1 LIDIANE MARIANA DA SILVA GOMES IRMANDADES NEGRAS Educação, Música e Resistência nas Minas Gerais do século XVIII UNISAL AMERICANA, 31 DE AGOSTO DE 2010 2 LIDIANE MARIANA DA SILVA GOMES IRMANDADES NEGRAS Educação, Música e Resistência nas Minas Gerais do século XVIII Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Educação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Unidade de Americana sob a orientação do Profº. Dr. Paulo de Tarso Gomes. UNISAL AMERICANA, 31 DE AGOSTO DE 2010 3 Gomes, Lidiane Mariana da Silva G615i Irmandades negras: educação, música e resistência nas Minas Gerais do século XVIII / Lidiane Mariana da Silva Gomes. – Americana: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2010. 135 f. Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP. Orientador: Profº Drº Paulo de Tarso Gomes. Inclui bibliografia. 1. Irmandades negras. 2. Resistência cultural. 3. Educação. 4. Integração racial. 5. Cultura afrobrasileira. I. Título. CDD – 305.896081 Catalogação elaborada por Terezinha Aparecida Galassi Antonio Bibliotecária do Centro UNISAL – UE – Americana – CRB-8/2606 4 RESUMO Este trabalho tem por objetivo contribuir com a discussão em torno das Irmandades Negras no Brasil e analisar como elas se transformaram em veículo de manutenção da cultura africana praticada por meio da sua educação pautada na tradição oral, que solidificou manifestações culturais na nossa história e que estão vivas em nosso dia-a-dia. Para tal empreendimento houve a necessidade de dividir a pesquisa em algumas frentes: o estudo da formação de Minas Gerais, o estudo das Irmandades Negras e sua história com o território, o estudo da população africana que nela se instalou e a educação e musicalidade – entendidas aqui como complementares –, bem como o estudo das suas representações na África e no Brasil do século XVIII. Todas essas características proporcionaram o surgimento de uma cultura afro-brasileira moldada na convivência dos moradores de Minas Gerais, especificamente a cidade de Ouro Preto. Proporcionaram também a expansão e a manutenção da cultura africana criando laços intrínsecos com as práticas culturais dos antepassados e recriando laços com as novas situações cotidianas coletavas e individuais favorecidas pela atividade musical intensa do século XVIII. Palavras - chave: Irmandades negras, educação, resistência cultural. 5 ABSTRACT This paper aims to contribute to the discussion around the Black Brotherhood in Brazil and analyze how they became a vehicle for maintaining the African culture practiced by their education based in the oral tradition that has built up cultural events in our history and are alive in our day to day. For such an undertaking was necessary to divide the research on some fronts: the study of the formation of Minas Gerais, the study of Black Fraternities and its history with the territory, the study of Africans who settled there and the education and musicality - understood here as complementary - and study its representations in Africa and the eighteenth-century Brazil. All these features made the emergence of an afro-Brazilian culture cast in the coexistence of the inhabitants of Minas Gerais, specifically the city of Ouro Preto. They have allowed expansion and maintenance of African culture by creating links with intrinsic cultural practices of their ancestors and rebuilding ties with the new collective and individual everyday situations favored by the intense musical activity of the eighteenth century. Key – words: Black Brotherhood, education, cultural resistance 6 É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo de línguas e das religiões africanas. Quando vemos homens como Bleek, refugiar-se dezenas e dezenas de anos nos centros da África somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas e a Europa em nossos salões, nada havemos produzidos neste sentido! (Romero, 1879, p.99). 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 CAPÍTULO I - MARCHA PARA MINAS GERAIS: O SÉCULO XVIII EM DISCUSSÃO 16 1.1 A Constituição da População: o explorador que se viu explorado 27 1.1.1 Fluxos e refluxos: quando a população se move 34 1.1.2 A População em torno da mineração: culturas, línguas e convivência 1.2 As Irmandades: estratégias de atuação 39 45 CAPÍTULO II - EDUCAÇÃO, MÚSICA E RESISTÊNCIA NAS IRMANDADES NEGRAS 2.1 Tradição oral e manutenção da cultura 64 71 2.2 Estratégias da educação africana no Brasil: Dicionário de Costa Peixoto 2.3 As Irmandades e a educação africana 75 96 CAPÍTULO III – IRMANDADES, MÚSICA E RESISTÊNCIA: CAMINHOS PARA ALIBERDADE SOCIAL, ECONÔMICA E CULTURAL 3.1 Atuação dos músicos mineiros: a hegemonia negra e mestiça. 103 110 3.2 A conquista da autonomia no mundo escravista: os africanos e descendentes na movimentação cultural 120 CONSIDERAÇÕES FINAIS: NEM BRANCO NEM PRETO, É MULTICOLORIDO 125 REFERÊNCIAS 131 8 INTRODUÇÃO Nos últimos tempos, a historiografia sobre a escravidão na América Portuguesa conheceu profundas mudanças e, alguns enfoques têm se mostrado particularmente produtivos, principalmente aqueles que, partindo da consideração do escravo como agente histórico, romperam com as visões tradicionais que insistiam na coisificação do cativo e também em sua vitimização. Marcados por um esforço empírico redobrado, capaz de documentar a vida do escravo em sua complexidade, foram estudos que lançaram mão de tipos varados de fontes – inventários e testamentos, processos criminais, autos cíveis e registros paroquiais –, ampliando os horizontes da pesquisa histórica e reinterpretando aspectos da organização social e cultural não só dos escravos como também dos grupos egressos da escravidão. Esses novos estudos sobre os mais variados aspectos da vida cotidiana e política da população negra no Brasil, como a formação da família escrava como fator de manutenção cultural (Robert Slenes e Manolo Florentino), como a resistência econômica (Théo Lobarinhas), que apresenta uma forte ação autônoma da postura do homem trabalhador, romperam com barreiras historiográficas que há muito vinham sendo interpretadas como verdades únicas acerca da escravidão e do escravo, como a teoria da anomia das estruturas familiares e sociais existentes entre escravos e libertos, a idéia da despersonalização diante do regime, a ênfase no desenraizamento que se supõe em torno da adaptação do africano e a certeza de que estes eram desprovidos de cultura. A história cultural africana tem características muito peculiares em relação à construção cultural ocidental. Existe uma conexão muito intensa entre religiosidade, música e sua forma de entender a natureza. Os rituais, os tambores, as caixas, 9 “reatualizam e recriam a memória ancestral a todo o momento” (LUCAS, 2002, p. 17). Segundo Glaura Lucas a música é um “[...] dos códigos que traduzem simbolicamente aspectos da visão de mundo daqueles que a vivenciam, e como um meio no qual significados são gerados e transformados” (LUCAS, 2002,8). Sem dúvida, na busca das fontes da escravidão, os pesquisadores tiveram que lidar com uma série de dificuldades, decorrentes não só da escassez de documentos sobre a vida escrava, mas também daquelas causadas pela incompatibilidade entre as fontes oficiais e a história dos despossuídos ou “dominados”. Em linhas gerais, foi necessário reconstruir a vida social e cultural dos africanos e seus descendentes a partir da leitura de documentos comprometidos com a visão de mundo das classes dominantes. Lançar mão de testemunhos que foram produzidos no esteio do controle social, da disciplina e da repressão é, sem dúvida, uma tarefa árdua e minuciosa, pois, sem a leitura das entrelinhas, corremos o risco de repetir os mesmos passos até então percorridos. Nos registros históricos da escravidão, foram raros os depoimentos diretos deixados por essa população, mas ao nos depararmos com os existentes, novas interpretações podem ser elaboradas e discutidas. É o caso do documento que Stuart Schawtz encontrou no Arquivo Público da Bahia (SCHAWARTZ, 1977, p. 79), datado do século XVIII, conhecido como Tratado de Paz. Nele encontram-se explicadas todas as exigências que os escravos impuseram ao senhor para voltarem ao trabalho no engenho Santana, Ilhéus. Queriam a reorganização das tarefas e das condições de trabalho, a divisão sexual e étnica de determinados encargos, manter a posse de suas ferramentas, a necessidade de dias de repouso, a preferência da supervisão de um feitor de sua escolha; requeriam o reconhecimento de suas roças e de outras atividades 10 realizadas de maneira autônoma (a pesca, a roça, o corte de madeira); e reivindicavam o direito a ganhos próprios obtidos nas vendas de seus produtos no mercado de Salvador. Para o autor, essa postura indica o total conhecimento e controle do tempo de trabalho. Ele ainda afirma que esses direitos costumeiros nada mais eram do que acordos e práticas realizados por seu senhor e seus escravos necessários para a sobrevivência dos plantéis e para viabilizar a teórica dominação escravista (SCHAWARTZ, 1977, p. 81). Ao recorrerem a sua força de trabalho para impor certos limites aos desmandos do senhor, as relações passam de senhor e escravos para a de negociantes iguais em busca da melhor solução para ambas as partes. Em nenhum momento as exigências giraram em torno da libertação, mas em torno de uma vivência mais digna e humana de trabalho. Com esse traçado e o entendimento de que mais uma vez é possível novas interpretações, o trabalho apresentado não tem a intenção de dar por encerradas as discussões sobre a escravidão da América Portuguesa. Essas discussões podem, inclusive, nos apontar as diferenças que cada região do território desenvolveu em seu processo de formação como sociedade, de acordo com a composição humana à qual foi exposta. Portanto, a intenção é revisar a história das Irmandades Negras em um espaço geográfico específico que consiste na Capitania das Minas Gerais, especificamente na cidade de Ouro Preto, em um século em que a produção de ouro na cidade atingiu o auge e o declínio muito rapidamente: o VXIII. Outro viés é a análise da população que lá se estabeleceu como moradora e como aventureira, suas culturas e formas de entendimento de mundo que, consequentemente, ajudaram a formar outras formas de expressões culturais, especialmente a cultura negra africana. 11 Essa população traz, em sua formação linguístico histórica, uma relação profunda com a oralidade, forma única de educação que, ao longo dos séculos, se tornou um meio importantíssimo para a manutenção e a reinvenção de sua cultura ligada intrinsecamente às questões de expressão musical. Glaura Lucas, que estuda os rituais do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Minas Gerais, início do século XX, indica que a forte imposição da cultura baseada na memória ancestral, resultou na manutenção de suas identidades até os dias atuais, apesar de terem sofrido um violento processo de imposição cultural (LUCAS, 2002, p. 17). Os ritos dessa Irmandade de Negros, cuja concepção inclui vários elementos, atos litúrgicos e cerimônias, remontam narrativas que, “[...] na performance mitopoética, reinterpretam as travessias dos negros da África às Américas” (MARTINS, 1997, p. 31). Essa encenação indica que as raízes não são esquecidas, apesar de muitas tentativas do Estado, da Igreja e dos senhores terem sido concretizadas ma intenção de descaracterizá-los para melhor dominá-los, e que as histórias só são possíveis graças a um sistema educacional eficaz passado de geração para geração e praticado na África antes de os negros serem trazidos ao trabalho forçado na América Portuguesa. E como objetivo final, compreender quais os papéis político, econômico e social das Irmandades que permitiram aos escravos e seus descendentes uma ascensão e mobilidade social muito abrangente e que, ainda viabilizaram meios de luta social contra o sistema escravista e proporcionaram a criação do sentido de comunidade, já que as divisões étnicas não tinham o rigor da sua Terra Natal. A sociabilidade era tão intensa que os laços de solidariedade desobedeceram às antigas rixas ou divisões milenares entre reinados ou impérios. 12 Sabemos que todo o território brasileiro sofreu influência de índios, de portugueses, de negros africanos e seus descendentes, de espanhóis, de franceses, de holandeses, entre outros povos, ao longo de séculos de ocupação e exploração. Porém, ainda estamos longe de desvendar o quanto esses povos contribuíram realmente para a construção de nossa história. Nesse sentido, ainda que muito se tenha discutido sobre a escravidão, sobre a trajetória africana em terras portuguesas e sua forma de convivência, abordagens podem ser feitas intencionando levantar traços da cultura negra africana que determinaram toda forma de manifestação moral, religiosa, política e econômica registrada ao longo de todos esses anos. Porém, o século XVIII, em especial, no qual este trabalho se detém, pode nos indicar algumas possibilidades que fizeram dele um momento especial na elaboração de formas de convivência que vão além do que foi antes imaginado. O século XVIII, segundo Caio Prado Junior [...] abre-se com a revolução demográfica que provoca a descoberta do ouro no centro do continente, nas Minas Gerais [...] redistribuiu-se o povoamento da colônia que tomará nova estrutura e feição [...] e nele se concentra uma das maiores parcelas da população colonial. (PRADO JUNIOR, 1970, p. 71) Com os descobrimentos das minas, o setor econômico ampliou-se com a abertura de novas atividades; multiplicaram-se ofícios, o pequeno comércio e as atividades dos tropeiros, de modo que, ao final do século, seu papel já era importante em cidades como Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Vila Rica, Mariana e São Paulo, afirma Arno Wehling (1999, p. 236) Em vários aspectos, a região mineradora foi importante para o desenvolvimento da sociedade mineira. A questão política ganhou nova força com a tentativa de estabelecer regras de conduta e punição mesmo que tenham sido “legislação de 13 circunstância” como afirma Sérgio Buarque de Holanda (2001, p. 46). Segundo o autor, essas leis eram assim chamadas por serem elaboradas à medida que as situações iam ocorrendo, sem levar em consideração a estrutura social ou as necessidades dos que eram governados. As leis pareciam ser elaboradas mais aos desejos da sorte do que por ações racionalizadas. A questão econômica atraiu muitos homens e mulheres no intuito de conseguir riqueza fácil. O Estado Monárquico Português almejou o mesmo. A questão social e cultural ganhou campo fértil com a pluralidade de “culturas” que ali se estabeleceram. Segundo Eduardo França Paiva, o [...] setecentos na capitania sintetiza a complexidade desta centúria e das anteriores, hospedando temporalidades diversas e gente oriunda de regiões mais diferentes, que carregou consigo distintos comportamentos, heranças culturais, crenças, conhecimentos técnicos, utensílios materiais visões e representações de mundo. [PAIVA, 2001, p. 26) Sabendo que cada região do território registrou e incorporou esses traços de diferentes formas, respeitando as características regionais e culturais, o mesmo movimento ocorreu em Minas Gerais desde os princípios de sua ocupação em finais do século VXII e início do século XVIII. Nesse período, dentro das características que Eduardo França Paiva apontou, uma quantidade imensa de negros africanos eram provenientes da África Ocidental à qual pertencem os seguintes grupos étnicos: Cabo Verde, Fula, Mina, Nagô e Subaru provenientes da Costa do Marfim, Guiné e Nação Courana; da África Central Atlântica registram as seguintes etnias: Angola, Basa, Bemba, Benguela, Cabinda, Cassange, Congo, Ganguela, Massangano, Monjolo, Muhembé, Muterno, Quissama, Rebolo e Xamba que fazem parte de São Tomé; da África Central da Costa do Índico temos Moçambique e de outras partes denominadas 14 indefinidas pelo autor vieram os Xara incluindo Nação Fam ou Fon, Cobú ou Kuvu, Nação Ladano, Nação Cambudá, Bique e Moconco (PAIVA, 2001, p. 71). Para os mais românticos ou desavisados, ao olharem o gigantesco quadro de etnias, culturas e línguas existentes no continente africano, é possível relacionar exatamente a distribuição deste contingente em terras americanas. Mas o fato é que ao chegarem ao litoral brasileiro, os escravos eram classificados de acordo com o porto de embarque africano Torna-se então muito difícil identificar os verdadeiros locais de origens desses homens e mulheres. De uma forma mais geral, as regiões de Angola, Nigéria, Congo e Guiné foram as maiores fornecedoras de escravos, assim como Moçambique após o século XVIII. (PAIVA, 2005, p. 19) Houve também um fluxo muito intenso de moradores de outros lugares da colônia. Esses, tendo em sua posse escravos ou não, sem distinção de cor ou classe social, vieram por vontade própria no que tangia à sua liberdade para engrossar o caldo da mineração. A mineração, que impressionava pela possibilidade de enriquecimento rápido, inflamou desejos e cobiças que fez a população interna – moradores da colônia, soldados, governadores, homens livres ou escravos, pobres - e externa – franceses, holandeses, espanhóis, portugueses -, enfrentar muitos perigos e muitos desafios, causando um remanejamento populacional da América Portuguesa fazendo dos setecentos um “[...] marco especial para todo o império português” (PAIVA, 2005, p. 26). Ali, [...] a riqueza era acentuadamente concentrada em poucas mãos, a miséria fazia parte da vida cotidiana dos núcleos urbanos e das áreas rurais, mas conformara- 15 se uma classe intermediária urbana que tornava aquela sociedade diferenciada. (PAIVA, 2005, p. 26) Os negros escravos, libertos, transitavam livres por essa sociedade em grande quantidade e tinham como objetivo também o ganho de sua estabilidade econômica e social já que, para Marcos Francisco Aguiar (1999, p. 2), existe por parte da população negra um movimento que caracteriza uma ação coletiva. Essa ação é construída na sociabilidade confrarial e corporificada através das Irmandades Negras, em um ambiente de cobiça e enfrentamentos. Caio Cesar Boschi entende que as Irmandades foram erguidas para melhor adaptação à vida escrava e à religião católica (BOSCHI, 1986). Essa é apenas uma das vertentes que discutem as Irmandades Negras assumindo o papel de organizadoras plenas da vida social e religiosa. É necessário, porém, definir os conceitos que giram em torno das Irmandades. Em um conceito mais amplo retirado do Dicionário de Língua Portuguesa, Irmandades são representações de religiosos que não recebem ordens sacras (FERREIRA, 2001, p. 402). Essa é uma definição mais simples que se refere às irmandades de uma forma geral. Porém, em uma sociedade cujas características físicas, sociais e econômicas distinguiam teoricamente aqueles que mandavam e aqueles que obedeciam, as Irmandades tomaram caráter diferenciado. Elas foram divididas entre negros e brancos. É necessário ressaltar que essa não era a única divisão a ser feita. Existiram Irmandades que, apesar de invocarem um santo de devoção, eram constituídas por pessoas de um mesmo ofício, ou seja, a força que os uniu também foi o trabalho e o ofício de cada indivíduo, além de um santo de devoção comum. Embora essas definições sejam de considerável importância, não foram muitos autores que discutiram sua posição política, econômica, social e, principalmente, sua posição de mantenedora de um núcleo cultural. 16 Caio Cesar Boschi discute o conceito político-econômico e inicia interpretando as Irmandades como associações de expressão orgânica e local que representavam um canal privilegiado de manifestação numa sociedade em que a livre formação de entidades políticas era proibida “[...] como condição básica para a própria sobrevivência do sistema colonial” (BOSCHI, 1986, p. 3). Em seu entendimento, as Irmandades eram entidades coletivas e traziam em seu cerne um conceito individualista de seus membros que as procuravam pelos mais variados problemas – medo da morte, participação social e política. (BOSCHI, 1986, p. 14). Boschi faz questão de diferenciar as Irmandades, das confrarias, das uniões pias e das ordens terceiras. As confrarias são associações que têm como objetivo o incremento do culto público. As uniões pias são associações de fiéis erigidas para exercer funções de piedade e caridade. E as Ordens Terceiras assinalavam um grau de prestígio em que a parcela enriquecida da população se concentrava. (BOSCHI, 1986, p. 19-21). Na prática não nos parece que a diferença entre elas tivesse sido muito discrepante em relação a princípios religiosos, porém, no que diz respeito à ordem social e econômica, a diferença era altamente considerável. Ao que veremos mais adiante, dificilmente membros não pertencentes a uma determinada divisão social tinham oportunidade de participar de Irmandades diferentes da sua condição econômica. Julita Scarano, embora não nos forneça uma definição clara, nos dá alguns indícios sobre o que entende por Irmandade. Primeiramente o caráter associativo das Irmandades era ponto fundamental, além de seu caráter religioso e caritativo (SCARANO, 1978, p. 25). 17 Scarano lembra ainda, que o surgimento dessas associações se deu pelo fato de que a administração e os representantes religiosos viviam com desconfianças mútuas. Isso quer dizer que, não havia apoio por parte da Coroa ou mesmo da Igreja para a construção de igrejas. Nem brancos, nem negros e pardos e nem associações de ofício tinham ajuda financeira. A cobrança de impostos, inclusive dos padres, era a principal causadora dessas discórdias (SCARANO, 1978, p. 16). A população em meio a essas disputas de poder construiu seus templos de devoção à custa de seu próprio dinheiro, e, por esse motivo, passaram a ser chamadas de Irmandades Leigas. A nomenclatura era a mesma para todas: as de brancos, negros, mulatos, músicos ou de qualquer outro ofício. Mariza de Soares Carvalho (2000, p. 166), que estuda as Irmandades Negras na cidade do Rio de Janeiro, não aprofunda a discussão sobre o conceito, mas brevemente indica que eram tradicionalmente organizadas para a devoção e caridade e, segundo a visão da Igreja, para a propagação da doutrina. Ela também destaca o caráter individualista das Irmandades, visto que ocorre uma séria disputa entre as irmandades de forma geral. Marcos Francisco Aguiar (1993, p. 7), que estudou as Irmandades e sua abrangência cultural, define as Irmandades como associações leigas de caráter religioso, com fins de culto a um santo ou devoção particular. Nesse ambiente, as Irmandades construídas pela população negra – não exclusivamente escrava – se tornaram ponto importante para a manutenção de uma identidade. Para melhor entendimento dessa dinâmica, foi necessário optar pontualmente por algumas delas. Cada Irmandade tem sua particularidade, não podendo assim ser estudadas como um bloco único e imutável em suas manifestações culturais, 18 pois cada região apresentou características diferentes de acordo com suas próprias possibilidades e em seu próprio tempo. Para uma análise mais cuidadosa, analisam-se aqui as Irmandades de Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e a Irmandade de São José, todas em Ouro Preto, antiga Vila Rica. Uma delimitação temporal foi necessária para estabelecer em quais momentos as Irmandades estabeleceram maior ou menor possibilidade de mobilidade social: o século XVIII. Lembrando que a população africana quando trazida para as possessões portuguesas não era recém-nascida, pretende-se compreender o processo pelo qual passou na busca da permanência de uma identidade e também de apropriação de outras culturas ou adaptando-se umas às outras. O resultado desses contatos foi a criação de uma cultura afro-brasileira cheia de valores e princípios que não feriram sua concepção de apreensão do mundo que trouxeram da cultura original praticada por meio da tradição oral. Busca-se, com isso, compreender como as inter-relações entre negros escravos, livres, forros, libertos, africanos e brasileiros, homens brancos livres - ricos e pobres -, mulheres nas mesmas condições, estabelecidas em Vila Rica do século XVIII, sob a proteção dessas irmandades, propiciaram ao negro africano e seus descendentes expandirem sua posição de agente histórico, difundindo e perpetuando sua cultura, através de lutas diárias que obrigaram a sociedade mineira a fazer concessões em busca de acordos que agradassem ambas as partes. Segundo o conceito de Théo Lobarinhas (2002, p. 25), “[...] os cativos são agentes históricos no momento em que lutam para inserir sua participação na transformação social, com base na verificação de que a luta social é um obstáculo à reprodução escravista”. 19 Seguindo a trajetória histórica no continente africano, levanta-se a hipótese de que foi sua concepção de educação pautada pela tradição oral e pela autonomia do ser social preparado para viver em comunidade (BÂ, 2003, p. 70) que os fez dominar o cenário cultural em toda região constituída das cidades históricas de Ouro Preto, Mariana, Sabará, São João Del Rei e Arraial do Tejuco (Diamantina). No nosso caso, esse domínio cultural é representado pela música que foi produzida e divulgada nesse período. Por isso, para esse trabalho foi muito valiosa a análise dos livros de Compromisso das Irmandades de Santa Efigênia que “[...] foi construída pelos negros no bairro do Alto da Cruz do Padre Faria na parte antiga da cidade entre 1717 e 1719 em contraposição à primeira capela construída em Antônio Dias “(LANGE, 1979, p. 17, grifo do autor), Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados, fundada entre 1720 e 1728. As três irmandades eram diferentes em suas composições e por isso devem ser estudadas separadamente, para compreender seus detalhes. Esses livros apresentam boa parte da contabilidade das irmandades referentes à movimentação musical da época contendo nomes dos músicos, procedência – se eram escravos, se eram forros1, se eram libertos ou de ganho2 -, contém instrumentos que tocavam, para qual igreja ou evento eram contratados, quais deles participavam das mesas de decisão das Irmandades, se tinham outras profissões e se eram casados ou solteiros . 1 Os escravos Foros são aqueles que, de alguma forma, ao longo de sua vida de trabalho, conseguem obter dinheiro suficiente à compra de sua libertação – alforria. 2 Os escravos de ganho eram escravos que praticavam alguma forma de trabalho extra que lhe proporcionava dinheiro e lucro ao senhor. Por exemplo, um escravo mineiro que trabalha de segunda a sábado, no domingo pode explorar por conta própria. Uma parte do dinheiro era de seu senhor, mas o que restava ele poderia guardar e comprar sua alforria. 20 Essa movimentação nos permite acompanhar os períodos nos quais esses músicos mais se agitaram e permite alcançar a dimensão cultural que se alçou nos anos de atuação das irmandades e, principalmente, nos ajudam a dimensionar a importância social e econômica que representaram na construção social de Vila Rica e de toda região. Outro documento que nos ajudou a formular a hipótese da importância da vivência escrava em torno da sociabilidade mineira foi o dicionário de Costa Peixoto que no século XVIII recolheu palavras, frases, ditados da população que tem como linguagem “mina-jêje”, favorecendo algumas análises a respeito de como sobreviviam e conviviam nesse cenário (CASTRO, 2002). Segundo Nina Rodrigues (1933, p. 161-163), minas “eram os negros de língua gá e tshi na Costa do Ouro” que se estende a todos aqueles provenientes da Costa da Mina. Castro (2002, p. 14) ressalta que há uma crioulização por absorção de traços lexicais e gramaticais do grupo gbe que dá início ao modo de falar mina-jeje - um falar afro-brasileiro que teria emergido nas Minas Gerais do século XVIII em razão da grande quantidade de negros originários do antigo Daomé Por último, tentamos pormenorizar as relações entre senhores e escravos que, longe da dicotomia, culminou na manutenção da escravidão durante séculos, não apenas pelo autoritarismo e pela força. A escravidão não pode ser vista como um processo tranquilo entre senhores e escravos e, muito menos, como uma submissão do escravo em relação a seus senhores. Não se pode também recorrer ao extremo entendendo que as vivências da escravidão foram somente acordos pacíficos ou relação de compadrio ou camaradagem. O grau de tensão é que direciona as resoluções das contendas. 21 Há uma crise da escravidão - afirmada por autores como Théo Lobarinhas (2002, p. 29)- que faz com que acabe por deixar de existir no final do século XIX, graças à força coletiva dos escravos em atingir a economia das grandes lavouras (LOBARINHAS,. A moeda de troca nesse caso era o trabalho. Ao cogitar a possibilidade de não trabalhar, os escravos garantiriam que a economia agricultora sofresse perdas incalculáveis. É possível afirmar, ao analisar a grande força de mobilidade que os negros escravos e libertos tiveram também no século XVIII, que o regime escravocrata manteve-se em constante crise e que, não pode ser entendido como fixo e intransigente. Para tentarmos esclarecer ainda mais esse processo de adaptação e tomada de poder da população negra, na primeira parte discutimos a bibliografia e o conceito acerca das Irmandades e sua atuação ao longo do século XVIII, quais seus objetivos, e ações em torno de uma população escrava e livre, qual a importância para a sociabilidade e como foram utilizadas para a conquista de posicionamento jurídico dessas populações; na segunda parte, falamos sobre a constituição da população mineira como premissa a todos os desencadeamentos culturais que tomaram grandes proporções. Esse movimento e o contato multicultural são de fundamental importância para que possamos dimensionar a quantidade de contatos que possibilitaram a convivência e a sobrevivência de todos os moradores de Vila Rica. No segundo capítulo iniciamos uma discussão sobre o conceito de educação africana, que tem seus próprios ciclos e especificidades, tratando da memória tradicionalista que os ajudou a manter sua história viva e que foi inteiramente praticada através da oralidade. Esse processo educacional permitiu a manutenção de sua cultura e, ao mesmo tempo, permitiu novas adaptações em solo desconhecido. 22 Para este trabalho, utilizamos estudiosos sobre educação africana e o Dicionário Costa Peixoto que nos traz um vasto vocabulário com dialetos africanos falados no século XVIII em Vila Rica do Ouro Preto e, por fim, analisamos a atuação da educação africana no interior das Irmandades em busca de uma autonomia cultural sem limites praticada através da música setecentista erudita e popular. No terceiro capítulo, o objetivo é demonstrar como as Irmandades abriram o caminho para a liberdade social e econômica através da ação cultural, dando aos músicos mineiros negros e seus descendentes, grande visibilidade. Esse processo contribuiu para um movimento de resistência cultural totalmente novo em sua execução sem jamais esquecer sua ancestralidade. 23 CAPÍTULO I MARCHA PARA MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII Sérgio Buarque de Holanda, na primeira edição do segundo volume de A época colonial em 1963, destacou a importância da história eclesiástica para a compreensão de inúmeras questões da história do Brasil e assinalou a influência das instituições religiosas em vários setores da vida brasileira, lamentando a carência de estudos sobre o tema (CARRATO, 1963, p. 4), fato que fica visível quando pesquisamos as questões culturais das Irmandades de forma geral e, em especial, as de negros. Ao mesmo tempo em que emanam as manifestações culturais, as Irmandades expressam também o processo pelo qual foram mantidas, sabendo que, longe de uma convivência pacífica, enfrentaram muitos problemas tanto com a população civil de homens importantes econômica e socialmente – irmãos de mesa, párocos, membros de outras irmandades, homens e mulheres da aristocracia, pequenos comerciantes - quanto com o Estado, na figura de seus representantes, pela falta de pagamentos de suas dívidas ou por contendas judiciais (SCARANO, 1975, p. 21). Os negros africanos trouxeram consigo toda constituição social que lhes foi ensinada e reforçada por uma educação muito diferente da educação jesuítica aplicada em primórdios do povoamento que além do ensino obrigatório da língua portuguesa e latim, se ministrava ensinamentos do catolicismo (SAVIANI, 2005). A educação africana, segundo Hampâtè Bâ, de origem futa-tucolor proveniente da região da atual Nigéria, afirma que, de forma geral, prima pela constituição do ser social, antes do ser econômico e político. Nela a aprendizagem de costumes e ideais 24 perpassa pela presença inerente dos mais velhos detentores de todos os saberes, dando à tradição oral importância fundamental nesse processo (BÂ, 2003, p. 151). Essa generalização feita pelo autor revela que, apesar de muitas diferenças como, por exemplo, nas regiões em que a religião muçulmana é predominante, existe uma unidade nas intenções que se tem ao ensinar os mais novos. Esse processo de educação, nos termos atuais, poderia ser chamado de educação não-formal. Embora seja caracterizada por seu caráter não-institucional e não sistemática, tem objetivos intencionais, ou seja, tem um propósito (PARK, 2005) que, no caso africano, é a formação do ser social e comunitário. É imprescindível, no âmbito religioso, que haja um conhecimento aprofundado do funcionamento das Irmandades para compreender como o negro as utilizou para suas formas de instrução e como conseguiram, em maior ou menor escala, promover a permanência de sua cultura. Cultura que se transformou, se moldou, se adaptou, rejeitou ou foi rejeitada, desconsiderou traços, renascendo conforme sua necessidade no ambiente novo, que, embora semelhante, não é mais o lugar de onde vieram. Apenas foi recriada da melhor forma que se pode para torná-la reconhecível aos africanos e seus descendentes. Tal pesquisa teve início em março de 2000 quando em uma aula de História do Brasil, no Curso de Graduação em História, o tema “Irmandades Negras de Minas Gerais” veio ao meu conhecimento pela primeira vez. Logo depois, iniciei uma busca bibliográfica em torno do assunto quando me deparei com duas obras fundamentais a este estudo, incorporando elementos da composição física, institucional, social e econômica das Igrejas. Comecemos pela estrutura física e institucional, ainda que o dois autores encontrados tenham feito apontamentos sobre a utilização das Irmandades como foco de 25 manifestações culturais. Julita Scarano (1975) e Caio César Boschi (1986) fizeram um belíssimo trabalho sobre o funcionamento administrativo e eclesiástico delas. Depois de estudar as duas obras, parecia insuficiente o número de indícios para compreender como as irmandades negras chegaram a ter tanto poder econômico em uma sociedade escravista. Assim, a primeira visita à cidade de Ouro Preto foi inevitável. A busca inicial ainda era muito insípida, pois não sabíamos o que iríamos encontrar. A pesquisa pela internet é fundamental. Em uma dessas ocasiões, no sistema virtual de bibliotecas encontrei mais um autor que trabalhou em dissertação de Mestrado com as irmandades negras e com sua tese de Doutorado com a idéia de diáspora negra. O autor Marcos Magalhães Aguiar trouxe em seu corpus documental uma série de processos de autos de infração referente ao século XVIII. Lá encontramos uma infinidade de situações nas quais os personagens são os mais variados e com posições sociais mais diversas. Quase todos continham um negro ora indiciando alguém ora sendo indiciado por outro negro. Essa documentação nos revela como eram intensas as trocas e relações culturais, sociais, econômicas e políticas do período setecentista. Outros caminhos se apresentam e um deles foi vasculhar os arquivos microfilmados do Arquivo da Casa dos Contos. Lá encontramos os Livros de Compromisso das Irmandades. Os manuscritos estão em ótima conservação e a reprodução é fácil. Mas nas obras e nos compromissos não apareciam respostas suficientes que explicassem as questões formuladas. Como se tornaram economicamente auto suficientes? Como os escravos poderiam ser assíduos freqüentadores já que a escravidão teoricamente impedia a livre circulação? Quem representava a lei? Que lei era realmente seguida? Como a igreja exercia seu poder se os padres eram proibidos de estabelecer residência fixa? O que eram as irmandades leigas? 26 As questões eram muitas e a pesquisa às vezes proporciona boas surpresas. Indicaram-me uma pessoa que sabia muito sobre a história da cidade. Era o guia turístico mais procurado e mais ocupado: o Manteiga. Consegui conversar com ele na Câmara Municipal, ao lado da Praça Tiradentes. Quando expliquei o que estava procurando, ele não hesitou em dizer que seria muito interessante procurar um terreiro de Candomblé situado próximo à antiga estação ferroviária. Chegando lá, me apresentei como pesquisadora da cultura afro-brasileira. Fui muito bem recebida por Mãe Maria e Pai José, responsável espiritual da casa. Assisti a uma sessão de benção e fui convidada a participar. Ao sentar-me frente a uma entidade chamada Pai Joaquim, pedi a benção (obrigatória) como pedíamos tempos atrás para os mais velhos como sinal de profundo respeito. Consegui uma espécie de entrevista com uma entidade muito antiga e que contou um pouco de suas lembranças. Pai José me entregou um material que continha ladainhas e pontos musicais escritos em dialetos africanos que os praticantes de candomblé não tinham acesso à tradução. Disse-me que eram pontos de entidades milenares e que foram transmitidas diretamente quando encarnaram em pais de santo. Nesse material encontrei também pontos em português que eram cantados como ladainhas nas missas de séculos passados. A informação chamou a atenção por serem músicas feitas por negros cantadas em missas de uma forma geral. Muitas vezes escolhemos com o que vamos trabalhar, mas o objeto de estudo me encontrou novamente: a música. Iniciei uma procura por elementos que indicassem a existência de uma música popular. Perguntas daqui e dali me levaram ao Arquivo da Casa do Pilar. Lá conheci uma pesquisadora da música de Minas. Ela me mostrou a coleção “Curt Lange”, insistindo que os músicos eram mulatos. Com essa informação, os elementos foram 27 sendo agrupados. Primeiro a necessidade de estudar Minas colonial para compreender como a constituição da população interfere na criação de uma cultura local própria. Depois, foi preciso conhecer a história das irmandades em Portugal e no Brasil reconhecendo diferenças profundas entre umas e outras e qual a atuação das irmandades negras na Colônia. Em seguida, resgatar quais as origens da população africana, seus conceitos sobre educação, música e religião para indicar possíveis relações com a atuação da Igreja e do Estado, e por fim, como se utilizaram da instituição para construir seu próprio mundo dentro de um sistema escravista. Mas uma grande documentação ainda seria altamente utilizada por nosso estudo. Na última visita em julho de 2009, ao caminhar na ladeira que dá acesso à feira de materiais de pedra em frente da Igreja de São Francisco de Assis, olhei para uma livraria de Editora UFMG, e vi de longe um livro que me chamou a atenção. Ao chegar mais perto li “A língua mina-jêje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII” de Yeda de Castro. Nele encontrei um dos maiores indícios da atuação autônoma e intensa dos negros na sociedade vilariquense do século XVIII. Os dialetos africanos, que sofreram uma transformação em terras mineiras, tinham sido coletados e se tornaram um dicionário. Com esses materiais, iniciamos a análise e começamos a construir as bases de nossa tese. Vejamos o que a documentação nos apresenta. Julita Scarano escreve em 1975 “Devoção e Escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Distrito de Diamantina no Século XVIII” objetivando entender o processo de congregação do homem de cor fazendo com que este se estabeleça em uma situação diferente da que lhe é autorizada através de suas relações de trabalho (SCARANO, p. 1). 28 Ao levantar informações advindas de documentos e discursos oficiais consegue abranger toda a dimensão legislativa (constituição da mesa de irmãos, membros participantes, festas encomendadas etc.), administrativa (contratação de irmãos, controle do dinheiro, pagamento de serviços) e secular (quais párocos eram contratados, organização das missas e outras questões), das Irmandades. Isso nos possibilita entender qual era a função principal da Irmandade: aumentar o campo de ação da população negra (SCARANO, 1975, p. 2). A autora dá início a uma análise cultural quando inicia seu diálogo sobre o funcionamento interno e particular da Irmandade do Rosário dos Pretos do Distrito Diamantino, composta em sua grande maioria por negros escravos. De 1789 a 1800 eram 314 escravos para 139 forros, totalizando 453 irmãos, oferecendo-nos uma projeção para tempos mais antigos (SCARANO, 1975, p. 115). Isso quer dizer que o número de irmãos escravos era esmagadoramente superior ao de irmãos forros – que já tinham comprado sua alforria – mesmo no final do século, período em que as Irmandades não tinham tanto poder econômico e prestígio como libertadoras e assistencialistas. O que nos leva a pensar que o número de escravos no início da extração de diamantes, quando o dinheiro era mais circulante, poderia ser ainda mais expressivo. Por meio das fontes, Scarano (1975, p. 80).fornece informações sobre as origens dos irmãos – como eram chamados os membros de qualquer irmandade - e até que ponto se preocupavam com a vida destes, em praticar a caridade, em levar comida aos presos. A sociabilidade caritativa é alcançada no dia-a-dia dessas associações. Para Scarano, as irmandades se constituíam em uma sociedade de nações: 29 [...] elementos de origem, costumes, tradições tão diversas, sem contar os brancos, os cabras, os pardos e outros, faziam da Irmandade uma verdadeira sociedade de nações - pois, ao estabelecerem moradia como pessoas livres, libertas ou escravas a mistura de origens foi inevitável - com predomínio marcante dos de cor negra. Cada grupo deu sua contribuição peculiar à vida e cultura mineira [...] (SCARANO, 1975, p. 97). Apesar de achar que a cultura mineira é fruto dessa “gente de cor”, Scarano completa dizendo que a [...] mistura de diversas raças, elaboradas conscientemente pela política portuguesa, enfraquecia os vários grupos étnicos, no sentido de que não lhes dava ocasião de manter uma só e única tradição, mas favorecia a mescla de usos diversos e às vezes antagônicos o que facilitava a fiscalização e permitia entre outras coisas que as inimizades levassem a denúncias de revoltas e ao auxílio de pretos na perseguição de escravos fugidos (SCARANO, 1975, 108). Ao mesmo tempo em que Scarano entende que a repressão exercida pela Igreja é eficaz, considera que a Irmandade desempenha uma função cultural, e ainda indica que a cultura africana é idealizada e praticada através da miscelânea religiosa, e que suas manifestações só são realizadas porque os brancos - dirigentes, ordem religiosa e Estado - assim as permitiam. Pensando assim, para ela não nasce outra forma de expressão cultural dos negros, mas sim a cultura praticada e, com sucesso, imposta pelos brancos (SCARANO, 1975, p. 170). Retira-se aqui a autonomia que sabemos que a cultura tem. A cultura não obedece às regras tampouco tem caminhos específicos a trilhar. Ela se modifica, agrega, dissolve, reagrupa e quase sempre quebra paradigmas de idéias fixas a seu respeito dando indícios de liberdade criativa. A cultura é fruto de um jogo de forças feito no mundo real, fruto da ação dos agentes históricos. Caio César Boschi em 1986 escreveu Os leigos e o poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais e trabalhou a idéia de que o objetivo da Igreja 30 como instituição era captar formas de ação que tomassem corpo através das Irmandades leigas (BOSCHI, 1986, p. 3). Para Boschi, as Irmandades eram “[...] ao mesmo tempo força auxiliar complementar e substituto da Igreja nessa ação; elas se propunham a facilitar a vida social, desenvolvendo inúmeras tarefas que, pelo menos em princípio, seriam da alçada do poder público” (BOSCHI, 1986, p. 3). Ou seja, as Irmandades intermediaram o contato Estado - Igreja, porque nesse momento, o Estado Absolutista Português não via mais uma função primordial da atuação da Igreja como forma de estabelecer domínio como fora na Idade Média. Boschi (1986) as considera canal privilegiado de expressão numa sociedade em que a constituição de livres entidades políticas (partidos políticos, associações, agremiações) era proibida, pois essa era a condição básica para a manutenção da ordem e sobrevivência do próprio sistema colonial. Ao organizar e subvencionar a construção das Irmandades, o Estado colonizador intencionou impor todo seu aparato, embora não se possa dizer que há aí algo tão regrado que não pudesse escapar de seu controle. Embora Boschi tenha a visão de que a tentativa de controle legislativo que o Estado impõe sobre as Irmandades tenha sido eficaz, na prática, “[...] as rédeas são muito mais frouxas” (BOSCHI, 1986, p. 6). As leis existiam e deveriam ser cumpridas como o acordado previamente. Porém, a fiscalização que mais surtiu efeito foi a econômica, ou seja, o recolhimento dos impostos devidos ao governo. A princípio, quase todas as Irmandades funcionaram durante longos períodos de tempo – digo décadas – sem o aval oficial do Estado português se poderiam ou não construir seus templos, se tinham ou não permissão para ministrar as ações propostas em seus compromissos. Um exemplo disso é que em 1765, Lisboa envia uma carta 31 reclamando energicamente contra qualquer ato praticado sem prévia consulta ou aviso. Nessa carta também contém o aviso de uma Provisão Real com as seguintes ordens: [...] uma ordem da mesa da Cociência (sic) o Senhor Procurador e mais oficiais da Mesa da Irmandade do Santo digo de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos que Sua Magestade Fidelíssima mandou Provisão de 18 deste anno (sic) expedida pelo seu Tribunal da Mesa da Cociencia e Ordens que sejam notificadas todas as irmandades e confrarias deste continente para irem ao mesmo Supra Tribunal confirmar seus compromissos. (Diam AAD, Livro de Eleições da Mesa da Irm.de N. S. do Rosário, Tijuco, Cópia da carta datada de 22/07/1765, MS). A carta foi enviada porque, não só a irmandade Rosário dos Pretos que já funcionava desde 1733 no arraial do Tejuco, mas muitas outras não haviam ainda pedido a aprovação de seus compromissos. Quando o fizeram, tiveram que alegar ignorância e pediram desculpas pela omissão. Scarano (1975, p. 26) lembra que para a Irmandade de Negros, essa foi uma desculpa sempre muito útil para escapar de reclamações e até mesmo punições. A Irmandade do Rosário dos Pretos de Vila Rica, por exemplo, tem registros oficiais desde 1715, mas consta em declarações extra-oficiais que ela já funcionava há mais de trinta anos, ou seja, foi erguida bem antes do estabelecimento do arraial (SCARANO, 1975, p. 48). Em suma, as datas dos compromissos em hipótese alguma representam a data de criação, elas apenas indicam o momento de sua oficialização. Francisco Curt Lange em História da Música em Vila Rica escreve em 1979 que a confirmação dessa Irmandade foi feita por provisão de 24 de dezembro de 1750 (LANGE, 1979, p. 150). O problema do controle sobre as irmandades ocorrem sobre vários outros aspectos como, por exemplo, os da liturgia. Em todos os estudos nos quais as irmandades aparecem, dificilmente encontramos registros de que algumas delas tenham sofrido punições por ministrar os sacramentos ou qualquer atividade relacionada à liturgia de 32 forma inadequada. Isso sem mencionar as grandes querelas entre o poder eclesiástico e o temporal por conta da divisão do recolhimento dos impostos. O estudo de Boschi (1986, p. 22) aponta a descrição de todo o funcionamento e os laços de união das Irmandades e o grau de cumplicidade com o Estado determinando o grau atingindo pela estratificação social. As Irmandades, embora não diferissem em sua constituição e legislação, eram bem diferentes quanto à quantidade de dinheiro gasto para sua manutenção O autor também enfatiza que, além da função política de agremiação, as irmandades também funcionaram como centro de vida social e mais, se tomaram responsáveis pelas diretrizes da nova ordem social, precedendo ao Estado e à própria Igreja enquanto instituições. Logo no princípio do povoamento, a Igreja teve sua ação desencontrada, individualizada, e quando ela pode se estabelecer, o Estado a impediu fazendo legislação específica de restrição. É por essa razão que surgem as associações leigas. É essa relação do surgimento e constituição das Irmandades em Minas Gerais que constitui o cerne da questão para Boschi. É dessa relação que advém o poder das associações leigas. E cada uma delas desenvolvia uma função que interessava seus fiéis. No caso específico de negros, Boschi (1986, p. 166) diz que eles procuravam irmandades porque algumas delas funcionavam como meio de liberação pela alforria. Na primeira parte do estudo, Boschi enfatiza que o movimento que faz surgir as Irmandades leigas em Minas Gerais, está intrinsecamente ligado à chegada do Estado com mais efetividade após a descoberta do ouro. Na segunda parte, ele tratará da atuação ideológica de apaziguamento de manifestações sociais que eram hostis ao Estado (BOSCHI, 1986, p. 2-13). 33 Considera também que a religião nas Minas indissociável das Irmandades não foi fator de contestação do Antigo Regime, pelo contrário. A pompa de antes, a riqueza do início da mineração (nas primeiras décadas do século XVIII) dá lugar à decadência, [...] as atividades artísticas em toda a região mineira não passavam de uma pálida lembrança dos tempos áureos, [...] cessava o ciclo artístico mineiro, não pela morte dos geniais artistas, mas porque o poder econômico das instituições patrocinadoras da arte estava definitivamente abalado [...] (BOSCHI, 1986, p. 110) Reconhecendo, na arte mineira, sua importância e lamentando que a produção das obras de arte tenha diminuído. Ainda em relação à cultura, Boschi (1986, p. 156) acredita que foi através do sincretismo religioso que os africanos puderam exercer suas crenças e as irmandades acabaram se tornando uma fonte de manifestação aderista, passiva e conformista das camadas inferiores nas quais não se formou uma consciência de classe e, por conseguinte, inexistiu uma consciência política. Ainda nesse ponto, diz que o Estado, através das Irmandades, negras manteve seus olhos bem abertos e bem próximos de todas as suas ações, e o fez com sucesso. O mesmo autor tratará mais à frente de Irmandades e tensões sociais. Isso significa que o mesmo negro que estava sendo controlado através das irmandades poderia ser aquele que lutou contra as mazelas que o povo escravo vivia, embora não possamos afirmar que todos os negros ou descendentes façam parte desse movimento e nem dizer que não. Se em algum momento era dado a esses negros [...] instrumentos ou instituições que levassem-nos a incorporar para si e seu grupo a falsa sensação de equitatividade em relação ao branco e que tudo isso era ideologicamente realizado de modo a não despertar a condição humana dos 34 escravos, situação na qual se estaria negando o próprio sistema ( BOSCHI, 1986, p. 170). Podemos pensar que as amarras administrativas, religiosas e culturais que foram impostas, não deram conta nem de longe do fenômeno do expansionismo cultural criado pela população negra em Minas Gerais. Caio César Boschi, enveredando por essa análise, não descarta a possibilidade de que, mesmo camuflada, a cultura africana foi preservada através do candomblé, do reisado e da congada. Para entendermos que o controle que se tentou exercer não foi eficaz, podemos começar com a própria constituição da população que, só por ter se misturado, enriqueceu imensamente a pluralidade cultural. 1.1 A Constituição da população: o explorador que se viu explorado Essa exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade enérgica: fez-se antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. (HOLANDA, 1995, p. 40) Em toda história vivida pela América Portuguesa, podemos destacar muitos fatores que influenciaram efetivamente nas características econômicas, políticas, sociais e culturais que se manifestam nos dias atuais, ainda que, no decorrer de nosso desenvolvimento como sociedade, fizemos também aquilo que nos é próprio, ou seja, nos transformamos também em seres donos de nossa própria trajetória sempre que nos foi possível, reverenciando nossas necessidades e vontades como indivíduos e como povo. 35 O objetivo agora é discutir a ação desses povos culturalmente ativos em suas terras, que moldaram a forma de ser do habitante das possessões portuguesas e da região mineradora de Vila Rica em especial. Por muito tempo, uma grande quantidade de estudos e análises referentes à avaliação de nossa história não se concentrou no estudo das ações dos agentes do povo e construiu uma historiografia voltada para a afirmação do poderio do Estado Português em terras colonizadas tanto na América quanto na África e em ilhas do Atlântico. Embora essa historiografia não tenha privilegiado enfoque contrário, não podemos nos esquecer de que ela foi base, até meados dos anos oitenta, de toda revisão que historiadores puderam realizar nestas três últimas décadas. Dos historiadores debruçados na história do Brasil e que, já em 1930, compreendiam que a dinâmica das terras ocupadas pelos portugueses não devia e nem poderia ter sido dicotômica - o opressor contra o oprimido, o senhor contra o escravo, o homem contra a mulher, o negro contra o branco – foi Sergio Buarque de Holanda, exímio em tudo que escreveu, que notou em inúmeras pesquisas, inclusive em Raízes do Brasil (Holanda, 1995, p. 82) que o território recém ocupado e tudo o que nele ocorreu foi fruto de uma política que nada diferia da política que já existia em Portugal e que “[...] de lá nos veio a forma atual de nossa cultura: o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma” (Holanda, 1995,, p.40). Caio Prado Junior em Formação do Brasil Contemporâneo, obra de 1942, também atentou para o fato de que Portugal sofria várias reformulações econômicas e sociais e que desde [...] fins do século XIV, e desde a constituição da monarquia, história portuguesa se define pela formação de uma nova nação européia e articula-se na evolução geral da civilização do Ocidente de que faz parte, no plano da luta 36 que ameaçou num certo momento todo o continente e sua civilização (PRADO JUNIOR, 1970, p. 19) Isso significa que a cultura portuguesa, em sua formação, já apontava características de miscigenação - de contato efetivo com povos da Europa, Ásia e África, tanto comercial quanto político e social – o que demonstrou grande mobilidade e adaptação a ambientes diversos em níveis que outros não alcançaram. Receberam como moradores, além de conquistados, mouros de Ceuta em 1415, entrando em contato com a cultura muçulmana que se deixou marcada em seus monumentos a arquitetura oriental (Holanda, 2001). Os portugueses cristianizaram povos da África também no século XVI com negociações amigáveis tanto quanto por meio de guerras de conquistas e se observarmos a história com mais atenção (HOLANDA, 2001, p. 232), podemos indagar que em sua formação como território político, quantos povos e quantas misturas não ocorreram ao longo de milênios de História? No primeiro capítulo de Raízes do Brasil, intitulado “Fronteira da Europa”, Holanda analisa a formação do Estado Português como potência ultramarina e que consequências o ingresso econômico nascente e forte trouxe à sua forma de organização. Assim, ressalta: [...] a frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo nelas Portugal e o Brasil. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir. Os decretos do governo nasceram em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras vazes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas (HOLANDA, 2001, p. 33) 37 Dessa forma, podemos entender que falta em muito o espírito organizado e estruturado que a historiografia tradicional pregou ressaltando o controle rígido que os portugueses exerceram no Brasil. Parecia, antes, que o desprendimento e a aventura os guiaram antes da estratégia. Por esse motivo, Holanda afirma que as tentativas de controle foram, antes de tudo, tentativas de fazer exatamente o contrário do que se fazia em Portugal e que as leis elaboradas por eruditos do alto escalão social foram “[...] criações engenhosas do espírito, destacadas do mundo e contrárias e ele” (HOLANDA, 1995, p. 33). A organização social seguia a organização política. A alta hierarquia, que se exaltava nesses tempos de conquistas e durante todo monopólio português no Brasil, nunca chegou a importar de modo cabal entre portugueses ligados ao governo, pois os privilégios e honrarias quase sempre escapavam às amarras da linhagem sanguínea da nobreza, já que de status burguês se conquistava rapidamente o status de conde ou de marquês. A esse trâmite a quantidade de moedas dos cidadãos importava muito mais do que um título de nobreza em uma sociedade que passava por sérias necessidades financeiras (HOLANDA, 1995, p. 55). Logo, a fidalguia era requerida antes por costume do que real necessidade de permanência na figuração aristocrática. A nobreza vinha preferencialmente dos “[...] altos feitos e altas virtudes” (HOLANDA, 1995, p. 55) suprindo a vantagem da linhagem sanguínea. Um bom exemplo dessa dinâmica foi Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que ascendeu ao cargo de Primeiro Ministro de Portugal de 1750 a 1777 no governo de D. José I não fazendo ele parte da aristocracia e que começou sua vida política em cargos menores, galgando com o tempo postos mais 38 avultosos que culminaram no convite do rei. Antes disso, tinha ocupado o cargo de Secretário de Estado da Guerra e dos Negócios Estrangeiros (FALCON, 1993). Portanto, não existia nessa sociedade uma separação compartimentada do que era ou não possível quanto à participação no governo exclusivamente por serem nobres ou plebeus. A única premissa que impede a ascensão social em Portugal é o fato de se realizar trabalhos mecânicos (HOLANDA, 1995, p. 36), acentuando a aversão que o português tinha ao trabalho manual que serve para rebaixar o ser humano, criando uma verdadeira repulsa ao culto do trabalho. Movimento contrário à própria formação da Europa fomentada pelos afazeres manuais do artesanato medieval. O ócio seria, então, o princípio da vida de um cidadão digno, pois dava grande notabilidade ao português que podia praticá-lo em detrimento dos que trabalhavam arduamente para conseguir seu sustento e de sua família. Holanda afirma anda que “[...] entre espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico [...] e que não lhe admira “[...] que fossem precárias, nessa gente, as idéias de solidariedade” (HOLANDA, 1995, p. 39). As solidariedades ocorrem mais no interior das relações domésticas com vínculos de sentimentos do que nas relações comerciais ou políticas. Por outro lado, essa desorganização social, de forma geral, pareceu desencadear um processo de busca tão incessante por melhoria de vida, status, chances militares e políticas, que no momento da ocupação de novo território, totalmente desconhecido e desfavorável à exploração altamente rentável por muito tempo, o espírito aventureiro do português o lançou a desbravar cantos inóspitos com a mesma tranquilidade de quem não sabe o que vai encontrar. O mesmo ocorreu ao se lançarem os primeiros marinheiros modernos em mares antes desconhecidos. 39 Já citamos a forte tendência do povo português em se adaptar e conviver bem ou mal com novas formas de organização social. No novo território não foi diferente, e apesar de todos os percalços que passaram e outros tantos que criaram, não devemos menosprezar a grandeza que existe em percorrer caminhos obscuros e às vezes sem retorno certo. Foi esse espírito que ajudou na fixação do colono que, mesmo desajeitosamente e descuidadamente – vide a forma incorreta do uso de várias fontes naturais de sustento e permanência em solo fértil -, criou possibilidades de receber cada vez mais reinóis desejosos de se fixarem no território (SOUZA, 1997). Além desses aspectos, cabe ainda observar o que para este trabalho se revela fundamental – é “[...] a ausência completa, ou praticamente incompleta, entre eles, de qualquer orgulho de Raça” (HOLANDA, 1995, p. 53). Tal característica, segundo Holanda, é presente no Brasil porque já existia em Portugal. Para ele, o domínio europeu foi brando e a vida parece ter sido mais suave no que diz respeito às disparidades sociais e morais do que atadas às regras de convivência de outros territórios. Quando um colono, mesmo que abastado financeiramente, chegava para fixar moradia, não construía sua casa diferente das que aqui existiam. Outros preferiram até imitar a forma dos índios na hora de dormir pela comodidade e conforto (SOUZA, 1997, p. 49). Caio Prado Junior também salientou a escassez de colonos e de como foi difícil a expansão humana já que “[...] a distribuição pelo território da colônia é, como logo se vê grandemente irregular” (PRADO JUNIOR, 1970, p. 36). Somente quando se inicia o ciclo das áreas urbanizadas e com as grandes fazendas representadas pelos canaviais em maior escala é que se pode demonstrar 40 através de construções imponentes o status social de cada família. Mesmo assim, não estamos falando de grandes confortos como água encanada, esgoto ou qualquer tipo de regalia, inclusive alimentar (ARAÚJO, 1993). Então, podemos dizer que ao viver em território colonizado, principalmente no início da exploração e nos séculos subsequentes, a grande maioria da população vivia em condições econômicas bem parecidas e, exceto nas grandes cidades – e ainda aqui há exceções –, há uma homogeneização do modus vivendi. Essa afirmação pode ser estendida a todas as culturas que permaneceram em terras brasileiras, incluindo os africanos trazidos para o trabalho escravo na lavoura, na mineração ou onde mais se encaixasse sua força física. Aqui os portugueses estabeleceram um contato que também imitou os moldes do reino. Muitos escravos já permeavam a cultura portuguesa. Em 1541 já existiam 12 mil escravos, denunciava Damião de Góis, formando um quinto da população (1932 apud AZEVEDO, HOLANDA, 1995, p. 54). Góis não denunciava somente o número excessivo de estrangeiros utilizados em serviços gerais, mas também a nova miscigenação da população portuguesa em sua história de formação social. Esse fato indica que transportaram para o Brasil toda essa carga cultural que aqui não tardou a continuar se desenvolvendo e, embora em muitos casos a aversão ao contingente negro tenha realmente existido, vale ressaltar que essa não foi uma constante, segundo estudos que veremos mais adiante. Portanto, até o momento tentamos estabelecer que a chegada e permanência do povo português em terras tupiniquins foram, sem dúvida, um dos fatores mais marcantes e ricos em consequências que direcionou toda história do povo brasileiro. 41 Mais do que isso, estabelece diretrizes que nos orientem em busca da compreensão da complexidade que existe na estrutura cultural e social do povo português e que nos trópicos ganhou nuanças mais complexas ainda quando ocorreu o encontro entre culturas africanas, indígenas e algumas culturas em minoria – franceses, holandeses entre outras. Todas elas fazem parte do que hoje chamamos de Brasil. 1.1.1 Fluxos e refluxos: quando a população se move Guardadas as devidas proporções que separam o século XXI dos séculos XVII e XVIII, podemos dizer que muita gente se estabeleceu no Brasil. Os portugueses advindos de várias partes de Portugal, e que nestas terras não queriam mais do lucro rápido e fácil, não foram, porém, a maioria: pessoas de estômagos vazios, sem perspectiva frutífera quanto ao território, de pés literalmente descalços e no que diz respeito a dinheiro também. Famigerados em um novo território que de antemão não lhes ofereceu mais do que a terra. Fidalgos e ladrões, aventureiros e lavradores, gente de bem e gente do mal. Todos convivendo e divergindo diante das situações que lhes foram impostas ou atraídas. Soma-se a esse contingente, a população indígena que, convivendo ou enfrentando, contribuiu em muitos fatores para a rápida adaptação dos estrangeiros em suas terras. E, ainda, os negros africanos, que em sua essência são tão diferentes uns dos outros quantos os indígenas. Estão prontos os temperos do início da grande 42 expansão e ocupação por meio de nascimentos e imigração da América Portuguesa, pois confinados primeiramente à então Capital São Salvador e em menor número nas terras de Piratininga (São Paulo), inicia-se um processo necessário da busca de novas terras. Movidos pela ganância, pela busca de fartura ou até mesmo pela busca da tranquilidade e sossego, o colono invade as matas, abrindo caminhos para o interior, devemos tal empreendimento aos bandeirantes, que nesse trajeto mataram muitos indígenas e, por eles, muitos foram mortos. Sheila de Castro Faria, em sua obra Colônia em Movimento, ressalta a luta acirrada que esses desbravadores mantiveram com a população indígena, pois “[...] a fama do gentio da terra afastava os que pudessem ter interesse na ocupação” (FARIA, 1998, p. 29). Essa afirmação nos faz pensar que a ocupação efetiva tardou não só pelo desinteresse que os portugueses demonstraram pela ausência de materiais preciosos em que a historiografia tradicional nos fez acreditar, como também o medo de enfrentamentos diretos com o gentio que se mostrou feroz na defesa de suas terras, que eram, sem dúvida, uma barreira difícil de ser derrubada. Muitos chefes de expedições foram rechaçados, caçados e até expulsos por índios em toda parte do território. Um deles foi Pero de Góis, expulso pelos goitacases em 1546 de suas possessões (FARIA, 1998, p. 29). Estudos mais pormenorizados podem contribuir ainda mais na compreensão do papel que o indígena representou na formação do território brasileiro, principalmente nos primeiros séculos de colonização, quando o número de habitantes ainda não era expressivo. Outra observação deve ser feita quanto à movimentação dos habitantes que reaviva a idéia de que a história da formação do Brasil não se deteve de forma alguma 43 às cidades mais visadas ou mesmo nas zonas de grande lavoura. Essa intensa luta de índios e portugueses revela que havia intensa ocupação do território e que esse mundo sempre em movimento aproximou muito mais índios, negros e portugueses do que se pode imaginar. Segundo Laura de Mello e Sousa em Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações, afirma que é em seu interior que [...] as hierarquias sociais se superpunham com maior flexibilidade e rapidez; onde os limites geográficos foram, até meados do século XVIII, fluidos e indefinidos; onde os homens inventaram arranjos familiares e relações interpessoais ao sabor de circunstâncias e contingências; onde as aldeias e vilarejos se erguiam de um dia para o outro, nada garantindo que durassem mais do alguns anos ou que crescessem com feição e o ritmo das aglomerações urbanas de além-mar (ALGRANTI, 2005, p. 53). Portanto, há, sem dúvida um processo, de ocupação feito à margem daquele que, através das grandes cidades, se pensou realizar, e que foi nos espaços abertos e nos lugares mais distantes que boa parte da colonização se processou, longe da Igreja, do Estado, das amarras sociais, onde a lei foi criada e seguida segundo sua moral e necessidades mais emergentes. Por estas e por outras não foi nada fácil expandir os territórios de ocupação da possessão portuguesa, mas no decorrer dos anos, caminhos foram estabelecidos facilitando – um pouco mais – a movimentação pelo território imenso ainda não desbravado. O século XVII, marcado pelo cultivo da cana-de-açúcar e da grande lavoura, perde seu foco em notoriedade – não desaparecendo é claro, pois manteve sua produção à revelia de qualquer outra forma de exploração – para os primeiros achados de filetes de ouro na Capitania de Minas Gerais em 1697 e subsequentemente em Mato Grosso e em Goiás. 44 Para Caio Prado Junior, o século XVIII é marcado pelo ciclo do ouro que redistribui o povoamento da Colônia que toma, a partir de tal descoberta, nova estrutura e nova feição (PRADO JUNIOR, 1970, p. 72). Apresentam a mesma opinião os autores Maria José C. M. Wehling e Arno Wehling em Formação do Brasil Colonial ao afirmarem que o século XVIII é o século da consolidação colonial, pois a descoberta do ouro “[...] articulou toda colonização portuguesa, transformando um arquipélago de colônias isoladas em continente, ainda que apenas relativamente integrado” (WEHLING, 1999, p. 42). Devemos nos lembrar que, enquanto o ouro se tornava a principal fonte de riqueza do Reino, outros cantos do território continuavam sua expansão. Aliás, enquanto a mineração era realizada, o século XVIII foi realmente o século da formação da fronteira, onde incessantes guerras com os índios e espanhóis terminavam em grandes carnificinas de ambos os lados. As expedições duravam meses e meses, talvez até anos. Seguiam grupos inteiros com mulheres e crianças para uma efetiva ocupação vivendo e morrendo em conjunto. Plantando, cultivando criações ao longo do trajeto para não morrerem de fome. Caçando animais silvestres para manter uma dieta que facilitasse o acúmulo de energia. (SOUZA, 2005). Contudo, ainda tinham condições de continuar, registrando em suas passagens um pouco da reprodução de uma vida em família que os remetesse ao cotidiano que deixaram para trás em busca de melhoria de vida. O que os fazia continuar era a certeza de retornar a seus lares nas capitanias sejam ricos ou pobres, negros ou índios (BÂ, 2003, p. 81) Essa população que ainda é parte portuguesa, parte africana e parte indígena, e que também já é parte mestiça e brasileira se movimenta. Eram aproximadamente 350 45 mil habitantes em fins do XVII sem contar os índios do Sertão (LOBARINHAS, 2002, p. 144). Viajavam a pé em pequenas caravanas pelo território; vindos de Salvador, Piratininga (São Paulo) ou de Campos de Goitacases (Norte Fluminense), não esquecendo outras vilas próximas. Chegavam das terras do Reino com grandes capitais, em navios de outras partes do mundo com pouco ou nenhum capital nos Portos do Rio de Janeiro e São Vicente, chegavam como escravos para a mineração de toda parte da África, mais homens do que mulheres, governadores, capitães-mores, clérigos. Todos eles se encontravam em Minas Gerais no momento de seu pleno desenvolvimento como centro econômico mais importante para Portugal. Os deslocamentos ocorridos no Brasil – senão todos – foram motivados por tentativas de enriquecimento e correspondem, segundo Prado Junior, “[...] a ensaios, tentativas, novas tentativas, a procura incansável do melhor sistema de vida [...] aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos [...] de uma conjuntura passageiramente favorável” (PRADO JUNIOR, 1970, p. 73). Nesse movimento, os bandeirantes se tornaram mineradores, fundaram arraiais que engrossaram pela quantidade de “gentes de toda qualidade” povoando a faixa central que inclui Minas Gerais, Goiás e Cuiabá, afirma Buarque de Holanda (2005). Em 1694 os primeiros indícios da existência de ouro foram confirmados. O imã dourado atraiu com rapidez a atenção de todos, inclusive a do Rei. Este era sempre o último a ter notícias das novidades da feitoria, devido ao precário sistema de comunicação que atuava em suas possessões. Mesmo os moradores demoravam a tomar conhecimento das novidades, e a verem com seus próprios olhos as descobertas. O Capitão-general Arthur de Sá Menezes foi a primeira autoridade – de que se tem notícia – a visitar as minas entre 1697 e 1700, anos depois das primeiras notícias oficiais 46 (PRADO JUNIOR, 1970, p. 28). A rapidez, porém, é considerável se lembrarmos dos recursos que a época oferecia. Toda essa movimentação e a junção dessa população já miscigenada fornecem os ingredientes para a formação de uma população dinâmica e altamente autônoma quanto aos rumos sociais que ela propõe. 1.1.2 A população em torno da mineração: culturas, línguas e convivência Em um quadro de intensa movimentação, houve grande necessidade de estender o trabalho escravo que era praticado em boa escala nas lavouras de cana-de-açúcar, para a extração de ouro e, por isso, um imenso comércio marítimo dos Portos do Brasil e da África foi aprimorado. E alguns pontos devem ser abordados neste sentido, na busca de compreender este intenso e vultoso comércio. Primeiramente, o comércio entre Brasil e África nada mais era do que uma extensão de um comércio africano já existente. Os africanos eram vendidos como escravos pelos mercadores “[...] envolvidos no comércio transariano séculos antes dos portugueses chegarem à Costa de Guiné, e várias sociedades africanas tinham entre suas instituições diversas modalidades de escravidão” (SOUZA, M., 2002, p. 153). Não só portugueses, mas holandeses, franceses, ingleses e espanhóis estabeleceram relações comerciais com diversas sociedades africanas. E, a partir do 47 século VX a meados do século XVII, os portugueses dominaram o comércio com a costa africana, “[...] estabelecendo padrão básico que orienta as relações entre os povos europeus e os povos africanos até o final do século XIX” (SOUZA, M., 2002,, p. 115). Assim, a escravidão em sociedades africanas era uma forma de adquirir riqueza, embora tenha tomado forma e corpo diferenciados dependendo da localidade geográfica. Por exemplo, na etnia fula na região da Nigéria, como expõe Bâ, os escravos se tornavam da família a ponto de, em caso de morte de algum membro central, poderem ser nomeados os novos chefes (BÂ, 2003). O comércio anterior à chegada dos Portugueses ao Brasil revela que, mesmo antes de ser instituída, a escravidão já vinha sendo organizada se transformando num verdadeiro e sistemático ponto de interlocução com o continente Africano. E, por isso, é fundamental entendermos que esse contato fez toda diferença na introdução do africano em terras recém colonizadas. Pelo mesmo motivo – o fato desse intenso comércio não ter permitido controle rígido - é muito difícil estipular, ainda que superficialmente, o número exato de negros africanos que foram trazidos para o trabalho forçado. Assim como é equivocado afirmar que só negros provenientes da África tiveram seus destinos traçados em terras além mar, pois já havia um comércio com outras feitorias (Açores e Ilha de Madeira) ou mesmo em Portugal, que provavelmente já teriam gerado filhos da terra. Porém, algumas tentativas foram realizadas a partir disso, e que, superficialmente, dão idéia da quantidade de negros que adentraram o território com todas as suas implicações – pessoas diferentes, de religiões diferentes, costumes diferentes etc. Além do mais, toda informação demográfica advém dos batismos e óbitos que a Igreja registrou ou da entrada nos portos de documentos falsificados dos 48 comerciantes de escravos para fugirem da fiscalização e da taxação excessiva de impostos para cada passageiro dos navios. No caso exclusivo de Minas Gerais, Caio Prado Junior (1970, p. 13) utilizando estudos de Eschwege de 1814, publicado no Plutus Brasiliense, avalia que existiam naquele momento 555 lavras, em que trabalhavam 6.662 pessoas, sendo que 6.493 eram escravos. Havia também 5.747 faiscadores ( mineiros que trabalhavam individualmente) dos quais 1.871 eram escravos (RODRIGUES, 1970, p. 175). Uma população, portanto, de 12.409 pessoas sendo 8.364 escravos que os documentos oficiais puderam registrar. Nina Rodrigues contabilizou em seu estudo Os Africanos no Brasil, de 1976, uma população de 3.250.000 habitantes no Brasil, sendo que deste número, 1.988.000 eram classificados como negros, pardos e libertos (RODRIGUES, 1970, p. 15). Diante de números incertos o fato é que não é fácil sabermos com precisão a demografia da América Portuguesa assim como não é menos confortável sabermos a proveniência exata da localização dos negros africanos. Porém, ao longo dos séculos, a população africana foi tão intensamente inserida no cotidiano dos exploradores, que o conhecimento dessas populações foi enormemente facilitado (SOUZA, 2002). É esse intenso comércio que possibilita a expansão de áreas a serem exploradas e delas são provenientes os escravos trazidos para as lavras. Da mesma forma ocorreu com africanos em outras partes do Brasil e, ao aportarem, com a mobilidade existente também entre as capitanias, fica difícil saber quais regiões receberam mais ou menos conterrâneos, com exceção talvez da Bahia, onde a identificação é mais efetiva. Em linhas gerais, os autores levantam alguns dados que apontam para grupos específicos de africanos. Yeda Pessoa de Castro destaca que toda a linha abaixo do 49 Equador que engloba os seguintes países: Camarões, Gabão, Congo-Brazzaville, Congo-Kinshasa, Angola, Namíbia, África do Sul, Zâmbia, Botsuana, Uganda, Ruanda, Burundi, Moçambique, Tanzânia, Zimbábue, Quênia, Lesoto e Malavi, de domínio Banto, e da África Ocidental que vai do Senegal à Nigéria, no Golfo de Benim que compreende Serra Leoa, Guiné-Bissau, Guiné-Conakry, Gâmbia, Libéria, BurquinaFasso, Costa do Marfim, Gana e Benim, forneceram contingente escravo ao longo dos três séculos de tráfico (CASTRO, 2002, p. 39). O povo banto, segundo a autora, se encontra em um território vasto e fala uma variedade de línguas que remontam um tronco linguístico comum, o proto-banto, de quatro milênios atrás. Porém, entre todas essas línguas algumas foram sobrepostas em importância às outras. São os casos de três delas: umbundo, quimbundo (Angola) e quicongo no Brasil (CASTRO, 2002, p. 43) . Os oeste-africanos, tradicionalmente chamados de sudaneses, também se destacaram no Brasil pela preponderância numérica pertencentes à família de língua iorubá e do grupo ewe-fon (CASTRO, 2002, p. 43). Nina Rodrigues também salienta que quantificar a entrada de negros é muito difícil e concorda que: [...] a esta enumeração bem podem ter escapado muitos povos negros que, principalmente no curso dos três primeiros séculos do tráfico, não deixaram de sua passagem vestígios nem documentos. Seguramente africanos de muitas outras nacionalidades haviam de ter entrado no Brasil (RODRIGUES, 1976, p. 261). Porém, dá sua contribuição ao elencar as etnias registradas em suas pesquisas. São elas: camitas africanos (fulas, berberes), mestiços camitas (fulanins, pretos-fulos), mestiços camitas e semitas (bantos orientais), negros bantos ocidentais (cazimbas, schéschés, xexys, sussus, solimas), negros da Senegâmbia (yalofs, falupios), negros da 50 Costa do Ouro e dos Escravos (gás, ashantis, minas, jejes ou ewe, nagôs, beins), sudaneses centrais (nupês, haussás, adamanás) e negros Insuli (bossós, Bissau, bixagós) (RODRIGUES, 1976, p. 261). Marisa de Carvalho Soares salienta que, no Rio de Janeiro, algumas etnias se sobrepuseram perante a outras, onde 40% dos negros eram de Guiné, 23,51% de negros eram da região denominada Mina e 36,49% dos negros eram provenientes de Angola (SOARES, 2002, p. 105). Quase todos os autores que trabalham com escravidão no Brasil acabam por elencar as etnias que aqui se instalaram e desenvolveram. Isso quer dizer que, apesar da historiografia tradicional não reconhecer por completo o empenho das comunidades africanas em manter autonomia cultural, todos revelam, portanto, a importância de compreender a quais grupos pertencem, entendendo que é fundamental conhecer as origens de cada povo africano. Muitas guerras foram travadas entre africanos e contra inimigos comuns. Muita gente se misturou, se reinventou e se moldou aos passos necessários à sobrevivência desde muito cedo e essas relações de força, de poder e por vezes de cumplicidade, os tornam passíveis de novas ressignificações. No território brasileiro ocorreram muitas das ressignificações que foram iniciadas a partir do surgimento de muitas necessidades, algumas imediatas (adaptação ao cativeiro), e outras de longo prazo (formação de uma identidade que os uniu e também os fortificou na busca de uma idéia comum: a liberdade). Em Minas Gerais, o universo cultural intensificava-se de forma muito rápida e, em determinados momentos com total ebulição. As trocas culturais e os contatos entre povos de várias origens era um fator corriqueiro do dia-a-dia. 51 Segundo Eduardo França Paiva: [...] a Capitania de Minas Gerais era o epicentro desse fenômeno, onde um estouro cultural sem antecedentes media-se pela quantidade de gente rapidamente acomodada na região, assim como pela montagem precoce de uma rede urbana alargada e bem estruturada; pela pujança comercial imediatamente instalada; pela variedade de tradições e de conhecimentos em permanente contato; pela mobilidade de homens e de idéias; pelo estabelecimento de ligações entre todas as unidades administrativas da Colônia e de regiões estrangeiras, que passavam a se conhecer e a se integrar nas Minas e em função do abastecimento delas (PAIVA, 2001, p. 41) Portanto, embora não seja possível saber quais culturas influenciaram em maior ou menor quantidade umas às outras, é possível, porém, determinar que houve definitivamente essa troca cultural dinâmica, intensa, renovadora. Nas pequenas calçadas e nas ruas estreitas passava gente da mais variada gama de afazeres. Viajantes, tropeiros, ouvires, franceses, portugueses, pequenos agricultores, tropeiros, caixeiros viajantes, negociantes de escravos, capitães-do-mato, militares fardados ou descalços, religiosos, libertas ostentadoras de autonomia e de ouro, vendeiras, escravos e escravas, negras de tabuleiro, quitandeiras (PAIVA, 2001, , p. 42). A própria lógica da cidade, do urbano, sem muito esforço convergia todas essas pessoas a conviverem em espaço comum e que às vezes - ou por muitas vezes – eram compartilhados em comunhão (CASTRO, 2002). O que tentamos mostrar aqui, não nos leva a pensar que a convivência, apesar de ser próxima, era pacífica. Porém, a idéia é indicar que a convivência na sociedade escravista dependeu muito mais de acordos e concessões do que se pode imaginar. Longe de serem estáticas as divergências promoveram em Minas mais do que releituras culturais, mais do que simples sincretismos, mais do que aculturações. O que ocorreu em Minas Gerais foi “outra coisa”, algo que ao mesmo tempo é novo, mas que de forma alguma se desligou das tradições do passado. 52 1.2 As Irmandades: estratégias de atuação Permeada pela religiosidade3, a sociedade mineira do século XVIII contribuiu para dar às Irmandades importância definitiva na vida associativa e cultural coletiva. Sendo assim, “[...] se afirmaram como uma das principais forças sociais presentes em Minas colonial” (SILVA, 1996, p. 21-29). Em Ouro Preto, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi estabelecida em 1715, com sua sede no templo de Santa Efigênia (altar construído em 1717), mas o edifício o qual ocupavam era o da Matriz de Nossa Senhora da Conceição4. Somente mais tarde, com a construção de sua capela, levantada pelos devotos no lugar que veio a se chamar Alto da Cruz do Padre Faria (no bairro de Padre Faria), é que houve a separação dos altares (LANGE, 1979, p.19). Esse nome foi recebido para que houvesse uma distinção da capela construída na Freguesia de Antônio Dias. Assim, a Irmandade construída no Alto do morro no bairro de Padre Faria, passou a se chamar Santa Efigênia em 1719 e a construída no bairro do Caquende próxima à Matriz do Pilar que permaneceu com o nome de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em 1716. Em o Compromisso (livro que regia o funcionamento da Irmandade) da Santa Efigênia pode-se ler que em seus primórdios, foram admitidos indiscriminadamente membros negros e brancos. Por motivos desconhecidos da pesquisa de Lange (1979, p.19) os irmãos negros expulsaram os brancos por volta de 1740. 3 Entendido aqui como manifestações religiosas de qualquer natureza – congadas, festas de reis, desfiles eucarísticos, rituais realizados nos terreiros e nas senzalas, cultos aos orixás praticados em sua particularidade. 4 Uma coisa era ter um prédio, outra era ter um altar. Pode ocorrer de uma só Irmandade conter dois ou mais altares dentro de seu prédio e cada um deles recebe seus irmãos em dias e horários diferentes. 53 A Santa Efigênia foi construída em 1733, 10 anos após a criação da Rosário dos Pretos. Sua ornamentação, a estrutura física do prédio e a própria localização diferem, levando-nos a acreditar que há uma diferença de idéias entre elas em relação à expressão cultural. Os conflitos entre a Santa Efigênia e a Rosário dos Pretos eram frequentes. Há registros de que já 1723 a Nossa Senhora do Rosário teve vários conflitos, portanto, a vontade de ter um altar próprio vinha de muito tempo (LANGE, 1979, p. 19). Um estudo feito pelo historiador da cultura mineira Professor Lázaro Francisco da Silva e um colaborador chamado Marcelo Hipólito, revelou uma série de elementos do candomblé em toda ornamentação da Igreja de Santa Efigênia (LANGE, 1979, p.75). O estudo não é revelador somente nesse aspecto, pois revela também que há uma intensa luta diária dessa Irmandade com as autoridades e com seus senhores, por seus direitos (LANGE, 1979, p. 74). Em seu estudo “A Conjuração Negra em Minas Gerais” - um nome bem sugestivo - o autor mostra que [...] havia falos que numa outra perspectiva se convertiam em vaginas; havia bolotas chanfradas que evocaram os búzios utilizados na Umbanda e no Candomblé brasileiros para fins divinatórios; havia um clérigo com as insígnias papais, e de cor negra e barrete frígio na cabeça e os três outros com características negróides; havia tartarugas esculpidas nos altares; e chifres de cabras e de carneiros; e inhames; tudo se confundido com os elementos multiformes do barroco (LANGE, 1979, p. 76) 54 Imag. 1 - Altar principal da Irmandade de Santa Efigênia (GOMES, 2010) Essa versão indica que, ainda que disfarçada, a cultura afro estava presente no dia-a-dia. Então é possível pensar que tal forma de interpretação aparecia também na música. As letras são religiosas, aparentemente compostas à moda portuguesa, como esta ladainha feita em homenagem a Nossa Senhora: Nessa casa tem quatro cantos Cada canto tem um santo Pai e filho, Espírito Santo Nessa casa tem quatro cantos Zum, zum, zum Olha só Jesus quem é Inimigo cai 55 Eu fico de pé. Essa ladainha, tocada por uma das ordens religiosas, segundo Pai José – grande conhecedor de história oral - foi encomendada a um negro escravo. Hoje, é cantada como Ponto de Candomblé em um terreiro que fica nas redondezas de Ouro Preto. Pai José, responsável pelo terreiro situado na periferia de Ouro Preto, afirma que esses pontos são trazidos por entidades muito velhas de acordo com as crenças das práticas religiosas africanas5. A frase "Nessa casa tem quatro cantos", de uso freqüente do candomblé que remete ao terreiro onde se pratica a crença. Para os praticantes, "Cada canto tem um santo" é uma alusão às entidades específicas protetoras do terreiro. Por outro lado, "Pai e filho, Espírito Santo" representa a presença da Santíssima Trindade que é uma das bases do catolicismo, disfarçando o que se canta na entrada da ladainha. Algumas onomatopéias também são frequentemente utilizadas pelos negros. Uma delas "Zum, zum, zum" é também usada pelos capoeiristas que até o início da século XX não praticam sua "dança, luta" longe dos terreiros, de suas mães ou pais de santo. Essa é, sem dúvida, a parte da música que reflete toda espiritualidade africana, e mais que isso, reflete toda luta interna e intelectual que se trava em busca de liberdade física também. "Olha só Jesus quem é, Inimigo cai, Eu fico de pé" representa a luta travada pelos orixás segundo a crença afro-brasileira, que ficam constantemente indo e vindo do mundo sobrenatural ao mundo físico atendendo desejos humanos. Temos 5 Entrevista concedida em Julho de 2006 na cidade de Ouro Preto. 56 então a junção de elementos tradicionais da cultura católica com elementos do candomblé e umbanda. Temos a música como ponto de partida para a interpretação e celebração da vida em sociedade. Eis a música como forma de expressão livre de uma cultura estigmatizada que carregou toda uma conotação pejorativa por um longo período de tempo. Essa forma de manifestação artística aparece em diferentes estilos dependendo das Irmandades às quais elas serviam. Mais do que expressar uma forma cultural peculiar, é possível, além de diferir as Irmandades de forma geral, definitivamente reconhecer nas manifestações as diferenças existentes entre as Irmandades Negras. No caso de Ouro Preto é visível esteticamente para começar, que a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos tinha mais relação de proximidade com a Ordem Religiosa tradicional, do que a Irmandade de Santa Efigênia. Imag. 2 - Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (GOMES, 2010) 57 A própria localização delas dá indício sobre a diferença se olharmos a cidade hoje. A Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi construída perto da Matriz do Pilar ( de 500m a 700m ) e a Santa Efigênia no morro do bairro de Padre Faria distante da praça principal. Além disso, as formas estruturais e plásticas aplicadas nas duas igrejas também dão sinais de sua intenção. Existe uma ornamentação mais detalhada na Santa Efigênia construída ilustre e iminentemente pelos negros. Imag. 3 - Altar principal da Irmandade de Santa Efigênia (GOMES, 2010) Imag. 4 – Altar lateral da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (GOMES, 2010). 58 A primeira fotografia é de um dos altares laterais da Santa Efigênia, e o segundo é um dos altares laterais da Rosário dos Pretos. Nota-se que a representação da Santa negra é a mesma. O que difere é a ornamentação que a envolve. A Primeira, muito mais rebuscada e cheia de detalhes características da cultura africana, marcada pelas cores e pelos excessos ornamentais e, a segunda, mais leve nos acabamentos seguindo uma linha mais “branca”, próximo aos ideais de quem a ajudou a construir quando do desligamento dos brancos da Irmandade de Santa Efigênia por volta de 1715. Se nos remetermos ao período de construção da vila, notaremos que a Irmandade de Santa Efigênia foi construída antes dos prédios importantes para o Estado e para a Igreja, como a Casa de Câmara e Cadeia (1784) e a capela de São Francisco de Assis (1766), ou seja, foi construída no início do povoamento no local considerado geograficamente como a “Velha Ouro Preto”, segundo moradores. Esse fator demonstra a importância da construção da Irmandade diante da realidade de abandono e descaso das autoridades. A iniciativa dos negros em erguê-la se deu única exclusivamente por vontade e esforço próprios. Imag. 5 - Irmandade de Santa Efigênia (GOMES, 2010) 59 A construção da Irmandade de São José dos Homens Pardos está situada muito mais próxima da entrada da cidade do que no centro, perto da matriz do Pilar. Imag. 6 - Irmandade de São José dos Homens Pardos (GOMES, 2010) Analisando os trabalhos de Julita Scarano, Caio César Boschi e os trabalhos do Professor Lázaro, se estabelece uma lacuna que nos impede de compreender os passos do poder eclesiástico que pretendia ter controle sobre as Irmandades Negras e os passos do poder que esses irmãos exerceram através de suas expressões artísticas. Como um movimento cultural intenso se desenvolveu em uma sociedade que supostamente construiu suas bases políticas de controle através da figura dos senhores donos de escravos? E como fica a aparente incapacidade de organização social e política desses escravos segundo uma historiografia incompleta? 60 A cultura mineira ainda está por ser descoberta, afinal muitas facetas culturais e sociais ali desenroladas podem encaminhar a discussões na direção de uma reviravolta no entendimento das relações humanas, políticas e sociais travadas naquele cenário. Estamos aqui analisando uma pequena parte dessas possibilidades. Médicos, advogados, músicos e artistas negros de uma forma geral, formam essa cultura mineira do século XVIII de acordo com as palavras de Nestor Goulart Reis Filho6. Que controle foi exercido pela Coroa, pelas leis e pela Igreja católica se quase nada se pode fazer diante de uma organização social e econômica dos negros africanos e, principalmente seus descendentes, construídas e plenamente praticadas através das irmandades? Curt Lange revela em sua pesquisa sobre a atividade musical nas irmandades que o século XVIII não registrou presença maior do que oitenta padres regulares, que se dividiam nas muitas irmandades existentes para uma população estimada em 100.000 habitantes (LANGE, 1979). Lembra também que Somente em raras ocasiões foi possível conseguir erário real alguma contribuição, como no caso do órgão de Sé de Mariana e outra para o AltarMor de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto. Neste sentido, o monarca descuidou-se completamente da propagação da fé católica. Confiava na religiosidade de seus súditos, fazia ouvidos surdos e deixava os sacrifícios para outro. Tudo, absolutamente tudo, foi obra do povo rico e do povo pobre: o edifício, os altares, estatutárias, as pias de batismo, os sinos... (LANGE, 1979, p. 40). Ainda não sabemos o suficiente. Reforça essa observação o fato de se encontrar, entre os oficiais e irmãos de Mesa dessas associações, número expressivo de artistas e militares (participantes dos regimentos de negros presentes em Vila Rica) que certamente constituíam a elite da comunidade negra e crioula de Ouro Preto7. Eles conseguiam alcançar altos postos por seus bons serviços prestados nas Irmandades, nas 6 GOULART, Nestor. Palestra proferida por ocasião da Semana de História da PUC-Campinas em 23/09/2001. 7 Livro de Entradas, Profissões e Termos da Irmandade (1724 a 1799 e 1734 a 1785) m 080/0851-0890 vol 0097 e m081/0225-0418 vol 0098. 61 Confrarias e ordens religiosas a mesmo no Senado da Câmara. Coincidentemente ou não, muitos deles eram também “professores da arte de música de Vila Rica, capital de máxima importância na formação musical e sua expansão por todo território de Minas Gerais” (LANGE, 1979, p. 15). Para tentar empreender este trabalho através da música negra popular e erudita, é imprescindível usufruir das pesquisas de Curt Lange e da sabedoria daqueles que contam histórias sobre a antiga Vila Rica do século XVIII. Há, portanto, duas formas de análises com diferenças latentes. A primeira agrupa autores que pensam as Irmandades analisando-as com olhos de ordenador, como Julita Scarano e Caio César Boschi, que levantaram seu funcionamento através dos documentos oficiais, dos documentos de quem tem o poder nas mãos. Outros, como o Professor Lázaro Silva, analisaram a função que as Irmandades expressaram através dos traços culturais que os negros deixaram. Seu estudo pretende novos rumos à compreensão mais ampla sobre interpretações de mundo que os negros tiveram em relação à Irmandade (SILVA, 1996, p. 70). Marcos Magalhães de Aguiar em sua dissertação de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo, intitulada Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no século XVIII, avalia a função social das irmandades de negros e mulatos na sociedade colonial mineira, a partir de um estudo de caso na região de Vila Rica (AGUIAR, 1993, p. 5). Discutiu os instrumentos de controle das despesas e das prioridades estabelecidas no interior das associações, porém, acrescenta uma visão cultural. Passa a olhar de dentro para fora, ou seja, priorizará a visão de seus integrantes (AGUIAR, 1998). 62 Ele mantém a utilização maciça dos termos de compromisso e o livro de despesas por se tratarem de documentos esclarecedores quanto ao cotidiano das irmandades. Inicia falando sobre as irmandades, quais suas funções e sua evolução. Depois trata da parte administrativa e o significado da presença dos brancos nessas instituições. Trata também das formas de controle em nível local pelos civis e eclesiásticos, e, por último das atividades confrariais em relação à caridade de uma forma geral. Aguiar (1993) considera que as Irmandades se afirmaram como “[...] uma das principais forças sociais presentes em Minas colonial” (AGUIAR, 1993, p. 7) e seu objetivo não se distancia muito dos já anteriormente citados pelos trabalhos de Scarano e Boschi. Dessa forma, Aguiar dá a seu objeto uma importância cultural e consegue explorar a autonomia que os negros desenvolveram a começar pela própria decisão de participar ou não das irmandades, pois “[...] a decisão dos escravos participarem como oficiais não contava com a simpatia dos senhores” (AGUIAR, 1993,, p. 41). Já nos livros de despesas das Irmandades aparecem até senhores que fizeram questão de pagar pela anuidade de seu escravo (LANGE, 1979). Podemos interpretar que os senhores não se opunham à participação dos escravos, exceto se tivessem grandes responsabilidades no corpo jurídico ou financeiro, como é o caso dos Irmãos de Mesa, responsáveis pelas decisões administrativas e litúrgicas ou tesoureiros, responsáveis pela manutenção financeira. Lembrando que ser Irmão de Mesa não era barato: [...] diretivos da Mesa, Juiz, Procurador, Escrivão e Tesoureiro não foram somente cargos honorários: para os ocupar, a anuidade era muito superior à dos simples Irmãos. Geralmente atingia a quantia de 20 oitavas de ouro e a dos Irmãos 1,1/2, e no máximo 2. (LANGE, 1979, p. 31) 63 Mesmo com certa desconfiança de seus senhores em relação à adesão de seus escravos às irmandades, conseguimos detectar uma liberdade de ir e vir desses irmãos cuja condição social não lhes permitia. Ou seja, através das irmandades alcançaram lugar de destaque entre sua população tendo passagem livre socialmente. Lá, eles participaram de procissões, pagaram suas dívidas, empreenderam festas gigantescas, elegeram reis (Congadas) assim como outrora fizeram em sua terra natal e, ainda que entrassem nas confrarias pela mão de seus senhores, manifestavam envolvimento constante nas festas, no pagamento de sua anuidade, nos negócios internos. Aguiar (1993) expressa idéia muito próxima da de Caio César Boschi(1986), quando trata de formas de controle, embora reconheça que não são eficazes à medida que as Irmandades burlavam frequentemente o ofício pela falta de fiscalização (LANGE, 1979, p. 63). Outro ponto existente neste trabalho é a constatação, via documentos das próprias irmandades, de que conseguiam manter seus cofres bem alimentados para a realização de suas necessidades (AGUIAR, 1993, p. 45). Nos livros de receitas é possível saber toda a origem da riqueza registrada. Não só se recebia esmolas. Os escravos colaboravam juntamente com os forros com boa quantia, tinham a anuidade, a compra de casas, o aluguel e a contribuição livre de membros da mesa ou simpatizantes, em maioria negros (AGUIAR, 1993, p. 45) reforçando ainda mais a idéia de autonomia. Em sua conclusão, lamenta não ter encontrado em seus registros nada que provasse que houve efetivamente um estado de contestação da ordem estabelecida 64 embora diga que as “[...] irmandades representavam, para negros e mulatos, oportunidade reconhecida legal e institucionalmente, de agir coletivamente na defesa de seus interesses” (SCARANO, 1976, p. 183). Aguiar avança ainda na comprovação, através dos livros de despesas, de uma autonomia considerável na condução administrativa reforçada pelas relações mantidas com os brancos, capelães e autoridades. Portanto, tratar as irmandades como instrumentos de integração da população negra e mulata ao sistema colonial ou situá-las como simples aparelho de conservação de genuínos valores africanos é correr o risco de simplificar imensamente a problemática. Deve-se ter cuidado ao tratar dessas questões com extremismos. As sociabilidades permitem que as regras se estabeleçam conforme as necessidades imediatas, obrigando-nos a estudar caso a caso sem generalizações. Em seu outro trabalho apresentado como tese de doutorado, Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial, de 1999, Aguiar traça os caminhos pelos quais os negros alcançavam seus objetivos legais e que relações se estabeleciam entre senhores, livres e escravos por meio dos autos de infração catalogados na Casa de Câmara e Cadeia no século XVIII. Esse estudo contribui para a descoberta da constituição da população escrava em Minas, nos dando dados referentes à cultura, a vida cotidiana e à mistura de muitos elementos que constantemente formaram o corpo confrarial. Na primeira parte vemos uma análise da transição da escravidão para a liberdade, padrões de alforria e parentesco entre negros e mulatos. Na segunda parte vemos padrões de conflitos a partir de um estudo sobre a criminalidade e a terceira parte trata das estruturas mediadoras entre indivíduo e sociedade (AGUIAR, 1999, p. 2). 65 Essa análise indica que as ações levantadas pelos escravos ou libertos muitas vezes reivindicavam o direito à defesa, à honra, à retratação e, inclusive, de propriedade em muitos casos. Revoltas violentas, discussões em bares, de “porta de rua”, assassinatos, brigas familiares e maritais, roubos, desavenças entre amigos, faziam parte do cotidiano de uma população misturada e emaranhada que não nos possibilita estabelecer fronteiras rígidas entre ricos e pobres, senhores e escravos, homens e mulheres (SOARES, 2000). Um trabalho que também contempla a mistura de grupos que formam a sociedade setecentista é o de Mariza de Carvalho Soares em Devotos da cor no Rio de Janeiro na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no século XVIII. Em seu estudo sobre os Makis da Guiné especificamente, conclui que é de fundamental importância saber a origem dos negros trazidos para o Rio de Janeiro, para compreender a peculiaridade religiosa que se estabeleceu ali. Há, em sua obra, um elemento muito importante na compreensão dos casos mineiros: é o fato de que ao chegar no Rio de Janeiro, as etnias escolhem o caminho da incorporação à tradição cristã e, de acordo com sua documentação, conclui que é por meio de suas festas que se apropriam das regras de hierarquia e distinção do Antigo Regime e recriam uma nova ordem na qual a tradição de seus antepassados não é abandonada, pelo contrário, a religiosidade permitiu o nascimento de outras formas culturais (SOARES, 2002, p. 27). A análise de Soares trata a irmandade como um lugar onde os africanos podem manter o que lhes é importante na cultura que praticaram a vida toda. Para eles, que foram arrancados de seu território e de sua cultura que por milênios foi seu patrimônio, é impensável abrir mão de ser aquilo que aprenderam a ser (SOARES, 2002, p. 232). 66 Há uma autonomia estabelecida e não contestada pelas autoridades. Os negros aqui conseguiam expressar o que lhes era mais caro: sua cultura já abrasileirada. Outro estudo feito para detectar quais etnias foram trazidas para o Brasil e se encontraram no interior das Irmandades é o de Marina de Mello e Souza, que afirma que as etnias são responsáveis pela adaptação da Coroação do rei Congo e que aqui se tornaram festas comemorativas. Em Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de Coroação de Rei Congo (2002), Souza entra no âmbito das irmandades religiosas, mais especificamente, no que diz respeito às manifestações festivas de influência nitidamente africana como congadas e jongos espalhados pelo Brasil. Marina de Mello e Souza acredita que as congadas foram importantes veículos de cristianização dos africanos e seus descendentes, e eram vistas ora como “[...] instrumentos da classe senhorial na domesticação dos escravos e negros livres ora como espaços de resistência cultural desses últimos sempre a partir de um ponto de vista que privilegiava a opressão ou rebeldia” (SOUZA, 2002, p. 19). Em sua visão o contato prévio entre o reino do Congo e Portugal, facilitou a apropriação das culturas em “uma via de mão dupla” antes mesmo de se encontrarem no Brasil. A figura do rei era forte em ambas as culturas e aqui no Brasil o imaginário de chefe político e religioso foi explorado nas festas, recebendo homenagens e tributos como um verdadeiro rei do Congo. Eles se tornavam líderes de forma geral, mantendose assim até o enfraquecimento das Irmandades exceto quando as festas ficaram restritas a alguns grupos em cidades pequenas que se mantiveram longe dos tentáculos civilizatórios foi possível manter importância (SOUZA, 2002,, p. 25-27). Souza (2002, p. 25-27) revela que é a figura do rei mítico herói-fundador que remetia os africanos e descendentes à terra natal, onde os reinados festivos e as 67 congadas neles realizados congregavam símbolos diferentemente codificados pelos diversos grupos sociais de alguma forma envolvidos. Para os negros, era a confirmação de práticas africanas e afirmação da expressão de fé, e para os senhores era uma boa demonstração de submissão e adaptação à condição de escravo. Roger Bastide, em Religiões africanas no Brasil de 1960, expõe uma visão muito peculiar sobre as manifestações culturais africanas que estão intrinsecamente ligadas à religião. Para ele, as religiões afro-brasileiras “[...] foram obrigadas a procurar nas estruturas sociais que lhes foram impostas, espaços onde se integrar e se desenvolver” (BASTIDE, 1960, p. 30). Bastide conclui que existiram sem sombra de dúvida duas formas de resistência: a religiosa (e, portanto, a cultural) e a social (esta através das rebeliões assassinatos, fugas, criação de quilombos entre outras.), mas não chega a explorar os elementos constituintes dessa resistência mais aprofundadamente. Deteve-se mais na compreensão dos rituais religiosos. Ele também crê que [...] todos os fenômenos religiosos africanos da época colonial, ou quase todos, devem ser interpretados através desse clima de resistência cultural; mas a resistência não é um fenômeno normal: produz distorções, cria estados patológicos, endurece tanto os espíritos quanto as instituições [...] (BASTIDE, 1960, p. 131). Desta forma, ao olhar as manifestações como algo africano, não descarta que certamente elementos da cultura branca se misturaram fraternalmente a esses traços afros e, embora a religião católica européia seja em seu discurso teoricamente rígida, sabemos que historicamente ela é a junção de muitas culturas inclusive as “pagãs”. Aceitar traços da cultura africana não foi algo tão complexo (BASTIDE, 1960, p. 178). O que é preciso dizer, e que é mais justo, é que traços das civilizações africanas “[...] passaram sem que o sacerdote percebesse, ao culto, dos santos negros [...]” 68 (BASTIDE, 1960, p. 178). E, um indício dessa afirmação é o altar da Igreja de Santa Efigênia do Alto da Cruz do Padre Faria de Ouro Preto. Esta foi erigida com traços africanos e lá permaneceu sem grandes mudanças de acordo com Lázaro Silva (1996). Embora Bastide generalize a incidência da cultura religiosa africana no interior da religiosidade portuguesa, é possível resgatar algumas considerações para estudar a religiosidade praticada nas Irmandades Negras, fazendo-se obra importante para a análise específica sobre música e resistência cultural. Um estudo que tentou perceber como as culturas se misturaram e se confundiram, é o de Luiz Mott que resgata a biografia de uma ex-escrava que se auto denominou Rosa Egipcíaca. No livro Rosa Egipcíaca: uma Santa Africana no Brasil vemos como é difícil separar a cultura original africana da prática da religiosidade portuguesa. Em suas declarações ao Santo Ofício ela utilizou da essência do catolicismo europeu em relação a Jesus Cristo e a misturou constantemente à cultura matriarcal de alguns povos da África. Por causa dessa mistura de elementos que transitavam entre as religiões, ao ser denunciada, Rosa foi levada aos tribunais da Inquisição (MOTT, 1993). Os estudos de Lázaro Silva (1996), ao analisar os altares da Santa Efigênia construídos e ornamentados de acordo com os anseios escravos, revelam que há naquela construção uma intenção no sentido de aproximar cada vez mais o mundo real da escravidão ao mundo ao seu mundo ideal, onde podem exercer sua religiosidade com muita liberdade e autonomia. A conjuração negra, para ele, ocorreu em linhas silenciosas, porém, permanentes. Ao interpretarmos os documentos produzidos pelos membros das Irmandades negras é possível abrir novos caminhos. A primeira tentativa foi a de Curt Lange (1979) 69 que realizou um trabalho muito importante de levantamento documental e biográfico dos músicos da Capitania de Minas Gerais do século XVIII. Com esse estudo, foi possível perceber que a atividade musical na Capitania foi muito intensa e nota que [...] curioso é o hábito de alguns músicos terem mandado aos seus escravos para tocarem na procissão ou para os toques anunciando festas ao romper do dia. O Capitão Caetano Rodrigues da Silva enviou em várias oportunidades o seu escravo Joaquim, tambor [...] (LANGE, 1979, p. 275). Além dos músicos escravos existiam também os forros que, aos olhos de Curt Lange, faziam parte da mais refinada música religiosa da Capitania. É o caso de José Joaquim Emerico de Mesquita Lobo que fez parte da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês do Tejuco no final do século XVIII. Lange diz: Quando descobri em Minas Gerais, em fins de 1944, a existência duma extraordinária atividade musical, correspondente ao período colonial e consoante em absoluto com o desenvolvimento da arquitetura, das artes plásticas, e das inquietações políticas, literais e teatrais, a primeiro obra que me chamou a atenção, em meio de velhos papéis de música que me foram oferecidos por um músico mineiro, foi uma Anthíphona de Nossa Senhora / Com Violinos e Basso / Salve Rainha ( LANGE, 1979, Livro de anuais e contos dos Irmãos da Confraria de Nossa Senhora das Mrecês 1780-1851). Essa antífona foi escrita por José Joaquim Emerico pela Irmandade de Nossa Senhora das Mercês dos homens pardos, e que se descobriu ser um ex-escravo. Mas muitos outros exerciam essa profissão ainda quando escravos como negros de ganho. Seus senhores os alugavam para festas particulares ou públicas e cobravam por este serviço daqueles que os contratavam. Os escravos aproveitavam o tempo extra para atuarem em seu próprio benefício em busca da alforria. Na casa do Pilar, sede do arquivo público mineiro, se encontram todas as publicações e documentos que conseguiu reunir na coleção que levou seu nome (Curt 70 Lange), proporcionando a aproximação dessa documentação e fomentando a idéia de estudar a cultura através da música dos setecentos. As Irmandades, de forma geral, utilizaram do serviço desses músicos durante toda sua existência. Vemos isso através do livro de Compromisso e prestações de contas, onde aparecem discriminadas todas as vezes que a Igreja pagava seus serviços (LANGE, 1979). São estas características gerais das irmandades: realizar pagamentos a serviços particulares ao público, exclusivamente serviços musicais exercidos pelos negros e mestiços que fazem delas alvo recorrente da população no intuito de se agremiarem; e possibilitar novos caminhos em busca da mobilidade social e econômica e deram aos escravos e aos libertos muito mais possibilidades além da apatia e conformação. 71 CAPÍTULO II EDUCAÇÃO AFRICANA: A MEMÓRIA COMO REGISTRO HISTÓRICO O movimento das ondas, agora suave, embalava seus sentimentos, numa calmaria que lhe renovava as esperanças. Procurava recuperar em suas lembranças as coisas boas que ninguém nunca poderiam lhe tirar. Seus deuses, que sua gente chamava de orixás, eram grandes e poderosos. Também haviam sofrido e se desesperado, mas nunca desistiram de ser felizes, realizados, eternos. Adetutu também não desistiria, prometeu a si mesma. Afinal, não tinham lhe tirado tudo; ela tinha suas memórias, sabia quem era, de onde vinha. Tinha orgulho de sua origem nobre, de seus deuses, de seus ancestrais, que venerava com desvelo sincero. Seu nome, Adetutu, significava A-Coroa-ÉPaciente, ou A-Princesa-Sabe-Esperar. Ela resistiria [PRANDI, 2007]. Neste capítulo discutiremos a educação africana e os seus significados salientando a importância da tradição oral com base na memória, como manutenção de uma cultura que não é estática em suas origens e que no Brasil foi de fundamental relevância para a sobrevivência de matrizes da cultura africana, permitindo a adaptação e reorganização em muitos graus de suas manifestações culturais. Os conceitos de memória e de educação africana serão discutidos na tentativa de defini-los com o objetivo de organizar uma linha teórica a ser seguida. Essa compreensão se mostra importante à medida que é a educação que os africanos (todos os povos da África têm uma relação profunda com aspectos da educação, respeitando tempo e espaço específicos) organizaram ao longo de milênios de história que possibilitou sua organização como povo, como tribo, como comunidade. É através dela que o africano cria laços de amizade, fidelidade a seus compromissos de forma individual e coletiva, e, acima de tudo, foi ela que conduziu o africano ao respeito às suas tradições. 72 Tradições estas concebidas e vividas por todos de forma intencional e, principalmente, de forma comunal. Todos fazem parte da organização, mesmo nascendo anos ou séculos após sua constituição, pois o respeito aos antepassados é a base de sua organização social. Em sua autobiografia, Amadou Hampâté Bâ, escreve que “[...] o indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele é apenas um prolongamento” (BÂ, 2003, p. 23). Africano da região da Nigéria não consegue iniciar sua história sem falar de sua família primeiro. Portanto, como vimos na passagem literária acima da africana Adetutu e também no relato de Bâ, é muito difícil, ou impossível, “desligar” o ser africano de suas origens, esteja onde estiver. Mesmo com o passar do tempo, o continente africano parece exercer uma magia que toca seus habitantes e impõe necessidades ímpares que os fazem entender a importância de ouvir com atenção e gravar certas passagens, pois contam somente com esse instrumento para salvaguardar sua história. Parece ser essa a base da educação africana: a oralidade. Portanto, raramente veremos o termo educação nas histórias africanas como o sentido que conhecemos na educação escolar formal tradicional das salas de aulas com alunos enfileirados. Educação no sentido africano é aprender sempre, em todos os lugares, com todas as coisas da natureza, e, principalmente com os mais velhos. Estes são detentores natos, segundos seus códigos, de sabedoria ampla e madura. Assim, não é possível separar quando uma criança está tomando lições ou quando está se divertindo, ou fazendo suas refeições, ou caminhando pelas savanas ou estepes. A linha que separa tais categorias é muito tênue. Assim como também não é possível distinguir entre eles quem é o professor, tampouco reduzir os aprendizes a um número. Todos a todo o momento são possíveis 73 mestres e professores. Nesse sistema as crianças são estimuladas a ouvir. Ouvir sempre. Ouvir muito. Memorizar para recontar aos menores que são considerados menos sábios pela pouca idade. Por isso, Bâ explica que, [...] quando desejamos homenagear alguém, o saudamos chamando-o repetidas vezes, não por seu nome próprio, que corresponde no Ocidente seu nome de batismo, mas pelo nome de seu clã [...] porque não se está saudando o indivíduo isolado e sim, toda linhagem de seus ancestrais (BÂ, 2003, p. 23). Toda sua ancestralidade também faz parte de sua educação, ou melhor, é ela que define a educação mais do que os ensinamentos do presente. Nas várias histórias sobre a África, muitos aspectos deixaram de ser tratados com merecido empenho e que nos últimos vinte ou quinze anos vêm sendo desbravados ou revisados, ainda que com muita timidez. É com certeza o caso da educação. E apenas um deles. De forma geral, a história da África foi sendo maltratada e desconsiderada em muitos aspectos. Mesmo a política, a economia e a cultura são desconhecidas pelo mundo ocidental e por muito tempo propositadamente ignorados. Sobre o aspecto da religião, campo que conhecemos um pouco mais, cometemos erros substanciais quanto à origem e quanto ao significado. Há elementos que indicam uma forte dedicação à medicina, metalurgia, mineração, criação de gado, ciência, matemática, engenharia, à astronomia e um cabedal de conhecimentos tecnológicos e reflexão filosófica no Continente Africano. Segundo Elisa Lakin, um cirurgião inglês chamado Dr. R. W. Felkin, que visitava em 1879 a região africana que hoje compreende Uganda “[...] testemunhou e registrou uma cesariana feita por médicos do povo bonyoro, demonstrando profundo conhecimento dos conceitos e técnicas de assepcia, anestesia, hemostasia, cauterização e outros” 74 (NASCIMENTO, 1996, p.116). Médicos africanos do antigo Egito e do Mali operavam cataratas oculares e tumores cerebrais há 4.600 anos segundo estudioso em história africana Van Sertima (1983). Aspectos econômicos milenares que os levaram a povoar ou se estabelecer por toda parte do mundo primitivo como na Ásia, na Europa antiga e nas Américas, foram deixados de lado. O comércio anterior aos grandes centros comerciais deu grande visibilidade política aos habitantes africanos, além, é claro, de ter deixado marcas profundas na cultura primitiva desses povos como mostra o estudo de Elisa Larkin Nascimento (1996, p. 52-76). Com a preocupação em estudar questões importantes relativas às experiências afro-brasileiras, foi inaugurado o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), na PUC-SP em 1994. E com a proximidade do centenário da morte de Zumbi, três volumes foram organizados por Larkin com textos de vários autores do Instituto para levantar tais apontamentos. O primeiro volume, Sankofa: matrizes da cultura brasileira, no qual nos detivemos, retrata questões do mundo africano, desde suas civilizações antigas e seu papel na formação da civilização humana até a experiência da diáspora compulsória da escravidão e a resistência dos africanos escravizados em toda América. É nessa obra que encontramos alusão à importância que a oralidade - difundida em um universo quase sem escrita onde a “palavra tem força” e os contratos são firmados através dela, contando com a honra daqueles que os selavam -, teve no processo inclusive, de povoamento. A oralidade tomou proporções gigantescas, contando apenas com a memória individual e coletiva e a cultura dos inúmeros viajantes e aventureiros do Continente 75 Africano. Chamamos de cultura o conjunto de manifestações e práticas cotidianas e que ao longo do tempo se enraíza, criando ou não novas formas de encaminhamentos, fez-se soar por todos os continentes em menor ou maior grau. Para Elisa Larkin, a idéia é desfazer erros grotescos em relação aos negros cuja historiografia insistiu em cometer (LARKIN, 1996, p. 19-38), inclusive a idéia de que os africanos ficaram milênios fechados em um sistema tribal e sem grandes modificações. Em História e Memória, de Jacques Le Goff (2003), também ocorre a crítica a esse tipo de pensamento cultivado por vários historiadores que consideram a história oral como fonte menor de registro de acontecimentos históricos. Em um extremo, Arthur Marwick, em The Nature History of History afirma que “[...] a história baseada exclusivamente em fontes não documentais, como por exemplo, a história de uma comunidade africana, pode ser uma história mais imprecisa e menos satisfatória do que a extraída de documentos, mas de todo modo é uma história” (GOFF, 2006, p. 7-16). Esse posicionamento, embora entenda que a história oral é uma forma de compreender processos coletivos e individuais, ainda vê tal modalidade como inferior à modalidade da escrita. No outro extremo, estudiosos consideram que, a menos que haja documentos, não pode haver uma história adequada. Tratando a História da África como inexistente, esse tipo de afirmação desconsidera por completo qualquer conhecimento histórico da humanidade em todos os tempos assim como fez Hugh Trevor Roper em 1965 ao declarar que “[...] a África não possuía história, apenas evoluções sem sentido de tribos bárbaras (cit, ROPER, 1979, GOFF, 2003, p. 314). 76 Atualmente, já não é possível entender as civilizações por meio da escrita de forma tão linear e concreta como fizeram muitos historiadores. Com as novas pesquisas podemos permear dinâmicas diferentes das apresentadas até então. O continente africano é, por excelência, um continente vivo e cheio de nuanças impossíveis de serem calculadas ou medidas com precisão e a oralidade dá tempero especial a essas características e nos intriga até o momento pela capacidade de controlar suas memórias, criando e recriando ambientes míticos e temporais, confundindo as mentes daqueles que, porventura, tentaram de alguma forma aprisioná-las e com isso seus corpos. Sua memória foi, sem dúvida, o fio condutor da manutenção de uma identidade que os fez permanecer fiéis às suas origens sem esquecer, porém, que adaptações e posicionamentos deveriam e poderiam ser modificados para manter certa integridade do grupo. Dependia exclusivamente do momento e das circunstâncias certas para que ocorram. Pois, embora [...] a sobrevivência étnica funda-se na rotina, o diálogo que se estabelece suscita o equilíbrio entre rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital necessário à sobrevivência do grupo, o progresso, a intervenção das inovações individuais para uma sobrevivência melhorada. A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia (GOFF, 2006, p. 469). Lembramos com isso que a memória coletiva além de uma conquista é também um objeto de poder e que são sociedades como os povos africanos cuja memória social, baseada na oralidade, permite compreender a luta pela dominação da recordação e da tradição através da manifestação da memória. Precisam fazer esforço dobrado para estabelecer todas as regras de conduta e permanência de uma história, fazendo com que todos entendam o valor da tradição. E precisam de milênios para transmitir aos seus descendentes sua visão de mundo. 77 E por milênios as sociedades primitivas e modernas da África, mantiveram tal movimento que não foi interrompido nem mesmo pela transferência em massa de africanos para continentes distantes por vontade própria ou por imposição. É a mesma situação se dissermos que os judeus deixaram de ser judeus por não terem um território em certos momentos históricos. Desde a antiguidade se julga o historiador pela medida da verdade. Tendo-a ou não Heródoto passou muito tempo depois de sua morte como “mentiroso”, pois a base de sua obra foi, sobretudo, a oralidade. A memória, como propriedade de conservar informações, remete-nos a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões passadas. Pierre Janet, citado por Jacques Le Goff “[...] considera que o ato mnemônico fundamental é o comportamento narrativo, que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social” (GOFF, 2006, p. 414). Portanto, como disse Adetutu em seu trajeto no Navio Negreiro para o Brasil “[...] Afinal não tinham lhe tirado tudo: ela tinha suas memórias, sabia quem era, de onde vinha” (PRANDI, 2007, p. 11). Só isso lhe bastava. 2.1 Tradição oral e manutenção da cultura Nosso objetivo é discutir a história oral africana, entender como se desenvolve e como passa a fazer parte intrínseca do homem africano de forma geral nos 78 encaminhando a compreender os laços atemporais que ela permite e que, ao mesmo tempo, une os homens em torno do bem comunitário. A aldeia é o local de manifestações místicas e físicas, tornando-a um aglomerado de emoções e organizações que respeitam o ritmo da natureza e dos deuses. A Historiografia sobre o tema não é vasta nem conhecida. E as que chegam a conhecimento público são pouco discutidas pelos historiadores brasileiros. Porém, nas últimas três décadas, algumas literaturas, de cujos autores africanos de nascimento contam sua trajetória de vida e a de seus antepassados, foram editadas. O problema é que essa historiografia refere-se a um momento específico da história que atinge somente meados do século XIX, por causa do tempo vivido por esses personagens. Mas como entendemos que as tradições são passadas de geração para geração, as características apresentadas referem-se a um tempo muito anterior ao vivido. Esse é o caso de Amadou Hampâté Bâ (2003) que em um de seus livros intitulado Amkoullel, o menino fula remete-se a fins do século XIX e perpassa quase todo o século XX contando suas memórias. Embora trate de uma região específica da savana africana, que se estende de leste a oeste do Saara até as terras do Mali, e de tribos específicas – fula-tucolor e bambara – é possível reconhecer características comuns aos povos de forma geral, principalmente quanto à religião e educação. A obra explica alguns elementos necessários à compreensão do texto e também à compreensão de seu mundo. O primeiro deles é o fato de que a memória lhes permite reconstruir tantas coisas com minúcias de detalhes. Ele explica que “[...] a memória das pessoas de minha geração, sobretudo a dos povos de tradição oral, que não podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma precisão prodigiosas” (BÂ, 2003, p. 13) 79 Sua explicação nos permite pensar que, em uma África de tempos atrás, quando a escrita não fazia parte do mundo intelectual de seus habitantes, a tradição oral era predominante em quase todo o continente. Em tempos atrás, quase toda parte do mundo conhecido era organizado pela tradição oral, lembrando que a população menos favorecida demoraria ainda muitos séculos para obter aceso à escrita. De acordo com a evolução das técnicas em vários setores da vida humana, a população mais abastada tinha acesso mais rápido às formalidades da educação, enquanto os menos favorecidos ficavam à margem do processo de instrução. A observação do autor revela que existe um método e uma forma específica que encaminha a formação das crianças em busca do domínio da tradição oral. Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo conhecimento se inscrevia em nossa memória como em cera virgem. Tudo lá estava nos melhores detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas. Quando descrevo o traje do primeiro comandante de circunscrição francês que vi de perto em minha infância, por exemplo, não preciso me „lembrar‟, eu vejo em uma espécie de tela de cinema e basta contar o que vejo. Para descrever uma cena só preciso revivê-la. E se uma história me foi contada por alguém, minha memória não registrou somente seu conteúdo, mas toda a cena – a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos, sua mímica, e os ruídos do ambiente, como os sons da guitarra que o griot8 Diêli Maadi tocava enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto agora [...] (BÂ, 2003, p. 13) Segundo Emílio Bonvini, “[...] em contexto de oralidade, é a troca direta da palavra que permite a transferência da experiência no meio do grupo, por aí, a sua vida e sua sobrevivência” (BONVINI, 1991, p. 35) são garantidas. Portanto, a tradição oral tem por intenção básica o intercâmbio comunitário, que os leva a compartilhar como grupo experiências comuns. 8 Grifo do autor para esclarecer o termo Griot: corporação profissional compreendendo músicos, cantores e também sábios genealogistas itinerantes ou ligados a algumas famílias cuja história cantavam e celebravam. 80 Essa dimensão da realidade provoca nos aldeões das pequenas tribos ou nos moradores de cidades importantes e de grandes impérios o sentimento de pertencer aos acontecimentos como se fossem vivos e contínuos por milênios de história, criando neles o sentimento de pertença. Isso quer dizer que, por mais tempo que passe, os acontecimentos se mostram vivos por muitas gerações e esse sentimento os transforma parte integrante deles, de sua formação sem nunca ter estado ou participado deles in locu. Daí desencadearem inclusive muitas guerras, ou alianças centenárias entre povos que tiveram antepassados comuns, separações irreparáveis de familiares de uma linhagem real e toda a sorte de acontecimentos que o cotidiano pode trazer. Essa noção de tempo, muito diferente das medidas ocidentais cronologicamente bem datadas e organizadas segundo acontecimentos importantes, não se preocupa, portanto, com datas precisas e considera como acontecimentos importantes a época de colheita, por exemplo, nascimentos, uniões de seus contemporâneos e de antepassados, inícios de ciclos de guerras ou de paz etc. Amadou Hampâté Bâ ressalta essa afirmação dizendo que como a cronologia não é uma grande preocupação dos narradores africanos, quer tratem de temas tradicionais ou familiares, nem sempre pude fornecer datas precisas. Há sempre uma margem de diferença de uma a dois anos para os acontecimentos, salvo quando fatores externos conhecidos me permitiam situá-los. Nas narrativas africanas, em que o passado é revivido como uma experiência atual de forma quase atemporal, às vezes surgem certo caos que incomoda os espíritos ocidentais. Mas nós nos encaixamos perfeitamente nele. Sentimo-nos à vontade como peixes num mar onde as moléculas de água se misturam para formar um todo vivo (BÂ, 2003, p. 14). A memória se aliou à tradição oral para fornecer subsídios que ajudassem na sobrevivência como indivíduos e como grupo de populações africanas inteiras e por muitas gerações. 81 Um estudo de Claudete de Sousa Nogueira Boca de Mestre, ouvido de Aprendiz: transmissão de saberes envolvendo os velhos mestres batuqueiros, publicado em 2009 que analisa a manutenção da umbigada - dança trazida pelos escravos de origem banto no Estado de São Paulo, ressalta a idéia de que a memória é aliada de uma população que demorou a ter acesso à educação formal. Não só mantiveram-na durante gerações como seus instrumentos permaneceram os mesmos utilizados no passado. As falas e as lembranças evidenciam que o batuque de umbigada permaneceu “vivo” graças à influência que recebeu dos antepassados diretos: pais, tios e avós, tornando-se, em alguns momentos, uma prática cultural portadora de anseios da comunidade. Neste contexto, entende-se a memória familiar como patrimônio simbólico dessa cultura sendo que cada membro representa um elo entre o presente e o passado (SOUZA, 2009, p. 290). Nesse processo de transmissão de saberes, a família sabe da importância da tradição oral, pois é ela que garante a manutenção da estrutura social do grupo. A memória dos mais velhos é a mediadora entre o presente e o passado, tendo o importante papel de intermediar a cultura (BOSI, 2004). Por meio da tradição oral os mestres do batuque de umbigada conseguiram manter sua tradição praticada entre os escravos nas lavouras de açúcar e de café. As tradições orais na África representam espaços simbólicos de preservação de dado históricos e também da interpretação destes dados. As fontes orais são “[...] fundamentais no processo de transmissão de conhecimentos e compreensão de valores e normas, constituindo-se em patrimônio cultural” (NOGUEIRA, 2009, p.292). Nessas sociedades cuja tradição oral e a memória são organizadas e retidas pelo grupo, os mais velhos são responsáveis por transmiti-las. Esse processo está presente, de uma, forma geral, no universo das manifestações culturais negras, como a capoeira, samba, jongo e na religiosidade. Para Brandão, “[...] ali os mais velhos fazem e ensinam e os mais moços observam, repetem, aprendem” (BRANDÃO, 1989, p. 23), tornando-se os 82 detentores do conhecimento de normas e regras e são incumbidos de os reproduzirem para o grupo recorrendo comumente à ancestralidade. Em outro estudo de Marcus Vinícius Fonseca, sobre a educação dos negros no século XIX, no processo de abolição da escravidão no Brasil, trabalha a educação formal, ou seja, aquela institucionalizada, e como a inserção de negros ocorreu. Embora o texto traga análises eminentemente sobre o século XIX, autores como Justina Magalhães que ressalta que Os processos anteriores à escola assentam essencialmente numa transmissão directa (sic), através de uma maior comunalidade e da participação da geração adulta e das gerações mais jovens na realização das tarefas comuns. Uma transmissão por impregnação. Mas que pela aprendizagem, é partilhando gradualmente tarefas e responsabilidade com os adultos que as gerações novas se iniciam aos diversos papéis e desempenhos que a vida proporciona. Estes processos educativos decorrem em espaços familiares, nas oficinas e, locais de trabalho, nas praças e lugares públicos, nas festas, nos jogos, nos actos (sic) de culto e sob uma acção (sic) pedagógica, ora mais, ora menos organizada e formal... São instâncias educativas cuja existência está marcada pelo signo privado [...] (1978 apud FONSECA, MAGALHÃES, 1996, p. 10). Vejamos agora como essa postura se organizou no Brasil em busca da permanência de suas tradições. 2.2 Estratégias da educação africana no Brasil: as línguas faladas e o Dicionário de Costa Peixoto Após a discussão sobre educação africana e suas práticas, é necessário compreender como sua atuação no âmbito cotidiano transformou os laços de 83 convivência entre senhores e escravos, entre livres e libertos, entre homens e mulheres negros em Minas Gerais do Século XVIII, especificamente na cidade de Vila Rica (Ouro Preto). Para tanto, é proveitoso levantarmos uma discussão que está longe de terminar. A questão das línguas faladas pelos africanos e sua utilização em terras brasileiras é um assunto que desde o final do século XIX vem sendo timidamente tratado por alguns estudiosos. Isso porque, entre muitas discussões, existem três vertentes que enxergam diferentemente a questão. A primeira é a idéia de que essas línguas influenciaram o falar da língua portuguesa incorporando palavras de seu vocabulário. Renata Mendonça (1933) e Jaques Raimundo (1933) defendem essa postura. A segunda é que houve uma crioulização, ou seja, a criação de uma língua mista do africano com o português. Silva Neto (1950), Gladstone Melo (1946) e Silvio Elia (1940) são adeptos dessa corrente. E a terceira vertente discute que os contatos da língua portuguesa com as línguas africanas durante cinco séculos não resultaram em uma subtração do português ou das línguas africanas. O que ocorreu foi uma agregação de ambas (BONVINI, 2009). Nessa visão houve uma língua geral falada pelos africanos no intuito de melhor comunicação entre eles e os que recém chegavam, e concomitantemente, falavam o português quando era necessária a comunicação com senhores ou brancos que desconheciam sua língua. Bonvini lembra que esse processo não deve causar estranheza, pois as duas formas linguísticas estavam desenraizadas de seu lugar de origem, de sua cultura, de sua fauna de sua flora, de seu cotidiano, de sua política, de sua economia entre outros aspectos (BONVINI, 2009, p. 33). Portanto sofrem uma degradação no sentido das 84 palavras, porque não refletiam sua realidade ao passo que o contato com muitas línguas diferentes faz, com o tempo, surgirem novas formas de expressão verbal. Em seu estudo sobre Línguas africanas e português falado no Brasil (BONVINI, 2009) ele traça caminhos que nos levam a entender melhor historicamente como essas inúmeras línguas foram consolidadas em solo hostil, desde o início dos contatos comerciais entre esses territórios (Portugal-África). Quando seu encontro continuou em terras novas no século XVI, já havia uma intensa reformulação nesses falares (BONVINI, 2009, p. 21). Com efeito, existem três grandes períodos de hegemonia nas línguas africanas no Brasil, segundo o autor: a fase da língua quimbundo, no século XVII em Salvador, a fase da língua mina, ou mina-jêje, no século XVIII em Minas Gerais, e uma terceira fase denominada de plurilinguísmo no século XIX. Cabe-nos, no entanto, uma análise das duas primeiras fases que nos indica que ocorre maciçamente uma deflagração da língua dos cativos como base inicial de comunicação entre todos os personagens em questão. A importância da primeira fase está no fato de que houve uma sistematização do linguajar quimbundo indicando “[...] o emprego corrente e habitual no século XVII, no Brasil, de uma língua africana [...] falado por escravos originários de Angola, numa área geograficamente extensa, não limitada apenas ao Estado da Bahia.” (BONVINI, 2009, p. 39). Esse documento é intitulado A Arte da língua Angola de Pedro Dias, sacerdote jesuíta, de 1697 com 48 páginas. Em 1947 o Padre Serafim Leite citou, pela primeira vez, esse documento em sua obra Padre Pedro Dias, autor da A Arte da língua de Angola. Nesse período, a “língua angola” era a língua falada em Luanda (BONVINI, 2009, p. 36). 85 Pedro Dias nasceu em 1622 na Vila de Gouveia e, menino, veio para o Brasil incorporando-se à Companhia de Jesus, no Rio de Janeiro, com 19 anos de idade, a 13 de julho de 1641. Cursou Direito Civil e Canônico e Medicina e, segundo Padre Leite, cultivava um profundo amor pelos negros, o que o levou a aprender a língua angola. Não se sabe quando exatamente ele aprendeu a língua, mas entende-se que em 1663 já a sabia (LEITE, 1947 apud BONVINI, 2009, p. 34). Quando faleceu na Bahia, a 25 de janeiro de 1700, os negros foram em multidão à Igreja do Colégio juntando um montante considerável de pessoas (BONVINI, 2009, p. 34). Pedro Dias ressaltou a necessidade de redigir tal documento por entender que melhoraria a comunicação entre os interessados. Ao terminá-lo submeteu-o aos ditames legais e a enviou para aprovação. Quem o revisou, segundo regras gramaticais específicas da língua, foi Padre Miguel Cardoso, natural de Angola, entendedor da língua, e enviou tal documento com ressalvas de aprovação imediata, “[...], pois assim acabará a dificuldade de aprender esta língua” (BONVINI, 2009, p. 34). O testemunho de Padre Leite revela que a primeira gramática foi redigida no Brasil e que a língua poderia ter tido a mesma importância em outras partes do território. Das análises de Leite chega-se à conclusão de que ele havia aprendido o falar quimbundo em Salvador. Mas em sua biografia, podemos ver que, antes de ir para Bahia, se formou em Direito canônico e em Medicina. Nos anos de 1640-41, muitas revoltas ocorreram em defesa da população indígena que tinha recebido do Papa Urbano VIII sua liberdade através de um decreto. Essas revoltas atingiram o Rio de Janeiro onde padres eram acusados de ainda manterem cativos os indígenas. Em resposta afirmaram em documento escrito que “O populacho criticou acerbamente os jesuítas por possuírem mais de seiscentos escravos 86 só em um colégio do Rio, mas os padres procuraram justificar-se alegando que os escravos eram quase todos negros” (1973 apud BOXER, BONVINI, 2009, p. 35). Foi nesse contexto perturbador que o Padre Dias se educou. Não seria surpreendente que esses escravos já introduzidos no Rio de Janeiro falassem o quimbundo e que o padre, que segundo Leite, já exercia sua medicina para o cuidado com os negros, tivesse aprendido tão logo o necessário. O que nos chama atenção nessa obra é o fato de que ele a escreveu segundo as regras gramaticais da língua, deixando de utilizar o modelo latino dos “casos” que ele considerava inadequado para o tratamento do que hoje é chamado de “classes nominais”. Sem intencionar uma análise gramatical, o que caberia à especialistas em linguística africana, o que se pretende é apontar que, em século de colonização, pessoas preocupadas com a comunicação – seja para qual motivo for – não mediram esforços pra concluir sua tarefa. Mais ainda, essas pessoas sabiam da importância do domínio das linguagens do outro, considerando que este – em maioria numérica – tinha ou poderia causar sérios danos à ordem do sistema escravista. Então, a melhor saída para evitar conflitos deflagrados, desde o início, foi a comunicação. Lembrando que em nenhum estudo verificamos que essas atitudes foram de alguma forma incentivadas ou demandadas pelo Estado ou mesmo pela Igreja, no Brasil. A análise de Bonvini é extremamente importante quando vemos que a língua falada aqui no século XVII é bem próxima da que é falada hoje em Angola. Em sua opinião, não houve de forma alguma o que estudiosos chamam de pidgn9. Não se trata de maneira alguma de língua mista, pois a “[...] data de sua redação precede somente 9 Incorporação de uma língua à outra. No nosso caso, a língua portuguesa teria incorporado palavras das línguas africanas. 87 um ano da data de destruição do Quilombo dos Palmares (1695).” (BOXER, 1973 apud BONVINI, 2009, p. 38) Ou seja, é possível afirmar que a hipótese se torna verossímil, à medida que estudiosos confirmam que nesse quilombo se falava a língua banto. Para Bonvini, o quimbundo poderia ser essa língua e o registro dela com “concordância de gêneros”, de “passiva”, de “dupla negação”, revela que a língua africana possui uma lógica jamais imaginada pelos habitantes do Brasil do século VII e, como ele afirma no século XIX, “[...] este espanto recai sobre o próprio português, ao menos na sua variante dita popular” (BONVINI, 2009, p. 39). Portanto, temos no século XVII um grande testemunho de que a grande maioria da população – ao menos da cidade de Salvador e hipoteticamente em outras regiões do Brasil – praticava uma língua africana pelo menos de uma forma geral. Isso quer dizer que em várias ocasiões a comunicação era feita exclusivamente nessa língua, pois a renovação do tráfico trazia cada vez mais habitantes da região de Angola. Não houve misturas de línguas, houve uma adequação de “falares”: quando necessário se falava a língua geral (quimbundo) e quando necessário se falava o português. Antes de analisar o século XVIII, é importante registrar que, bem ou mal, os primeiros a entender que a dinâmica colonizadora, principalmente no que diz respeito à ideologia que se pretendia impor, precisava ser realizada de outra forma além da força, foram os jesuítas. Fizeram uma incrível adaptação, primeiramente com os indígenas – aprendendo suas línguas – e tão logo fizeram o mesmo com as línguas africanas. Essa compreensão possibilitou sua convivência, sua sobrevivência e a manutenção de presença no cotidiano de populações que lhes eram completamente alheias. Cada vez mais iam ganhando espaço nos interiores da vida dessas populações. Pode ser esse um 88 dos motivos que causaram sua expulsão definitiva na administração do Marquês de Pombal no século XVIII, além da alegação econômica. A primeira versão do Dicionário de Costa Peixoto é de 1731 trinta e quatro anos depois da publicação da obra e Padre Pedro Dias. Dez anos depois, em 1741, ele apresenta uma segunda versão com o título Obra nova de Lingoa g.ª de mina, traduzida, ao nosso Igdioma por Antonio da Costa Peixoto, Nacional do Rn.º de Portugal, da Provincia de Entre Douro e Minho, co concelho de Filgr.ª. Essa obra é um manual destinado aos policiais, ao poder público e aos senhores de escravos na intenção de evitar problemas maiores com seus escravos, sem intenções literárias e compreensão profunda da gramática. O surgimento do Dicionário de Costa Peixoto indica uma forte influência africana, a ponto de apenas sua presença criar a necessidade de uma adaptação do senhorio e dos brancos em geral à forma de falar e à forma de agir do africano e de seus descendentes. Com uma população de 100.000 escravos em média por ano (CASTRO, 2002), trazidos da região do Benim, situada entre Gana e Nigéria e renovados durante um período de 40 a 50 anos, Costa Peixoto fez o mesmo que Padre Dias em momentos históricos diferentes, mas pela mesma razão: a comunicação imediata. É possível pensar que novamente a dinâmica escravista necessitava de intervenções mais específicas no cenário urbano da extração de ouro. O fator de alta aglomeração nos mostra que as relações eram muito mais intensas do que apenas as relações amorosas que a historiografia antiga nos mostra. Embora estudiosos como Correia Lopes entendam que o dicionário é resultado de trabalho rudimentar e que mostra uma linguagem empobrecida dos negros em questão (LOPES, 1945), é possível através dos diálogos e do vocabulário retratados por 89 ele, na década de 1730, entender que nesse momento ocorreu um processo de “[...] coincidência das línguas africanas com o português” (LOPES,1945, p. 34). A língua mina-jêje corresponderia a um falar veicular, mas já numa fase de pidginização, ou seja, numa fase em que a língua submetia-se ao tríplice fenômeno de “adaptação”, “simplificação” e de “redução”. Isso significa que a língua mina-jêje é uma língua forjada no Brasil. Para alguns, esse processo pode ser considerado a perda das características das línguas africanas em detrimento do português metropolitano. Por outro lado, se fizéssemos uma comparação do português falado na metrópole no mesmo período (século XVIII), certamente veríamos que já não era o mesmo. Essa aparente perda, nos indica que as várias estruturas linguísticas e, portanto, culturais, travaram sempre uma luta constante pela hegemonia. Para os africanos o grande ganho foi conseguir a todo o momento ter influência fortíssima na formação da cultura local e essas transformações linguísticas, culturais, espirituais tornaram-se peça fundamental – assim como os indígenas – na construção do Brasil moderno e contemporâneo. Durante o século XVII, conseguiram manter sua língua como veicular e transitavam para o português quando necessário. No século XVIII, as condições eram diferentes e a população advinda de outros lugares da África fez com que as línguas tivessem de se adaptar umas às outras como já visto sem deixar de existirem os dialetos africanos. São aproximadamente trezentos anos de existência de línguas africanas no Brasil. Por isso podemos dizer que poucos registros foram feitos dessas línguas, ou seja, durante muito tempo o único meio de transmissão dessas realidades de geração à geração foi a oralidade. A organização da estrutura linguística dos dialetos africanos não 90 incide sobre a escrita. A eles não era permitido acesso às letras nessas duas grandes fases. Como foi possível às várias gerações desses séculos manterem, conservarem, transformarem, adequarem sua língua e sua cultura quando necessário? A hipótese provável para essa questão é a educação que detinham em suas terras que proporcionou a permanência de sua identidade coletiva e individual para surgir a cultura afro-brasileira. A tradição oral foi e ainda é a base educacional para muitas populações no Brasil. Bonvini compartilha da idéia de que [..] não há dúvida que existiu e existe ainda hoje no Brasil uma tradição oral bastante viva, de origens francamente africanas e que constitui uma verdadeira herança de conhecimento de todas as ordens, transmitidos de boca em boca através dos séculos, apesar de um contexto particularmente hostil e de um desenraizamento brutal devidos à escravidão (BONVINI, 2001, p. 40). A tradição oral no Brasil é realmente muito viva, lembrando que ainda em interiores distantes, há uma população analfabeta de ensino formal que se mantém convivendo e sobrevivendo sem dificuldades de comunicação alguma. É muito comum em comunidades distantes dos grandes centros, sem energia elétrica e sem escolas que, à noite, na hora do jantar, fiquem sentadas em torno de um espaço comum, ensinando o certo e o errado às crianças que passaram o dia brincando nos perigos da natureza. As crianças ouvem e decidem no dia seguinte se o ensinamento da noite anterior tem mesmo um propósito na prática diária de suas aventuras. Podemos nos apegar a exemplos mais próximos para entender esse movimento de ensino-aprendizagem das famílias. Nossos avós – analfabetos ou semi-analfabetos – estão cheios de conhecimento acerca de tudo o que possamos imaginar. Eles dissertam sobre a natureza humana, sobre a política, sobre a economia, sobre a cultura com propriedade de doutores. 91 Sabemos que todo o ensinamento que lhes foi adquirido e processado ao longo de anos de experiência, foi lhes passado, muito provavelmente, por seus pais e avós, reavivando as estratégias da tradição oral praticada por nossos antepassados. O que indica que a tradição oral só pode ser praticada em ambientes com certa liberdade de trânsito dos corpos, e que estes possam ir e vir com facilidade transmitindo seus ensinamentos. Em um ambiente hostil e cheio de impedimentos dificilmente as pessoas convivem com liberdade, se enfrentam com facilidade, se organizam, sobrevivem ou mesmo se encontram. Vila Rica definitivamente não foi um desses lugares. Trânsito livre e acesso a todos os lugares eram de praxe para a população habitante dos morros ao redor da cidade ou das ladeiras do centro. Em obra muito interessante e importante, Antonio Olinto descreve em três volumes (Trilogia Alma da África) a trajetória de uma família de origem africana que teve descendência brasileira por conta da permanência no Brasil, e que, ao fim da escravidão, optou por retornar às terras de origem. Em todos os livros a predominância da figura feminina fica latente, lembrando que os africanos têm por zelo e dedicação o culto à figura feminina, simbolizado pela presença materna. No primeiro livro intitulado A Casa da Água (2007), relata o trajeto oposto feito pela família constituída pela avó (quem primeiro foi trazida), pela filha (nascida no Brasil), pela neta (Mariana ainda menina, mas personagem principal da trilogia) e pelo neto (irmão mais novo de Mariana). Nessa trajetória inversa, é possível notar que as características adquiridas no Brasil durante sua estadia não se perderam ao retornar ao continente africano, pelo contrário, redutos brasileiros foram sendo estabelecidos e defendidos. E o que os uniu foi nada mais nada menos do que a linguagem. O falar 92 português foi o elemento fundamental que os caracterizou como brasileiros e, portanto, estrangeiros, fazendo com que logo se reagrupassem como questão de sobrevivência. Embora Mariana tenha saído do Brasil com escolaridade tradicional ministrada por um convento de Minas Gerais e outro de Salvador – outro fator que deve ser estudado em outro trabalho, pois a historiografia tradicional não costuma levantar, é o fato de que alunas negras tenham sido instruídas logo depois da libertação oficial dos escravos – boa parte dos ex-cativos e seus familiares não sabiam ler nem escrever em português –, fazendo de Mariana uma ponte entre Brasil e África depois da escravidão. Os redutos brasileiros os faziam sentir-se dentro de sua antiga casa. Os problemas referentes ao grupo eram resolvidos em reuniões comunitárias e as preocupações variavam segundo a ordem de acontecimentos. Mas uma chamou atenção: o fato de os mais jovens não falarem mais o português. Isso assustou a geração mais idosa, pois essa característica os fazia sentirem-se parte de um grupo e que seu desaparecimento culminaria com o desaparecimento de si mesmos (OLINTO, 2007). Nessa obra, percebemos como é importante a manutenção da cultura para um grupo que, recém chegado a uma localidade, necessitou de agrupar-se mesmo que esse grupo, ou parte dele, conhecesse bem o novo território, o que não correu com Brasil, onde ninguém tinha conhecimento do que encontraria. Nas novas terras, as aglomerações também ocorreram pelo mesmo motivo: sobrevivência. Outra passagem interessante nos mostra como a tradição oral tem força. É que por volta da década de 1930, o irmão mais novo de Mariana resolve voltar ao Brasil, à cidade de Salvador, para rever a terra de onde saíra pequeno e também realizar comércio de tecidos – a família de Mariana tinha ficado rica na África – e, por carta, 93 conta à irmã que com frequência ouvia os comerciantes do mercado falarem o dialeto yorubá como se estivessem na África. (OLINTO, 2007) Não precisamos ir mais longe. Leda Maria Martins em sua obra Afrografias da Memória, onde trabalha a tradição da Congada (de origem banto) na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá desde 1993-94, testemunha que “[...] na Irmandade de N. S. do Rosário do Jatobá, algumas pessoas, dentre elas João Lopes, José Expedito da Luz Ferreira e Matias da Mata, falam dialetos de línguas nativas africanas, identificados por João Lopes como da linhagem lingüística do Queto e do Benguela” (MARTINS, 1997, p. 21) Se analisarmos com cuidado os escritos de Costa Peixoto, que deve ter chegado à antiga Vila Rica nas primeiras décadas do século XVIII, sonhando, como muitos, com o enriquecimento rápido e fácil nos garimpos, veremos que era quase que impossível não prestar atenção na forte presença das línguas africanas, principalmente no período em que a renovação demográfica da Capitania esta se tornou constante. Seu dicionário pretendeu tornar a linguagem mina-jeje acessível ao entendimento das autoridades e senhores coloniais, o que ele mesmo esclarece no prólogo ao leitor, com data de 15 de julho de 1741: Pois he certo e afirmo, que se todos os senhores de escravos, e hinda os que não tem, souvecem esta lingoage não sucederião tantos insultos, ruhinas, estragos, roubos, mortes e, finalmente casos atrozes, como mtos (sic). Mizeraveis tem experimentado: de que me parece algua sorte se poderião evitar alguns destes desconsertos, se ouvece maior curiozid. E menos prghisa, nos moradores, e abitantes (sic) destes payses (CASTRO, 2002). Aprendeu “o falar mina” da escravaria local, com “curiosidade e desvelo”, como ele próprio confessa, custando-lhe dez anos para escrever o segundo volume, em que retratou usos e costumes da vida cotidiana, conflitos entre senhores e escravos, 94 atividades profissionais e comerciais, incluindo a prostituição da mulher negra na cidade de Ouro Preto. Intencionalmente ou não, o que Peixoto registrou acaba por ser um documento importante para análises e descobertas do cotidiano da população de Ouro Preto do século XVIII e mostra que toda carga educacional e, portanto, cultural do negro africano, não só foi amplamente difundida em todos os meios sociais e econômicos como ditou regras e ritmo a toda população. A “linguagem é produto da sociedade” e de alguma forma representa a consciência coletiva de grupos inteiros ou de indivíduos, como afirma Le Goff (2006). Segundo Angelo Osvaldo de Araújo Santos, Darcy Ribeiro lembra que em Minas Gerais os negros fizeram o branco falar português (CASTRO, 2002, p. 12). Os bandeirantes paulistas, descendentes de reinóis, falavam a língua tupi. Mas quando se viram cercados de africanos a saída foi utilizar a língua materna para melhor comunicação em um ambiente extremamente misto nas linguagens. Em contrapartida, os negros continuaram a cultivar a língua de origem pelas mais variadas razões, o que motivou o registro de Costa Peixoto (CASTRO, 2002, p. 12). Todo aparelho repressor tinha por premissa conhecer os dialetos existentes, buscando tentativas de controle que fossem eficazes no adestramento desses africanos e seus descendentes. O que ocorre, porém, é que as relações nem sempre são regidas pela força. Elas se apresentam também como fruto de camaradagem, de compadrio, de trocas, de cumplicidade, de persuasão. Ainda segundo Angelo Santos, a presença do negro africano é muito importante para a constituição da cultura mineira, pois: 95 Os negros tiveram papel decisivo na Vila Rica de Ouro Preto. Foram protagonistas do desenvolvimento da cidade, do enriquecimento de suas elites e da sofisticação da vida artística e social. Assumiram postos de relevo, esforçaram-se para galgar patamares, em busca de afirmação e reconhecimento, sobretudo como artistas. A tradição à volta de Chico rei (adquiriu a própria liberdade e a da família, tornando-se prospero senhor de minas) traduz o fenômeno da escalada social dos africanos, que se alforriavam e conquistavam direito à fortuna crescente ou a um relativo prestígio numa sociedade rigidamente compartimentada e preconceituosa. Falando português, praticavam a língua ancestral certamente como exercício de sobrevivência no quadro inapelavelmente adverso da escravidão (2002 apud SANTOS, CASTRO, 2002, p. 13). Esse trecho demonstra bem como a população africana permeou muitos aspectos da construção da cidade de Ouro Preto como um todo. O que nos indica que a luta citada pelo pesquisador pela sobrevivência, não foi somente pela necessidade de se poupar vidas no processo de escravidão, mas também revelar que a permanência deles como seres completos aptos a se integrarem e a se moldarem conforme suas necessidades em uma sociedade inteiramente nova, fez total diferença na luta contra as mazelas do sistema escravista. O universo cultural que se criou a partir do encontro das mais variadas culturas possibilitou um movimento de trocas intensas e dinâmicas antes não imaginadas. Segundo Eduardo França Paiva um estudioso da cultura mineira: No período colonial, brancos, negros, indígenas e mestiços, subdivididos em grupos menos abrangentes, que demarcavam diferenças internas, como por exemplo, homens e mulheres, velhos e jovens, ricos e pobres, construíram um mundo marcado pela pluralidade e pela mobilidade. Tradições reforçadas e repetidas, mas também recriadas e adaptadas na Colônia, através dos contatos cotidianos entre esses grupos, suas diversas origens e seus diferentes posicionamentos sociais (PAIVA, 2003, p. 32). Por essas características peculiares da cidade de Vila Rica, Costa Peixoto se embrenhou nesses mundos para poder desvendar uma pequena parte dos meios de comunicação que eram imperantes naquele momento. Como ele próprio explicou, conhecer outros mundos era uma questão de sobrevivência, o que demonstra uma 96 preocupação – que apesar de ser exposta por um indivíduo, não nos admira que fosse a preocupação dos demais – de sobrevivência daqueles que, teoricamente, detinham o poder. Essa postura tomada pelos colonos de origem portuguesa diante de uma população em sua grande maioria africana e mestiça indica que as teorias de superioridade – indicadas pelo fato de possuir outro ser humano - caíam por terra até mesmo perante a lei. No submundo ou nas necessidades do dia-a-dia a força foi o último recurso utilizado pelos senhores de escravos. O Estudo de Marcos Magalhães Aguiar, Negras Minas Gerais: uma História da diáspora africana no Brasil Colonial, de 1999, coletou uma infinidade de processos criminais na intenção de avaliar a visão que a população negra e mestiça tinha da construção de sua história, como agentes de sua própria trajetória. O resultado é impressionante quando nos deparamos com casos em que negros se organizavam, ora com brancos homens e mulheres, ora com escravos e libertos do sexo masculino e feminino para alcançarem certos objetivos. A palavra chave desses processos é aliança. Elas eram feitas das mais variadas formas e com os mais variados tipos de acertos, feitos “por boca” ou também com contratos assinados por todas as partes envolvidas (AGUIAR, 1999). Escravos com renda maior do que homens livres, mulheres donas de quitandas e vendas, além de chefes de família, homens recém libertos por conta própria, brancos que pediam ajuda a libertos ou a escravos para resolverem seus problemas de posse de terra, homens e mulheres que praticavam momentos de convivência longe ou perto dos brancos, escravos que resolviam contendas sem que ao menos os senhores ficassem sabendo, demonstrando a “autonomia da ação escrava” (AGUIAR, 1999, p. 118). 97 Escravos que viviam em senzalas sem chaves (AGUIAR, 1999, p. 116), donos e escravos que resolviam seus problemas extrajudicialmente para evitar conflitos maiores, crianças e jovens que furtavam os quintais dos moradores desrespeitando a condição social ou qualquer tipo de patente, prisões que libertavam com um simples acordo entre carcereiros e brancos e escravos e libertos com alguma renda, negros armados transitando nas ruas com liberdade e com apoio da jurisdição que não tolerava somente crimes coletivos (AGUIAR, 1999, p. 89), e a lista não para por aí. Esses exemplos representam uma pequena parte da diversidade de tipos de relações, lembrando que a grande maioria pode nem ter sido escrita, ficando apenas no campo da oralidade. De qualquer modo, é uma demonstração de como os discursos de submissão ou de controle total da população branca em relação à negra não refletem e nem podem ser utilizados nas regiões das minas. Uma sociedade que permite tal mobilidade para pessoas consideradas “estúpidas, sem história, inferiores, incapazes” por grande parte da historiografia tradicional, não deve ser levada tão a sério. Esse não é o caso. Os historiadores provavelmente tiveram seus motivos para iniciar a degradação da imagem dos negros no Brasil, porém a população contemporânea do século XVIII, definitivamente não entendia a situação da mesma forma. No intuito de rever posturas unilaterais do poder, o uso do dicionário de Costa Peixoto, que traz histórias registradas por seus ouvidos é fundamental, pois registra uma mesma dinâmica. Pessoas se entrelaçando, cruzando informações, deturpando-as, criando-as, espalhando-as. Linguisticamente falando, duas nações foram dominantes no 98 Brasil: o povo banto, que fala uma variedade de línguas que remontam ao tronco linguístico proto-banto de quatro milênios atrás, e os povos da África Ocidental. A presença dos bantos foi registrada por Costa Peixoto nas áreas de mineração como sendo “[...] gente de Angola, e aparece, com frequência, nos documentos históricos da escravidão em Minas Gerais ao longo do século XVIII” (CASTRO, 2002, p. 50). Charles Boxer constatou que os [...] minas eram os mais numerosos, seguidos de perto pelos angolas e benguelas, ficando na retaguarda a categoria dos congos, loangos, moçambiques, além dos ameríndios ou carijós que durante alguns anos ocuparam o terceiro lugar (BOXER, 1963 apud CASTRO, 2002, p. 70). Não é demais lembrar que apesar dessa predominância do povo banto, o dicionário não delimita a população pesquisada dessa forma, embora seu registro indique a probabilidade de que se tratava de uma maioria falante do grupo adjá-fon do antigo Daomé, denominado por ele como “língua geral da mina”, tentando identificar um grupo de procedência trazido da Costa da Mina. Ele mesmo chama atenção para o cuidado na denominação dos povos quando lembra que “[...] em alguns nomes aonde houverem estas letras juntas /ch/ He necess.º tomar parecer algum negro, ou negra mina, por.tº tem diferente pernuncia” (PEIXOTO, 1745 apud CASTRO, 2002, p. 51). Nota-se o cuidado com que Costa Peixoto analisou e identificou, na medida do possível, diferenças entre os povos africanos, diferentemente de alguns observadores menos atentos de outras partes da Colônia ou de outras partes do mundo. Há em seu dicionário, que vai de A a Z, uma infinidade de palavras que permeiam os universos da cultura, do cotidiano, da política, da economia, da sociedade, da religião, reino animal e vegetal. Fofocas, intrigas, curiosidade, nascimentos e mortes, contendas, conciliações, família, tudo está contido nos registros de Costa Peixoto. 99 TABELA 1 - Exemplos de palavras na língua Mina-Jêje. ABADÈ – MILHO MÁHIJAJOU – VOU FURTAR ACHÓSU – GOVERNADOR NEBE – ATRÁS BÀCHEHÊ – ROSTO NOVI – IRMÃO CHOGÓME – TENHO A BARRIGA GUI CLÓME – TU ENGANAS-ME CHEIA DÊ AVÒPÁ – TIRE OS SAPATOS HAUHÃ – AZAR EDEHUHEMA CHLÉCOM – ESTÁ EDEHUHEMA-GULAMCOM – ESTÁ LENDO ESCREVENDO GAM MATIN- NÃO TENHO FORÇA MÁHISÁCHUHE – VOU VENDER A CASA PLOMME – ENSINA-ME SUNO – HOMEM Fonte: CASTRO, Yeda Pessoa de . A Língua Mine-jeje no Brasil, 2002. Há também no dicionário exemplos de numeração utilizados pelos negros na soma de qualquer quantia ou nos negócios de forma geral (CASTRO, 2002, p. 90). O mundo da mineração em Ouro Preto proporciona muito mais do que pequenos acessos às minas para o trabalho ou aos porões e senzalas na hora do descanso. Havia intensa movimentação, contatos diretos que favoreciam o estreitamento de ligações. Em um diálogo reproduzido no dicionário temos a seguinte situação: canhombolas (quilombolas) conversando com um branco capturado por eles. - Maguhi hi hobouno Matemos ente branco 100 - Anhutu nágume Porque razão quereis matar - Inhonu hutu na guhî Por mor de uma fêmea o quero matar - Aquhê hutu na guhi Por amor do ouro o quero matar - Lo aquhê name Largue o ouro pra mim - Guache guima name num poupou nagun/ mahihi. Miná – hinum poupouthóhu Se não me der tudo, hei de matá-lo - Hinum poupou magumehã Tome tudo mais e não me mateis - Héguhéthóhéhinhõ. Sódópó thóhé mápon Tem muita razão. Dê cá as algibeiras pra ver. - Dopo, hématim numréhã. Pom. As algibeiras não tem nada. Vede. - Fihà aquhégou. De avó pou. (Aqui) mostre o picuá, ou borracha de ouro. Dispa a roupa. - Nhináhi. Eu hei de ir nu? - Mégui me náhihi. Não há de ir nu, não - Jálé jálé – mágume hã. Peço-vos que não me mates. - Hum bihó – hehihávouvódum. Peço-vos, pelo amor de Deus. - Humé naguhehã. Não matamos não. - Mipoupou màhichomto. 101 Nós não somos todos amigos ou camaradas. - Nhimáhinnháram nácruhã. Nhimerabouháme. Eu não sou ruim para os escravos. Eu sou bom. Eu não sou de todo mau. - Guidómórufidim. Você diz isso agora. - humdómó to pou pou me. Eu digo o mesmo em qualquer parte (CASTRO, 2002, p. 119) O desenrolar da história, dificilmente chegaremos a conhecer com precisão. Porém é provável que os negros quilombolas não tenham cometido assassinato já que esse diálogo chegou aos saberes de Costa Peixoto. Segundo registros, esse diálogo foi coletado em 1731. Alguns detalhes devem ser observados. Primeiramente a data arrolada nos remete a um período onde se inicia a decadência da extração de ouro, causando um aumento da criminalidade por toda a cidade. Mas, mais interessante ainda é o fato de que três décadas apenas da fundação da cidade (1698) existe uma fluência nos dialetos africanos que faz com que entre estradas e acessos percorridos por muitos viajantes, estes tenham conhecimento suficiente para se comunicarem pedindo misericórdia por suas vidas nesse caso. Outros diálogos presentes no dicionário nos levam à mesma direção. A idéia é que a população mineira foi tomada pelas línguas africanas, mostrando que as trocas, mais do que as imposições, foram muito constantes no século XVIII na cidade de Vila Rica, como ilustrou Antonio Olinto em seu romance A Casa da Água, ao relembrar que as línguas não foram facilmente esquecidas no episódio da vinda do irmão de Mariana a Salvador e que encontrou os mercantes falando yorubá na primeira metade do século XX (OLINTO, 2007). 102 Temos diálogos de moças querendo casar-se, de cliente e proprietária, crédito e pagamento, abordagem sexual, cenas domésticas, vida social, doença e mal-estar. A vida fora de casa era frequentada por homens brancos e negros e por mulheres negras. A vida fora do reduto privado não tolerava mulheres brancas e esposas, ou senhoras e senhoritas (CASTRO, 2002, p. 159-168). Outro assunto ainda a ser discutido é a presença feminina em muitos dos processos históricos da América Portuguesa. Em Minas Gerais, a grande maioria de produtos que eram vendidos e que sustentavam a economia local, muito mais do que a mineração, era mantida e organizada pelas mulheres negras e mestiças. Essas mulheres também foram utilizadas como vendedoras ambulantes de comestíveis postos em tabuleiros e nas vendas, muitas delas de sua propriedade, compradas com o lucro também obtido pela recepção de contrabandos e produto do roubo de quilombolas e garimpeiros, aos que forneciam todo gênero de mercadorias, inclusive armas e pólvora, além da prostituição das escravas (SOUZA, 1994). Centro de festas e batuques ruidosos, temidos pela população e perseguidos pelas autoridades locais, essas vendas, eram situadas à beira dos caminhos mais transitados, geralmente na entrada da cidade [...] devem ter representado um papel de destaque na agremiação e indivíduos pobres e desclassificados, estabelecendo vínculos e solidariedade entre eles e ocupado o lugar que, na Europa, foi preenchido pela taverna (SOUZA, 1994). Além dos laços de solidariedade, é possível imaginar o controle de entradas e saídas de gente e de mercadorias de que essas mulheres puderam desfrutar para o bem ou para o mal. Esse era um fator importante, já que o comércio interno era controlado pela chamada “gente miúda”, situada em todos os lugares da cidade. O que se pode notar com esses pequenos fragmentos das histórias de relações estabelecidas entre a população mineira com todas as especificidades que ela contém, é 103 que o universo cultural de Vila Rica não permitiu grandes separações físicas, tão pouco separações afetivas e sentimentais. Em um meio geográfico restrito, os pequenos passeios foram inevitáveis assim como os contatos diretos entre as pessoas. Esse movimento facilitou a propagação dos dialetos africanos, “obrigando” todos que conviviam com essa parcela da população à sua aprendizagem imediata. Tinha que ser para uma questão de entendimento e convivência. Esses dialetos não foram esquecidos ou substituídos pelo português. Pelo contrário, o africano e seus descendentes nada mais fizeram do que aprender mais uma língua além da sua, como nos mostra Costa Peixoto. E a tradição oral ajudou no processo de adaptação ao meio diverso, porém, não hostil. Apenas diferente de seu hábito, mas com a presença maciça de negros africanos que não parava de chegar à região mineradora, facilitando a manutenção da língua, o que lhes era mais caro. Através dela sabiam quem eram e de onde vieram. 2.3 As Irmandades e a educação africana Vendo que a população mineira de Vila Rica não obedece às regras oficiais mais amplas, é preciso pensar que a organização social deles ultrapassou os limites das ruas. Não só nas esquinas ou nas estradas de entrada e saída da cidade os negros se fizeram presentes. Vimos que a possibilidade de autonomia era grande em muitos casos. 104 Essa autonomia pode ser constatada quando, logo no início do povoamento da região montanhosa que os cerca, os negros utilizaram uma forma de associação muito comum nos mais variados lugares do território de possessão portuguesa: as Irmandades Leigas. Elas foram refúgio das aspirações e sentimentos democráticos. Nelas se realizaram os debates e lutas que não podiam ser travados em praça pública. Serviam para manter nos homens o gosto pela independência (CARVALHO, 1957). Os negros logo construíram suas capelas, e sob a proteção dos Santos destinados a eles, erigiram grandes prédios ornamentados com riqueza financeira e de detalhes. De onde veio o dinheiro, não sabemos ao certo, mas com certeza foi arrecadado muito mais de outras fontes do que os pequenos furtos praticados pelos escravos junto aos seus senhores. Com a quantidade de homens e mulheres libertos já no início do povoamento, é possível que pequenas fortunas tenham sido doadas por esses compatriotas de África ou de Brasil. O que se sabe é que nem a Coroa e nem a Igreja financiaram as construções daquele século. As Irmandades, afirma Julita Scarano “[...] se tornaram realmente centros de encontro da população local, que assim podia satisfazer tendências gregárias e lúdicas, além de atender a seus próprios interesses” (SCARANO, 1975, p. 2). Essa visibilidade foi alvo de inúmeras tentativas de taxação e controle, mais por parte da Igreja do que pelo Estado português principalmente em questões econômicas. Não parecia que a preocupação fosse o conjunto de ensinamentos católicos e suas práticas10. 10 Ver capítulo I intitulado As Irmandades, em que a autora discursa sobre a organização eclesiástica enfatizando que a questão econômica se revela mais influente do que a eclesiástica. 105 O fato é que, por meio das Irmandades, um posicionamento social foi conquistado e mantido à custa de um poderio econômico jamais imaginado em terras escravas. Embora para os olhos do povo, as irmandades negras sejam uma aglomeração simples de negros professando a fé católica, há dentro das Irmandades conflitos diretos e indiretos de indivíduos diferentes socialmente e que, ainda assim, ora se misturam, ora divergem, ora se agrupam, ora se distanciam. Uma pequena sociedade foi organizada dentro delas. Isso prova que a prática social pode ditar formas de convivência, de sobrevivência e de permanência que darão peculiaridade a essas associações que tiveram importância fundamental na manutenção de manifestações culturais de cunho africano e que ditam regras sem a interferência direta dos senhores ou dos “Homens Bons” daquela época. Às congadas, às Folias de Reis ou Reisados, às danças e às músicas tocadas ao ritmo dos tambores, Daniel de Carvalho atribui esse movimento de constante troca e devolutivas e diz que “[...] nas Minas do século XVIII, o profano e o sagrado religioso mantém uma estreita ligação” (CARVALHO, 1967, p. 38) As Irmandades podem ditar porque são autônomas e fogem ao controle rigoroso que qualquer tipo de poder sonha alcançar. Sua prática religiosa, sua cultura e religiosidade - entendidas aqui como práticas pessoais de fé ditadas pelo interior, pelo cotidiano e também pelo coletivo - não fogem, porém, às amarras que a cultura impõe, pois vivemos em comunidade e não somos isolados nem alheios às situações do dia-adia. Portanto, estamos falando de pluralidade de manifestações sem limites préestabelecidos. 106 Uma das formas que possibilitou tal adaptação foi, sem dúvida, a educação. É por meio dela que propaga-se, perpetua-se, cria-se ou modifica-se qualquer aspecto da vida humana. Desde os primórdios de sua vida intelectual, o homem buscou cada vez mais abranger seu campo de conhecimento. E foi sempre através da educação no sentido mais amplo que ela merece ter. Dessa forma o africano buscou ligações com o presente sem deixar de manter suas ligações com o passado. Isso não quer dizer que tenha existido pessoas que, por opção, tenham se convertido à religião católica sem muito esforço. O fato é que a grande maioria manteve laços com a terra natal e de lá, trouxe toda sua formação como ser integrante da natureza. Permaneceram ligados as suas raízes místicas, ancestrais, seu zelo pela família e sua comunidade. Vários exemplos de transposição da religião dos deuses africanos com a religião católica foram levantados por Marina e Mello e Souza em Diabo e a Terra de Santa Cruz e outros trabalhos, por Luiz Mott em Rosa Egipcíaca e em tantos outros escritos, João José Reis em A Morte é uma Festa, por Roger Bastide em Religiões africanas no Brasil, por Pierre Verger em toda sua obra. Outros autores também já exploraram tais situações buscando compreender esse universo ainda envolto por certa névoa. Dentro das Irmandades ocorreu o mesmo processo de junção de duas culturas. Muitos autores ainda tratam a questão da religião afro-brasileira como um sincretismo ou substituição total da religião materna pela nova. Não podemos esquecer que a base da educação africana está em tornar seus habitantes seres completos envoltos nos princípios e harmonia com a natureza e com o espírito. O tráfico negreiro em todas as regiões, em maior ou menor grau – e mesmo as de influência islâmica –, não conseguiu aniquilar milênios de tradição. De seu ponto de 107 vista, o africano é religioso antes mesmo de nascer. Além disso, a infinidade de deuses que compõem seu universo espiritual os faz compreender a comunhão que existe além de seus limites terrenos. Cada um dos deuses-orixás é responsável por parte da vida do homem. Embora a religião católica seja monoteísta, existe uma infinidade de Santos que também são responsáveis por parte da vida: riqueza, saúde, sorte, visão e até problemas financeiros. Esse contato pode não ter sido, por esse motivo, um contato ruim ou prejudicial ao homem africano. Pode ter sido essa a razão que fez com que rapidamente houvesse um intercâmbio entre suas divindades e as do catolicismo. Não se trata de substituições e aniquilamentos. Trata-se de incorporação, integração, coexistência. Esse foi o papel que as Irmandades incorporaram. Considerando suas características diferenciadas, de forma geral, contribuíram para a proteção da liberdade metafísica da população negra e mestiça. Juridicamente elas formavam corpos [...] equivalentes entre si, o que levava qualquer delas a ter a possibilidade de se unir a outras, de competir com elas, de estabelecer contato [...] mesmo uma irmandade de pretos e mulatos contava com a possibilidade de adquirir bens. A irmandade do Rosário do Tejuco possuía casas na Tua Direita, na do Bonfim, na os Currais e na rua de „sima‟, compradas por volta dos anos cinqüenta e sessenta. Posteriormente, adquiriram ainda outras moradias. [...] A Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da antiga Vila Rica, de construção mais imponente que a do Tejuco, compete em grandiosidade com as demais (SCARANO, 1975, p. 35). Ser membro irmão dessas irmandades sem dúvida era importante. Elas davam ao membro certo status, certa segurança social e até mesmo para os ritos de morte. Morrer sendo membro de irmandades era um privilégio, pois os irmãos cuidavam da família mesmo depois de muitos anos, caso ficassem desamparadas. 108 Contendas jurídicas também foram acionadas através das Irmandades, principalmente a respeito das alforrias. Patrocinaram muitas cartas de alforria. Lutas por espaços iguais fazem parte do cotidiano desses irmãos. Assim se explica que “[...] o primeiro movimento de protesto dos pretos, o de 1789, na revolta chamada „dos Alfaiates‟, tenha sido motivado por um desejo de terminar com a separação racial nas confrarias, criando um catolicismo baseado, de fato, na igualdade” (SCARANO, 1975, p. 44). Em Portugal, as Irmandades congêneres, ganharam muitas disputas raciais e contendas judiciais em favor dos negros. Em suma, as Irmandades eram sem dúvida reduto de várias formas de convivência e de sobrevivência da cultua original dos negros em Vila Rica. Elas permitiram tantas demonstrações das tradições africanas que não tardou a surgir outro tipo de resistência. Uma resistência não menos eficaz, mas mais silenciosa que marcou profundamente as matrizes formadoras da sociedade brasileira em todos os tempos: a resistência cultural. Nela foram formados, nela construíram raízes éticas e morais propagadas mais pela educação africana do que pela educação européia, primeiro pela superioridade numérica de indivíduos, e segundo, pela grande convivência das “gentes menores” que possibilitou conversas nas beiradas das portas e calçadas assim como na antiga África, onde as crianças aprendiam à sombra de grandes árvores. No Brasil, as árvores viram crianças crescerem e se desenvolveram aos pés de suas mães pobres, solteiras, ricas, comerciantes, prostitutas descendentes de africanos que transmitiram oralmente suas preocupações, seus medos e suas aspirações. As Irmandades foram foco de resistência social, política, econômica e também cultural. A educação, aliada às novas adaptações necessárias, abriu novos caminhos e 109 também ampliou os que já existiam. A forma com que as irmandades foram erguidas, organizadas e administradas, mesmo com o poder religioso tentando controlar suas ações, deu ao homem negro e mestiço autonomia dentro de um universo menor criado por ele próprio, sem sentimento de inferioridade ou sem o sentimento de ter ganhado esmola dos brancos. As irmandades negras, tais quais eram organizadas no século XVIII, representavam uma conquista única e exclusivamente construída por negros africanos e mestiços em busca, não só de igualdade, mas também de luta pelo seu espaço intimista ou coletivo. Mas essa luta foi travada sempre de sua própria forma. 110 CAPÍTULO III IRMANDADES, MÚSICA E RESISTÊNCIA: CAMINHOS PARA A LIBERDADE SOCIAL E CULTURAL Se não me é dado remontar seguro Ao alcançar sublime memória, Ao menos não submerge o esquecimento O meu nome todo, e venturoso Pelas gentis Camenas bafejado Sobre as ondas do tempo irá boiando. Américo Elísio, 1825. Neste capítulo pretende-se compreender, então, qual foi o papel das Irmandades Negras, juntamente com as estratégias da educação africana, na manutenção da cultura afro-brasileira e como o poder eclesiástico perdeu o controle, ou talvez nunca tenha tido, sobre as Irmandades Negras, principalmente as de músicos, que detinham prestígio social muito intenso. Essa postura fez com que eles pudessem resistir de forma mais organizada e permanente, além de revoltas ou momentos de violência pontuais. A atuação das Irmandades Negras nesse processo foi fundamental para que se pudesse ter uma efetividade eficaz. Vimos até agora que, economicamente, a preocupação da Coroa era erradicar – quanto possível – o desvio do ouro capitado pelos donos de minas e seus escravos11, pelo clero que foi proibido de transitar com liberdade por aquelas terras e que financiamentos de qualquer natureza dificilmente eram 11 É necessário lembrar que as minas de extração possuíam donos particulares e que em raras exceções o Estado detinha a posse de algumas das minas. Portanto, a extração deveria ser feita por eles e levadas à Casa de Fundição, onde eram derretidos, transformado em barras e o imposto já era retirado ali. Por isso muitas contendas também foram iniciadas pelos donos das minas em repúdio aos altos preços dos impostos que incidiam também sobre os escravos. 111 concedidos; a Igreja, com poucos padres e pouco campo de ação, viu seu trabalho de disseminação da cultura religiosa portuguesa altamente prejudicado pela falta de incentivo que enfrentou desde o início da colonização. Talvez por essa falta de incentivo do poder público ou mesmo do poder eclesiástico, que inúmeras querelas entre membros de irmandades e padres contratados por eles quando algo não saía como o combinado foram iniciadas. Controle não é bem o conceito que melhor pode ser utilizado para denominar o processo de construção pelo qual passou a Capitania de Minas Gerais. Também não estamos querendo dizer que o que ocorreu foi um total e completo desmazelo, tornando pejorativa a construção da sociedade em questão. O que estamos apontando é que houve uma organização social altamente hierarquizada, complexa, cheia de nuanças, de manifestações diferentes em seus objetivos, em que criou regras de sociabilidade intensas. Há a constituição de um conjunto ético e moral de convivência, além de existir também momentos de explosão social violenta. Mas essa organização não foi nem incentivada e nem controlada pelo poder público ou religioso. O que ocorreu foi um enorme esforço coletivo dirigido pela população pobre e trabalhadora que estruturou as bases da forma de vida de milhares de pessoas durante décadas, transformando-se e readaptando-se sempre que foi necessário. Uma dessas atividades que fugiu ao controle das autoridades e que se desenvolveu no seio das Irmandades foi a atividade musical erudita e popular. Foi com essa forma de atuação cultural, além das artes plásticas, que os negros africanos e seus descendentes de várias gerações garantiram, ao menos naquele momento histórico, grande visibilidade e importância em toda região. Antes de discutir os significados da 112 música e qual sua importância na manutenção da cultura africana e afro-brasileira, é necessário dar o devido valor a um pesquisador que se dedicou durante décadas à junção de documentos importantes para estudiosos da música mineira do século XVIII. Toda documentação relativa à atividade musical de Minas Gerais e das cidades do ciclo do ouro e todos os documentos primários sobre quem eram, onde estavam, quando faleciam, em que Irmandades estavam agregados, quais instrumentos eram utilizados, quem eram os regentes, quem e em quais circunstâncias cediam escravos para festas religiosas, quais corporações eram mais requisitadas, suas viagens pelo interior da Capitania, quem contratava os serviços dos músicos mineiros, suas atividades extras que visavam maior retenção de lucro, o que faziam nas horas vagas, estão protegidas graças a um criterioso trabalho de pesquisa e organização realizado por Francisco Curt Lange iniciado a partir de 1944. Ele descreve a jornada com riqueza de detalhes no primeiro volume de sua obra intitulada História da Música nas Irmandades de Vila Rica, publicação do Arquivo Público Mineiro em 1979. No início da pesquisa, sem saber o que iria encontrar, procurava documentos de registros musicais (partituras) que equivalessem em grandiosidade ao valor das construções erguidas pelos irmãos. O alto nível das artes arquitetônicas e plásticas levava a tais conclusões. Quando e, em que parte do mundo cristão, faltou a música para associar-se às praticas e às festividades maiores da religião católica, única e onipotente em toda América luso-espanhola? E nas regiões da América hispânica, marcadas pelas riquezas de extração de metais nobres e pedras preciosas, a música, na fase final do Renascimento e na era do Barroco, acaso não atingiu esplendorosas manifestações de arte musical, tanto no México, Guatemala, Peru, Colômbia e Equador? E se no Brasil foram descobertos tardiamente o ouro e os diamantes, idêntico processo de alta cultura e arte devia ter-se manifestado em Minas Gerais, tendo presente os maravilhosos antecedentes musicais de Portugal, que a colocavam em igualdade de pé com a Espanha. Se na opinião dos historiógrafos, não foram dadas as devidas condições por Portugal, para tal desenvolvimento e se tampouco se achou capacitado o brasileiro para desempenhar-se na arte da música erudita, tanto maior deveria ser a nossa surpresa, ao acharmos este elo perdido, consistente em algumas obras de música religiosa, e notável elaboração ( LANGE, 1979, p. 21-22) 113 Este longo trecho demonstrado na íntegra tem o intuito de, pelas palavras do autor, alertar para o que ele considerou como “elo perdido”, a mais importante descoberta, pois está vastamente documentada, de atuação cultural em Minas Gerais: a existência de um gigantesco número de professores de música, de músicos talentosos, de corporações de ofício musical, de compositores exímios e talentosos, todos negros e mulatos das mais variadas origens africanas espalhados pelas irmandades negras da Capitania. Até então, explica ele, havia veemente uma negação pela historiografia de que existisse música erudita no Brasil, e que só existiria música erudita de origem portuguesa. Para eles, a música erudita portuguesa vinha sendo praticada e ensinada pelos padres que a conheciam muito bem. Vários deles eram professores de música e eram especializados em composição, pois se formaram em um rigoroso sistema de tradição musical (LANGE, 1979). Por, isso, ao encontrar a primeira obra, a opinião acerca do que pensavam sobre a música mineira, de que havia uma produção local por alguns pesquisadores, se comprovou. A obra era uma Antífona de Nossa Senhora de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita e parecia vir da melhor música lusitana, segundo Lange. Então, chegou-se a conclusão que existiu uma música erudita de qualidade desmentindo a primeira tese. A questão seguinte ao achado foi “[...] Haveria em Minas Gerais músicos capacitados para interpretar esta Antífona e outras obras de qualidade?” (LANGE, 1979, p. 23). Iniciou assim, a incessante tarefa de procurar entre os historiadores da época, tais respostas. Foi inútil. “[...] Para mim, sempre foi desconcertante que os historiadores mineiros nunca tropeçaram com inúmeras referências sobre a atividade musical nas suas pesquisas” (LANGE, 1979, p. 23). 114 Partiu para pesquisas nos Livros de Termos, de Receitas, de Batismos de Óbitos das Irmandades e, no Arquivo Público Mineiro procurando por artistas que ninguém sabia que existiam. O que encontrou foram muitas provas de que os autores das obras musicais “eram brasileiros, e todo movimento musical desta grei (sic) tão numerosa se achava em mãos de mulatos” (LANGE, 1979, p. 24). Documentos realmente muito importantes a respeito da atividade musical, eles mostram muito mais peculiaridades, nos levando a compreender como era a organização desse movimento quase que totalmente ligado às Irmandades às quais pertenciam. As Irmandades apresentadas neste trabalho (Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Irmandade de São José dos Homens Pardos) possuem em seus livros de despesas alta movimentação financeira de pagamento desses serviços em todos que foram encontrados. Lange lembra que o desleixo com a documentação das Irmandades foi tamanho em outras épocas que muitos documentos foram perdidos, queimados, soterrados pelos desabamentos ocorridos em Igrejas muito antigas e que não foram conservadas, molhados durante anos em goteiras não consertadas e toda sorte de intempéries (LANGE, 1979, p. 30-31). Ainda assim, muitos documentos foram resgatados, possibilitando a criação e uma coleção com doze volumes dedicados à história da música na Capitania de Minas Gerais, demorando 19 anos para ficar pronta e, ainda em 1789, os dois últimos volumes estavam sendo elaborados. Eis as sequências: Vol I Ouro Preto ( Fraguesia de Nossa Senhora do Pilar) Irmandade do Santíssimo Sacramento 115 Irmandade de Santo Antônio Irmandade de Nossa Senhora do Pilar Irmandade de Arcanjo São Miguel das Almas Irmandade do Senhor do Bom Jesus dos Passos Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Irmandade de Nossa Senhora das Mercês (Mercêsde Cima) Ordem dos Meninos de São Francisco de Paula) Vol. II Irmandade de São José dos Homens Pardos Vol. III Irmandade de Santa Cecília (segunda época) Vol. IV Antônio Dias (Freguesia de Nossa Senhora de Conceição) Irmandade de Nossa Senhora da Conceição Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz do Padre Faria (Santa Efigênia) Irmandade das Mercês do Bom Jesus dos Perdões (Mercês de Baixo) 116 Ordem Terceira de São Francisco Vol. V As Obrigações e Arrematações de Música pelo Senado da Câmara de Vila Rica. Vol. VI A Ópera em Vila Rica. Música Militar. A Música nos Festejos Reais e Procissões. Documentação musical avulsa. Vol. VII A Música dos Arredores de Vila Rica, Mariana, Cachoeira do Campo, Congonhas do Campo, Casa Branca, Sabará e Caeté. A Música nas Vilas mais distantes: Pitangui, Campanha e Serro. As danças públicas coletivas e as danças dramáticas das Corporações de Ofícios em Minas Gerais. Os Vassungos. Vol. VIII História da Música no Arraial do Tejuco. Vol IX Os Compositores durante o período colonial de Minas Gerais. Estudos Analíticos das composições de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Inácio Parreiras Neves, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho Neto, Jerônimo de Souza Lobo e José Rodrigues Domingues de Meirelles. Vol. X 117 Índex e referências biográficas dos Professores da Arte da Música da Capitania Geral das Minas Gerais. (LANGE, 1979, p. 25-27) Todos os volumes são seguidos de introduções explicativas e de análises sobre sua visão de mundo a respeito da atividade musical. Há também muita informação sobre as construções das Irmandades dando um amplo panorama histórico do século XVIII. Apesar de tantos documentos já estarem ao alcance de historiadores ou pesquisadores de qualquer natureza, Curt Lange alerta para o fato de que “[...] ainda está longe de um levantamento total de documentação em Minas” (LANGE, 1979, p. 23, p. 27). Mas já podemos analisar esta intensa atividade musical como mais um meio de transgressão das regras sociais que deveam “amarrar” as ações da população escrava e liberta que, aliada às oportunidades de mobilidade, pôde alcançar muitos ganhos. Assim, cabe-nos uma análise da quantidade de músicos negros e mulatos que exerceram sua profissão no decorrer do século XVIII e uma parte do século XIX. 3.1 Atuação dos músicos mineiros: a hegemonia negra e mestiça Como a musicalidade permeia a forma de vida do africano, a mais alta forma de expressão corporal e espiritual é a música. Os membros das irmandades que se dedicaram à música erudita e popular manifestaram sua arte por toda parte da Minas 118 portuguesa. Isso os levou a terem prestígio e mobilidade social, revelando outro lado do mundo escravista pelo qual a população mineira mestiça reinventou suas formas de convivência e mais, as fronteiras. Nesse momento podemos iniciar uma discussão acerca de qual é a dimensão que a música tem numa sociedade pautada pela busca da ancestralidade expressada irremediavelmente pelos cantos. Todas as manifestações afro-brasileiras são constituídas de uma música, de uma dança e de uma religiosidade (em todas as culturas africanas). Não há “silêncios”. Nas Congadas espalhadas pelo Brasil (mas que tem forte marca nas regiões mineiras), nas Folias de Reis, que estão cheias de características de nossa mistura, nas capoeiras de Angola da Bahia, que foram também disseminadas por mestres. Todas elas possuem um ritual próprio permeado pela religiosidade e pela música. Todas essas tradições foram transmitidas pela tradição oral aprendida com os escravos africanos. Em todas as expressões culturais baseadas na cultura africana que forçosamente se adaptaram no Brasil, busca-se contemplar sempre uma vivência anterior à sua chegada, não esquecendo nunca de suas origens. Em todas elas a música tem função orgânica, não sendo um elemento simplesmente ornamental. “Música e dança tornam-se o principal veículo da experiência religiosa em certos rituais religiosos e, portanto, estão completamente integradas dentro da organização social de tais religiões” (LUCAS, 2002, p. 18). Nessa visão, a música é um meio de comunicação não-verbal e um poderoso instrumento na busca de uma autoexpressão, autoafirmação e autoconsciência humana em relação à dimensão cósmica de um grupo (LUCAS, 2002, p. 18). Sendo assim, a música atua como um forte agente de coesão social, que busca especificamente uma 119 identidade cultural. A busca dessa identidade, com certeza, sofreu intervenções por todas as características que o novo território lhes proporcionou. As já mencionadas autoras, Leda Maria Martins (1997) e Glaura Lucas (2002), iniciaram suas pesquisas sobre a Irmandade de Arturos e Jatobá respectivamente. Conseguiram realizar seu trabalho buscando o resgate das músicas ali praticadas realizando um trabalho de entrevista com os mais velhos que se dispuseram a contar as histórias conhecidas trazidas por seus antepassados escravos. Essa pesquisa, baseada na oralidade e nas entrevistas com os membros, a maior preocupação é não deixar de registrar a existência de uma raiz milenar. Nesse mundo de sons, os textos falados ou cantados, assim como os gestos, a expressão corporal e os objetos-símbolos, transmitem um conjunto de significados determinados pela sua inserção nos diferentes ritos em qualquer das manifestações existentes e em qualquer lugar do Brasil. Reproduzem a memória e a dinâmica do grupo, reforçando e integrando os valores básicos da comunidade através da dramatização dos mitos, da dança e dos cantos, como também nas histórias contadas pelos mais velhos como modelos a serem seguidos (BARROS, 2005). Esses foram fatores que nem a colonização da África, sua transposição para a América, nem o sistema escravocrata e a divisão do continente africano, conseguiram apagar do sistema de compreensão do mundo africano. Os símbolos fundadores de sua alteridade, suas culturas, sua diversidade étnica, linguística, suas civilizações, sua História, assolaram a população dominante, que já não conseguia mais distinguir esse povo tendo como única saída organizar a sociedade de acordo com possibilidades, de acordo com as imposições feitas consciente e inconscientemente pela maioria. 120 As expressões em todos os aspectos (religioso, político, cultural, social) dificilmente puderam ser arrancadas à força ou mesmo caladas frente a uma mobilidade sem precedentes da Capitania de Minas Gerais. A música mineira através de seus representantes legais e morais – os negros – teve igual mobilidade. A música se espalhou pela Capitania com as casas de ofício de música – com negros e mestiços – que demandavam um tempo enorme à prática de suas músicas, necessário para o aprimoramento de suas habilidades em seus respectivos instrumentos. As Irmandades às quais estavam ligados é que lhes davam tantas regalias. Afinal, ensaiar boa parte de seu tempo produtivo tirava-lhes a possibilidade de trabalhar, nos casos de escravos, e de haver seu sustento no caso dos livres e dos forros. A Irmandade, tanto quanto seus senhores, compreendia que o lucro maior vinha ao ter suas bandas ou seus escravos contratados para as inúmeras festas que ocorriam no decorrer do ano e nas várias vilas e arraiais vizinhos. Os livros de despesas estão cheios de informações de pagamentos e recebimentos de valores referentes às atividades musicais. Lange relata que os ensaios tinham local e sede definidos, onde achava-se também o arquivo de música, “[...] sempre muito nutrido de obras, pelo interesse dos regentes em se proverem constantemente composições, satisfazendo dessa forma a curiosidade por obras desconhecidas” (LANGE, 1979, p. 42). Aqui, ele se detém no fato de que não foi a teoria musical que proporcionou execuções de alta qualidade. Foi antes a prática desta que proporcionou o ensino correto para os envolvidos. Mais uma vez vemos que a oralidade, a memória e a prática fizeram da população negra no Brasil e no mundo fonte inesgotável de estudo. Os músicos mineiros não foram descritos em sua maioria. Não sabemos seu real alcance e sua 121 totalidade. Os documentos ainda muito dispersos e pouco organizados não nos permitem, ainda, maiores esclarecimentos. Porém, é possível imaginar quantos músicos ainda podem surgir em um panorama promissor. Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o primeiro assentamento por pagamento de serviços musicais com menção do respectivo Regente foi em 1781 (LANGE, 1979, p. 272). Isso significa que os documentos encontrados por Lange nessa Irmandade dessa data em diante, contém o nome dos regentes responsáveis. Antes disso existem registros de pagamentos de atividades musicais, mas sem muitas especificações. Veremos que mesma na fase de decadência do período do ouro (1730-40 em diante), os músicos tinham amplo campo de atuação se sustentando com o dinheiro pago pela irmandade. O primeiro regente citado com data foi Inácio Parreira Neves (1781). Os substitutos dos mais importantes regentes aparecem nos livros de pagamentos com seus respectivos valores recebidos pelos seus serviços. Percebemos que era comum a permanência de alguns anos (dois ou três anos) até sua substituição, causada por morte, por proposta de melhores regências, por envelhecimento ou qualquer outro acontecimento (LANGE, 1979, p. 273). No ano de 1753 até 1759 e de 1771 a 1780 não há registros de assentos por música. Nesse grande espaço de tempo quem se destaca são os trombeteiros que “[...] anunciavam o amanhecer do dia da festividade da procissão” (LANGE, 1979, p. 273). Em 1752 havia uma citação de um grupo de “negros marimbas”, e por ser de difícil aparição, esse instrumento pode se tratar “[...] de negros que ainda viviam muito pegados às tradições africanas” (LANGE, 1979, p. 273). 122 Marcos Coelho Netto Pai, que regeu de 1783-84 e 1787-88, tinha ajuda constante de seu filho (tocador de trompa), assim como Inácio Parreiras Neves e Francisco Gomes da Rocha, de 1799 a 1807. Como vimos, foi comum a desistência desses músicos por vários motivos. Francisco Gomes se viu obrigado a declinar dos convites após 1807, devido à queda de investimentos e da diminuição de seu conjunto (LANGE, 1979, p. 274). Já Marcos Coelho Neto Filho não se dispôs a aceitar melhores oportunidades em Irmandades superiores e permaneceu na Rosário dos Pretos. Dentre o cabedal de músicos importantes estão Francisco Furtado da Silveira, Caetano Rodrigues da Silva, Miguel Dionísio Vale, Sebastião de Barros Silva, Florêncio José Ferreira e Serafim Correa Fortuna. Outros nomes não foram muito frequentes como Manuel Pereira, Francisco Xavier Pereira e João Pio Silva, João Araújo – cabeça de um grupo de negros que tocavam as chamadas “bucinas”, cuja forma e som não foi definida - aparentemente desconhecidos (LANGE, 1979, p. 274). Por trás desses músicos existia um enorme séquito de profissionais do ramo. Alguns eram seus escravos – lembrando que esses músicos senhores eram negros, mulatos e mestiços também – outros homens livres ou recém libertos ou ainda, escravos de senhores que não faziam parte do mundo artístico, que circulavam por entre essas manifestações, podendo exercer função em mais de uma banda e tocar muitos instrumentos diferentes. Vejamos como eram registrados os pagamentos dos músicos: TABELA 2 – Descrição de regentes, de pagamentos e de período de permanência. Ano 1781 1783-1784 1785-1786 1785-1786 1787-1788 1799-1800 Oitavas 55 oitavas 34 oitavas 24 oitavas 67 oitavas 36 oitavas 42 oitavas Regente Inácio Pereira Neves Marcos Coelho Neto (pai?) Inácio Pereira Neves Miguel Dionísio Vale Marcos Coelho Neto (pai?) Marcos Coelho Neto (filho) 123 Fonte: LANGE. Francisco Curt. História da música nas irmandades de Vila Rica. Vol.1. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias. Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1981. Vol.5 Esses registros eram marcadamente muito organizados pelos irmãos de Mesa tesoureiros. Outros registros não recebiam tanta atenção. Quando o assunto era registrar os instrumentos e grupos que atuavam com instrumentos de percussão ou sopro, nem sempre havia a ocorrência de um responsável. Eram seguidos apenas da descrição do instrumento e características físicas ou apareciam o nome de seu senhor. TABELA 3 – Descrição de Músicos e instrumentos Nome Característica ou instrumento Anônimo Anônimo Joaquim Preto tocador de tambor (1812- 1818) Tocadores de trombeta (1751-1752) Escravo de Caetano Rodrigues sem especificação de instrumento (1782-1784) Francisco Martins Pereira Trombetas e seus companheiros (1796-1798) Anônimo Tambor, escravo de Francisco Tavares França (1793-1794) Fonte: LANGE. Francisco Curt. História da música nas irmandades de Vila Rica. Vol.1. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias. Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1981. Vol.5 Vemos, com isso, que o universo musical sofria de várias influências advindas dos mais variados tipos e compreensão do mundo reunidos na Capitania de Minas Geras. Esse pequeno quadro apontado sugere apenas uma ínfima parte organizada por Curt Lange em suas incursões. O fato é que nos deparamos com uma gama infinita de possibilidades de transgressão das regras pré-estabelecidas entre senhores e escravos, entre público e o privado, entre a força da lei e a força da negociação. As Irmandades representaram para os desfavorecidos da sociedade colonial – na maioria negros e seus descendentes, e a população branca pobre – mais do que uma 124 proteção espiritual. Elas foram moldadas e organizadas para o uso exclusivo dos anseios comuns da população negra antes de tudo, sejam eles, financeiros, políticos, somente religiosos, culturais ou mesmo de resistência a um sistema que definitivamente não conseguiu resistir. Estabeleceram-se como fonte e guarda de uma sabedoria milenar orientada pela memória e pela tradição oral. Martins, ao estudar a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Pretos da região do Jatobá (MG), afirma que os festejos do Reinado em fins do século XX, mantém a mesma disposição básica do século XVIII “[...] atestando a permanência de um continuum paradigmático nos elos da tradição e das afrografias dos congados”. (MARTINS, 1997, p. 34). Não estamos apontando, contudo, para uma visão na qual as tradições antigas devem ser necessariamente iguais às praticadas séculos atrás. Estamos indicando um caminho que entenda e reconheça que não só tradições foram e conseguiram ser mantidas por enorme esforço da memória como também ocorreu aniquilações ou adaptações necessárias à sobrevivência de uma identidade. Uma educação sólida, consistente, abrangente e muitas vezes “silenciosa”, cria essa consciência de sobrevivência. Uma educação que mostra e remonta caminhos a serem percorridos em busca de um único ideal: a liberdade e a condição digna de vida. Os músicos e todos os que estão envolvidos nesse processo de libertação física e moral fizeram muito bem seu papel. A Irmandade, embora tivesse outros papéis – caridade, assistência, religião, libertação – exerceu com muito alarde a função de disseminadora de uma cultura afro-brasileira utilizando-se do universo erudito visitado apenas pelas elites em outros lugares do mundo. 125 A irmandade não deteve seus músicos e artistas enjaulados em seu interior. Eles não se apresentaram somente para os irmãos em tímidas exibições. Essa é a grande diferença, talvez, do Brasil em relação a outras colônias de exploração. Os mundos existentes em Minas Gerais se misturaram tanto que não é possível saber onde e como começa um ou onde termina outro. Os pagamentos feitos pelos contratantes foram aviltantes para os músicos negros. Lange lembra que os pagamentos das irmandades negras eram muito superiores aos que as outras Irmandades ofereciam a eles, indicando ou uma forte proteção mediante as dificuldades financeiras que o sistema colonial e escravista infringia ou indica o profundo respeito à vida e obra de seus músicos ilustres atribuindo-lhes valor real. De uma forma ou de outra, elas protegeram, organizaram, estruturaram física e socialmente seus membros. Já podemos imaginar aquela vila cheia de ladeiras e minúsculos acessos de uma rua à outra, impregnada de gente que canta, que dança, que faz barulho, que reza a seus orixás e seus santos de devoção, que grita vendendo seus quitutes, que briga por seus interesses mais simples, crianças andando, correndo, fugindo dos outros por seus pequenos furtos, de músicos se preparando para a próxima apresentação e seus instrumentos espalhados ou sendo muito bem cuidados sabendo que dali retiram todo seu sustento. Não é de espantar que o Conde Assumar, já em 1717, tenha reclamado aos “quatro cantos” de Portugal que as Minas [...] hé habitada de gente intratável, sem domicílio e ainda que está em contínua movimento, hé menos inconstante que os seus costumes: os dias nunca amanhecem serenos; o ar He hu´nublado perpetuo: tudo He frio naquele paiz, menos o vício, q´está ardendo sempre. Eu com tudo reparando com mais attenção na antiga, e continuada successão de perturbações, que nellas se vem, acrescentary, que a terra parece, que evapora tumultos: a água exalla motins: o ouro toca desaforos: distillam Liberdades os ares: vomitam insolências as 126 nuvens: influyem desordem os astros: o clima de tumba da paz, e berçoda rebelliam: a natureza anda inquieta comsigo, e amotinada Lá por dentro, é como no inferno. (1994, IMPRENSA OFICIAL DE MINAS GERAIS apud, PAIVA, 2002, p. 4). Nessa época, outros tipos de reinados eram estabelecidos nas terras mineiras. Em terras abandonadas pelo Estado e pela Igreja, a autoridade e o poder eram exercidos por “figuras”, masculinas principalmente, que mandavam e desmandavam nos sertões afora. Manuel Nunes Viana, um negociante português, era uma dessas “figuras”. Nos tempos da chegada de D. Pedro Miguel de Almeida, o Conde de Assumar, ao governo da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro a partir de 1717, havia pouco controle público diante do poderio privado dos grandes senhores e grandes comerciantes (PAIVA, 2001, p. 2). Esses dois personagens travaram lutas intensas em busca do controle político da região, conflitos estes que nem sempre eram vencidos pelo governador. Manuel Nunes Viana, personagem interessante no processo de desarticulação do sistema econômico e político que se tentou impor, participou de vários levantes sendo mola propulsora para alguns deles. Já havia sido expulso da Capitania em 1708 por Borba Gato por incentivar violências e desmandos por parte dos proprietários que haviam montado suas milícias escravas e por parte dos escravos armados. Essas milícias eram compostas por escravos calejados de guerras em terras do antigo Império do Mali. Conhecedores profundos de táticas de guerra e que ficavam sob seu comando. A história é longa e acaba com o retorno do Conde de Assumar ao Reino português. Não foi fácil o período em que esteve nas Minas (1717 a 1721), mas ficou tempo suficiente para entender por vias muito penosas e na própria pele, que o território 127 não deveria e não poderia ser tratado com base em idéias ou simplistas ou muito elaboradas. O dia-a-dia é que ditou as regras, que recomendou precaução ou atitudes mais drásticas. Todas as ações foram, porém, analisadas e reorganizadas por uma população que para sobreviver ao clima hostil que a natureza impôs como assinalou o Conde, só poderia mesmo ter seus desejos “ardendo sempre”. 3.2 A conquista da autonomia no mundo escravista: a resistência que deu certo Toda mobilidade e todas as conquistas pelos espaços públicos alcançadas pelos negros, devem-se ao momento em que decidiram resistir às condições impostas. Das condições vividas, fizeram tudo o que foi possível e impossível para alcançar seus objetivos total ou parcialmente. Essa é a discussão apresentada nesta parte do trabalho: do cativeiro à liberdade a luta foi travada diariamente e em grande parte vencida. Não podemos negar que a abolição, apesar de ter demorado a chegar, foi alcançada muito pela pressão da massa liberta e escrava que numerosamente circulava pelas principais cidades da Brasil. Portanto, numericamente sabemos da força que mais cedo ou mais tarde seria exercida sobre o governo brasileiro. A religião já havia sucumbido aos caprichos das interseções das culturas. Mas há aqui a necessidade de pensar o que foi feito dessa “liberdade” alcançada pelos escravos e seus descendentes já libertos ou forros. Mais do que saber que seus corpos físicos não precisariam mais fugir ou se 128 esconder, pois tinham em mãos sua alforria conquistada, é fundamental entender o que foi feito disso. O legado maior de todo o processo de escravização da população negra, foi o legado cultural. A história dos negros nas Américas escreve-se numa narrativa de migrações e travessias, nas quais a vivência do sagrado, de modo singular, constituiu um índice de resistência cultural e de sobrevivência étnica, política e social. Depois de terem sido trazidos à revelia em grande parte, decidiram morrer, lutar, matar, viver, conviver, sobreviver, adaptar-se e principalmente resistir. Centenas de escravos, livres e forros, deixaram de uma forma ou de outra, registros de suas conquistas. Os africanos foram tirados de suas terras e construíram outra comunidade em torno das irmandades. Nelas conseguiram estabelecer laços sanguíneos pós-diáspora. As Irmandades nesse processo foram meio de manutenção da cultura de um povo pelas quais conseguiram continuar em contato com os laços com seus antepassados de forma mais consistente. O músico Marcos Coelho Neto conseguiu ensinar seu filho o mesmo ofício. Pai e filho conviveram em um ambiente propício às suas atividades e podemos presumir que a mãe estivesse presente em boa parte das atividades domésticas e públicas quando havia festas. Eles não foram os únicos. As associações de leigos, longe de serem focos de aculturação ou imposição da religião católica, se transformaram em um meio pelo qual a proliferação cultural se fez possível. Nessa parte é possível estabelecer essa relação também analisando os livros de Mesa e do dicionário Costa Peixoto. Em A Descolonização da Ásia e da África, Letícia Canedo (1986, p. 4) conta que no século XIX um gigantesco baobá erguia-se majestoso em Boma, no Zaire. Datada de aproximadamente de quatro mil anos a árvore assombrava visitantes ocidentais. Esse 129 baobá testemunha o vigor das fundações e raízes africanas e a permanência de sua oralidade. Quantas crianças podem ter passado por ali com seus griôs – mestres da tradição oral e da manutenção da cultura e dos costumes - aprendendo coisas sobre o céu, a água, o mar, o sagrado, a política, a conduta honrosa? Como o baobá africano, as culturas negras nas Américas constituíram-se como lugares de encruzilhadas, interseções, inscrições e disjunções, fusões e transformações, confluências e desvios, rupturas e relações, divergências, multiplicidade, origens e principalmente, disseminações. Os africanos que cruzaram o Oceano não viajaram e sofreram sozinhos. As divindades, seus modos singulares e diversos de divisão do mundo, sua alteridade linguística, artística, técnica, religiosa, cultural, suas diferentes formas de organização social e de simbolização do real. Eles evidenciaram o cruzamento das tradições e memórias orais com outros códigos e sistemas simbólicos e escritos com os quais se confrontaram. Apesar da memória e a oralidade serem as maiores fontes de manutenção histórica da esmagadora maioria dos povos da África, não se detiveram a esse universo. Muitos deles, no cativeiro ou na liberdade, ávidos de saber mais, se dedicaram ao estudo das letras e da leitura. Moldaram e adaptaram-se em busca da tão sonhada liberdade ou pela luta justa pelos seus direitos frente ao sistema jurídico da época. O século XVIII, em menor grau que os precedentes, possibilitou esse alcance a muitos negros das mais variadas formas. Mesmo assim, a leitura e a escrita não foram os fatores que mais ajudaram na disseminação de ideias e ideais. A oralidade e a memória continuariam a ter papel principal nesse mosaico cultural. 130 Musicalidade como expressão de uma cultura. Oralidade como única forma de disseminação da cultura dos antepassados e da cultura recém formada. Memória como forma hegemônica de manutenção dessas culturas. A religião e a língua como base de uma construção da identidade de grupo. Esses elementos juntos formam a base da educação africana. Todos os aspectos tornam-se únicos com um único objetivo: a construção do ser social. O século XVIII era assombrado pela varíola no Continente Europeu, uma doença mortal para a época. Lay Mary, pertencente à alta elite da Corte britânica, contraiu a doença e sobreviveu. Como outros parentes acabaram morrendo por causa da doença, ela logo se organizou para começar a entendê-la e combatê-la. Em uma de suas viagens ao Oriente, descobriu que lá a doença já era corriqueiramente tratada. Depois de muita luta e desconfiança ela conseguiu disseminar a cura podendo salvar muitas vidas na Europa. Mas quem trouxe a forma de cura da África para as Américas, foi um negro da parte ocidental chamado Onesimus. Fora comprado por um fazendeiro da América do Norte que ficou impressionado com a inteligência do africano. Perguntado ao meu negro Onesimus, que era sujeito muito inteligente, se ele tinha tido varíola, ele respondeu, sim e não; disse-me que passara por uma operação que tinha lhe dado um pouco de varíola, que o preservaria para sempre, acrescentando que isso era feito com frequencia entre os gurumaches, e quem tivesse a coragem de se submeter, estaria para sempre livre do medo do contágio. Ele me descreveu a operação e mostrou a cicatriz que tinha no braço... Desde então conheci um grande número desses africanos, e todos concordavam numa história: em seu país muita gente morre de varíola [...] mas agora eles aprenderam [...] e ninguém mais pega varíola. Assim, na África, onde as pobres criaturas morriam de varíola como ovelhas podres, um deus misericordioso ensinou-lhes uma proteção infalível. É uma prática comum, executada com um sucesso constante (FARREL, 2003, p. 40-41). Onesimus não trouxe consigo no navio onde pessoas morriam aos montes, nenhum papel onde escrevera tal informação. Conseguiu o respeito e a admiração de seu 131 senhor pela sua inteligência, pela sua memória que conseguia resgatar assim como outros tantos negros da mesma região, fielmente o processo de aprendizagem que tiveram lá para não morrerem. Dessa informação valiosa, muitos cientistas se debruçaram em busca da vacina feita a partir do próprio vírus. O que quisemos mostrar é que este não foi um episódio isolado. Foi mais comum do que pensamos. Muitos outros negros e outras tantas negras desempenharam papéis importantíssimos na História que ainda insiste em ocultá-los. A resistência deu certo, e vemos cada dia mais o que as comunidades e grupos podem fazer com ela no mundo atual, principalmente em uma sociedade que rapidamente perde sua tradição oral. Mas ela está em todos os lugares. Constatamos isso à medida que ainda vemos muitas curas, muitas rezas, muita música, muita dança, muitos contos, muitas lendas, muitos ditados populares, muita comida, muitos cheiros remanescentes e descendentes da cultura africana. 132 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Nem branco nem preto, é multicolorido Em uma noite de domingo de 1757, passava um “barulho de gente tocando instrumentos” nas ruas de Vila Rica. A maior parte do grupo talvez fosse composta de negros e mulatos, mas muitos brancos posicionavam-se à porta ou à janela para assistir o cortejo. Pascoal, escravo crioulo de Luís Perereira Silva, participava do evento, no meio do grupo, quando levou uma porretada na cabeça. João Alves, pardo forro, foi acusado de tê-lo ferido, e Bibiana, negra coartada e “amiga” de Alves, foi nomeada como mandante do crime. (Cod. 438, auto 9060, 1º ofício, ACP, apud, AGUIAR, 1999, p. 180). Ao ler esse relato de um dos autos de infração na obra de Marcos Francisco Aguiar (1999), logo podemos entender que a complexidade da sociedade mineira do século XVIII é muito maior do que a que concebemos. O relato é esclarecedor em relação ao ambiente de múltiplos sentidos que as ruas incorporavam. Negros e brancos, com escravos e ex-escravos, homens e mulheres, amantes e assassinos, todos os personagens da trama envoltos num mesmo cenário. O Brasil proporcionou tais situações de uma forma geral e em Minas Gerais, na cidade de Vila Rica, isso ficou muito evidente. Vila Rica possuía uma sociedade na qual as mulheres, mais que os homens, transitaram entre os mundos sob as mais variadas formas. Onde conseguiram alcançar status social e econômico e reorganizaram seu papel no comércio miúdo. Músicos negros que eram valorizados em detrimento de que quaisquer outros tipos e cores e se sustentavam com seu trabalho. Além do trabalho escravo, os negros conseguiam angariar fundos que os libertassem. Essa é Vila Rica do século XVIII. Sem muitas barreiras sociais, econômicas, religiosas, culturais. Nesse cenário, as culturas africanas e afro-brasileiras não podem e não devem ser classificadas segundo critérios fixos ou rígidos. Acontece que a resistência praticada pelos irmãos, nesse caso, das Irmandades Negras fugiu aos critérios de violência, não 133 por não terem outra opção, mas por terem escolhido sua forma própria de viver, conviver e sobreviver. Essa escolha não foi somente imposta pelas condições sociais ou econômicas. Elas foram sendo moldadas pelos seus agentes conforme sua realidade. Dessa resistência, nascem outras “cores”, outros olhares, outras visões de mundo que sucumbem ao encanto da pluralidade cultural formadora da população brasileira em toda sua trajetória histórica. As brigas, as reclamações, as mortes, as atrocidades, os crimes e toda a sorte de mazelas eram resolvidos longe dos olhos dos brancos. Aguiar afirma que o senhor só concordava em participar da mediação de conflitos caso desaprovasse as ações do escravo e que boa parte dos delitos envolvendo ações autônomas de escravos não eram denunciados à justiça (AGUIAR, 1999, p. 118). Outra categoria altamente organizada de ações coletivas dos negros eram as chamadas “bulhas de negros” que enfrentavam a desorganização do poder judiciário. Essas bulhas eram o enfrentamento de grupos de escravos quando alguma questão entre eles estava pendente. A esse movimento o autor denominou de autonomia escrava (AGUIAR, 1999, p. 118). Aguiar constatou em sua pesquisa que há apenas três casos de assassinato registrados de senhores por escravos e que em alguns casos, os registros relataram que os escravos dormiam em senzalas que não eram trancadas. [...] Em uma sociedade baseada na mão-de-obra escrava, o recurso extenso à violência como mecanismo primordial de regulação das relações sociais representava a desintegração da ordem social. Fazia-se necessário reforçar o papel de intermediários de um lado e, de outro, viabilizar canais legítimos de expressão institucional das queixas quando a composição e o compromisso falhavam. (AGUIAR, 1999, p. 104) Essa gente ignorada por muitos historiadores mostrou sua força organizadora, quando, ao sair de suas casas paupérrimas ou dos porões dos grandes casarões, transformavam-se em “muitos” outros. Lavavam roupas, vendiam comidas, construíram 134 casas, cuidavam de hortas e plantações, criavam seus filhos, transformavam sua língua e a dos outros, cuidavam da saúde, educavam os filhos dos senhores, costuravam, auxiliavam nos Corpos Militares do Estado, aprendiam o latim, a gramática e a matemática, ocupavam postos na Câmara do Governo, eram escrivães, eram músicos, reeducavam-se, espalhavam-se, alastravam-se. Ainda não encontramos registros que afirmem veementemente e com todas as letras que as comunidades surgidas nesse gigantesco processo, tivessem oficialmente entrado com pedidos ou reivindicações que beneficiassem um grupo ou que as estivessem prejudicando. Pedidos que fizessem as autoridades se mobilizarem de forma mais rápida mesmo porque as reivindicações sociais que hoje temos não faziam parte das necessidades da época. Lutas por terras, saúde, alimentação eram vistas de outra forma nos séculos anteriores. Mas, se essas ações ocorreram, não foram documentadas ou ainda não as encontramos, ou estão guardadas nas memórias dos habitantes. O que sabemos é que os laços de solidariedade foram sendo estabelecidos de forma consciente e às vezes até sem intenção, pois os ensinamentos fazem parte de uma forma de viver simplesmente e a dimensão educacional não é entendida como algo sistemático com linearidades ou repetições. Como deve ter sido a convivência dos moradores brancos com seus vizinhos negros ex-escravos e ricos? Como deve ter sido a relação entre antigos senhores e exescravos que por muitas vezes iam morar nas casas ao lado? Como as crianças, que não estão muito preocupadas com separações econômicas, culturais ou religiosas se comportavam? Geograficamente essas opções são cabíveis. Socialmente, podem não ter sido tão harmoniosas, mas foram obrigatórias. 135 Os moradores em ações isoladas dificilmente conseguiriam ser ouvidos. Mas as Irmandades Negras não puderam ser ignoradas e delas, os africanos e seus descendentes, fizeram suas comunidades, que buscavam alcançar interesses comuns, sejam eles quais forem. À medida que o tempo ia passando e que mais misturas culturais iam se consolidando, mais dificultosa se tornava a tarefa do Estado e da Igreja na ânsia de uma regulação das regas de convivência controladas por leis civis e régias. Na medida em que as identidades eram construídas, reconstruídas ou sobrepostas, muitas heranças culturais africanas eram fortalecidas e conseguiam sobreviver. A única forma de sobrevivência dessas heranças foi exclusivamente a tradição oral, a aglomeração, os ajuntamentos dos mais velos cm sua carga de sabedoria com os mais novos que iam aprendendo tudo o que foi possível e necessário do mundo novo e do mundo antigo. Para os que ainda enchergam o caso dos africanos e seus descendentes como vítimas de um sistema escravista que visou o lucro somente, é necessário lembrar que antes mesmo do século XVIII terminar, as autoridades já sabiam o que enfrentariam, e não demoraria muito, com a autonomia cada vez maior conquistada por eles. O século XIX mostrou que mesmo sob todas as circunstâncias que o cativeiro lhes impôs, a população negra angariou mais meios pelos quais pudessem lutar contra as mazelas do sistema. Não cessaram as insurreições, não cessaram as mortes em massa, os assassinatos, as vinganças, as fugas, as tramas ardilosas. Não cessaram também, os cantos, as danças, os cantos, as histórias dos antepassados, as festas, as comemorações, as alegrias, as rezas, as curas, as comidas, as memórias. Todos esses elementos faziam parte da vida dos negros e logo entenderam que a sobrevivência dependia da 136 mobilização comunitária. Foram surrados pelas realidades, mas não puderam desistir dela porque na África, aprenderam a lutar com ou sem armas. De todo esse processo analisado, o mais descabido é ver como hoje as lutas em torno da posse da história, fazem com que disparidades gigantescas na formação dos discursos atuais se acomodem como lutas legítimas. O que se fez no Brasil não foi ser mais branco, mais índio, ou mais negro. Foi feito outra coisa que ainda estamos a caminho de descobrir. Muito deve ser feito ainda. Estudar as Irmandades Negras em Minas Gerais no século XVIII e entender como foram base para a manutenção da cultura musical dos negros e, que através dela os negros tomaram conhecimento de sua força social e comunitária, é apenas umas das facetas dessa história. Quantas associações, grupos, acampamentos, aglomerações, quilombos, grupos secretos, foram mantenedores das mesmas culturas? Quantas culturas ainda podemos encontrar em registros mal conservados? Quantas histórias ainda estão encobertas por visões atrofiadas? Quantos redutos culturas ainda estão intocados? As pesquisas das culturas formadoras da cultura brasileira necessitam ampliar a forma de entender nossa composição. Precisam enredar por caminhos que nos permitam entender como e em quais momentos, e em quais âmbitos começamos a nos transformar em brasileiros. Ainda continuamos a nos modificar, porque não somos um povo estático ou somos como “folhas amareladas” guardadas no fundo de uma gaveta. As influências são tantas que a discussão de quem ou o quê influencia mais, é perda de tempo. Mais importante é o que vamos fazer com essa nova carga. Vamos continuar massacrando as minorias (que sabemos que são maiorias), vamos começar a pensar uma sociedade mais 137 justa, ou vamos nos calar e ver aonde nossa sorte nos levará? Para saber aonde vamos precisamos saber quem somos. Já sabemos que gostamos de cores, muitas cores. Gostamos de simplicidade também, mas só quando é necessária. Caso contrário, fazemos tudo de preferência com muita abundância e muitas cores. [...] E o povo negro entendeu, que o grande vencedor, se ergue além da dor. Tudo chegou, Sobrevivente de um navio. Quem descobriu o Brasil, Foi o negro que viu, A crueldade bem de frente e, Ainda produziu milagres [...] Caetano Veloso. Milagres do Povo 138 REFERÊNCIAS AGUIAR, Marcos Magalhães de. Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no séc. XVIII. SP. 1993. ____________________________.Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil Colonial. São Paulo, 1999. ____________________________.Capelães e vida associativa na Capitania de Minas Gerais. In Revista Varia História. Belo Horizonte, n° 17 março/97. ALGRANTI, Leia Mezan. Famílias e vida doméstica. In. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa/ coordenador geral da coleção Fernando A. 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