1 SEMINARIO: DESENVOLVIMENTO PRODUTIVO E FINANCIAMENTO DESENVOLVIMENTO PRODUTIVO VISÕES E MODELOS Banco de Desarrollo Productivo - BDP Tema: Segurança alimentar com soberania, como tarefa fundamental do Estado HORACIO MARTINS DE CARVALHO (Curitiba, Brasil) Preâmbulo É crescente a artificialização da agricultura devido ao uso de insumos de origem industrial, a disseminação de sementes transgênicas, a agroindustrialização dos alimentos e a manipulação industrial para a oferta de alimentos com sabores, odores e aparências similares aos naturais. Essas tendências, aliados ao aumento da oligopolização dos controles corporativos das cadeias produtivas alimentares, nos indica que inversamente à construção de uma soberania alimentar se caminha para a expansão de uma tirania da dieta alimentar homogeneizada e subordinada aos interesses financeiros das grandes corporações agroindustriais. Segundo o Fundo Internacional para Desenvolvimento da Agricultura - FIDA, é provável que até 2050 a população mundial aumente dos atuais 7,2 bilhões para quase 10 bilhões. Tudo leva a crer que a produção agrícola precisará crescer em 70% para alimentar essas pessoas, Ora, mantida as estruturas de produção dominantes, essa perspectiva coloca em aberto a expansão do agronegócio multinacional e a artificialização crescente da agricultura.1 No entanto o sistema alimentar agroindustrial alcança 30% da população mundial; porém, seus graves impactos na saúde, na mudança climática, no uso de energia, combustíveis fósseis, água e contaminação são globais. Em contraste, a diversidade de sistemas alimentares camponeses e de pequena escala são os que alimentam 70% da população mundial.2 Mas, o avanço das empresas capitalistas agrícolas cresce destruindo a agricultura e a cultura camponesas. A superação desse modelo de produção e tecnológico dominante é o desafio central do processo de construção da soberania alimentar. Teses e referências conceituais Teses: A soberania alimentar deve ser considerada como uma estratégia nacional no processo mais geral de uma macroestratégia econômica, política e social de afirmação da soberania popular; 1 A construção estratégica de uma soberania alimentar é uma negação da soberania dos mercados (modelo econômico liberal-burgues capitalista) no processo global e nacional de desenvolvimento democrático e popular; A afirmação dessas duas teses anteriores exige a neutralização da ocultação efetuada pela racionalidade capitalista que pretende excluir outras formas de racionalidade, de concepções de mundo. In Stédile, João Pedro e Carvalho, Horacio Martins (2010). Soberania alimentar: uma necessidade dos povos. São Paulo/Curitiba, setembro, 15 p. , texto original arquivo. 2 Ribeiro, Silvia. Comida industrial enfermando as pessoas e o planeta. Fortaleza, ADITAL, 20 outubro de 2013. 2 O Estado --- em particular os governos, é o responsável global pela dinamização do potencial contra-hegemônico (consenso transcultural) necessário para a obtenção da soberania alimentar. Referências conceituais O conceito de soberania alimentar foi introduzido em 1996 pela Via Campesina3, partindo de um principio prévio de que “o alimento não é uma mercadoria, é um direito humano”4. Isso ocorreu no contexto da Cúpula Mundial sobre a Alimentação (CMA) realizada em Roma pela FAO. O debate oficial girava em torno da noção de segurança alimentar, reafirmando-a como “o direito de toda pessoa a ter acesso a alimentos sadios e nutritivos, em consonância com o direito a uma alimentação apropriada e com o direito fundamental de não passar fome”. No entanto, as organizações camponesas e em especial as delegadas mulheres, presentes no Fórum paralelo à Cúpula, foram críticas em relação aos termos utilizados na discussão dos governos, que em consonância com a hegemonia do neoliberalismo e o surgimento da OMC na década de 1990, ajustaram a definição de segurança alimentar que buscava assegurar esse direito à alimentação por meio da liberalização do comércio de alimentos, abrindo caminho para fazer da alimentação um grande e lucrativo negócio para as empresas transnacionais, para a indústria química. Segurança alimentar: "A Segurança alimentar e nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis."5 Soberania alimentar: “A soberania é o direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e seu direito de decidir seu próprio sistema alimentar e produtivo. Isso coloca aqueles que produzem, distribuem e consumem alimentos no coração dos sistemas e políticas alimentares, acima das exigências dos mercados e das empresas. Defende os interesses, e as inclui, das gerações futuras. Esse conceito oferece uma estratégia para resistir e desmantelar o comércio livre e corporativo e o regime alimentício atual e para processar os sistemas alimentares, agrícolas, pecuários e de pesca para que sejam gerenciados pelos produtores e produtoras locais. A soberania alimentar dá prioridade para as economias locais e aos mercados locais e nacionais, e outorga o poder aos camponeses e à agricultura familiar, à pesca artesanal e ao pastoreio 3 A Via Campesina é um movimento social internacional de camponeses e camponesas, pequenos e médios produtores, mulheres e jovens do campo, indígenas, camponeses sem terra, e trabalhadores agrícolas. É representativo, legítimo e com identidade que vincula as lutas sociais dos cinco continentes. Reúne 148 organizações de 68 países. A CLOC, referência latinoamericana reúne 52 organizações de 20 países. www.viacampesina.cl. 4 Entrevista de Camila Montecinos, revista GRAIN, agosto de 2010. 5 In Segunda Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Olinda, Pernambuco, em 2004, e incorporado na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – Losan (Lei nº 11.346, de 15 de julho de 2006, Brasil. 3 tradicional, e coloca a produção alimentar, a distribuição e o consumo sobre a base da sustentabilidade ambiental, social e econômica...”6 “A soberania alimentar é um princípio, uma visão e um legado construídos pelos povos indígenas, camponeses, agricultores familiares, pescadores, mulheres, jovens e trabalhadores rurais, e que se converteu numa plataforma aglutinadora de nossas lutas e uma proposta para a sociedade em conjunto.” 7 A soberania dos ‘mercados’ oligopolizados (tese 2) 6 Inversamente às concepções e aspirações contidas nas conceituações anteriores, de maneira geral as políticas públicas reafirmam a tirania da dieta alimentar homogeneizada e manipulada ao sabor dos ganhos financeiros das grandes corporações agroindustriais. Assim as 13 maiores empresas alimentícias do mundo (Nestlé, Monsanto, Bungue, Dreyfuss, Kraft Foods, Pepsi-cola, Coca-Cola, Unilever, Tyson Foods, Cargill, Marte, ADM, Danone) controlam 26% do mercado mundial; e 100 cadeias de vendas diretas ao consumidor controlam 40% do mercado global; Apenas dez empresas — entre elas Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e ADM — dominam o mercado mundial de insumos para a agricultura. Esse grupo restrito de empresas concentra nada menos do que 67% das marcas registradas de sementes e 60 % do mercado mundial de sementes. E apenas seis empresas multinacionais (Monsanto, DuPont, Syngenta, Bayer, BASF, Dow) controlam 76% dos agroquímicos e 100 por cento dos agro-transgénicos.8 Responsáveis por pouco mais de 7% de tudo o que o país exportou em 2010, as quatro empresas figuram na lista dos 14 maiores exportadores do Brasil: Bunge (3ª posição), Cargill (6ª ), Louis Dreyfus (7ª ) e ADM (14ª )9. As três maiores redes de supermercados que operam no Brasil, Wal-Mart, Carrefour e Pão de Açúcar, que detêm cerca de 50% dos alimentos comercializados no país, também estariam definindo indiretamente o que o consumidor brasileiro come: controlam do campo à mesa; Cacau, sucos de fruta, açúcar, alimentos básicos e café agora são commodities globais, assim como petróleo, ouro e metais. Então, em 2006, com o desastre das hipotecas podres e bancos e especuladores correram para jogar os seus bilhões de dólares em negócios seguros, alimentos em especial. “Mike Masters, gerente de um fundo no Masters Capital Management disse em 2011 que “... Eu conheço muitos especuladores e eles confirmaram o que está acontecendo com os alimentos. A maior parte do negócio agora é especulação – eu diria 70 a in: Declaração de NYÉLÉNI. Foro Mundial por la Soberania Alimentaria. Nyéléni, Selingue, Malí. 28 de febrero de 2007. 7 in Declaração da Conferência Especial para a Soberania Alimentar, por Direitos e pela Vida, do Comitê Internacional para a Soberanía Alimentar - CIP, realizado em Brasília de 10 a 13 de abril de 2008 8 Silvia Ribeiro, Campo de cultivo, campo de batalla. in http://www.jornada.unam.mx/2013/10/19/opinion/024a1eco La Jornada, Sábado 19 de octubre de 2013. 9 Vivian Oswald. Alimentos mais caros, e nas mãos de poucos. Dez empresas dominam mercado global e dificultam reação à alta de preços. Rio de Janeiro, jornal O Globo, 20-02-2011. 4 80%.”10 Exemplo: A Bolsa de Chicago movimenta em um ano o equivalente a 46 vezes a produção mundial de trigo e 24 vezes a de milho. Os sistemas alimentares estão experimentando profundas transformações (2009, Olivier De Schutter, ONU). O renovado interesse na agricultura por parte dos setores público e privado deu lugar ao incremento dos investimentos estrangeiros diretos na agricultura, de uma média anual de 600 milhões de dólares nos EE.UU. no decênio de 1990 a uma média de 3 bilhões de dólares no período 2005/2007. O aumento do investimento direto é uma parte da transformação mais ampla da cadeia mundial de produção e distribuição no setor agroalimentar. As apropriações pelo capital das terras africanas e das latinoamericanas que se concretizam há décadas têm seguidamente desestruturado as organizações sociais e culturais dos povos originários, gerando em contrapartida novas formas de organização e movimentos sociais desses povos e um novo conceito de soberania alimentar no âmbito dos Estados Plurinacionais Comunitários.11 Outros mundos possíveis Essa possibilidade de afirmar outros mundos possíveis se amplia quando cresce a consciência ecológica e de emancipação social camponesa//indígena. Afirmar e defender a diversidade de povos, de suas culturas e dos seus saberes; diversidade de histórias, de maneiras de se alimentar, os mais variados temperos da vida. Assiste-se a uma reinvenção da emancipação social, onde a democratização social do rural é uma das suas bases. Parcela considerável das populações percebe as distintas maneiras de superação da invisibilidade; de romper a subalternidade que subjaz ao alternativo, e que o desqualifica; de garantir a presença cotidiana de outras formas de racionalidade. Acentua-se o diálogo de saberes; há um rompimento da concepção linear do tempo. Deveria predominar o debate holístico intercultural. Tarefas dos Governos e do Estado Os governos, através de suas estratégias políticas devem intervir nos mercados, regulá-los no sentido de garantir a diversidade e democratização de ofertas agrícolas sem que se verifique a concentração econômica e fundiária. Controle direto do governo sobre o comércio exterior (importação/exportação) de alimentos; sobre as taxas de juros e de câmbio praticados para esses produtos. Implementar um amplo programa de pequenas e medias agroindústrias instaladas em todos os municípios do país, na forma cooperativa. 10 www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17497&boletim_id=847 & componente_id=13842, Economia| 01/03/2011 | 11 Ver CAOI (2008). Estados Plurinacionales Comunitários. Para que otros mundos sean posibles. Lima, CAOI. 5 Garantir estoques reguladores de alimentos saudáveis, por parte do governo, para garantia de acesso a toda população. Isto significa mudar o atual modelo de produção e de tecnologia agrícola dominante para outra concepção de produção de alimentos saudáveis, baseados na agroecologia, agricultura ecológica, orgânica e outros caminhos que garantam produção e oferta abundante em todos os locais, regional e a nível nacional. .Limitar o tamanho máximo da propriedade e posse da terra; e garantir o princípio do interesse de toda sociedade sobre os bens da natureza, florestas, água, solos, ar e biodiversidade. Impedir o uso e fomento de sementes transgênicas. Elas representam a propriedade privada da vida, da possibilidade da livre reprodução, e acima de tudo representam a destruição de toda biodiversidade, pois elas são concebidas para não se reproduzirem (tecnologia ‘Terminator’) para garantirem o monopólio do saber (patentes). O conhecimento, a plena liberdade e o apoio dos governos para intercambiar e melhorar sementes criolas são componentes fundamentais da Soberania Alimentar, porque sua existência em diversidade permite assegurar a abundância alimentar, servir de base a uma nutrição adequada e variada, e desenvolver formas culinárias culturalmente próprias e desejadas. Soberania Alimentar é, antes de tudo, o direito dos povos de consumir alimentos de acordo com os fatores culturais, éticos, religiosos, estéticos e de qualidade alimentícia. O que implica alimentos sadios, acessíveis e culturalmente apropriados