SOBRE A DESCONSTRUÇÃO ROMANESCA
EM BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA
Kellen Millene Camargos RESENDE (Faculdade de Letras
[email protected]); Zênia de FARIA (Faculdade de Letras
[email protected]).
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UFG;
UFG;
Palavras-chave: Bolor; narratologia; desconstrução romanesca; elementos da
narrativa.
Introdução
Em Bolor, do autor português Augusto Abelaira, há uma desconstrução
das estruturas “tradicionais” do romance. Assim, este trabalho buscará analisar
alguns dos elementos que são desconstruídos nessa obra, para se compreender de
que modo a referida narrativa subverte a forma tradicional do gênero romanesco
sobre essas questões.
Como apoios teóricos da presente pesquisa, serão utilizados os estudos
de Barthes (1972), Todorov (1972) e Genette (1979). Apenas alguns elementos
serão analisados: as vozes narrativas, os personagens e o tempo. Não ampliamos
nossa base teórica sobre a estrutura romanesca porque os estudos desses três
autores nos pareceram suficientes para fundamentar os aspectos que serão
observados. Nossa intenção é verificar de que maneira tais teóricos concebem,
genericamente, os citados elementos da narrativa para, então, examinarmos a
narrativa de Bolor, à luz dos respectivos pressupostos.
Material e métodos
Partindo de uma ampla pesquisa bibliográfica sobre os aspectos diversos
da narratologia que interessam de modo particular à nossa pesquisa, elegemos
nessa bibliografia os estudos de três autores – Introdução à análise estrutural da
narrativa (1972), de Barthes; As categorias da narrativa literária (1972), de Todorov;
e Discurso da narrativa: ensaio de método (1979), de Genette – cujas teorias
julgamos mais adequadas para atingirmos os objetivos a que nos propusemos.
A pesquisa partiu, primeiramente, de um estudo dos elementos
constitutivos da narrativa, para, em seguida, verificar até que ponto o romance Bolor
se enquadra à estrutura básica do romance e de que maneira subverte a forma
tradicional do gênero romanesco.
Resultados e discussão
No romance Bolor, escrito em forma de diário, há sessenta e dois
fragmentos datados, que, ao longo da narrativa, deixam margens de dúvidas quanto
à confiabilidade do tempo exposto e dos autores do diário. Não se sabe ao certo a
quem pertence a voz narrativa: ela pode pertencer aos três personagens principais –
Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo – ou apenas a um deles.
São três histórias em que as vozes dos narradores se cruzam como se
fossem uma só. O enredo se constrói com o tempo da enunciação. A história é
exposta ao mesmo tempo em que o narrador/personagem reflete sobre como
escreverá o texto.
O romance escrito em forma de diário respeita, geralmente, a sucessão
temporal dos acontecimentos. Em Bolor, no entanto, esse aspecto é problematizado,
os narradores/personagens dizem não usar datas verdadeiras, determinados
acontecimentos não seguem a ordem cronológica da história. Em alguns
fragmentos, não é exposta nenhuma marcação temporal; somente depois que se lê
fragmentos posteriores a eles, compreende-se a que período temporal pertencem, a
que acontecimento e a que personagem se referem.
Há um jogo entre o presente da escrita, o passado recente e o remoto.
Para alguns teóricos, as deformações temporais, ou seja, “as infidelidades à ordem
cronológica dos acontecimentos” (GENETTE, 1979, p. 27) são traços distintivos
entre história e discurso.
Pelo fato de o romance ser escrito em forma de diário, há a descrição de
acontecimentos presentes, momento em que se escreve; a descrição de
acontecimentos anteriores à escrita, ou seja, a memória recente; e a descrição de
acontecimentos muito anteriores ao momento da escrita, isto é, memória antiga
(vinte anos atrás), percebe-se que o tempo da história é muito maior que o do
discurso.
Todos os tempos mencionados se alternam, como se alternam os
narradores e os diários, os quais foram reunidos por um suposto editor (ABELAIRA,
1999, p. 106). Nesse tipo de combinação, embora as histórias possam ocorrer
simultaneamente, são narradas de forma consecutiva, combinadas, no caso de
Bolor, segundo a vontade do editor que estabelece uma lógica – não só cronológica,
uma vez que os diários não obedecem a uma sequência temporal – mas
principalmente referente ao acontecimento exposto. Esse tipo de combinação na
narrativa é denominado por Todorov (1972, p. 234) de “alternância”, o qual consiste
“em contar as duas histórias simultaneamente, interrompendo ora uma ora outra,
para retomá-la na interrupção seguinte”.
Já em relação à história e voz narrativa, é “possível” considerar que a
história e a voz principal de Bolor sejam as do narrador\escritor Humberto, o que
toma a iniciativa para escrever. O personagem está enfadado com seu casamento e
pretende, ao registrar fatos de sua vida, entender “por que” se casou com Maria dos
Remédios. Ao escrever, busca também descobrir “quem” é ela. Ela parece ser
comum, como as roupas e acessórios que usa, no entanto, ela o intriga. Humberto
sempre se pergunta se ela é quem diz ser ou se sempre dissimula sua
personalidade, como o fazia no passado, juntamente com Catarina, sua ex-mulher
morta.
O envolvimento do narrador com as duas mulheres sempre foi misterioso
e carregado de omissões, como o romance Bolor, e de mentiras, como nos faz crer
os narradores/personagens, ao dizerem que podem estar enganando o leitor sobre
os elementos da narrativa que escrevem, tais como a veracidade da história das
personagens.
Na trama, as duas mulheres de Humberto, quando o conheceram,
alternavam-se nos encontros com ele, cujo pseudônimo era Daniel. Elas fingiam ser
a mesma mulher, e se denominavam Julieta. Eles formaram um triângulo amoroso
que mais tarde tornou-se um envolvimento a quatro, quando Aleixo, melhor amigo
de Humberto, descobriu a brincadeira. Ao descobrir, resolveu fazer parte dos
encontros, alternando-se com as mulheres e substituindo o amigo, sem que ele
soubesse (pelo menos a obra nos faz entender desta forma).
O diário é tomado, ao mesmo tempo, como uma forma de fuga e de
descoberta. O ato de escrever, para Humberto, foi uma maneira para refletir, para
analisar os outros e analisar-se. Humberto desejava conhecer a própria mulher,
mas, ao observá-la e refletir sobre ela, acaba desvendando a própria vida e
descobrindo como gostaria de vivê-la. Sua vida não parece ser sua, parece mais
uma ficção que não foi escrita por ele, que foi sempre conduzido por alguém, por
mulheres: primeiro por Catarina, depois por Maria dos Remédios.
Pelo fato de os diários serem escritos por três pessoas que se fazem
passar pelo outro, cria-se uma dúvida quanto à verossimilhança. Há tantas mentiras
ao longo do romance, que isso nos faz duvidar se os personagens são, na verdade,
um só, se há vários narradores ou apenas um, e se a história narrada realmente é
verídica dentro do contexto ficcional. O narrador pode ser Humberto, que se faz
passar por Maria dos Remédios e Aleixo, para entender possíveis relações que
poderiam ter ocorrido à sua volta, ou o narrador pode ser Maria dos Remédios, que
se passa pelos outros dois, ou, ainda, Aleixo.
É intrigante o jogo que se cria na mistura de vozes, pessoas e tempo.
Muitas histórias e datas descritas no diário são colocadas em dúvida, o que levam o
leitor a duvidar da veracidade das histórias dos personagens. Tal é o caso de um
jantar, descrito no diário do dia 9 de abril, para o qual Maria dos Remédios diz ter
convidado Humberto. Na data seguinte, 30 de janeiro, Humberto é quem diz ter
convidado Maria dos Remédios para o referido jantar, e afirma ter se passado por
ela, no diário da data anterior, que também pode ser falsa. (ABELAIRA, 1999, p.
134-142).
De fato, várias subversões podem ser percebidas em Bolor. Citemos
como exemplo o caso de os próprios personagens colocarem em dúvida suas
existências, a identidade de quem na verdade escreve o diário ou os diários, que
teriam sido coletados por um editor, aspecto que não foge às narrativas dessa
categoria (ABELAIRA, 1999, p. 106). São três as vozes narrativas, como se supõe,
mas pode ser apenas a de um único personagem/narrador, que se passava pelos
três personagens, os quais dizem escrever um diário.
Pode ser Humberto quem escreve para compreender a mulher que não o
completa e, após descobrir que foi traído, escreve como se fosse ela e também
como se fosse Aleixo, seu melhor amigo com o qual sua mulher o traiu. Dessa
forma, para desabafar e entender o que lhe ocorreu, escreve em nome dos três
envolvidos. Mas quem escreve pode ser, também, Maria dos Remédios, que trai por
não ter a atenção do marido e, assim, faz-se passar por ele e pelo amante. Mas
pode ser, ainda, Aleixo, o qual escreve para afrontar aos outros dois envolvidos e à
própria mulher, Leonor, que também lê o diário do marido. Poderia, também, não ser
nem um nem outro, e, por isso, o romance configura-se como uma ficção da ficção.
Conclusões
Ao final da análise, descobre-se que não há como chegar a uma definição
acerca das vozes narrativas, das personagens e do tempo em Bolor. Para responder
a essas indagações, a única resposta é: “não há resposta definitiva” para tais
questões. Não há pistas, no romance, para esclarecê-las. Poderíamos dizer que
Augusto Abelaira construiu o romance desconstruindo os elementos básicos da
narrativa. Tal aspecto faz o leitor refletir sobre o que é o romance e quais as
possibilidades estruturais de desenvolvimento desse gênero literário, o que confirma
o que um dos protagonistas de Bolor, que não se pode dizer ao certo quem foi,
escreveu: “O meu diário é uma brincadeira, não o escrevo na minha primeira
pessoa, mas na primeira pessoa dos outros” (ABELAIRA, 1999, p. 120, grifos
nosso).
A passagem de um texto escrito, no início, segundo os cânones
tradicionais, como o caso de Bolor, para um texto em que a ruptura desses cânones
passa a predominar no restante da narrativa, leva o leitor a questionar a ilusão de
realidade antes ali exposta. Se o romance tradicional, de uma forma geral, constrói
mecanismos para criar a ilusão da realidade, Bolor faz o inverso, ele rompe com ela,
mas, mesmo assim, o leitor busca pistas para tentar reconstruí-la, encontrá-la.
Referências bibliográficas
ABELAIRA, Augusto. Bolor. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.
BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: BARTHES,
Roland; et. al. Análise estrutural da narrativa: pesquisas semiológicas. Traduzido por
Maria Zélia Barbosa Pinto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. (Novas perspectivas de
comunicação/1).
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa: ensaio de método. Tradução de Fernando
Cabral Martins. Lisboa: Arcádia, 1979. (Práticas de leitura).
TODOROV, Tzevetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES, Roland; et.
al. Análise estrutural da narrativa: pesquisas semiológicas. Traduzido por Maria Zélia
Barbosa Pinto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. (Novas perspectivas de
comunicação/1).
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