –
constituem-se extremamente contrários às convenções e razões estipuladas pela
sociedade. E suas consequentes visões segundo as quais é possível entendimento
sem razão constitui parte do teor revolucionário da teoria schopenhaueriana. Esta
teoria sobre os três tipos de poetas tem vínculos com a admiração de
A.Schopenhauer por J. Goethe e a consideração e enaltecimento do conhecimento
artístico. Neste âmbito, de enaltecimento do conhecimento artístico, a razão mais é
prejudicial à livre formação e integração do artista do que benéfica. Intelecto
integra-se bem menos com razão do que com entendimento. Pois bem, basta
considerar a razão prática como bem menos inofensiva do que a razão pura, o qual
está livre de erros, ao menos no que diz respeito a seu aparato a priori, condição
para o conhecimento, para perceber no homem artista, no homem esteta, alguém
mais livre e vivo do que o homem moral. Este, a todo tempo dividido ente duas
ações – condição da construção de máximas ( e aqui critico a universalidade do
imperativo categórico) – por todos os lados enxerga obstáculos para suas ações52.
52
Existindo um abismo entre o reino dos fenômenos e o noumeno e sendo a razão imbuída de liberdade tão
somente na sua capacidade natural de condições de possibilidade e no caráter inteligível, tão somente ou
propriamente, sua capacidade de anterioridade de princípios universais, ela abandona degraus quando
aplica-se aos fenômenos. A. Schopenhauer já assinala na sua obra Sobre os Fundamentos da Moral que I.
Kant confundira princípio moral com fundamento moral. Toda razão prática tem na experiência um
patamar abaixo da liberdade propriamente dita, sendo a liberdade do suprasensível o guia ideal do mundo
fenomênico a ponto de I. Kant afirmar ser improvável demonstrar que existiu em toda história sequer uma
56
Isto com tanta intensidade que, o seu fim, tende a acabar em inação. O artista já
não possui tais restrições e sabe que o todo moral de sua história não pode ser
definido e tampouco diminuído por uma simples ação considerada imoral diante
das convenções sociais. Inclusive o todo moral pode ter seu objetivo alcançado
mais amplamente em meio a ações tidas por imorais. Nestas condições, o homem
moral acaba por se tornar o homem inativo, extremo oposto do homem artista, o
homem ativo.
A palavra parece incapaz de exprimir a magnitude ou profundidade da
natureza, seja interior ou exterior. O romântico escritor se vê, desde o início, a
percorrer o caminho rodeado por dois abismos. A passagem do sentimento
profundo, que tudo abarca, para a descrição fiel perpassada pela razão, que tudo
separa, é quase instransponível. Diante abismos de intervalos anteriores à beleza
da imaginação e a verdadeira beleza da natureza há névoas e imagens oníricas. Daí
o intimismo dos românticos como incessante cessar de olhos para que nunca mais
se abram ou incessante e torporizado deixar-se levar às cegas por entre brumas
após as quais o aparato perseguidor da razão tenha legado-se para trás e os
sentidos possam ser usados tão somente para sentir. Olhos que somente vêem,
ouvidos tão somente ouvintes e peles apenas tocantes e tocadas quando finalmente
o paraíso da beleza pura é acessado.
ação moral. É neste sentido que, longe de sua constituição primária e aplicada à experiência, que a razão
prática não é pura e é neste sentido que a beleza, aplicada à matéria proporciona liberdade no fenômeno. F.
Schiller nos diz: “ Mas porque essa liberdade é apenas emprestada pela razão <F. Schiller se apropria do
alto posto dado à razão por I. Kant, ERB> ao objeto, como nada pode ser livre a não ser o suprasensível,
e a liberdade mesma como tal nunca pode cair sobre os sentidos – numa palavra – como se trata aqui
apenas de que um objeto apareça como livre, e não que o seja efetivamente: então essa nalogia de um
objeto com a forma da razão prática não é liberdade de fato, e sim meramente liberdade no fenômeno,
autonomia no fenômeno.” ( SCHILLER, Friedrich. Kallias ou Sobre a Beleza. P.20). Todo e qualquer ser
pensante é imbuído do imperativo categórico. Enquanto que o erro neste âmbito viola os princípios da
máxima da ação, o erro da razão pura jamais pode violar as condições de possibilidade de conhecimento.
Portanto, o domínio de meu conhecimento, com todas suas categorias e dispositivos de raciocínio continua
o mesmo após os erros. O que já não acontece com o domínio moral. As condições de possibilidade de
conhecimento permanece inalterada na lida com o objeto, mesmo após o engano. A razão prática já não
possui esta imunidade, sendo sua liberdade apenas existente fora da ação ou junto da ação, porquanto
segue, inabalada, princípios racionais universais de acordo com a vontade. Munindo-se de um exemplo
básico, a razão pura é um barril que permanece sempre cheio. A razão prática é um barril cujo líquido escoa
de acordo com os erros de conduta. Como não pensar nisso quando se afirma que nada pode ser livre senão
o suprasensível? A razão prática é tão transcendental e protegida quanto a razão pura? “ A analogia de um
fenômeno com a forma da vontade (é a eticidade) ou da liberdade é a beleza ( em sua acepção mais ampla).
A beleza não é pois outra coisa senão liberdade no fenômeno.” (SCHILLER, Friedrich. Kallias ou Sobre a
Beleza. p.21.)
57
A tragédia é a manifestação plena do sofrimento no âmago do mundo, o
mais elevado dos gêneros poéticos mostra a glória dos injustos e o triunfo dos
maus53. Falaremos mais detidamente sobre tragédia no próximo capítulo.
Enfim, temos a música, a suma arte para Arthur Schopenhauer54. A
música diferencia-se das outras formas de arte por ser uma melodia cujo texto é o
mundo. O texto vem depois da melodia. Seria possível existir música mesmo se
não existisse o universo. A explicação consiste em que a música apresenta,
mediante sua clareza de manifestação do âmago do mundo, correlação direta com
a Vontade. Não se trata de Idéia, a música é a significação da própria coisa-em-si,
da Vontade.
Dentre a classificação das artes, a música se insere em um todo à parte.
Não se trata mais de representação, mas sim de apresentação da Vontade anterior a
objetidade das idéias e anterior aos fenômenos. Enquanto as estéticas anteriores
premiam a poesia com o mais alto posto, a estética de A. Schopenhauer dedica o
troféu final para a música. Não é por menos, já que a música apresenta para tudo o
que é físico no mundo seu correlato metafísico. Basta escutarmos a música
clássica para visualizar diversas imagens possíveis da vida. O assombro do
filósofo não é menor do que o de Platão ao perceber que “ O movimento das
árias de música imitam as paixões da alma”55. Simples árias são capazes de
todo este efeito. Existe todo um paralelo entre as escalas da música e as escalas
das idéias na biologia, apresentadas detidamente no livro II do Mundo Como
Vontade e Representação. Desde os tons mais graves que dizem respeito a matéria
inorgânica, até os mais agudos os quais se referem ao homem e ao animal. Ainda:
“Os temas curtos e fáceis, parecem falar-nos de uma felicidade
simples e fácil. O allegro maestoso, com os seus longos temas, os longos
53
Sobre tragédia: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 51 p. 266.
Sobre música: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 52 p. 269.
55
Citação presente em SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 52 p.
273.
54
58
períodos e os desvios longínquos, descreve-nos as grandes e nobres
aspirações em direção a um fim afastado, assim como a sua satisfação final.
O adagio conta os sofrimentos de um coração bem nascido e altamente
colocado, desdenhoso de toda felicidade mesquinha.”56
O filósofo tem pouca predileção pela música cantada. Isso acontece
devido a supressão das possibilidades da manifestação da Vontade pura que o
canto exerce. Para entendermos melhor, faremos uma pequena panorâmica da
metafísica de A. Schopenhauer: O mundo é constituído de três partes. O mundo
como fenômeno, espelho da Vontade, através do qual ela procura se conhecer, se
extende mediante ao princípio de individuação e encontra no homem sua máxima
expressão. O mundo das idéias é a objetidade primeira da Vontade, com o prisma
das formas da matéria inorgânica, dos animais e dos homens que serve de modelo
para onde os animais e os homens almejam alcançar e modelo imagístico e sonoro
para a arte. O mundo como Vontade, fundo abissal, é a coisa-em-si, apresentando
uma gama desordenada de possibilidades para diversos mundos das idéias
possíveis, a grosso modo, o mundo como Vontade carrega consigo em potência a
possibilidade de vários mundos das idéias. Por um todo mais abrangente, como diz
D. Garcia:
Existem
“(…) de iníco, três pressupostos metafísicos que comandam a teoria de A.
Schopenhauer: 1) a distinção entre fenômeno e coisa-em-si, que será: a) a distinção entre fenômeno e coisaem-si, que será: a) tomada no sentido de distinguir as manifestações objetivas da vontade, acessíveis à
representação, do subtrastato inacessível e atemporal da vontade “como coisa-em-si”, e b) estendida à
distinção de caráter empírico e caráter inteligível, sendo este último considerado fundamento inato
e
inalterável do querer do sujeito (trata-se do Velle non discutir, em função do qual operari sequitur esse); 2) a
unicidade da vontade, para além de todas as suas manifestações (trata do hèn kain pan), regidas pelo princípio
de individuação, que é o princípio da razão suficiente; 3) a tendência originária da vontade de afirmar-se em
seus fenômenos, e ao fazê-lo contradizer-se, e, finalmente, negar-se, quando chegada à escala humana: é
quando o sujeito percebe que sua essência é idêntica à de todo o universo, e que a individualdade é aparência
(trata-se do tat twan asi)”
56
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 52 p. 274.
59
Com o canto, essa carga de mundo possíveis que o ouvinte pode
vislumbrar diminui quanto mais descritivo é o canto e mais barulhenta é a melodia
e mais e mais se aproxima tão somente do mundo das idéias para gradualmente
descer o patamar do mundo como Vontade. Uma vez Richard Wagner teve
oportunidade de dialogar com A. Schopenhauer e confessar as influências de sua
nobre metafísica do belo para suas composições. A. Schopenhauer disse de
maneira seca que suas músicas não o agradavam. A música de R. Wagner era
muito barulhenta para seus ouvidos apurados. Apesar disto, o Persival é uma peça
em que a negação da vontade e a redenção se expressam como fiel tradução da
filosofia schopenhaueriana.
A música, com a regressão ao fundo primordial do mundo, afirma a vida
e permite-nos perceber não uma alegria ou um entusiasmo, mas A Alegria, O
Entusiasmo. Neste sentido que Marie-José Pernin diz: “ A música chama
os eleitos, no seio de uma alegria profunda, mais afirmativa do que o prazer
do relaxamento sabático, ao qual nos convidam as outras artes.57”
‘Para tudo que é físico no mundo a música apresenta seu correlato
metafísico’, ‘Há mais na música do que em todos os pensamentos terrestres’, ‘No
futuro os filósofos serão músicos’, ‘O fílosofo não poderia ser senão um
cantante’, ‘A música é a quintessência da filosofia e do mundo’ e ‘é impossível
filosofia sem música’’ , são pensamentos que fazem de Arthur Schopenhauer não
só o filósofo da Vontade como o filósofo da música, aliás, dizer um ou outro seria
teoricamente o mesmo.
57
PERNIN,Marie-José. Schopenhauer: decifrando o enigma do Mundo. p. 125.
60
CAPÍTULO QUARTO – CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRAGÉDIA
GREGA
• Ecos da Tragédia
A tragédia representa belas palavras. O incentivo do Estado ateniense
para com os poetas é semelhante ao incentivo dos jogos olímpicos e os poetas
lapidam suas palavras com tanta dedicação quanto os escultores feito Fídias o
mármore.
É a transposição da sabedoria por meio de significados imortais os quais
erigem as colunas imperecíveis da poesia grega. Os heróis são veículos de
oráculos, por vezes enigmáticos, feito os mistérios órficos, por vezes sábios, feito
preceitos filosóficos, mas a diferença da construção poética para a dialética
socrática na composição do mundo artístico grego incide no mundo de
significados e não no mundo racional. Diz F. Nietzsche:
“A dialética otimista, com o chicote de seus silogismos, expulsa
a música da tragédia: quer dizer, destrói a essência da tragédia, essência que
cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados
dionisíacos, como simbolização visível da música, como o mundo onírico
de uma embriaguez dionisíaca" 58.
Este mundo onde olhares hábeis de Vênus, vozes de Palas Atenas e
impulsos dionisíacos afiguram por toda a parte, encontra nos heróis e em toda sua
significação sua reunião. A epifania dos gestos, cantos e palavras encontra na
intuição poética sua mais nobre tradução e significação. Pelas mãos do poeta
sentimentos universais helênicos ecoam do palco para os ouvidos atentos dos
outros atores além do palco: o público grego. Somente quem vive e retransfigura
as imagens e vozes tão intensamente, somente quem vê o sorriso de Helena por
toda parte, somente quem, de maneira jocosa e, nem por isso desrespeitosa e não
sublime, somente quem se precave contra a ira dos deuses e pede licença para os
58
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. p.90.
61
mesmos antes de sentar, caso fosse o caso de um ali estar sentado, poderia dispor
de fascínio suficiente para honrar as peças trágicas tão conhecidas quanto
aguardadas.
O sucesso da tragédia depende de duas vias que para os gregos são
naturais: a produção de grandes poetas e o fascínio do público. Que se imagine a
expectativa e o furor e o extâse quando do início das comensais dos trágicos.
Fascínio suficiente para que, mesmo se conhecendo a trama das peças do início ao
fim, mesmo assim o público as espera como se da primeira vez se trate. Em um
meio onde a imaginação não era exceção, tenta-se antecipar as possíveis respostas
para ações já conhecidas. E qual não é a surpresa ao testemunhá-las mais nobres e
emocionantes do que as já conhecidas?
Mais do que rogar para si o caráter epifânico, que se eleva para estados
de alma impassíveis de serem delimitados por formas inteligíveis, por
formalismos descritivos, o público reconhece no herói sua mortalidade. Mesmo
possuindo caráter e ações nobres inacreditáveis o herói está submetido as moirais,
ao destino. Ao mesmo tempo em que se celebra estados elevados - e o
reconhecimento disto ressoa pelas vozes do coro – a dor do ocaso do herói
sensibiliza o público frente os limites da existência. Qual não é o passatempo
preferido para os amantes das respostas dos enigmas senão apontar atitudes e
saídas para um Orestes, para um Édipo? Não apresentar saídas, ao menos simples,
é fator preponderante nas tragédias: ao se vislumbrar a porta de saída no
labirinto de Dédalo logo aparece outra porta de um novo labirinto em que o herói
se enrenda. Logo após vislumbrar o final do labirinto se percebe apenas
transpassar para estágio provavelmente não menos intrincado do que o anterior.
Após transpor o labirinto do minotauro, o herói ainda precisa transpor o labirinto
da existência.
E as questões continuam. Qual não é a surpresa das pessoas sensíveis ao
perceberem que a mesma história as sensibiliza com a mesma ou maior
intensidade e qual não é a perplexidade ao perceber que talvez não fosse correto se
compadecer do herói e mesmo assim compadecem-se? Estas reações alçadas pelos
poetas tragediógrafos são impassíveis de se delimitarem por conceitos assim como
62
a força dos atletas nobres e louvados com os louros do Olimpo é impossível de se
definir pela descrição de práticas repetitivas e, mais do que isso, os conceitos
parecem possuir posições quase diametralmente opostas às intuições, ainda que
pareçam as exercitar e oferecer algumas direções para se elevarem a outro
patamar. Mas as construções artísticas não se realizam conceitualmente, por
conceitos, tarefa difícil é conciliar esta situação pois ainda que os conceitos
permitam a elevação da sabedoria intuitiva, não obstante originarem-se de
intuições empíricas, a sua melhor expressão, a obra artística é tanto melhor quanto
mais estiver livre deles. Talvez essa diferença não seja tão inconciliável se
compararmos que o campeão olímpico alcança sua força e formas tão desenvoltas
sob a rigidez de regras e a dureza do treinador.
Os conceitos se multiplicam tanto quanto se julgue necessário desde que
se submetam a sua esfera e aquilo que possa parecer negativo é negado ou se
aponta como insolúvel. Para quem lida com intuições não podem existir negações
e se elas parecem insolúveis ao menos se encontra aproximações de sua
existência, o que é, com beleza, revestido de mitos, de enigmas bem estruturados,
máscaras de proteção contra a falta de expressividade ou falta de reações
orgânicas. Para o organismo não existem negatividades ou ele procura
rapidamente se livrar do que quer que seja que pareça ofensivo ou agressivo,
existe sim o atrativo e o repulsivo, mas mesmo o repulsivo tem o seu papel em
organizações próximas ou distantes. O espanto admirável da tragédia é tornar
mesmo o repulsivo atrativo e o espectador surpreende-se ao se atrair por situações
que, na superfície, parecem tão obviamente repulsivas. Como a história de um
Édipo, um desgraçado, pode ser tão atraente? ele questiona. E se se permitir a
introjeção de um campo tão insensato como o campo da moral diante da
magnificência contagiante da tragédia, vê-se que um moralista rígido e ríspido
entenderá que é impossível deliberar sobre Édipo Tirano sem que suas próprias
convicções morais sejam atingidas. As peças de Sófocles são armadilhas para a
moral dogmática. Porque ou se declara em Édipo um desgraçado nascido em uma
comunidade beata ou um beato caído em uma comunidade desgraçada, uma
comunidade em que os preceitos oraculares têm mais valor do que a vida de um
63
filho. Culpabilizá-lo por apenas reagir imediatamente despercebendo toda a gama
de sinais mediatos é legitimar homens e rituais cujas ações podem ser vistas como
cruéis. Culpabilizar a sociedade por projetar o desvio de todo um rio para sua
nascente antes mesmo dele nascer, mediante auspícios oraculares, é negar a
providência dos deuses em nome da liberdade da ação individual e imediata, é não
reconhecer os sinais mediatos e a providência do destino proferido pelos oráculos.
Assim, os enigmas dentre os escritos heróicos e trágicos não tem fim e
para cada detalhe descoberto, tantos outros encobrem-se em consonância ou não
com tantos outros cobertos e descobertos. Querer por fim absoluto nos enigmas
gregos é querer lutar contra monstros inefáveis até silenciar todos os seus urros e
presenciar seu último expirar de vida. “ Quando fores lutar contra monstros, não
tenhas medo de se tornar como eles”, assim diz Ariadne. E quantos Teseus
exploradores e obcecados por dar cabo final a todos os monstros de cabeças de
cobras, membros ressurgentes e imagens congelantes de tão horríveis não se
tornam eles mesmos minotauros.
• Delírios Platônicos
Assim como as cabeças de Hydra continuam a ressurgir, o sorriso de
Helena é infindável. A tragédia se atualizou em Sófocles. Enquanto antes, na
época de Homero, as musas, sátiros e faunos ecoavam o espanto diante das
situações incontornáveis dos protagonistas desfigurados e sacrificados no palco da
vida, na composição antropológica o coro, de som grave, se humanizou. E não
seria de todo extravagante pensar que nas apresentações mais ou menos solenes o
próprio público o acompanha quando ocorre os arrepios da alma. Essa
humanização da tragédia altera a magia sim e aqueles dois impulsos da epifania e
o reconhecimento da mortalidade aproximaram-se do palco. O exagero desta
aproximação representa o fim da tragédia com Eurípedes, contudo lá já não
subsiste o grande fulgor da arte grega. Aquele outro fator, o da alta capacidade de
64
apreciação do público parece ter passado despercebido para Friedrich Nietzsche.
A fruição estética do público depende de muitos fatos culturais e antropológicos e
essa dupla relação, fruição do artista e fruição do público é preponderante para a
contemplação artística.
Um público viciado nos sacrifícios frente a um público elevado pode ser
comparado com Creonte frente a Antígona. Creonte está mais preocupado com o a
repercussão do enterro do corpo de Édipo, Antígona quer zelar pelo valor de seu
pai.
A tragédia representa nobres palavras e mais do que isso, representa
ações nobres. Neste ponto Aristóteles está correto. Mas a pergunta incansável, a
pergunta a desafiar a história da tragédia e alguns professores de filosofia sem
conhecimento artístico algum, muito provavelmente não pela primeira vez: O que
os macedônios sabem de tragédias? Diz Jean-Pierre Vernant:
“Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trágico se
tinha esgotado e, quando no século IV, na Poética, procura estabelecer-lhe
a teoria, Aristóteles não mais compreendia o que é o homem trágico que,
por assim dizer, se tornara estranho para ele.59”
Dizer que ela aflora o sentimento de temor e piedade é reduzir a gama de
sensações proporcionadas. Muito mais do que isso, a tragédia celebra sabedorias
as quais não podem ser representadas senão no palco. Significa a incorporação de
que estariam restringidas se subjazessem apenas na escrita, contudo, podem ser
vividas apenas pela palavra escrita, sem que sequer se imagine as ações
propriamente ditas. Consiste na música por trás das palavras, na paixão e no
espírito transposto em imagens mediate ícones, símbolos, arquétipos do fundo das
pretensões, anseios e paixões humanas, consiste no todo orgânico, organizado
feito a mente – a mente incomensurável ou o entendimento incomensurável -.
59
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. p.7.
65
Muitas vezes pessoas leitoras velozes de fragmentos de alguma tragédia
questionam sua grandiosidade. Desconhecem que beira ao impossível,
principalmente na situação em que a imaginação é legada, sentir o arrepio da
tragédia apenas pelas palavras escritas. Elas precisam se revestir de personas para
atingir o todo orgânico e musical da representação íntima da existência. Arrepio
este muito mais corporal e próximo no teatro do que na exposição cinematográfica
pois os atores estão ali, jogados à frente e apenas dispõe do presente para
acertarem, feito todos nós frente as atribulações e necessidades ardorosas da vida.
As palavras na tragédia são ressoantes porque com dificuldade poderia-se pensar
em palavras melhores naquele contexto. O público elevado acompanha a evolução
das antigas peças nas mãos dos novos poetas tragediográfos. Não se tem em conta
que o público, já antes de Eurípedes, participa da apresentação, participa do coro,
a entoar com espanto e frêmito as novas palavras dos poetas.
Alguns diálogos de William Shakespeare ainda conseguem alcançar a
elevação daquelas peças, assim como peças modernas e contemporâneas e
algumas obras cinematográficas. Entretanto, o simples fato de de necessariamente
obedecerem a certas reações por eles mesmos infundidas no público, as obras
cinematográficas, na visão de boa parte do público, em sua maioria dependem de
certa duração temporal e certa quantidade de reações impressivas para valerem o
ingresso. As manifestações artísticas para grandes massas acostumam mal o
público.
Mais dia menos dia há de chegar o momento da cultura se livrar dos
ditames comerciais e de artistas e o momento dos artistas se encorajarem a mostrar
as produções, antes restritas a pequenos círculos, para uma grande maioria. Talvez
isto aconteça quando lideranças sábias assumirem o leme da navegação da cultura
ou quando se perceber que nós devemos submeter os bens de consumo e
tecnologia e não eles a nós.
• Cultura e Poesia
66
A ciência arqueológica tende a universalizar a particularidade de seus
descobrimentos de parcos vestígios até que novos vestígios contrampõem-se e o
furor e o entusiasmo com que os primeiros foram recebidos sejam alvo de piada e,
não obstante, nova tentativa de universalidade rompe aquela, mais uma vez
iniciando-se a risível história. As máscaras encontradas da tragédia grega são
insuficientes para definir toda representação artística que se acerca do palco dos
helenos. A glorificação desta cultura nos faz pensar que a cultura grega, não
obstante sabêmo-la com grande parcela de escravos, é desprovida de povo e,
portanto, sem representação artística e festejos para um povo de exigência incultas
como se em todos os lados trespassassem Fídias, Ésquilos, Sófocles e atletas
adornados de louros por Atenas. Que se elucide a um historiador erudito do
helenismo que apresentações cênicas com expressões caricatas com origem nas
imitações de personalidades ou como cópia chula de espetáculos trágicos
suntuosos, como tendência popular inevitável e que onde existem espetáculos
existem muito provavelmente, próximo ou distante, saltimbancos e mascates e que
Atenas possivelmente não tenha sido exceção, ao menos com a instauração da
democracia a qual necessita de algum apoio popular; que se lhe traga à luz da
simplicidade e do óbvio os ditirambos populares, a glória dos heróis cantadas em
celebrações sem contenção do Estado e logo se forma um rosto perplexo por
simplesmente os livros de história clássica jamais permitem a sensibilização e a
contemplação imagística do todo das civilizações. Ou Platão escreve suas
restrições quanto a imitações, poesias e músicas em vão? Inclusive tragédias
menores, sem máscaras e com faunos correndo e cantando por todos os lados nas
apresentações popularescas ao derredor das suntuosas apresentações trágicas dos
poetas e tragediógrafos escolhidos, podem facilmente serem imaginadas. O
impulso preponderante do criador artista, advindo do povo, muitas vezes iniciado
na inveja, na Boa Éris, pode ter aí sua origem.
É comum acontecer a aversão ao estrangeiro nos grandes centros da
cultura. Teóricos se insurgem contra a suposta ignobilidade das apresentações
marginais. Saltimbancos não devem sequer receber as risadas, imitadores nem
mesmo os primeiros aplausos das crianças e malabaristas de rua nada que não os
67
deixem à própria sorte e os coajam a permanecerem na cidade alguns dias a mais.
Mas a coação do que não devia ser feito ainda servem de guia até que as peças
sejam ensaiadas no cenáculo, o repulsivo tem função no organismo.
O teatro também tem funcionalidade como instituição moral no sentido
em que os personagens execráveis, enquanto de caráter perverso, preparam o
público diante de pessoas semelhantes na vida real: é o impostor, o salteador e o
assassino representado no palco semelhante ao bandido da realidade e, uma vez
retirado os efeitos chamativos da máscara, reconhece-se a faceta, tanto mais
horrível quanto mais próxima, da maldade na vida real.
Quando ações e palavras melhoram o sentido da paixão sob a pena do
poeta, efeito semelhante acontece: o poeta é o configurador de sonhos a enobrecer
com véus o sentido da paixão. Não se fala alma, se faz alma. Aqueles atos e
palavras desejados na realidade são traspostos para o reino da representação. E
alguns destes atos e palavras são produtos de momentos testemunhados na
realidade. Têm ouvidos e olhos de testemunhas a captar pedaços de realidade nos
cais, nas montanhas, sob o clarão do sol e até mesmo nos becos da vida desiludida.
A trespassar torres luzidias, plantações douradas e oliveiras no fim do horizonte.
Passos atrás de passos, olhos atentos e ouvidos de prontidão. Nada mais é
necessário para o poeta o qual circunscreve os pequenos, mas grandiosos
momentos do cotidiano. A mãe limpando as gotículas de leite na pequena boca
do bebê e um prisioneiro de uma torre se remoendo ao observar de longe a
vida que lhe foi negada. O homem escorraçado, recolhendo suas roupas
jogadas no lamaçal pela amante e caminhando cabisbaixo, a procurar laivos de
esperança. O homem aparentemente sereno sob a sombra da árvore do campo
a admirar a passagem clara dos dias, aparentemente porque dentro do peito as
tormentas da instabilidade desassossega seus dias e uma terrível tempestade
traduziria verdadeiramente seu estado de espírito. Jovens a esculacharem todas
as metafísicas e, ao mesmo tempo, a acreditarem em várias espécies de magia.
Diversas situações a contrastar a ação com a sensação, isto é liberdade com
determinismo, paixão e esplendor com miséria, serenidade com instabilidade
atormentada e rebeldia cética com misticismo. A nenhum lugar caberia o
68
poeta senão no papel de testemunha ocular e ouvinte, a cantar a canção do
universo em uma capoeira. Ou deveria ele continuar em meio a salões de bon
vivants onde a miséria dos vícios apenas está mais sutil? Deveria se tornar um
mercador de aparências onde nem mesmo os véus da vaidade surtem efeitos?
Para este o qual já acompanhara muitas das hipocrisias dos grandes salões,
retroceder significaria aceitar padecer, lá onde os vícios são tão maiores
quanto maiores são as tentativas de disfarces mediante bons costumes. Lá
onde o maldizer é recompensado com os lustres e com as orquestras e toda a
história da princesa e suas amigas de abate recomeça, uma vez mais, desde
que a princesa não se canse de ser princesa e de possuir lá os seus príncipes
temporários e as amigas de abate não se cansem de serem amigas de abate até
que encontrem a maior virtude dos salões: a glória, ou seja, mais uma virtude
inventada para quem já perdeu todas as outras feito a virtude pátria que é uma
virtude de quem não possui mais nenhuma, o que significa que para quem não
é belo e justo ou é desprovido das virtudes kantianas, compaixão, piedade, a
insuficiência da capacidade de saber o que é certo a priori, ao menos resta a
patria.
• O Papel da Poesia
E aquele nobre aristocrata o qual uma vez mais perdeu seu amor
presenciou o espetáculo do mais novo tragediógrafo renomado. Após o fim da
apresentação conclui: Não há amor.
A tragédia para este é sim a glória dos injustos, a perseguição dos
benditos, o fim cruel dos honrados, Io eternamente picada por se envolver com um
dos grandes sem perceber sua irrelevante descendência, Prometeu preso em
incomensurável dor pelo Poder e a Força.
69
Realmente ao se desbravar as principais tragédias se percebe cadeias e
mais cadeias de amores infaustos, traídos desde o início, cujas palavras finais se
desvinculam de consolo. Contudo, à margem de tudo isso, se percebe que os laços
de amor sempre envolveram inúmeras desventuras e aquele espectador possuiria
para todo o sempre os pendores de suas próprias desventuras amorosas para tentar
pensar o novo recomeço, ramos secos de flores os quais jamais caíram sobre o
caixão do fim do romance e que poderiam continuar durante muito tempo a exalar
o tênue perfume, a não ser que um outro alguém tenha em definitivo ocupado seu
lugar nos braços da amada. Mas os ramos ainda insuflam o perfume e outra pessoa
pode substituir a amargura e angústia por todo o perfume do incenso e sua vida
pode reflorescer uma vez mais nas mãos de outra amada.
“ Quem não teme agir não há porque temer as palavras 60”: se Ésquilo
livra os homens da impiedade, Sófocles vem livrá-los da inação. O homem que
age pode continuar agindo pois acostumou a agir afirmativa e bravamente e já não
pode mais se sentir culpado se o excesso de honra pretende o retirar de seu
caminho e por isso homens importantes têm de ser eliminados.
Nada há de mais forte do que a
luta pelo amor. Primeiro o amor pela
família, depois o amor pelos amigos e amigas e daqui o amor pelos mestres e o
conhecimento sábio e por fim o amor pela cônjugue. Os enfastiados e torturados
inventam outros tipos de amor: o amor à pátria, o amor à bandeira, às honrarias, à
fortuna, ao rei, mas é tão somente para tentarem recuperar o esplendor e a glória
de épocas perdidas. Inúmeros Cleontes que infundem a morte em nome da
cavaleiresca força, inúmeros Cleontes que dividem a paixão em nome da
organização da regência ou constituição onde vivem. Mas não desglorifiquemos
muito a honra cavaleiresca: para alguns, poucos deles, restou ainda a honestidade
e o valor de seguir leis e proteger o povo ainda que em meio a patifes e bandidos
com armaduras.
E aquele nobre aristocrático queria vislumbrar a ausência do amor para
abdicar de todas as glórias trazidas pela fortuna e na glória dos infaustos
recomeçar a vida simples pela qual pudesse desbravar a paixão renegada e
60
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo rei, Édipo em colono e Antígona. p.31
70
reconstruir todos os seus bens longe do véu de Clitmnestra. E o ciúmes, amor
possessivo, possa ganhar novos ares mesmo com a possibilidade da fúria traiçoeira
do punhal.
• A Visão da Contemporaneidade
Demócrito disse uma vez que a verdade está no fundo do poço. Os
séculos, em meio a suspiros, não cessam de repetir essa expressão. É latente neste
escrito o reavivar de imagens trágicas conhecidas em meio a figuras perpetuadas
entre nós pelas epopéias e fragmentos livres do eterno esquecimento, graças a
destinos benfazejos. “ Lembrar passa. Só esquecer é eterno.” disse Paulo
Leminski61. Quanto não há de ser descoberto ainda pela incansável arqueologia
para que se constate a existência de, senão peças trágicas inteiras, ao menos alguns
gérmens do que nos foi legado durante os séculos VI a IV a.C? A razão conceitual
e a razão histórica provou pouco mais do que ser o domínio fragmentador do
ocaso do caminho da humanidade. Agora, talvez, seja esta a tarefa final da
humanidade depois de tantos séculos fragmentados na particularidade da história:
transpor por imagens intuitivas o que apenas legou-se por marcos e fragmentos.
Talvez a história, já tendo ganho aliados com a antropologia e sociologia e até
mesmo a mitologia, finalmente consiga mediante intuições ressuscitar mediante
palavras ou imagens – e também imagens advindas das palavras – o movimento
principal da humanidade. Como explicar a vivacidade das histórias e estórias
gregas em comparação até mesmo com a história mais recente? Sim, se sente e
conhece muito mais sobre Antígona, Édipo e Platão e Epicuro do que sobre Novas
Antígonas e novos Édipos e Newton e Rousseau quando o assunto é imortalização
de imagens. Que capacidade é esta de nos encantar sobremaneira tantos pãs, tantos
faunos e ninfas, nos aterrorizar titãs devoradores e medusas e nos encantar tão
61
Paulo Leminski. Metaformose. P.31
71
menos Persivals e trovadores e nos aterrorizar tão menos Dantes e Mefistófeles? É
certo, a humanidade se tornou mais sutil e mais profunda, mas também
recepcionou de maneira bem mais cínica e bem menos latente os ícones de sua
literatura recente, bem como de sua história recente. Somente quem sente mais
sutilmente e imerge profundamente nos escritos modernos faz jus a sutileza e
profundidade dos novos ícones. Não porque a humanidade lê menos, no geral e
comparativamente se lê muito mais, mas o conteúdo dessa leitura é cada vez mais
voltado a informações jornalísticas, a leitura é mais utilitária e com gama enorme
de informações separadas, o que faz o homem comtemporâneo pecar por excesso.
Se antes era-se ignorante por falta de informações, hoje é-se por excesso. Se na
Idade Média se acobertou muito, ou seja, muito do conhecimento de do
desenvolvimento de novos conhecimentos se legou para as igrejas e cátedras, na
idade moderna não se conseguiu ainda ser simples. Os modernos também são
culpados pelo nível de leitura, ou seja, o execesso de leitura, que se faz
necessários para compreender seus ícones, a significância deles também perde por
isso. Eles estão desapossados da força de penetração e de significação dos heróis e
híbridos de homens e animais da Grécia. A subjetividade agigantou-se na
humanidade e a objetividade de um Homero o qual não dizia eu, mas fazia eu,
sempre com vistas à totalidade da estória onde vários eus se imbricavam sempre
voltados para a imagem da totalidade do feito62. Quando nossa época foi capaz de
dissolver os eus de uma estória em nome de um feito maior? Quando que o
modelo cego de egos das personagens, e ainda assim personagens perpetuadas
para todo o sempre de uma Ilíada ou Odisséia, ocorrem novamente? As
referências sutis para múltiplas situações e críticas intelectualizaram demais a
literatura e os dramas na modernidade.
E nossa época ainda sofre dos males do excesso de jornalismo, excesso
de informações, a velocidade dos fatos, a incidir em uma velocidade vertiginosa e
labírintica pelas quais o limite entre fatos e acontecimentos se torna
inapreenssível. O fato parece estar desvinculado do acontecimento, se existe uma
notícia local ela parece ser apenas produto da imaginação, basta percorrer os
62
Para isso, ver Benjamin, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão.
72
diferentes canais para perceber a mentira ou descontinuidade das notícias, para os
fatos e , em seguida, para os reais acontecimentos. Graças a rede mundial de
computadores, parece ter ressurgido a escrita perene, ainda que pelas vias digitais,
pois difundiu maior amor ao ato de escrever63.
O futuro da antiguidade é questionável. E mesmo com evoluções na
possibilidade de escrita e publicação, o futuro da escrita está ameaçado. O
conhecimento pré-científico, já tão destroçado, será bagagem de esotéricos? Ou o
futuro apresenta a mínima possibilidade de abrigar homens tão mais sábios em
comparação com os quais os homens de outrora pareçam insensatos e ingênuos?
A pergunta que fica em suspensão é: até quando o helenismo será algo a parte, a
ser interpretado e reinterpretado e não visto como parte nossa, até quando a grécia
antiga ainda correrá riscos de se tornar civilização perdida? Como se não
bastassem, Winckelmann,Goethes, Hölderlins, Schopenhauers, Nietzsches e, vá lá,
Freuds64 a incansavelmente nos dizer que, sim, os helenos estão aí, no meio de
nós!
• Considerações sobre a Estética e a arte de F. Schiler ( A arte é liberdade
no fenômeno, o teatro é uma instuição moral. )
63
Platão consegue ser um dos primeiros homens a imortalizar realmente a escrita. Com o perdão do
termo jornalístico, ele deve ter criado verdadeira linha editorial para seus escritos. Isso explica sua obra
chegar até nós na sua totalidade: alguns homens bem instruídos proporcionaram sua perpetuação. O
que já não aconteceu com Aristóteles. Ao comparar os estilos de um e outro se percebe o valor superior
que Platão confere à escrita. Platão confere espírito único, porém não linear, à seus escritos. Espírito a
perpassar por toda obra com raciocínios bem delimitados. Também seu estilo enxuto é o contraexemplo à toda história literária seguinte, com exceção de alguns homens, feito A. Schopenhauer: cada
palavra tem peso suficiente para que se evite a necessidade de explicações mais delongadas, para que o
escrito ganhasse a confiança de um homem íntegro que, ao evitar palavras desnecessárias, é bem
ouvido. Aristóteles já caminha para outro lado: da exposição didática, com repetição por vezes logo na
frase seguinte, sem ornamentos literários ou estilo bem definido.
Quem sabe por quais ritos iniciáticos, já que a doutrina platônica estava repleta da doutrina órfica por
todos os lados, e por quais pactos entre aristocratas, a obra de Platão chegou inalterada até nós. O
quanto é graças a ele também que os helenos não se tornaram uma civilização perdida. A sua ilustração
com mitos próprios e suas referências sobre mitos adversos e até mesmo suas críticas à Homero e às
tragédias abriram portas para a interpretação e reinterpretação de mitos entre nós.
64
A cultura helênica é tão rica e ao mesmo tempo tão forte que até mesmo más interpretações são
enriquecedoras.
73
Desde o início de seu projeto estético, Friedrich Schiller busca
confrontar a possibilidade negada por Immanuel Kant, na Crítica da Faculdade do
Juízo, de um princípio objetivo para o belo. Abandona as concepções subjetivas
sensíveis e em parte as objetivas sensíveis e parece desejar encontrar no
subjetivismo racional de I. Kant algo que possa aduzir validade ao juízo estético
no objeto. Dizer que o “belo apraz sem conceitos” e dizer que o juízo de gosto
apenas pode pretender universalidade é o primeiro passo para tentar entender o
porquê do belo ser universal e subjetivo: Por mais que elenquemos conceitos e
qualidades pelos quais consideramos um objeto belo, estes conceitos e qualidades
jamais poderão unir categórica e irrefutavelmente a beleza ao objeto. Pode-se,
seguindo de perto I. Kant, enaltecer uma peça teatral com elogios que estão de
acordo com a boa recepção da crítica de arte da cidade, de acordo com adequações
da performance aos requisitos de um famoso manual de estética francês, mas,
porém, o que vale, finalmente, é o assentimento positivo ou negativo do
espectador e sua própria sensação de prazer ou desprazer frente ao espetáculo. A
comparação com o cozinheiro é bem precisa: por melhor que seja não pode
antecipar e definir a reação de prazer ou desprazer sentidas por aqueles que irão
apreciar sua comida. Dizer que o juizo estético é universal e subjetivo significa
dizer que, ainda que seja impossível definir no objeto as qualidades pelas quais se
aduz que ele é belo, todos estão propensos a reconhecer a beleza. Lembremos que
existem diferenças entre juízo de gosto e juízo do belo, a principal delas consiste
em que o juízo de gosto refere-se ao agradável e o juízo do belo à beleza.
Em correspondência sobre o belo com F. Schiller (Dresden, 4 de
fevereiro de 1793) , Christian Gottfried Körner tenta introduzir à F. Schiller
alguns conceitos sob uma tábua de classificações, regida principalmente pelos
conceitos de força dominante e forças subordinadas, que, se alcançassem seu
desenvolvimento, renderiam uma ótima teoria estética. Contudo, foge da proposta,
como bem sublinha F. Schiller na carta seguinte, de construir princípios não
74
arbitrários, já que esses próprios conceitos “força dominante” e “forças
subordinadas” são bem arbitrários65.
Para F. Schiller faz-se necessário conceber a forma pela qual nos
deparamos com o belo e a definição desta fruição. Inicialmente ele define três
formas de nos comportarmos frente à natureza: Passiva, ativamente e ambos ao
mesmo tempo. Passivamente, apenas sentimos os seus efeitos, ativamente
procuramos determinar seus efeitos a as duas formas ao mesmo tempo quando os
representamos. Dentre esta última forma, ele separa dois modos de representação:
Quando estamos intencionalmente voltados para seu conhecimento, nós
observamos e quando nos deixamos convidar para a representação, nós
contemplamos.
Seguindo os passos de I. Kant, ele espera conferir à sua teoria uma
adenda e instaurar uma nova estética pela qual o princípio do belo pudesse ser
objetivo. Assim como a razão pode ser dividida em teórica ou prática de acordo
com o seu objeto: conceitos ou ações, cada uma destas podem serem divididas em
duas partes se diz respeito a adequação à sua forma. A forma apropriada da razão
teórica é o conceito e quando encontra o objeto imediato, da intuição, empresta a
similaridade de sua forma pura, conceitual, para tentar abarcá-lo – a isso se chama
juízos teleológicos-. A mesma similaridade ocorre na razão prática quando ela se
dirige a ações não-livres, isto é, não determinados no interior. Como a fruição é
uma ação e por ela nos sentimos livres de quaisquer juízos lógicos
majoritariamente, F. Schiller supôs que sua forma remete à razão prática e, por
similaridade à liberdade, proporciona liberdade no fenômeno. Faz-se necessário
ressaltar desde o início que este é um conceito forjado por F. Schiller sob a obra
kantiana já que esta “liberdade no fenômeno” advém de uma similaridade da
liberdade e não de liberdade propriamente dita. Seria melhor para F. Schiller
considerar uma nova teorização estética ainda que sob as bases e terminologias
65
SCHILLER, Friedrich. Kallias ou Sobre a Beleza. Ps. 48 a 51.
75
kantianas do que propor um avanço da teoria de I. Kant já que para qualquer leitor
leigo de I. Kant liberdade e fenômeno são termos opostos.
Essa teorização de F. Schiller mais parece um enxerto da teoria de I.
Kant cujas ramificações não estão livres dos excessos de conceitos e da péssima e
desarmoniosa aparência da estrutura final da planta kantiana como um todo.
Quem em sã consciência consideraria as críticas livros que proporcionam leitura
fluida, esteticamente aprazível? Na “Educação Estética do Homem” F. Schiller já
parece encontrar tom próprio e, já munido de crítica apropriada à teoria de I. Kant
e aos kantianos, já encontra terreno próprio para uma visão panorâmica da
importância da estética e da arte como elo de ligação da passagem do homem do
estado de natureza para o estado de moralidade; da sensibilidade para a
inteligência. Ao mesmo tempo em que abarca as noções do contratualismo – o
que viria se tornar marca da filosofia moderna- , demonstra aguçada visão de uma
ontologia da atualidade e, mediante momentos de discurso inflamado e guerreiro,
nos mostra panorama rico sobre a situação do estado moderno em que pese
extrema organização e estrutura mas em que se subtrai o talento e o espírito
individual no qual os membros possuem importância tão somente enquanto partes
que formam um todo na coletividade, porém nada ou quase nada representem na
sua individualidade, situação em que, infelizmente, nenhum homem poderia
fazer frente a qualquer homem da grécia. Uma certa glorificação do helenismo?
Sim, feito estava em voga em sua época com Winckelmann e outros entusiastas e
redescobridores da grécia. Porém, não sem razão e não sem apontar as qualidades
e superações da modernidade a qual se consolidou pela inteligência e organização,
contudo ainda deixou muito a desejar no quesito produções do espírito, o que F.
Schiller procura sanar com o desenvolvimento de sua visão estética única e ao
tentar convencer os dirigente das nações, em plena época na qual se grita
esclarecimento por todos os cantos, de que o teatro também é uma instituição
moral.
76
• A Filosofia Alemã e a Tragédia Grega
Existem muitos autores que vêem na mitologia e seu ramo, a
tragédia grega, como partes da história grega desvinculadas de apelos religiosos,
sejam dogmáticos ou não. Uma distinção aqui: dogmatismo é uma palavra
judaico-cristã que significa tomar o valor como verdade. As epopéias são
caracterizadas por histórias nas quais se misturam heróis e deuses. A manifestação
dos deuses é efetiva e pode-se observar os deuses encarnados nas histórias para
agirem diretamente na trama como bem mostra os clássicos Ilíada e Odisséia. O
fantástico está presente em toda parte. Armaduras forjadas por Mercúrio, Cilas no
meio do oceano, serpentes a querer devorar homens, tudo isso demonstra a
atuação direta dos deuses.
Toda sorte de deuses está descrita nas epopéias homericas e, assim como
hoje existem as canções originárias de raiz e as canções populares ou músicas
criadas por músicos os quais vivem o imaginário de suas composições e possuem
longa experiência e técnica e existem músicos cujas músicas podem ser vistas
como subprodutos destes, assim também existe na grécia antiga fábulas nas quais
os deuses são descritos de forma jocosa, leviana e até mesmo maléfica.
Comparada com estas, a epopéia homerica é nobre e nela se vê a entonação
elevada dos grandes descendentes da estirpe grega.
Os alemães possuem uma receptividade enaltecedora da grécia antiga. A
idealização da manifestação dos deuses pode ser vista nas esperanças em declínio
do Hipérion de F. Hölderlin. O personagem se deita nas escarpas gregas desejando
ouvir entre os ventos os murmúrios dos deuses. Se trata da visao poética na qual
divindades e natureza estão estritamente ligadas. A decepção da falta dos deuses
se manifesta na constatação de que o povo da atualidade já não corresponde ao
povo da antiguidade. Imerso na valorização da humildade, nos traços da dor e do
sofrimento, o andar cabisbaixo, os olhos voltados para o chão diferem em muito
do que quer que seja dos traços leves da cultura helênica, idealizada pelos
alemães. F. Nietzsche já possui interpretação mais realista da situação: por trás do
porta estandarte da bela cultura produzida pelos gregos existiu muito suor e
77
sangue de escravos. Por mais eugênica que pareça, a afirmação nietzscheana para
uma cultura elevada se realiza nos seguintes moldes: para a manifestação de uma
cultura elevada, uma arte elevada, um pensamento elevado, é necessário separar o
que é populacho, servil, do que é nobre. Ele tampouco priva a classe dos
chamados falsos homens do conhecimento. Cientistas, contratualistas,
epistemólogos e moralistas de toda classe muitas vezes não passam de
pesquisadores pouco preparados procurando suprimir sua falta de visão com a
erudição.
Arthur Schopenhauer se mostra um filósofo desprovido de exageros de
palavras e também sem meias palavras. A tragédia consiste na glória dos injustos e
na vitória dos maus. Sob esta interpretação, Édipo Rei consiste no martírio de um
homem submetido aos preceitos do oráculo. Com o contexto de uma sociedade
fundada na boca lancinante da sibila para a tomada de decisões, uma sociedade
que desviou todo o curso de um rio para sua nascente. Se a tragédia esquiliana
retrata a queda dos Titãs e dos reis, a tragédia sofocliniana traça a linha do destino
dos homens submetidos ao oráculo. Assim, o veio interpretativo de Arthur
Schopenhauer incide na primeira obra publicada por F. Nietzsche: O Nascimento
da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. A tragédia grega se situa no mais alto
posto da produção poética, mas também é um ultimo fulgor da chama acendida
por Homero. A diferença entre um e outro consiste em que F. Nietzsche não
alimenta elogios e admiração por Platão e sua obra. Sócrates racionalizou a
tragédia. Para que algo pudesse ser bom deveria ser consciente. De acordo com o
oráculo Sófocles produz instintivamente e Sócrates conscientemente.
A
superioridade de Sócrates está em ter consciência do que faz e fala no limite de
seu conhecimento, inclusive daquilo que desconhece.
Acima da tragédia somente a música para Arthur Schopenhauer. A
manifestação do belo consiste na expressão da Idéia manifestada sobre o conflito
da emergência de forças primordiais ou apuradas da Vontade. A tragédia possui a
beleza da expressão da idéia da humanidade confluída com a força explosiva da
representação, da atuação. E a capacidade de imprimir diversas sensações no
público. Somado a isto, a poesia, o coro trovejante, a força dos gestos e a força da
78
trama faz da tragédia o mais alto gênero poético na classificação de Arthur
Schopenhauer.
A expressão da idéia da humanidade consiste em construções ao mesmo
tempo aparentemente simples e imortais. Diz ele:
“ Como Cervantes fala bem do sono quando, para exprimir o
alívio que ele traz às dores morais e corporais, diz: ‘ É um manto que cobre
completamente o homem.’ “66.
O caráter imperecível da poesia é demonstrado pelo significado das
palavras através dos tempos. Independentemente de qual século se data a obra
poética, seu significado, permanence completamente inteligível e imaginável. As
oceâniades a aliviar a dor de Prometeu continuam perfeitamente visíveis mesmo
para nossa era educada sob os ideais e o imaginário cristão. O poeta pesa suas
palavras em balança de ouro. Além de soar bem, as palavras infundem imagens
extemporâneas as quais são tão imortais quanto as estações. A tragédia grega
exige sagacidade para que a atenção do público seja despertada. No romance o
escritor pode contar com a atenção a longo prazo de seu público, isto é, o leitor
passará vários dias lendo e apreciando a obra. Para a apresentação da peça trágica
isso já não ocorre. A peça deve estar estruturada de tal maneira que em poucas
horas a história deve ser contada. E o pequeno espaço de palco reduz o campo de
idéias e cenários a serem descritos pelo tragediógrafo. Ele não pode reproduzir no
palco viagens de carruagens, batalhas gigantescas e visões epifânicas.
O coro é um artifício da tragédia grega que se modificou bastante durante
sua evolução. No Prometeu Acorrentado o coro é caracterizado pelas oceâniades
e, diferente do coro de Édipo Rei, trava diálogo ativo em que ora chora pelo
sofrimento de Prometeu e o consola, ora o induz a revelar o destino de Zeus. Em
Édipo Rei o coro, descrito como “12 notáveis tebanos” é passivo e têm como
única função narrar os acontecimentos entre um diálogo e outro.
66
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. §50 p. 253.
79
O que há de mais interessante na tragédia grega é que ela termina e se
inicia com a catástrofe. Prometeu está acorrentado desde o início da peça. Édipo
Rei se inicia com a cidade tomada pelas chagas e infertilidade. O cidadão grego se
dirige até o cenáculo já esperando o cenário cataclismático do início ao fim.
Inexiste apelo à pequenos romances, aberturas leves com cenas familiares
ou idílicas como tende a acontecer com a tragédia moderna, veja-se Afinidades
Eletivas de J. Goethe. Mais surpreendente ainda é o fato da tragédia grega revelar
desde o início, ainda que os cidadãos desconhecessem as tão famosas histórias
reformuladas pelos tragediógrafos, o mistério e o acontecimento condutor da
história. Portanto, o caráter cênico continua sendo um dos elementos motrizes da
tragédia grega, ainda que os historiadores o neguem ao constatarem que sequer as
feições dos atores eram conhecidas, influenciados pela investigação inflexível da
arqueologia, influenciados pela descoberta das conhecidas mascaras trágicas e
cômicas. Ainda que tal asserção fosse verdadeira, a sonoridade dos diálogos, o
ardil dos personagens para as respostas e o treino dos atores para que isso
alcançasse a elevação digna da contrução e habilidade poética seria suficiente para
categorizar o elemento cênico como um dos principais impulsionadores da
tragédia grega.
80
CAPÍTULO QUINTO - O IMPULSO CRIATIVO COMO FUGA DO
PESSIMISMO EM ARTHUR SCHOPENHAUER.
Uma vez que os conceitos básicos para a abordagem da metafísica do
belo foram reconstruídos, podemos dissertar a respeito de suas implicações na
filosofia schopenhauriana e alcançarmos o objetivo geral do trabalho.
Quem lesse esta tese até aqui desconhecendo o tema central, diria que
trata-se de um elogio à intuição. Não estaria enganado.
A intuição não apenas é a forma de conhecimento responsável pela
famigerada razão como também a supera. É exatamente nesta superação que o
impulso criativo aparece. Afirmar que o conhecimento do gênio, do artista, supera
a razão pode parecer o mesmo que afirmar que ele passa por esta. Não é o que
acontece necessariamente. Pelo que vimos nas diferenças entre intuição empírica e
intuição estética, o gênio artístico vislumbra quase todas as imagens possíveis das
coisas com um mínimo de contato com elas A intuição empírica é o pressuposto
da razão, a intuição estética é livre das formas gerais do conhecimento que
alimentam a razão. Eis a grandiosidade da intuição para o conhecimento.
Quem lesse os primeiros capítulos deste trabalho poderia afirmar ter
notado certa rivalidade com a ciência ao percorrer a teoria do conhecimento
próprio da arte. Não estaria enganado.
Ao contrário do que afirma a psicologia, a arte é conhecimento objetivo,
o mais objetivo possível.
Toda a descrição da arte como ‘expressão da
subjetividade do artista’ seria, sob este ponto de vista, no mínimo estúpida. Ainda
que o artista muitas vezes parta do particular e expresse somente particularidades,
ainda é para revelar o que nele ou nelas há de universal. O artista é um pintor não
um retratista, um poeta, não um historiador, enfim, um criador não um reprodutor.
Tampouco suas obras são auto-biografias nas quais ele expurga seus males ou suas
convicções com intuito terapêutico. É claro, não se pode fugir do que se é, mas o
81
artista busca acima de tudo a universalidade na obra, logo, não podemos deixar de
ver o artista que utiliza a arte tão somente como manifestação de sua subjetividade
como um artista menor, se é que podemos atribuir-lhe o epíteto de artista. Aquele
que manifesta apenas sua subjetividade em suas obras, está para o artista como o
amador está para o profissional. O artista apresenta o conhecimento mais objetivo
possível.
Parece óbvio, mas o vigor com que Arthur Schopenhauer explicita o
conhecimento como advindo da força primária, do desenvolvimento da Vontade
nos corpos, constitui todo o substrato do teor revolucionário de sua filosofia, o que
se não colocou por terra a filosofia racionalista, ao menos a questionou com
tamanho rigor que, quem quer que tenha tido contato com essa metafísica
encarnada, não pôde se furtar de ver com outros olhos todo o discurso racionalista.
Parece óbvio dizer que não há razão sem corpo, mas ninguém dedicou-se à
questão com tanta força quanto Arthur Schopenhauer, que daí conclui outra
aparente obviedade que, não obstante a qualidade e clareza de argumentação, não
foi suficiente para eliminar do ensino de filosofia os ensinos da Igreja do
Racionalismo : não há representações abstratas sem representações intuitivas. É
inevitável, ao abordar esta filosofia, percorrer este curso.
Se já no século XIX a ciência já tinha a pretensão de resolver os
problemas da existência, ser o ideal de glória da humanidade, e até mesmo a
manifestação da força primordial do mundo, hoje nos deparamos, com a
descoberta do código genético – seja lá o que isto signifique ou presuma significar
– e muitos avanços da técnica científica, com promessas de completa salvação da
humanidade mediante os auspícios da benfazeja razão. O filósofo da vontade
demonstrou que tudo que ela tem de grande é concedido graças a intuição do
mundo e a máxima extensão de seu domínio não pode ultrapassar a cadeia de
causalidade no mundo, lhe sendo impossível extender os limites para os princípios
ocultos subjacentes e tangentes às forças primárias do mesmo e muito menos – o
que é menos do que impossível ? – resolver os problemas existenciais dos homens,
os quais ultrapassam em muito a cadeia de causalidade dentro das limítrofes dos
82
fenômenos. Por mais que tenhamos instrumentos para medir a força da gravidade,
ela, a constituição íntrinseca dela, pela qual temos todos esses efeitos passíveis de
medição, continua tão misteriosa quanto o era durante todo o período anterior às
leis de Isaac Newton. A quididade disto que nos faz permanecer junto da cadeira,
e esta junto ao solo, continua sendo um mistério indecifrável. E isto para todas as
outras forças primárias do mundo. O fato deste instrumento chamado razão
prometer mais do que realmente pode, constitui toda a ilusão da ciência e fonte de
sofrimento. Ao se deparar com esta sutil verdade - a ciência não desvela a essência
do mundo, desvela sim a mundaneidade do mundo - , o homem sofre. Sofrimento
intensificado quando o homem descobre espantado que, ao contrário de constituirse em conhecimento desinteressado, a ciência tal qual testemunhamos, com todos
os seus diligentes trabalhos, serve à voracidade da Vontade em proporções
descomunais. Sofrimento intensificado também pelos resultados da detenção do
poderio técnico-científico nas mãos de poucos utilizado para subjulgar muitos,
intensificando rapidamente o impulso destrutivo da vontade, através do qual ela
devora a si mesma. Quanto mais tarde o homem descobrir que não se trata de
conhecimento puro, mas de conhecimento submetido aos desígnios autofágicos da
Vontade, maior será o sofrimento.
Frustradas foram as tentativas dos físicos procurarem conhecer um
princípio essencial físico do mundo, frustradas foram as tentativas dos químicos
procurarem conhecer um princípio essencial químico do mundo, frustradas serão
as tentativas dos geneticistas ao procurarem conhecer um princípio essencial
biológico do mundo. Somente ingênuos ou entusiastas da ciência insanos podem
anunciar que o homem poderá construir máquinas orgânicas, cibernéticas, que
substituam os homens em todas suas funções e anunciar uma inteligência artificial
superior ao conjunto de capacidades psíquicas do homem; somente quem jamais
lançou um olhar no fundo das funções fisiológicas e na anatomia do corpo
humano e jamais se chocou com a eficácia das funções orgânicas complexas
dentro dessa matéria escura, a qual, não obstante, produz luz, e toda a capacidade
de criar e interpretar metáforas por essa inefável conjuntura psíquica chamada
mente, poderá incentivar tamanha bobagem. Só o espírito entende o espírito,
83
apenas o sujeito acessa a essência do mundo. A intuição eleva-nos à essência do
mundo. A mesma intuição responsável pelo modo de conhecimento racional, o
científico, pode nos elevar até o substrato do mundo, mas mediante a sua parte
aprimorada, a intuição estética, mediante o olhar artístico.
O artista consegue abrir janelas para o substrato essencial porque não
nega impulsos do espírito. O artista faz de sua intuição da conjuntura, o veículo.
De seus olhos, os nossos.
A forma de conhecimento proporcionada pelo olhar artístico, pelo
produto do impulso criativo, é a mais excelente de todas. Contudo, isto não
constitui motivo de entusiamos precipitados de quem pensa que, por isso, a arte e
o impulso criativo do artista seriam as maiores forças presentes no cosmos. Na
filosofia da vontade de Arthur Schopenhauer, vale lembrar, o conhecimento é
secundário. Se podemos pensar a razão como secundária ao conhecimento, nem
por isso podemos inferir que aquilo que engendra o conhecimento propriamente
dito, o conhecimento primário, a intuição, seja a força maior no mundo, como um
primeiro e definitivo motor. Cosmologicamente pensando, o conhecimento é
secundário, é uma das formas de manifestação que a Vontade encontrou para
refletir sobre si mesma e somente existe em decorrência da manifestação desta nos
organismos. Cumpre enfatizar essa guinada na filosofia ocidental:
“Não se trata certamente de um espírito cognoscente, porque
Schopenhauer descreve a Vontade como um “impulso cego” sem objetivo e
finalidade, jogando-se impetuosamente à existência. Aqui precisamente
encontra-se a Virada radical por ele impressa à filosofia em relação à
tradição racionalista do pensamento ocidental” 67.
67
MAIA, Muriel. A Outra Face do Nada. p.54. O restante do parágrafo: “ Segundo sua própria avaliação
deste fato, seria ele o primeiro filósofo a afirmar que o conhecimento é algo “secundário” no mundo. Eu
cito: “… que, em primeiro lugar, a Vontade ingressa em nossa própria consciência sempre enquanto o
primeiro e fundamental e afirma juntamente sua inteira primazia sobre o intelecto, o qual, pelo contrário
manifesta-se como inteiramente secundário, subalterno e condicionado. Esta comprovação é tanto mais
necessária, porque todos os filósofos anteriores a mim, do primeiro ao último, colocaram o ser próprio ou
caroço do humano na consciência cognoscente; por isso, conceberam e apresentaram o eu ou, em muitos,
esta hipóstase transcendente do eu, chamada alma, enquanto primeira e essencialmente cognoscente, sim
pensante, e devido a isto só de modo secundário e derivado enquanto querente. Este erro básico, ancestral e
ocorrido sem exceção, este enorme proton pseudos (este enorme passo em falso) [em grego no original ,
ERB.] e fundamental ústeron próteron ( a colocação do posterior como anterior; troca de causa e
84
O conhecimento proveniente da intuição, sendo um dos modos do
conhecimento, também é um modo da manifestação da vontade.
A grande questão aqui, fonte da perplexidade originadora deste trabalho
é: Não existe grande contraste entre criação e negação? A resposta é sim, porém o
que há de negativo no percurso da contemplação mediante o produto da criação e
na própria criação é justamente o que nos alça ao conteúdo mais positivo do
mundo e faz desta estética de Arthur Schopenhauer uma estética afirmativa.
Sim, a criação é anterior a produção. Mas a criação de nada seria sem sua
externalização na matéria. O trabalho na matéria é essencial para novas criações.
O gênio reveste sua produção da aparência do improvisado, do
excêntrico, do mágico para aumentar o efeito fantástico desejado pelo público,
feito assinala F. Nietzsche no Humano Demasiado Humano. Ele quer para si estas
características pois elas ocultam o que no seu trabalho há de transpiração, de
labuta, de humano e imprime a ele a característica romântica do divino, do
místico. Quantos gênios mantiveram suas produções secundárias longe do fogo?
Quantos abriram seu ateliê para outros, quantos descerraram as portas de seu
conservatório musical? O dramaturgo considerado gênio possui a característica de
traçar qualidades universais de personagens somente enquanto define aquelas as
quais consegue definir, ocultando tantas outras necessárias para se constituir o
indivíduo. O espectador enxerga apenas aquelas e vê estas como desnecessárias e
como tal indignas de perpassar a caneta do gênio e , assim, julga que o gênio
descreve pessoas mais universais do que as existentes.
Por mais que se elucide e desvele a glorificação do gênio ela ainda tem
papel intenso na contemporaneidade. Talvez seja a necessidade lúdica da
juventude e da humanidade em geral a almejar quimeras vivas que, melhor que um
deus, nos desenhe e represente características de objetos melhores que os da
realidade e enquanto se enaltecer a arte sempre restará este sentimento a tentar
consequência) [Idem] deve ser primeiro que tudo eliminado, e pelo contrário, devem ser trazidas à plena
consciência as propriedades naturais das coisas “ ( Citação dentro da citação: Complementos do Mundo
como Vontade e Representação de Arthur Schopenhauer 256-257).
85
trazer mais realidade, realidade onírica, é claro, às produções artísticas do que os
homens e objetos testemunhados no dia-a-dia. Por outro lado, talvez nossa época
tenha perdido um pouco desta magia especificamente por conta desta visão mais
realista da arte. Artistas tenham ocupado a posição de loucos miseráveis ao invés
de excêntricos amáveis, mas nem por isto deveríamos deixar de nos incubir a
tarefa de desnudar tal glorificação do gênio, sem radicalidades, é claro, a qual faz
de ociosos pretendentes a artistas exímios poetas, escritores, músicos e pintores, os
quais podem a seu bel prazer desqualificar a verdadeira arte com poesia de boteco,
pastiches de alcoólatras, ruídos e quinquilharias mil a que os próprios donos
julgam terem ganhado de dote ao terem casado com as próprias musas. Com a
elite isto também ocorre, recebendo o nome de arte abstrata, música atonal e
poesia concreta a que o público recebe com cara de estupefato para disfarçar a
cara de completa
incompreensão
de algo que não possui nada a ser
compreendido. É claro, nem todo tipo de arte que se enquadra nesses gêneros é
pueril. Alguns artistas bons e ingênuos deixaram sua arte decompor-se a tais
subprodutos do século XX.
A estética de Arthur Schopenhauer é afirmativa porque, não obstante
negar o mundo fenomênico, afirma o conteúdo mais objetivo do mundo, mesmo o
fazendo mediante essa negação. Ao negar a parte limitada ao continuum tempo
espaço do objeto fenomênico - tudo aquilo que podemos dizer como existente
somente em dado tempo e dado lugar, as determinações não essenciais do objeto -,
o impulso criativo projeta o conteúdo mais objetivo dos objetos, a Idéia. O mesmo
acontece com o sujeito, que anula toda sua vontade individual criada e
desenvolvida no tempo e espaço.
A arte permite o acesso à aparência essencial da unidade primordial,
anulando o princípio de individuação e o princípio de razão suficiente, fulgorando
a beleza pura das idéias.
A arte serve como um narcótico às avessas, pois retira o contemplador da
irrealidade e o transporta para a suma realidade das aeternae veritates, das formas
86
eternas cujas cópias anseiam tanto retomar. Destrinça o véu de Maia68 abrindo um
vão para a verdadeira realidade e livrando temporariamente seu feliz contemplador
das contingências do mundo.
“ Mas vem uma ocasião exterior ou então um impulso interno
que nos arrebata para bem longe da infinita torrente do querer, que arranca
a consciência da sujeição da vontade; daí em diante, a nossa atenção
incindirá sobre os motivos do querer; ela conceberá as coisas
independentemente da sua relação com a vontade, isto é, irá considerá-las
de uma maneira desinteressada, não subjetiva, puramente objetiva; dar-se-á
inteiramente às coisas, enquanto elas são simples representações, não
enquanto elas são motivos: iremos então encontrar natural e imediatamente
esse repouso que, durante a nossa primeira sujeição à vontade,
procurávamos sem cessar e que nos fugia sempre; seremos perfeitamente
felizes” 69 .
Ou seja, proporciona ao indivíduo a fuga de sua vontade individual
empreendendo a anulação do sofrimento inerente ao conflito interno da Vontade; e
então já não podemos mais dizer que se trata de um indivíduo impregnado pela
angústia do querer, dos desejos. Apenas o puro sujeito do conhecimento cintila
aqui. A partir disso, não podemos tampouco nos referir ao contemplador pelo
nome próprio e nem esperar que ele tenha sob os olhos o objeto fenomênico, ao
menos suas características fugazes submetidas ao tempo e espaço – o que faz dele
fenomênico - .
Nem por isso podemos dizer que o chamado filósofo do corpo cometeu a
insensatez de julgar que essa contemplação se dá com a negação da sensibilidade;
não, como bem lembra Muriel Maia citando Ulrich Pothast:
“Desaparecida a “pessoa” neste ser cognoscente, a base que resta
ao conhecimento só pode ser, como o observa Ulrich Pothast, “o elemento
sensível da intuição” . O intelecto, que extrai suas forças deste estofo
sensível, nada mais faz do que deixar-se cair na sensibilidade, iluminando68
69
Este termo tão caro ao filósofo, provém das tradições hindus.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 38 p. 206.
87
a. (…) só os sentidos podem presentear-nos com esta firmeza e
permanência insistente que exibe uma Idéia à consciência. Segundo ele,
deveríamos deferenciar entre duas ordens de compreensão dos sentidos na
obra de Schopenhauer: uma seria aquela em que uma sensibilidade domada
e obediente ao querer se desenvolveria de modo cego, sem objeto; a outra
seria aquela de uma sensibilidade capaz de mediatizar a arte e à qual se
poderia “sem sentimentalidade aplicar a palavra “vidente””70 .
Esse salto permite ao contemplador a incursão na forma mais primitiva
de representação e também a mais geral, a propriedade de ser objeto para o sujeito.
A partir daí, sendo essa pureza e satisfação desprendida de quaisquer vínculos
externos à simples qualidade de ser objeto para o sujeito, já não podemos
compartilhar de caprichos de pensamentos tendenciosos e de cumplicidade
duvidosa como este escrito por Marie-José Pernin:
“A originalidade schopenhaueriana nos parece, antes, estar nessa troca do sujeito e do
objeto, própria da contemplação estética, que comporta uma dimensão religiosa
ERB.]”
[grifo meu,
71
Nem deste, escrito por Alexis Philonenko:
“Podríamos ir sensiblemente más lejos y decir que el artista o el
hombre de genio – por oposición a la condición humana ordinaria
sojuzgada bajo el peso del egoísmo y del interés – es la moralidade
inmediata [Grifo meu, ERB.]. Sin interés, sin celos, atento a lo que no es
él (por perderse, en el <<sichverlieren>>) que el genio es espontaneamente
augusto y moral [Idem.]. Mientras quer nuestra naturaleza nos exige un
esfuerzo considerable para llegar a la moralidad, tanto el genio como el
artista se elevan sin esfuerzo hasta ella”72
Durante o salto contemplativo inexiste vínculos isolados com a
moralidade e religiosidade. Pode-se ter o sentimento religioso e a moralidade
intensificados como consequência de uma apresentação teatral, após o
70
MAIA, Muriel. A Outra Face do Nada. ps.159 e 160.
PERNIN,Marie-José. Schopenhauer: decifrando o enigma do Mundo. p. 114.
72
PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer; una filosofia de la tragedia.. p. 172.
71
88
arrebatamento de uma pintura com tema religioso ou ao escutar-se música sacra
ou marcha militar – para qual I. Kant tinha singular apreço -. F. Schiller expressa
na sua Teoria da Tragédia a singularidade do teatro para com fins morais,
indicando-o como instituição moral. Somente a reminiscência do salto pode
formular preceitos morais ou religiosas, mas não durante o salto pois o sujeito
segue de todo livre de conceitos, impedido assim de chegar a conclusões morais
ou religiosas. Apenas a imersão do sujeito no objeto se presta a considerações
aqui.
A. Schopenhauer escreve com tal economia de palavras (mesmo tendo
escrito o tanto que escreveu), presteza e inteligência que ninguém com inteligência
mediana poderia escrever mais do que o todo da obra ou tematizar mais do que a
dimensão do tema sem que se corresse o risco de errar. E assim acontece com
todos os comentadores que se prestam a , por trás da admiração ao filósofo,
orgulhosamente defender um obtuso e obcecado ponto advindo de si próprios. O
que a concisão e profunda clareza da filosofia de A. Schopenhauer não deixa
passar despercebido.
Não seria difícil alguém objetar que, mesmo a estética sendo no final das
contas afirmativa , mesmo assim não deixa de negar o mundo com o qual mais
temos contato durante toda as nossas vidas. Sim, nega-o, em parte e apenas
durante o salto contemplativo. Não nos esqueçamos, porém, que a arte se
apresenta efetivamente nos objetos fenomênicos e mediante os objetos
fenomênicos.
Arthur Schopenhauer assinala a produção artística como secundária à
concepção artística que a engendrou. Contudo, o artista não manifesta a arte como
um efeito mágico que desliza instantaneamente pelos dedos. Tal qual o escultor ou
o pintor ou o músico aprende sua arte a executando. E mais do que isso: não
apenas através do material utilizado para erigir a obra de arte o artista se mune dos
objetos fenomênicos como também os caracteres ilustrados na obra reivindicam
dos objetos fenomênicos a roupagem e então permite ao público da arte o usufruto
89
da Idéia. Tudo isso mediante o mundo fenomênico. Assim, para o poeta o papel e
as palavras – invólucros advindos das representações no mundo utilizados para
mediatizar o processo entre particulares e universais -, para o pintor, o quadro e a
tintas e as imagens – invólucros de representações do mundo que nos levam à sua
universalidade. Assim,
“A arte reproduz as idéias eternas que concebe por meio da
contemplação pura, isto é, o essencial e o permanente de todos os
fenômenos do mundo; aliás, segundo a matéria que emprega para esta
reprodução, toma o nome de arte plástica, poesia ou música” 73
Sendo o fundo das coisas aquilo que transparece pela arte , temos nela e
por ela o vislumbre da essência do conteúdo dos objetos da vida, vislumbre
mediatizado pelos objetos da vida para mostrar o que nela está oculto, o que os
entes e seres esforçam-se por exteriorizar. A arte aflora a flor no galho espinhudo,
aludindo grosseiramente a Friedrich Nietzsche.
A filosofia também é arte, porque almeja, mediante os conceitos,
transparecer o que fica imerso nas profundezas ocultas do mundo, trazer à luz o
que não pode ser visto senão pelos olhos da intuição, por isso, como a poesia, se
mune de representações do mundo para extrair conceitos ou os extrai de outros
conceitos para mostrar o que nele oculta-se. E o que nele oculta-se não pode ser
vislumbrado senão por metáforas pois é aquilo que não foi objetivado pela
Vontade. Só o espírito compreende metáforas. Só o espírito compreende o
espírito, Empédocles disse bem.
Quem quer que tenha vislumbrado a grandiosidade metafísica e os reinos
possíveis arrancados do fundo escuro do mundo mediante os conceitos de
qualquer grande filosofia, não o fez diretamente pelos conceitos mas por uma
transformação dessas palavras na substância da mente que o levou a
intuitivamente emprestar os olhos do filósofo.
73
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 36 p. 194.
90
• CONCLUSÃO
Afirmar que a intuição estética originadora do impulso criativo permite a
fuga do pessimismo porque anula a vontade individual não explica como ela
proporciona a fuga. Faz-se necessário saber mais fundo o que implica a vontade
individual e qual a sua relação com o pessimismo.
Uma vez dissociados no mundo, mediante o princípio de individuação,
todos os seres empregam suas forças em um embate incontido para se
assemelharem ao modelo de sua espécie e voltar à unidade primordial da Vontade.
Possuem um instinto visceral de desejo de retorno ao estatuto fora do tempo e
espaço.
Basicamente é esse o sofrimento primordial, quase uma lei orgânica,
tentativa de se livrar da ilusão projetada pelo tempo e espaço. Contudo, somente o
homem pode ter noção dessa ilusão, por isso sofre mais. E a razão lhe traz um
sentimento de poder muito forte, mas ela só pode se extender até o limite do
mundo no tempo e espaço.
Mediante sua capacidade única para o conhecimento o homem pode
compreender que possui uma parte de seu eu erigida por esse tempo e espaço e ,
portanto, a parte mais dependente do tempo e espaço, e, consequentemente, a que
lhe traz mais sofrimento: o seu eu querente, o sujeito da volição, de onde decorre a
vontade individual.
• O Eu querente
“Não se trata certamente de um espírito cognoscente, porque
Schopenhauer descreve a Vontade como um “impulso cego” sem objetivo e
finalidade, jogando-se impetuosamente à existência. Aqui precisamente
encontra-se a Virada radical por ele impressa à filosofia em relação à
tradição racionalista do pensamento ocidental Segundo sua própria
avaliação deste fato, seria ele o primeiro filósofo a afirmar que o
conhecimento é algo “secundário” no mundo. Eu cito: “… que, em
91
primeiro lugar, a Vontade ingressa em nossa própria consciência sempre
enquanto o primeiro e fundamental e afirma juntamente sua inteira primazia
sobre o intelecto, o qual, pelo contrário manifesta-se como inteiramente
secundário, subalterno e condicionado. Esta comprovação é tanto mais
necessária, porque todos os filósofos anteriores a mim, do primeiro ao
último, colocaram o ser próprio ou caroço do humano na consciência
cognoscente; por isso, conceberam e apresentaram o eu ou, em muitos, esta
hipóstase transcendente do eu, chamada alma, enquanto primeira e
essencialmente cognoscente, sim pensante, e devido a isto só de modo
secundário e derivado enquanto querente. Este erro básico, ancestral e
ocorrido sem exceção, este enorme proton pseudos (este enorme passo em
falso) [em grego no original , ERB.] e fundamental ústeron próteron ( a
colocação do posterior como anterior; troca de causa e consequência)
[Idem] deve ser primeiro que tudo eliminado, e pelo contrário, devem ser
trazidas à plena consciência as propriedades naturais das coisas “ ( Citação
dentro da citação: Complementos do Mundo como Vontade e
Representação de Arthur Schopenhauer 256-257).
Todo engano da tradição filosófica consiste nisso: colocar a razão como
motor e elemento criador do intelecto. E, como a elevaram para os mais altos
píncaros da natureza, dela tentaram derivar todo o resto.
Primeiro somos corpos antes de sermos intelecto. Como se isso não nos
parecesse óbvio, avaliemos como isto se enseja na divisão dos seres após o
fragmentador princípio de individuação. De antemão, já reconhecendo que o
princípio de individuação se apresenta para os seres imbuídos de princípio de
razão suficiente, imbuídas das noções plenas de tempo e espaço, e que para os
animais, ainda que muitos possuam entendimento, a multiplicação das espécies
continua em pleno curso de desenvolvimento da natureza e os outros animais
transcorrem à sua frente para servir de comida, caça, dentre as necessidades de
sobrevivência e cruzamento, cópula, dentre as necessidades de perpetuação da
92
própria espécie, reconhecemos o pleno reconhecimento do princípio de
individuação, no limite, válido para seres humanos.
Isto que entra como primazia ante do que há de cognoscente no ser
humano, traça nossos destinos antes mesmo que o possamos avaliar e cada vez
que deixamos o querer para trás existem como se fosse fantasmas dos desejos os
quais nos apelam o reconhecimento da força preponderante agente. Antes de tudo
queremos e depois sabemos o que queremos. O que é protelado para muito depois
nos desejos talvez torne nossa consciência querente em incosciência querente e o
que se quis uma vez e por definitivo se perde em balbucios do que poderia se
realizar se o momento em que se deixou de agir se apresentasse novamente.
Afirmar a consciência querente significa reafirmar o primeiro lugar do querer
anterior ao conhecer e aqui não há altos e baixos, apenas anterior e posterior.
Se existe toda a ordenação dos orgãos desde a manifestação dos instintos
primordiais e desejos primordiais para então somente se chegar à razão, também
existem os graus de objetivação da Vontade nas espécies, partindo dos animais
invertebrados até se chegar nos cordados e por fim nos mamíferos. No topo da
cadeia estão os homens como expressão maior da manifestação da Vontade.
Poderia causar perplexidade A. Schopenhauer colocar o conhecimento como
secundário à Vontade e, junto a isso, os homens como a expressão máxima da
manifestação da Vontade. Contudo, o que poderia afirmar a primazia dos homens
sobre os outros animais, além da disposição de seus orgãos e por cima desta a
bela distribuição dos sentidos por dentre a pele e a potente disposição dos
membros, é sua capacidade de intuição estética para além da tão somente intuição
empírica. Além do que, ele cria instrumentos e técnicas para satisfazer sua
Vontade e, caso o sobrepujamento mediante um instrumento fosse critério para
analisar qual espécie é melhor, o sobrepujamento da razão como instrumento
refinado de subjugo, forma refinada da Vontade devorar a si mesma (e o
sofrimento do filósofo em grande parte em saber disto, em perceber que nossa
espécie com este quesito sobrepôs com aniquilação todas as outras), fosse este o
critério, a razão realmente seria o elemento diferencial dos humanos e,
pesarosamente, só restaria ela a submeter a Natureza. A razão seguiria, mesmo
93
sem perceber, tanto os desígnios da Vontade, que logo a espécie humana
aniquilaria as outras espécies e, por fim, ao tentar submeter toda Natureza,
aniquilaria a si mesma.
Mesmo com a primazia do querer sobre o conhecer, parte-se do mundo
como representação para se chegar no mundo como Vontade. Poderia ser
contraditório, mas explico: Acontece que as forças da Vontade operam
inconscientemente porquanto é o mundo como representação que vige. Operam
inconscientemente até o homem reconhecer seu corpo como Vontade e, a partir
disso, supor a Vontade em outros corpos. Essa é a porta de entrada para sua
filosofia. Parte-se da representação como pedagoga das condições de possibilidade
do conhecimento para a formação do entendimento.
Ainda que a representação seja a pedagoga, ainda assim a preponderância
consiste no querer. O princípio de razão suficiente existe em decorrência do
princípio de individuação, afinal se nasce em um mundo natural , de seres
multiplicados, antes mesmo de se perceber o montante da multiplicação, antes de
se perceber um mundo humano dividido em vários segmentos – de acordo com
cada apropriação cultural, isto é, muitos a colocarem os ditames da razão ou de
Deus acima de seu próprio desenvolvimento natural e acima de seu próprio querer
e poucos entendendo que este pensamento apenas os leva ao psiquismo ou mesmo
à tendência deles próprios tomarem o lugar de um deus ou devorarem a
humanidade e as outras espécies em nome do que quer que chamem de sua própria
humanidade, fundada em dogmas e doutrinas-.
O perplexante no eu querente é perceber nele a desvinculação de um agir
formado quando ele mais se sente agente, ao menos um agir fundamentado na
razão, e isto pode incidir direto na contraposição da máxima tão incansável e até
mesmo enjoativa do cartesianismo: Quando mais sentimos a brisa, quando mais
nossas ações parecem livres, quando escutamos música, quando nos apaixonamos,
quando nossa sensibilidade proporciona a sutil sinergia é quando não temos
pensamentos, é quando sequer nos questionamos o que é o pensamento. Um eu
94
querente seria contraditório se isto que chamamos ‘eu’ não fosse em grande
parcela desmedido, selvagem e impetuoso, feito incontida torrente. E o eu
querente amenizado corresponde à sensibilidade necessária para a fruição estética.
Este o qual assemelha-se à calma da música clássica a nos transpor diretamente ao
reino da imaginação quieta e em paz, este que assemelha-se aos filmes alternativos
a nos transpor aos sons soprados sutilmente semelhantes aos sons soprados nos
ouvidos da juventude ou aos ouvidos ao lado da pessoa amada. O eu querente
tende a ganhar pouco a pouco um local perdido da infância e as atribulações da
vida madura, junto às necessidades diárias, parecem ganhar campo para dia-a-dia
se tornarem pedaços de sonhos da infância a qual as produções artísticas parecem
querer nos remeter ou, para assentar os pés na interpretação da obra
schopenhaueriana, remetidos ao ideário presente no fundo dos fenómenos, nos
permitindo acesso ao que a natureza poderia ser e não tão somente ao que ela é, ou
ao que a natureza pode ser à milhas de quilômetros escondida por trás das grades
de algum forte. O eu querente, neste ponto, significa apenas ser e estar exatamente
onde se é e se está, é o eu livre de atribulações e pensamentos, isto é: Não penso, e
não tenho sensações repulsivas, logo sou. Esta é a vinculação do querer com o
salto contemplativo. O querer livre da carapaça incrustrada pelo tempo e espaço.
A sensibilidade única por trás de tantos hábitos incorporados pelo implacável
Kronos, pelo tempo.
Me permito aqui considerações sobre a metafísica do amor. A.
Schopenhauer clarifica a aptidão do querer a propagar a espécie pela compleição
física e, a partir disto, nega a existência do amor espiritual. Pois bem, partindo da
redução ao absurdo de que não há amor espiritual e que aqueles que se uniram por
afinidades espirituais em pouco tempo perdem a atração um
pelo outro,
deveríamos analisar o porquê do apego possessivo das crianças pelos seus
brinquedos e dos adolescente por sua namorada do colegial. Verificar-se-ia que a
competividade e a posse se presentifica desde a mais tenra idade e que o ciúmes é
o sentimento repulsivo – ou não – que primeiramente se apresenta na vida. Seja o
ciúmes pela mãe heroína, seja o ciúmes do filho pelo pai herói, seja, mais uma
vez, o ciúmes do namorado pela namorada. Dizer que advindos dos animais
95
poligâmicos somos também poligâmicos também é errôneo. Como seres pensantes
queremos o sossego da vida a dois e quantos mais inteligentes mais depositamos
nossa segurança na confiança mútua. Qual a prova de que o casal poderá se
perpetuar senão com a garantia de confiança mútua? É claro, a atração física é
irrefutável, mas a tranquilidade do ir e vir dos espíritos livres apenas se ensejará
na construção da fortaleza da confiança. O amor espiritual deseja a vida a dois
sem que se negue os amores primordiais e sem que se traia a confiança. Aqui a
dialética do amor de Platão se apresenta: o amor por um corpo, o amor por vários
corpos, o amor da virtude filial por sua família e posteriormente o amor pelos
amigos e amigas, o amor espiritual por uma grande alma, um grande meste ou
uma grande mestra; isto é, podendo ocupar tal lugar os próprios pais e depois
alguém que demonstra as direções da completude da virtude, algum grande amigo
ou amiga ou algum grande professor ou professora e por fim a cônjugue, o
relacionamento do casal, cuja ligação será tanto maior quanto maior for a
segurança permitido pela ligação espiritual, pelo diálogo, por correspondências
espirituais de gostos, querer, pensamentos e vontades em comum.
Cabe aqui mais uma consideração sobre a importância do querer nesta
filosofia: Se a pergunta da modernidade consiste em saber o que é o conhecer,
talvez a a pergunta inaugurada na contemporaneidade de A. Schopenhauer possa
consistir em saber o porquê do querer estar dissociado do conhecer.
• O Eu Querente e o Livre-arbítrio
O eu querente é tão preponderante sobre o eu cognoscente que uma vez
que o sujeito julga existirem várias opções de ação, perceberá que o que se quis
uma vez sobrepujará as opções. Lá está o sujeito a pensar: Posso ir pra casa e
descansar junto aos braços de minha amada, posso contemplar o pôr-do-sol em
alguma paragem, posso ir a um café ou até mesmo contradizer todas essas opções
a ficar aqui parado, a observar o movimento da rua. Mas o que se quis se desejará
decisiva e definidamente, o que se quis uma vez é preponderante acima de
qualquer opção e mesmo que este homem faça todas as ações antes de se juntar à
96
sua mulher fará tão somente por, movido pelo espírito de contradição, tentar
provar-se livre, mas durante todo este tempo em que tenta se distrair com outras
ações, seu querer estará em casa, seu corpo projetado junto o de sua mulher, tão
forte é o querer diante de um suposto livre-arbítrio. Pode-se criar mil afazeres, mil
distrações antes de se chegar ao objeto de desejo, contudo decididamente o que se
desejou uma vez se desejará sempre, tão fatal é a visão do determinismo de A.
Schopenhauer. Diz D. Garcia: “ o homem é tão determinado em sua ação como
o é a bola de bilhar em seu movimento. Em ambos, há uma determinação
causal, uma força propulsora inevitável.74” E externamente também estamos
determinados semelhantemente às aguas de um rio. A água não se torna queda ou
redemoinho sem que as margens que a comprime e outros fatores externos
determinem isto. Assim também, em parte, está determinado o homem diante dos
fatores culturais externos. O homem nascido na favela, com recursos econômicos,
linguísticos e educativos excassos não pode simplesmente se trajar feito
empresário para se tornar um. Para tanto, seria necessária força quase sobrehumana para superar as condições em que nasceu (ou ser contemplado por
investimentos governamentais e iniciativa privada) e assim contrariar as
tendências, para que, conciliando a seu contexto econômico e educacional
excasso ao contexto de realidade mais abundante, possa transformar a própria
realidade da favela em vida digna, a transformar uma cultura marginalizada em
cultura perene e, assim, pouco a pouco proporcionando vias de acesso para que os
bairros favelados possam ter estatuto de parte digna da cidade. Mas os números da
realidade são muito avassaladores e a tendência para uma vida marginal não pode
simplesmente se apresentar como consequência da opressão policial. Uma criança
nascida em tais condições possui muito mais tendência a ingressar na vida de
crime do que aquela nascida sob condições normais de desenvolvimento
intelectual e emocional, contudo, aqui me distancio de Aristóteles o qual inverte
causa e consequência quando fala dos escravos. Em uma palavra, na visão de
Aristóteles, o escravo nasce escravo por possuir alma de escravo. Não, na minha
concepção a criança nascida na favela possui tanta bondade de alma e capacidade
74
Garcia, Douglas. Dialética da Vertigem. p.110.
97
quanto aquela nascida sob melhores condições. A diferença está tão somente nos
fatores externos, nos fatores materiais e nas perspectivas de vida. Sempre se
admirará os melhores. O problema consiste em quando a imagem de ‘melhor’ se
remete ao traficante portador de armas até os dentes e o dinheiro fácil e a baixa
perspectiva de vida útil apenas vem a acrescentar à sua imagem de herói ( e bem
se sabe que o desespero tolhe a reflexão sobre qual o tipo de ídolo ideal ou
reflexões mais profundas).
Então, digressão à parte, esta é a visão da preponderância do eu querente
sobre o eu cognoscente em A. Schopenhauer. O indivíduo nascido com um
impulso para a fome e desejos, sejam amorosos, sejam sexuais, provavelmente vai
morrer com estes impulsos, com a diferença de que com a debilidade do corpo no
decorrer dos anos, eles estarão menos exaltados. Isto somado à influência
inexpugnável do meio resulta na visão fatalista de A. Schopenhauer diante do
livre-arbítrio. A preponderância aqui não é de capacidades, mas sim de ação final.
Quem dita a ação primeira e final é o querer e não o conhecer.
Diante do impulso querente mais intenso do que o impulso cognoscente,
propõe-se mostrar que a arte, mediante a fruição do puro sujeito do conhecimento,
possa domar e moldar este eu querente ou, ao menos, levar-nos a conhecer o que
nele não é desejável para que possamos apurar cada vez mais a própria fruição.
• A Estética como Alívio.
A vontade individual, presente no eu, é o motor das angústias, anseios e
desejos insaciáveis do homem. É o efeito conflitante da Vontade. Se fossemos
apenas eus cognoscentes, sujeitos do conhecimento, ou espelho nítido da
objetivação da Vontade no mundo, teríamos disposição pura e desinteressada
frente os objetos. Todos os possíveis tormentos que poderiam colidir conosco
seriam encarados de maneira neutra e sem reações pois não os avaliariamos
conforme as vantagens ou desvantagens frente a um cultivado eu querente, mas
anularíamos em nós, com toda a força de contenção da indiferença de quem
independe do movimento das coisas e da possível utilidade que possam ter. Mas
98
não somos cabeças aladas de anjos pairando no céu, somos corpo e o eu
cognoscente está imiscuído ao eu querente, imiscuído à vontade individual e serve
a esta com a constância com que o escravo inteligente, mas fraco, cede à
brutalidade do senhor estúpido, mas forte, fazendo com que o conhecimento esteja
a serviço da vontade, a qual o impele a perscrutar a melhor maneira de saciá-la, a
Insaciável.
Assim como a lâmina brilhante que permite a reflexão do espelho
também é detentora da face mais escura, o próprio aparato cognoscente, refletor
mais nítido da Vontade, é também o mais imperscrutável . Não é possível
conhecer o eu cognoscente na completude pois não é possível conhecer o aparato
do conhecimento sendo para isto necessário se desfazer do aparato do
conhecimento. Em suma, é possível conhecer o eu querente, o sujeito da volição,
mas não o eu cognoscente, o sujeito cognoscente. Para conhecer o conhecer seria
necessário separar-se do conhecer , e somente então conhecer o conhecer, o que é
impossível 75.
O impulso criativo fornece alternativa para a neutralização da vontade
individual extinguindo temporariamente o eu querente e também permite ao eu
cognoscente tornar-se o seu amo fazendo com que o público da arte tenha cada
vez mais apreço à contemplação, em detrimento do conhecimento interessado.
Conhecer o eu querente pode levarmos a domá-lo ou conter suas forças
subservientes da vontade individual mais pungentes nele. Se fossemos somente
cópias da Idéia desprovidos da coisa-em-si, sem ser próprio, aí poderíamos aceitar
a saída final diante dos tormentos da vida sem questioná-la, pois pensaríamos que
ao negar a vontade de viver apenas adiantaríamos o inevitável: o aniquilamento de
nossa individualidade e o retorno ao seio da Idéia-mãe.
Mas não é o caso, como podemos pressentir por algumas afirmações do
filósofo. Na atualização da Vontade na natureza os seres se individuam cada vez
mais, no homem isso se converte de forma tão intensa que Arthur Schopenhauer
pressente que nesta espécie há uma exceção e em cada indivíduo parece se esboçar
uma Idéia própria. Diz ele:
75
Arthur Schopenhauer. De La Cuádruple Raíz Del Principio de Razón. §42 p. 203.
99
“Assim têm-se que considerar o homem, cada homem como uma
manifestação particularrmente determinada e característica da vontade, e
inclusive de um certo modo (gewissermassen) como uma Idéia”76.
Talvez essa seja a questão mais metafísica que Arthur Schopenhauer nos
deixou de herança, ele diz:
“A individualidade não se apoia somente no principium
individuationes, e não é absolutamente um puro fenômeno; senão que ela
têm sua razão na coisa em si, na vontade do indivíduo, pois o caráter
empírico deste é individual. Até que profundidade penetram suas raízes, é
uma pergunta a qual não tratarei de responder” 77.
Enquanto nas espécies dos outros animais cada animal representa a idéia
de sua espécie, nos homens existe tamanha singularidade que em cada um pode-se
supor a Idéia individual. A. Schopenhauer nos apresenta esta concepção de forma
especial no seu segundo tomo do Mundo Como Vontade e Representação, ainda
que reticente.
Três passagens na obra de A. Schopenhauer nos leva a concluir
afirmativamente sobre a idealidade da individualidade nos homens: esta
singularização única a qual tanto o destaca diante dos outros seres, a importância
da representação da individualidade como apresentação do ideal de humanidade
na pintura e a sensação de perda irreparável diante da morte.
Por trás dos atos do querer enquadrados no tempo e espaço pelos quais se
torna quase impraticável distinguir o que em nosso querer é corrompido e o que é
estritamente nossa aptidão de agir, afigurasse o princípio elemental de nosso eu, a
expressão da idealidade da individualidade na espécie humana. Essa
76
Alexis Philonenko citando Arthur Schopenhauer (Mundo Como Vontade e Representação § 28)
[Tradução minha] PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer; una filosofia de la tragedia.. p. 172.
77
Alexis Philonenlo citando Arthur Schopenhauer
[Tradução minha ]
PHILONENKO, Alexis.
Schopenhauer; una filosofia de la tragedia.. p. 208.
100
individualidade parece figurar como a própria objetidade adequada da Vontade,
sim, aquela referente a teoria das Idéias tão enaltecida como o contributo final, e
nem por isso último em relação a Vontade, da contemplação da obra de arte.
Em companhia de Muriel Maia vislumbramos não apenas este enigma
legado a nós pelo filósofo da Vontade imersa em tudo e em todos como também
vislumbramos a possibilidade de tatear o em-si da Vontade pelo adestramento de
nossos impulsos em nossas sensações, em nosso sentir. Pois bem, se os atos do
querer estão tão mais próximos da coisa-em-si quanto mais diretamente
percepcionam os fenômenos e mais longe estão do intelecto, quanto mais se
aprofunda nos intrumentos de contato direto com os fenômenos, isto é, os
sentidos, mais próximos se está desta coisa-em-si. É claro que é um contato às
escuras, contato com a cegueira das sensações, a obscuridade dos sentimentos, e
constantemente importunado pela razão, mesmo assim é a descoberta do possível
ingresso margem Vontade adentro. Vislumbrando na arte, pela arte, a
aproximação das Idéias mediante o mergulho da intuição na sensibilidade, penso
não estar vedada a questão sobre a possibilidade da contemplação da arte poder
nos levar até a “expressão ideal individual”. Pois o que se nega na vontade
individual não pode negar o que há de em-si da idealidade individual de cada um
assim como a expressão fenomênica da obra não pode negar sua idealidade. Isto
significa dizer que existe um “eu fenomênico” e um “eu ideal” também.
Se nosso caráter próprio é a individualidade e a parte sofrível deste é
aquela que se submete aos anseios da vontade, e se a arte proporciona a anulação
desta parte indesejável, a arte pode nos ser mestra para o conhecimento deste eu
querente, ao menos o que nele não é desejável. A anulação temporária poderia,
com esse aprendizado tornando-se progressivo, tornar-se mais recorrente e já não
conseguiríamos entender a saída final e ascética do filósofo. Pergunto: Por que
aniquilar nossas existências, nossas vidas, como se elas fossem ilusões
fenomênicas, se elas não são?
O sofrimento consiste na busca da realização dos desejos e no tédio
advindo de relativa satisfação deles ou falta de desejo. A vida menos sofrível,
Arthur Schopenhauer o afirma com essas palavras, seria aquela em que fosse
101
menor o período entre um estado ou outro, quer dizer, a proporcionadora de menor
tempo entre o sofrimento da falta imprimido pela busca da realização de desejos e
o tédio proveniente da relativa satisfação deles ou temporária ausência de desejos.
Pois bem: essa vida é a vida contemplativa, a vida do gênio, do artista.
Ele discrimina três formas de vida segundo a filosofia oriental78: Radja
Guna – uma vida de Aquiles, pela qual a pessoa enfrenta as possíveis adversidades
decorrentes da vida direcionada à realização das grandes paixões, “a vontade
enérgica, a vida com grandes paixões ”, a Satva Guna, a vida pelo conhecimento
puro, a vida contemplativa, a vida do gênio, o equilíbrio entre a inteligência e as
paixões (Buda é considerado um Satva), a “ inteligência liberta do serviço da
vontade”, e , finalmente, a Tama Guna, “a letargia mais profunda da vontade e da
inteligência a serviço da vontade”, a vida inercial.
Consinto que o filósofo não busca a vida menos sofrível, pois ele
equaciona que no final das contas sempre se perde ao se optar pela vontade de
viver. Consinto que ele busca a resposta mais verdadeira e encontra na abstinência
da vontade de viver essa resposta. Mas será que não está aberta a possibilidade de
encontrar o consolo e até mesmo superar tal realidade triste dos homens através da
arte? É possível, e penso que Arthur Schopenhauer não nega essa possibilidade
apesar dos pesares. Jair Barboza compartilha dessa concepção:
“É importante perceber como Schopenhauer, tido pelos manuais
de filosofia e por muitas interpretações da tradição como pessimista, devido
ao ponto de partida ético de sua filosofia de que “toda a vida é sofrimento”,
em verdade contrabalança tal postura com uma filosofia do consolo. Dessa
perspectiva, seu pensamento resvala aqui e ali para um otimismo prático,
do que dá prova a possibilidade, em sua estética, de um mundo
essencialmente belo pelo viés da Idéia. O mundo é essencialmente mau,
sim, devido à Vontade de vida sedenta por manifestar-se, mas ele também é
arquetipicamente belo, devido às Idéias que permitem a transpassagem do
em-si volitivo do mundo para a efetividade fenomênica. O mundo é um
78
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 58 p. 337.
102
espetáculo de luz que envolve as formas eternas e imutáveis das coisas
fenomênicas” 79
Desde o final do primeiro livro, A. Schopenhauernos nos leva a
conclusão de que conhece a doutrina da felicidade dos epicúreos, qual seja, de
que, ao contrário dos estóicos, a virtude depende da felicidade, contudo, feito já
dito, ele almeja a resposta mais verdadeira para a vida e não a mais feliz.
É preciso pensar contra si mesmo, entretanto. Se é afirmado que o artista
alcança breves momentos de calmaria frente a autofagia da Vontade, difícil seria
compreender que o impulso criativo e a criação proporcionam negação, negação
completa dos estímulos da vida. Neste quesito, sendo propriamente o estímulo do
artista a intuição, seria dizer, sabendo-se a intuição como o principal veio da
criação, que a própria criação está além da intuição, poderiasse perguntar: O que é
mais importante para A. Schopenhauer a intuição ou o entendimento? Mais do que
isso, o que é mais importante para A. Schopenhauer a intuição ou o entendimento
ou a desvinculação total da força autofágica da Vontade? Se lermos apenas os três
primeiros livros do primeiro tomo do Mundo como Vontade e Representação
optaríamos pelos dois primeiros. Isso não significa dizer que o Livro Quatro é um
erro. Talvez a avidez de completude filosófica – ainda que longe do anseio de
contruir edifícios do conhecimento – tenha falado mais alto.
A consagração, elevação, exaltação da capacidade do gênio poderia ser
uma fuga do niilismo passivo, da decepção frente ao homem moderno ávido por se
auto-afirmar mediante a promessa de glória da ciência se o filósofo não recorresse
à negação da vontade enxergando no asceta a derradeira saída.
O distanciamento do Zaratustra de Friedrich Nietzsche (o qual afirma no
seu Nascimento da Tragédia que a vida apenas pode ser justificada como
fenômeno estético, e que a arte é ilusão legítima porque se sabe ilusão) ao
79
Presente em SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. p. 121, nota 54 .
103
abandonar todas as formas de niilismo ao enaltecer o impulso criador (e se
reconciliar com a vida) já estava esboçado na exaltação do gênio artístico. O passo
adiante dado por Zaratustra, e que poderia simbolizar um passo à frente da
modernidade, já se pré-configurava na possibilidade do homem subjugar a
vontade e tomar as rédeas de sua existência através da arte (mesmo sabendo-se
determinado pela vontade). No entanto, faltou ao filósofo da vontade o reconcílio
com a vida, o amor ao destino. E, certamente, mesmo se por um momento ele
suspendesse a característica mais intensa de seu eu querente, sua intransigência, e
por um esforço mental fora do comum vislumbrasse que, toda sua visão pessimista
diante das ações dos homens, derivada e reafirmada por vários testemunhos de
crueldade e cobiça, poderia se transformar ao conceber que talvez seja esta uma
passagem necessária ou desnecessária para o homem superar a si mesmo, mesmo
assim, seu desespero pela verdade impregnado em seu eu querente, o faria voltar a
si no momento seguinte com o pensamento de que a manifestação da vontade
sempre foi e sempre será assim. Ele até elogiaria tal ímpeto, pra logo pensar a
respeito deste tal Zaratustra: ‘Para ele o show não pode acabar, a ilusão deve
continuar’ e logo recolheria a moeda da mesa, levantaria-se e partiria.
Se o filósofo do pensamento único encerrasse sua obra naquela
perspectiva estética, se ele não nos desenredasse toda a sua teoria no livro seguinte
com a proposta de negação completa da vontade em todas a faces da vida, grande
parte do trabalho da filosofia de Friedrich Nietzsche seria poupado, pois no que
consiste a visão dionisíaca do mundo senão em uma busca pelo retorno ao estado
primordial e não-racional anterior ao princípio de individuação sem negar a vida,
seja ela repleta de alegria ou seja ela repleta de dor? Embora a contemplação
estética livre-nos da vontade individual e nos faça esquecer da torrente do querer ,
a produção estética é sem sombra de dúvidas afirmação da vida, resposta ativa à
mutabilidade sofrível do mundo e, talvez, esse esquecimento sirva para que
domemos essa característica pungente em nossos eus e possamos afirmar nossa
realidade e nós mesmos na arte e pela arte, A Bela Arte.
Mesmo que não chegassemos nessa perspectiva da arte como afirmação
da realidade na obra de Arthur Schopenhauer mediante ao domínio de nosso eu
104
cognoscente sobre o eu querente, poderíamos pensar, juntamente com seu
discípulo, que a ilusão poderia se tornar tão vigente que ocuparia o lugar da
realidade, realidade deveras sofrível segundo o autor d’O Mundo. Ele próprio
afirma que a arte salva os fenômenos.
Poderíamos facilmente pensar que o vislumbre proporcionado em menor
intensidade ao espectador estético e em maior intensidade ao gênio, poderia causar
progressivas mudanças no eu querente da cada um, de maneira que este abandone
e negue cada vez mais a autoridade da vontade individual e do conflito da Vontade
e passemos a direcionar nossos anseios às produções e contemplações estéticas até
fazer delas os filhos de nossa inteligência, ou melhor, os filhos de nossa intuição,
atentando para uma segunda natureza que jaz por baixo da natureza pungente da
Vontade conhecida, a qual nos impeliria já não a legar descendentes do corpo, a
perpetuar o gênio da espécie, mas a legar descendentes de nossa luz representativa
essencial, a perpetuar o gênio do espírito. E então a exceção tornar-se-ia a regra e
poderíamos dizer que a contemplação estética não permitiria só a fuga temporária
ao sofrimento do mundo mediante suas preciosas forças intrínsecas em vista das
quais o gênio garimpa tão ardua e pesarosamente, e então pensaríamos a dialética
do belo e do amor em Platão, segundo as quais o homem asceende no
conhecimento através do impulso permitido pela admiração de um corpo belo
primeiramente, depois vários corpos belos, em seguida uma alma bela
80
e,
finalmente, várias almas belas, pensaríamos essa dialética, dizia eu, como
movimento impulsionador para a civilização iluminada a qual não apenas alargou
seu poder pelo desenvolvimento da técnica, como também consolidou seu
conhecimento de modo que o homem sábio, o homem artista, volte a ser o único
homem possível.
80
Não há porque se assombrar com esse uso da palavra alma sob o desenvolvimento de um trabalho sobre
a filosofia schopenhauriana: É evidente que o sentido de alma aqui não é o sentido de um ‘espírito sem
corpo’.
105
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