Maria José de Morais Pereira Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da trajetória de vida de duas professoras do Ensino Fundamental. Dissertação de mestrado apresentada ao Mestrado em Educação, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a obtenção do grau em Mestre de Educação Orientadora: Professora Doutora Magali de Castro Belo Horizonte – 2.000 Dissertação defendida e aprovada no dia ___________________________ ______________________________________________________________ Professora Orientadora Doutora Magali de Casto ______________________________________________________________ Professora Doutora Edil Vasconcelos de Paiva ______________________________________________________________ Professora Doutora Ana Maria Casasanta Peixoto 2 “Chama-se violento ao rio que tudo arrasa. Ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” Brecht 3 Ao Homero e Maria Virgínia 4 AGRADECIMENTOS À Helena e Maria das Graças que deram “vida” às Teorias de BOURDIEU, DURKHEIM e FOUCAULT. À Professora Doutora Magali de Castro, mais que orientadora, incentivadora do meu trabalho. Ao Licério pelo apoio e paciência. A todos que facilitaram-me a apaixonante tarefa de pesquisar e escrever. 5 RESUMO A disciplina e o castigo na escola constituem a questão central que orienta os estudos e a investigação da ação pedagógica de duas professoras do Ensino Fundamental. Tendo como foco de reflexão a formação dos pilares da disciplina sob a forma de “habitus” no âmbito familiar e a consolidação desses “habitus” disciplinares na formação escolar, buscou-se, através do estudo das trajetórias de vida das duas professoras, analisar a influência, na prática pedagógica, dos “habitus” disciplinares consolidados durante suas trajetórias. O estudo foi realizado à luz dos aportes teóricos de Durkheim, Foucault e Bourdieu. O diálogo dos dados com a teoria de Durkheim e Foucault, que abordam, respectivamente, a disciplina a partir da noção de moral e da noção de normalização, permitiu o desvendamento dos conceitos e das representações que orientam o processo de disciplinamento das duas professoras. Os estudos sobre “habitus” na teoria de Bourdieu, sustentaram a análise da influência, na prática pedagógica, dos “habitus” disciplinares consolidados em suas trajetórias de vida. A sobrevivência dos castigos escolares, constatada ao longo da pesquisa, aponta para a necessidade da reflexão sobre ações autoritárias e coercitivas ainda em vigor em algumas escolas, no sentido da construção de uma prática pedagógica que tenha como fundamento da disciplina não ameaças e castigos, mas a compreensão do sentido e da necessidade das regras para a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Palavras-chave: Castigo, Disciplina, “Habitus” disciplinares, Indisciplina, Prática pedagógica, Trajetórias 6 SUMMARY The discipline and punishment in a school’s development was the central question that surrounded the studies and investigations of teaching practices of two teachers who were teaching Basic Education. The reference used in the formation of the reserch in education. The teachers in this study were analysed in regard to their teaching pratices to assatain the probability of influences from the former mentioned disciplines. This research and study was conducted in accordance to the theories propounded by Durkheim and Foucault. These theories broached respectively the disciplines of moral obligations and the adherence to rules and regulations. The two teachers were observed in their representations of teaching pratices against the Durkheim and Foucault theories and in addition the theories of Bourdieu where applied to elicit if any divergence from the two teachers habits according by Durkheim and Foucault. The Bourdieu theory establishes the likelyhood of personal influences that can unwittingly be practiced during the two teachers teaching practices. This investigation and study related these theories to certain shool’s administration and their establishment of discipline and punishment. The objective of applying the Durkheim, Foucault and Bourdieu theories was to elict possible links between authoritarian and coercive rules of threats and punishments with the need to develop though education a just and friendly society. Key-Words: punishment, discipline, habitus of discipline, indiscipline, teaching pratices, trajetory. 7 ÍNDICE Introdução ....................................................................................................10 Capítulo 1 – Uma leitura da Disciplina e das formas de Disciplinamento em DURKHEIM e FOUCAULT. .............................................16 Capítulo 2 – O habitus na trajetória de vida dos professores: uma abordagem em BOURDIEU. ..................................................26 Capítulo 3 – O Estudo de trajetórias de professores: uma abordagem da história oral para o estudo da disciplina e do disciplinamento. .....................................................................32 Capítulo 4 – Os professores e suas trajetórias de vida - Disciplina e disciplinamento: da concepção à ação ...................................39 4.1 Duas trajetórias em um mesmo tempo: algumas referências contextuais. ..................................................40 4.2 A vivência da questão disciplinar no âmbito da família: formação dos pilares da disciplina. .................................44 4.3 Disciplina e disciplinamento na trajetória escolar: consolidação de “habitus” disciplinares e formação de novos “habitus”. ..............................................................48 4.4 Disciplina e disciplinamento na trajetória profissional: reflexo dos “habitus” na prática pedagógica. ..................53 4.5 Conceitos e representações sobre disciplina e disciplinamento e “habitus” disciplinares consolidados ao longo da trajetória. ..........................................................68 8 Capítulo 5 – Disciplina e disciplinamento na relação pedagógica: a visão de outros agentes ..................................................................81 Conclusão ...............................................................................................86 Anexos 1 – A história de vida de Helena: Construção da vida profissional a partir de um ideal. ................................................................................95 2 – A história de vida de Maria das Graças: ser professora como conseqüência natural da formação escolar. ..............................98 3 – Roteiro da entrevista com as professoras. ..........................................100 4 – Roteiro da entrevista com os agentes – diretores, supervisores .........104 5 – Roteiro da entrevista com os agentes – ex-alunos. .............................105 Referências Bibliográficas ...........................................................................107 9 INTRODUÇÃO A questão da (in)disciplina na sala de aula é familiar para todos aqueles que se acham envolvidos com o processo educacional. Professores e alunos de todas as épocas, possivelmente, guardarão na lembrança episódios relacionados aos prêmios e castigos na sala de aula. Minha preocupação com essa questão emerge de uma situação natural de vida. Desde muito pequena convivi com a idéia de castigos escolares e com histórias de alunos desobedientes, malcriados, sujos, burros. Minha mãe falava desses alunos como se fossem verdadeiros capetas, a infernizá-la na sua prática pedagógica. Aos bons alunos cabia a alegria e satisfação de dar aulas e eram eles, que levavam as varas de marmelo que serviam para ameaçar e impor a autoridade. Como aluna do ensino primário, ginasial e normal presenciei e passei por inúmeras situações embaraçosas de repressões e castigos os mais diversos. Tive, certa vez, de copiar mil vezes "Tenho que respeitar a sala de aula". Até hoje, não sei porque fiz essas cópias ! Como professora primária, chegou a minha vez de castigar e de assistir à aplicação de muitos e diversos castigos. Esses eram incentivados pelo próprio diretor, que considerava como melhores professores aqueles que conseguiam maior silêncio e imobilidade dos alunos na sala. "Não dê beliscões ou reguadas, puxe o cabelo porque não deixa marcas, dizia a diretora. Essa trajetória como professora me levou a diversos questionamentos sobre a disciplina escolar, o que me fez buscar, no estudo acadêmico, as respostas para os mesmos. A leitura de alguns autores serviu de reflexão para a definição do que é disciplina e de como essa questão é vista na escola e na sala de aula. 10 Entretanto, os estudos por mim realizados evidenciaram a escassez de obras dedicadas à análise da disciplina/indisciplina na escola. Tal fato foi afirmado por AQUINO (1996: 21), em seu trabalho bibliográfico sobre a questão da relação professor-aluno. Segundo ele, "... esse trabalho teve um caráter quase arqueológico, se nos permite a metáfora. Por vezes, as alusões ao tema apresentavam-se como capítulos à parte dos textos, outras vezes, vinham embutidos em extratos isolados". Também AFONSO (1991:119), afirma que: "...a problemática da indisciplina na escola e na sala de aula só raramente aparece como unidade temática nos programas de Sociologia da Educação. Esse fato reforça a idéia de que a disciplina na sala de aula é considerada um problema mais prático do que teórico". Segundo ESTRELA (1994: 15), o termo disciplina tem, ao longo do tempo, assumido diferentes significações: punição, dor, instrumento de punição, direção moral, regra de conduta para fazer reinar a ordem, obediência às normas. Por outro lado, o termo indisciplina é definido como desordem proveniente da quebra das regras estabelecidas. Para DURKHEIM (1984: 251), "a disciplina é a moral da classe, como a moral propriamente dita é disciplina do corpo social." A educação visa, nessa ótica, a inserção do indivíduo numa sociedade que se pretende ordenada e harmônica, daí a disciplina transformar-se em caráter educativo. A aprendizagem e a interiorização de regras prescritas socialmente fazem parte do cotidiano das práticas escolares. Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM (1978:74) considera que “a sala de aula é uma pequena sociedade”. Nela, professor e alunos posicionam-se frente a frente, “ora como 11 parceiros, ora como inimigos”, dando origem à negociação ou à imposição de regras que servirão para manter o que consideram um bom clima disciplinar. A sala de aula não é somente o espaço privilegiado da prática pedagógica mas, também, o lugar de relações entre pessoas, objetos e símbolos. Assim, além de lugar de transmissão de saberes, a sala de aula, enquanto núcleo central das atividades escolares, é o local no qual se estabelece um processo contínuo de interações. Para ela afluem as contradições do contexto social, os conflitos psicológicos, as questões da ciência e as concepções valorativas dos atores do ato pedagógico: o professor e os alunos. Assim, as relações interpessoais que se estabelecem neste espaço necessitam de algumas regras de convivência. As regras desempenham o papel de criar condições de funcionamento harmonioso da classe. O professor é, dentro da sala de aula, o agente normativo que exerce essa função, por delegação social. Quando as regras não são cumpridas, surgem situações imprevisíveis de indisciplina e cabe ao professor fazer frente a elas e vencê-las. Para isso, ele desenvolve uma série de habilidades tais como: gestos, tom de voz, ameaças, castigos que o ajudam a vencer as barreiras da indisciplina. A aprendizagem e a interiorização de regras prescritas socialmente fazem parte do cotidiano das práticas escolares. É tarefa do professor, além de selecionar os conteúdos e os recursos didáticos para o ensino dos saberes escolares, ditar as normas e controlar o comportamento dos alunos para que as mesmas não sejam quebradas. Assim, é o professor quem pode determinar onde e como o aluno vai sentar-se e a postura e atenção que deve ter durante as aulas: o aluno deve ficar quieto, calado, atento, deve ser obediente e cumprir todas as obrigações. O certo é que, na escola, vigoram regras sociais e morais que constituem um patrimônio cultural, geralmente reconhecido e aceito. O aluno, na medida em que internaliza os valores culturalmente impostos pela estrutura social, acaba por aceitar o poder do professor e reconhece o direito de lhe serem ditados comportamentos. AQUINO (1996) afirma que “não nos é possível passar a largo dos eventos espasmódicos de indisciplina (e até mesmo de violência), que 12 atravessam o espaço escolar contemporâneo, sem nos espantar". Contudo, chama a atenção para o fato de que o fenômeno da indisciplina é um velho conhecido de todos, mas a sua relevância teórica ainda não é nítida. Segundo ele, investigações realizadas apontam para o fato de que um dos obstáculos ao ensino é a conduta desordenada dos alunos, traduzida em termos como: bagunça, tumulto, falta de limite, mau comportamento, desrespeito à autoridade, etc. Relatos nos dão conta de que inclusive castigos físicos são, ainda hoje, praticados, para controlar a classe, embora esses sejam raramente admitidos pelo professor: "Tem professora que bate na gente. Só uma vez eu levei um puxão de orelha, porque estava fazendo bagunça. Eu acho que não precisava agredir a criança assim não." (aluna, escola estadual. ESTRELA, 1994) Segundo SNYDERS (1988), os alunos são muito mais profunda e freqüentemente humilhados na escola do que se acredita. Falta-lhes respeito à dignidade, consideração e valorização. Relatos de crianças nos dão ciência de puxões de orelha, sacudidelas, isolamento na sala de aula, ficar de pé olhando para a parede, cópias, etc, como meios de manter a ordem. "Eu estudava no Instituto São José. E lá, pela menor coisa, havia o castigo. Nós podíamos optar entre copiar tantas linhas, ou decorar. Uma coisa terrível!" (Hellus Skinner, FONSECA, 1997: 107) Para ESTRELA (1994), as intervenções, quer sejam de recompensas, quer sejam de punições, baseiam-se mais na intuição e experiência do professor do que na aplicação sistemática de uma teoria psicológica ou pedagógica. Constatando que essas intervenções são relativamente limitadas em sua variedade, a pesquisadora inventariou as seguintes reações dos professores: 13 • De caráter verbal: chama a atenção, repreende, ameaça (inclusive com notas baixas) ironiza, faz apelos à boa conduta, lembra a regra que está sendo violada, expulsa o aluno da sala, faz bilhetes ao pais. • De caráter não verbal: olha fixamente, desloca-se, faz silêncio, manda parar com um gesto, intercepta objetos, estabelece contato físico. • De caráter misto: desloca-se e repreende, chama à ordem e estabelece contato físico. Essas reações fazem parte do cotidiano da sala de aula e são usadas toda vez que surgem comportamentos desviantes e perturbadores. Considerada por muitos como um obstáculo ao trabalho educativo, a indisciplina tem sido abordada enquanto resultado de relações entre professores e alunos e em termos da postura do professor em sala de aula. ILDA TABA (1962), apud ESTRELA (1994: 57), afirma que, quando as relações pessoais são rígidas e bloqueadas, a disciplina e o trabalho são imediatamente afetados e aparecem os estados de desequilíbrio. Esses desequilíbrios fazem-se sentir, com maior freqüência, no campo das comunicações, principalmente quando o ensino tem um caráter verbal. Das pesquisas sobre punições escolares pudemos constatar que a função das mesmas não é a de resolver o problema da indisciplina, mas a de controlar o aluno indisciplinado e fazer com que ele não incomode mais aquela aula. O professor aplica tantas vezes quanto necessária a mesma punição, ao mesmo aluno, pela mesma falha. A reincidência da falha comprova a ineficiência do castigo. Seja qual for seu foco de análise, os estudos sobre a disciplina revelam que o aluno nem sempre é uma vítima indefesa, pois é capaz de forçar os seus esquemas de defesa, de ataque e de retribuição e de entrar numa rede complexa de negociações, as quais limitam o poder arbitrário do professor. Daí entendermos que a análise da disciplina e da indisciplina é muito mais 14 complexa do que, à primeira vista, pode parecer e envolve não apenas a relação entre professores e alunos, mas uma série de fatores que extrapolam os limites da sala de aula e até mesmo da escola. Segundo CASTRO (1994: 275), "os alunos, considerados por todos como a razão de ser da escola, são os alvos de todos os reflexos das relações de poder existentes: vítimas do mau humor de professores descontentes ou contemplados pela sorte de conviver com mestres satisfeitos e adaptados, sofrem mais diretamente todas as conseqüências do clima estabelecido na instituição." Este enfoque é muito importante para o presente estudo, que não se circunscreve prioritariamente às abordagens relativas à disciplina em sala de aula, mas principalmente à concepção de disciplina que os professores construíram em sua trajetória e aos reflexos desta concepção nas relações com os outros atores da escola. Essas relações configuram-se como relações de poder, dentro das quais se circunscrevem as ações relativas ao disciplinamento. Para sua análise, recorremos à abordagem do poder disciplinar em FOUCAULT e em DURKHEIM. Além das abordagens de DURKHEIM E FOUCAULT, também são fundamentais os estudos de BOURDIEU sobre “habitus” e “capital cultural”, na medida em que o estudo parte das trajetórias das professoras. A interlocução com esses teóricos, a partir de minha experiência pessoal com a disciplina, gerou algumas questões que nortearam o trabalho: • o que é disciplina para o professor? • o que faz o professor utilizar-se de prêmios e castigos como forma de controle e disciplinamento? • que tipos de disciplinamentos são utilizados pelos professores? • que tipo de reações o disciplinamento provoca nos alunos? • como a história de vida do professor influencia na sua prática em relação ao disciplinamento em sala de aula? 15 1 - Uma leitura da Disciplina e das formas de disciplinamento em DURKHEIM e FOUCAULT O termo disciplina nos reporta a DURKHEIM (início do século) e FOUCAULT (década de 60/70), cujos estudos, produzidos em tempos e contextos diversos e alvos de diferentes significações, apresentam um caráter sempre atual, na medida em que abordam a questão da disciplina a partir da noção de moral (DURKHEIM) e de normalização (FOUCAULT). Tais abordagens são necessárias ao entendimento do fenômeno da (in)disciplina no contexto escolar e servirão de suporte para a análise da representação de disciplina e disciplinamento, construída pelos professores em sua trajetória. A questão da disciplina em DURKHEIM A importância de DURKHEIM para a análise de questões relacionadas à disciplina é reconhecida nos meios acadêmicos. Segundo AFONSO (1991: 120) "...Provavelmente nenhum outro sociólogo da educação terá, melhor do que DURKHEIM, posto em evidência a função do controle social inerente à disciplina escolar, ao relacioná-la, simultaneamente, com a necessidade da educação moral e da ordem social". Para DURKHEIM, a moral constitui-se num conjunto de regras definidas e específicas que determinam, de forma imperativa, a conduta. A autoridade do mestre não vem de fora, mas sim dele mesmo, da fé na missão que lhe cabe e na grandeza dessa missão. Por isso, da mesma forma que o sacerdote é o intérprete de Deus, o mestre é o intérprete das grandes idéias morais de seu tempo e de sua terra. A autoridade do mestre é um aspecto da 16 autoridade do dever e da razão que a criança deve reconhecer como força moral. A moral é essencialmente uma disciplina que tem duplo objetivo: de um lado conseguir uma certa regularidade na conduta dos indivíduos e de outro destinar-lhes fins determinados que limitam seu horizonte. A primeira disposição que é fundamental a qualquer temperamento moral, é o espírito de disciplina. A disciplina transmite hábitos à vontade, impõe-lhe freios, regulariza-a e a contém. A limitação da vontade é a condição da saúde moral e, portanto, da felicidade do homem e, por isso, a disciplina é útil não somente à sociedade, como meio indispensável sem o qual não poderia haver cooperação regular, mas também ao próprio indivíduo. É através dela que o homem aprende a moderação e consegue ser feliz. DURKHEIM (1984: 251) afirma que a família constitui um ambiente que, pelo seu calor natural, se apresenta particularmente apto a fazer despontar as primeiras inclinações altruístas, os primeiros sentimentos de solidariedade, mas a moral que ali se pratica é sobretudo afetiva. É na escola que a criança deve adquirir o necessário respeito pela regra e aprende a cumprir o seu dever. Assim, a escola desempenha o importante papel de guarda avançada da moral e é através da escola que a coesão social é assegurada. DURKHEIM (1984: 250, 251) afirma que, “É necessário que a criança aprenda o respeito pela regra; é necessário que ela aprenda a cumprir o seu dever, porque a isso se sente obrigada, e sem que a sensibilidade lhe facilite desmedidamente a obrigação. Esta aprendizagem seria muito incompleta no seio da família, é na escola que se deve fazer”. DURKHEIM (1978: 41) define a educação como a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que ainda não se encontrarem preparadas para a vida social. Tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança particularmente, se destine”. 17 Para ele, toda ação educativa é um esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais não chegaria de uma forma espontânea. Desde os primeiros momentos de sua vida, ela é forçada a comer, a beber, a dormir dentro de horários regulares, a ser obediente, quieta, caprichosa; mais tarde é obrigada a respeitar os outros, os costumes, as conveniências; é forçada a trabalhar, etc.. Desse modo, entendo que a ação educativa deve fazer com que a criança ultrapasse a sua natureza individual, a fim de tornar-se um novo ser, dando-lhe condições para enfrentar as “duras realidades da vida”. A criança necessita aprender a controlar a vontade e exercer sobre si mesma a contenção, quer por força da necessidade física, quer por dever moral. Para DURKHEIM, a criança só pode conhecer o dever através de seus pais e de seus mestres e isso exige desses, a encarnação do mesmo. “É preciso portanto, que eles sejam para o educando o dever personificado” (DURKHEIM (1978: 54). Assim, para ele, autoridade moral é a qualidade essencial do educador. É pela autoridade moral que nele se encarna, que deve tornar-se, de fato, dever. Ele afirma ainda, que, na escola, existe todo um sistema de regras que pré-determinam o comportamento da criança: a criança deve comparecer à hora marcada, com uma apresentação e um porte conveniente (uniforme); durante a aula, não deve perturbar a ordem, deve fazer suas obrigações e exercícios com a aplicação necessária, etc. O conjunto desses deveres constitui a disciplina escolar, cuja prática possibilita inculcar na criança o espírito de disciplina. Cada grupo social, cada espécie de sociedade tem, e não pode deixar de ter, a sua moral, que exprime a sua constituição. A classe é uma pequena sociedade e deve possuir uma moral própria. A disciplina é essa moral. Aprendendo a respeitar a regra escolar, a criança aprenderá, também, a respeitar as regras sociais, será capaz de conter-se e constrangerse, adaptando-se para viver harmoniosamente, tanto no mundo físico, quanto no social. O mestre deve zelar pela disciplina, pois ela constitui-se 18 essencialmente num instrumento de educação moral. É na firmeza do mestre que se fundamenta a moralidade da classe. Assim sendo, uma classe indisciplinada é uma classe que se desmoraliza. Na visão de DURKHEIM, as crianças são as primeiras a daremse bem com uma boa disciplina, pois elas necessitam sentir sobre elas regras que as contenham e mantenham. E ainda, uma classe bem disciplinada tem aspecto saudável e bem disposto. Para manter a disciplina, um dos meios mais utilizados pelos mestres é o da penalidade. DURKHEIM (1984) considera que as punições não têm a função essencial de obrigar o culpado a expiar a sua falta, fazendo-o sofrer, mas sim, de reafirmar o dever no momento mesmo em que esse é violado. A punição não serve para normalizar aquele que infringiu a regra e, sim, para dar uma satisfação ao obediente. Para ele, a função essencial da pena não é, pois, a de obrigar o culpado a expiar a sua falta fazendo-o sofrer, mas a de impedir que a disciplina perca sua autoridade. Qualquer ato que viole a regra deve ser alvo de punição, pois a regra é sagrada e inviolável. Punir é reprovar, é censurar, é afirmar que a regra foi negada. A reprovação e o castigo são conseqüências naturais da falta e a criança só sente haver cometido uma falta moral, quando é moralmente censurada. Desse modo, entendo que, apesar do caráter austero da reprovação, ela não têm a finalidade de fazer sofrer, intimidar ou aterrorizar, mas sim, de reafirmar o dever no momento mesmo em que esse é violado. DURKHEIM é contra os castigos corporais. Para ele, como os objetivos da educação moral consistem em transmitir à criança o sentimento de sua dignidade de homem, as penas corporais se tornam perpétuas ofensas a esse sentimento e têm um efeito desmoralizador. “Não só não se deve bater, como também se deve proibir qualquer castigo susceptível de prejudicar a saúde da criança”. DURKHEIM (1994: 303). 19 Para ele, as privações de recreio consistem numa punição legítima e eficaz, uma vez que a brincadeira, tal como a alegria e a efusão que a acompanham, são produtos de um sentimento interno de satisfação, que não pode ser sentido por alguém que cometeu uma falta. De outro lado, o castigo escolar que obrigava o aluno a repetir a mesma coisa uma infinidade de vezes deve ser substituído por tarefas suplementares que tenham o mesmo caráter de seus deveres ordinários. A privação de divertimentos, deveres suplementares, junto à censura e reprimendas são considerados por DURKHEIM, como os principais elementos da penalidade escolar. Deve-se ter cuidado na aplicação do castigo, porque o que constitui a sua autoridade é a vergonha moral que ele provoca. A virtude do castigo só é total quando ele se limitar à condição de ameaça porque uma vez que se chega à severidade extrema, ele produz menos efeito quanto mais se repetir. Daí, a necessidade de se multiplicar as divisões da escala penal: reprovação pública, perante os alunos que formam a classe, reprovação comunicada aos pais, castigo com suspensão. E ainda, antes da reprovação, o mestre pode se utilizar de meios de advertência que fazem com que a criança sinta que está errada: um olhar, um gesto, um silêncio são processos muito significativos e a criança os compreende. Além de saber dosar os castigos, é importante saber a forma de castigar. DURKHEIM (1984: 307) recomenda que não se deve punir irado, uma vez que o castigo não pode ser sentido como um ato de cólera e de impaciência nervosa. É necessário que a criança sinta que o castigo foi deliberado e resultado de uma decisão tomada a sangue frio e deve revelar indignação do mestre com a falta cometida. O mestre, nesta relação, mostrará ao aluno que lamenta as suas faltas e que essas o fazem sofrer. DURKHEIM, por um lado, defende a disciplina como o mais importante elemento da moralidade e, por outro lado, considera a penalidade como um dos meios de os educadores conseguirem que os alunos atinjam o estágio moral desejável e necessário para a vida em sociedade. Para ele, o processo 20 educativo através da disciplina, conforma os indivíduos aos grupos sociais a que pertencem. A internalização das regras e dos valores estabelecidos faz com que o indivíduo atinja a verdadeira liberdade. A Disciplina em FOUCAULT Abordando a disciplina na perspectiva das relações sociais, FOUCAULT considera que essas relações são fundamentalmente relações de poder e de resistência. Talvez, aqui esteja a explicação sobre a falta de bons resultados dos castigos aplicados repetidamente nos mesmos alunos e, às vezes, pelo mesmo professor, durante um, dois, três anos escolares. A análise de FOUCAULT nos faz perceber a resistência que existe nas relações de poder. Ele afirma que o poder da disciplina está na sua função maior de adestrar. A disciplina fabrica indivíduos. Ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos, ao mesmo tempo, como objetos e como instrumentos de seu exercício. O poder é algo que circula, que funciona em cadeia. Ele nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. Assim, o poder disciplinar está em toda a parte e sempre alerta. O poder disciplinar é um poder relacional que se autosustenta por seus próprios mecanismos. Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona sempre um mecanismo penal. Esse mecanismo funciona como um repressor, através de toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupção de tarefas), da atividade (desatenção, etc.), da maneira de ser (grosseria), dos discursos (tagarelice), do corpo e da sexualidade. A título de punição são utilizados processos sutis que vão do castigo físico leve a ligeiras e pequenas humilhações. A punição, para FOUCAULT, é tudo aquilo que é capaz de fazer as crianças sentirem a falta que cometeram, de humilhá-las e de confundi-las. Os castigos físicos, para ele, têm a função de reduzir os desvios, sendo 21 essencialmente atos corretivos que visam sempre a restauração da ordem. Contudo, a maneira como se faz esta restauração depende da estratégia de poder dominante em uma determinada época. FOUCAULT chama de poder disciplinar a estratégia predominante de poder da modernidade. Para ele, na modernidade o poder disciplinar é caracterizado pela não corporeidade da pena. O corpo não é mais castigado publicamente, de forma direta. Como a liberdade é o valor máximo na modernidade, retirá-la tornou-se a punição mais utilizada. Na escola, a palmatória foi substituída por castigos que limitam os movimentos e impedem a comunicação com os outros. O objeto da punição é o da reeducação do indivíduo. É por isso que a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir e sua especificidade está em produzir docilidade e eficiência, servindose da domesticação e moralização. Por isso, FOUCAULT diz que não basta punir. É preciso vigiar, corrigir, reeducar, organizando o tempo e o espaço. A punição é aplicada toda vez que o poder atesta que os corpos estão se afastando das normas. Impõe-se então um corretivo e um instrumento de hierarquização do desvio. Para isso, é de grande valia e importância, a boa administração de castigos. “Nada de força bruta ou de castigos majestosos”. É necessário dar visibilidade aos comportamentos mais simples e corriqueiros e para isso impõe-se uma “certa” disposição física do ambiente, o que facilita o controle pelo “olhar”. Contudo, a punição disciplinar deve ultrapassar o aspecto corretivo pois deve, através da expiação, exercitar o arrependimento, atuando como um elemento de um sistema duplo de gratificação – sanção. FOUCAULT (1987: 127) evidencia a descoberta do corpo como objeto e alvo de poder, no século XVIII. Para ele, “o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte no corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente”. 22 Portanto, cabe à disciplina fabricar corpos submissos, tornando-os aptos a uma sujeição estrita. Assim, a disciplina, em primeiro lugar, dirige os seus atos no sentido de distribuir os indivíduos no espaço. Cada indivíduo deve ocupar o seu lugar, o que facilita saber onde e como encontrar cada um, como evitar comunicações inúteis ou indesejáveis, poder vigiar o comportamento de todos, apreciá-lo ou sancioná-lo. FOUCAULT (1987: 131) compara o espaço das disciplinas às celas dos conventos, que são, no fundo, celulares e propiciam a solidão necessária ao corpo e à alma. Os lugares determinados não servem somente para satisfazer à necessidade de vigiar e de impedir as comunicações perigosas mas, sobretudo, criam um espaço de utilidade. FOUCAULT (1987: 135) afirma que “as disciplinas organizando as “celas”, os ”lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos que propiciam a fixação e permitem a circulação, ao mesmo tempo em que marcam lugares e indicam valores, o que garante a obediência dos indivíduos, mas ao mesmo tempo, garante, também, economia de tempo e dos gestos. Ao lado da marcação do espaço, a divisão do tempo torna-se cada vez mais detalhada e o planejamento de atividades dentro de horários bem demarcados, tratando-se de “constituir um tempo integralmente útil”. (pág. 137)”. As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.”(pág. 142/143). O tempo disciplinar foi-se impondo à prática pedagógica. Partindo-se do tempo de formação, do ofício adquirido, da determinação de programas, chegou-se ao tempo disciplinar com suas séries múltiplas e progressivas. Para FOUCAULT (pág. 144) “a colocação em “série” das atividades sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder: possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual – de diferenciação, de correção, de castigo, de eliminação – a cada momento do tempo.” Tudo isto, possibilita não só caracterizar os indivíduos, mas utilizá-los de acordo com o nível que alcançam nas séries que percorrem. O poder se articula sobre o tempo, controla-o e garante a sua utilização. 23 Para ter sucesso, o poder disciplinar faz uso de instrumentos simples, como o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame. O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar a tudo ver permanentemente e exige uma especificação da vigilância para torná-la mais funcional, integrando-a, mesmo, à relação pedagógica. Assim, para ajudar o mestre a controlar a classe, escolhe-se entre os melhores alunos os representantes da classe uma série de oficiais, observadores, monitores, etc. que terão papéis que vão desde à distribuição de materiais até os de fiscalização. Graças à vigilância hierarquizada, contínua e funcional, o poder disciplinar organiza-se como um poder múltiplo, anônimo, automático: “ele não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina” (pág. 158). Assim, o poder que está em toda parte e sempre alerta, controla, inclusive, aqueles que estão encarregados de controlar. FOUCAULT (1987: 158) afirma que a disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Através do mecanismo de gratificação-sanção é possível qualificar e quantificar os comportamentos e os desempenhos em termos de boas e más notas e em distribuição de pontos e conceitos. Por outro lado, esse mecanismo tem também, o papel de classificar os indivíduos (alunos) e dividi-los em classes: a 1ª classe, dos muito bons, a 2ª classe dos bons, a 3ª classe dos medíocres e a última classe dos maus. O mérito e o “bom” comportamento definem, portanto, o lugar do aluno, podendo esse, mudar de classe, de acordo com os pontos que conseguir através dos progressos e das mudanças de comportamento. Para FOUCAULT (1987: 163) “a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto que é 24 ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípios de uma regra a seguir”. Assim, a penalidade propicia a comparação, a diferenciação, a hierarquização, a homogeneização e a exclusão, enfim, a normalização. Ao longo da história o poder continua sendo inscrito nos corpos das crianças, mudando apenas a sua forma e os mecanismos por eles utilizados. O professor continua sendo o “vigia” que zela pela boa disciplina, impedindo que ocorram faltas nas salas de aula. Contudo, a vigilância envolve a todos, inclusive o próprio professor: “quem vê é também visível”. É assim que no jogo do domínio, do poder, surge o jogo da resistência. O professor, enquanto “vigia” os alunos é por eles, também, vigiado. 25 2 - O habitus na trajetória de vida dos professores: uma abordagem em BOURDIEU Em seus estudos sobre a sociedade e os agentes sociais, BOURDIEU usa a noção de habitus para enfatizar a dimensão de um aprendizado passado que está no princípio de encadeamento das ações, ou seja, da prática que resulta do habitus enquanto sinal incorporado de uma trajetória social. BOURDIEU (1994: 65-66) se utiliza de uma citação de DURKHEIM para explicar a natureza histórica do habitus: “(...) Em cada um de nós, em proporções variáveis, há o homem de ontem; é o mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está predominantemente em nós, posto que o presente não é senão pouca coisa comparado a esse longo passado no curso do qual nos formamos e de onde resultamos. Somente que, esse homem do passado, nós não o sentimos, porque ele está arraigado em nós; ele forma a parte inconsciente de nós mesmos. Em conseqüência, somos levados a não tê-lo em conta, tampouco as suas exigências legítimas. Ao contrário, as aquisições mais recentes da civilização, temos dela um vivo sentimento porque, sendo recentes, não tiveram ainda tempo de se organizar no inconsciente.” Assim, BOURDIEU (1996: 15) afirma que não podemos capturar a lógica mais profunda do mundo social a não ser submergindo na particularidade de uma realidade empírica, historicamente datada e situada, para construí-la, porém, como caso particular do possível, isto é, como uma figura em um universo de configurações possíveis. Portanto, ao mergulhar na análise da trajetória de vida dos professores procuro encontrar, à luz dos ensinamentos de BOURDIEU, a compreensão para os comportamentos disciplinares dos professores em suas 26 práticas pedagógicas. Desta forma, sua abordagem sobre capital cultural e habitus é de fundamental importância neste estudo. Para ele (1998), o capital cultural sob a forma de estado incorporado, "pressupõe um trabalho de inculcação e assimilação. (...) É um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da pessoa, um "habitus". BOURDIEU (1998: 41), afirma que “Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar. Assim, os esquemas de percepção, de apreciação e de ação que são adquiridos por gerações sucessivas, através da prática, num processo de inculcação e assimilação, tendem a se reproduzir nas práticas. O capital cultural considerado como um conjunto de recursos ligados à posse de uma rede durável de relações, garante que os agentes se reconheçam como pares e possam fazer parte de um determinado grupo. O capital cultural pode-se apresentar em três estados: • o estado incorporado • o estado objetivado • o estado institucionalizado No estado incorporado, o capital cultural apresenta-se ligado ao corpo, o que pressupõe sua incorporação através de um trabalho de inculcação e assimilação. Esse trabalho de aquisição do capital cultural leva um longo tempo e supõe um esforço do “sujeito sobre si mesmo”. “Aquele que o possui “pagou com sua própria pessoa” e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo”. A incorporação do capital cultural demanda tempo, daí não poder ser transmitido por doação, por hereditariedade, compra ou troca. A inculcação e assimilação do capital cultural só pode acontecer através do investimento pessoal do receptor. 27 No estado objetivado, o capital cultural existe sob a forma de bens culturais tais como: quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas. Nesse estado, o capital cultural pode ser transmitido para outra pessoa. No estado institucionalizado o capital cultural é consolidado através dos títulos e certificados escolares. BOURDIEU (1983: 105) explica o “habitus” como aquilo que se adquiriu, que se encarnou no corpo de forma durável sob a forma de disposições permanentes. O habitus se difere do hábito por ser, esse, considerado espontaneamente como uma ação repetitiva, mecânica, automática, “antes reprodutivo que produtivo”. O habitus, por sua vez, é um produto dos condicionamentos, contudo, introduz neles uma transformação que faz com que nós reproduzamos as condições sociais de nossa própria reprodução, mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira tal que não se pode passar simples e mecanicamente das condições de produção ao conhecimento dos produtos. MARTINS (1987), afirma que "o ‘habitus’, enquanto produto da história, orienta as práticas individuais e coletivas. Ele assegura, portanto, a presença ativa das experiências passadas que, depositadas em cada indivíduo sob a forma de esquema de pensamento, percepção e ação, contribuem para garantir a conformidade das práticas e sua constância através do tempo. Através do ‘habitus’, o passado do indivíduo sobrevive no momento atual, atualizado no presente, e tende a subsistir nas ações futuras dos atores sociais". Portanto, o professor, nas suas relações com os alunos, tende a reproduzir a "lógica objetiva dos condicionamentos". O "habitus", enquanto produto de um trabalho de inculcação e assimilação, construído ao longo da sua história particular, ao mesmo tempo inserido no coletivo, não será o princípio gerador da ação do professor na sala de aula? Os habitus, enquanto "estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes", são princípios geradores e organizadores de práticas e representações. Segundo MARTINS (1987), as disposições 28 duráveis que a noção de habitus procura enfatizar, permitem à realidade objetiva, em suas várias dimensões, a atuação sobre o indivíduo produzindo, através dele, o processo de interiorização da exterioridade. O habitus forjado no interior das relações sociais, necessárias e independentes das vontades individuais, possui uma dimensão inconsciente para o ator, uma vez que esse não detém a significação da pluralidade de seus comportamentos e nem os princípios que estão na gênese da produção de seus esquemas de pensamentos, percepções e ações. Assim, o habitus determina o estilo de vida, o gosto, a propensão e aptidão à apropriação de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificatórias, gerando princípios de visão, de divisão e gostos diferentes. Ele estabelece a distinção entre o que é bom e o que é mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar, etc. É o habitus, como estrutura estruturada e ao mesmo tempo estruturante, que integra, nas práticas e nas idéias, os esquemas práticos de construção oriundos da incorporação de estruturas sociais resultantes do trabalho histórico de gerações que se sucedem. Portanto, os habitus são princípios que geram práticas tão distintas e distintivas que fazem com que um mesmo comportamento ou um mesmo “bem” possa parecer distinto para um, pretensioso para outro e vulgar para um terceiro. BOURDIEU (1974), falando sobre a ação pedagógica, afirma que uma das suas características reside no poder de comandar a prática tanto ao nível inconsciente – através dos esquemas constitutivos do "habitus" cultivado – como ao nível consciente, através da obediência aos modelos explícitos. O fato de o professor ter tido uma educação autoritária pode fazê-lo tentar repetir ou repelir esta prática? BOURDIEU (1996) afirma que o habitus como sistema de disposições para a prática é um fundamento objetivo de condutas regulares, logo, da regularidade das condutas e, se é possível prever as práticas é porque o mesmo faz com que os agentes que o possuem comportem-se de uma determinada maneira em determinadas circunstâncias. Sendo produto da incorporação da necessidade objetiva, que se torna virtude, o habitus produz estratégias que mostram-se objetivamente ajustadas à situação. Assim, a 29 ação que tem como princípio “o sistema de disposições”, o habitus, é produto de toda a experiência biográfica do indivíduo e funciona como um sistema de esquemas geradores de estratégias que podem objetivamente, servir aos interesses de seus autores. Para BOURDIEU (1990: 26) “construir a noção de habitus como sistema de esquemas adquiridos que funciona no nível prático como categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação e simultaneamente como princípios organizadores da ação, significa construir o agente social na sua verdade de operador prático de construção de objetos. A ação de cada agente social é produto, portanto, de toda sua experiência biográfica o que faz com que não exista duas histórias individuais e iguais, embora haja classes de experiências que possibilitam o aparecimento de classes de habitus, ou, melhor dizendo, os “habitus de classe”. Para BOURDIEU, as pessoas estão situadas num espaço social – e não em um lugar qualquer – e, em função da posição que elas ocupam nesse espaço, pode-se compreender a lógica de suas práticas e, com isso, pode-se, também, determinar como elas vão classificar e se classificar e ainda se pensar como membro de uma classe. Segundo BOURDIEU (1990: 96), para saber o que as pessoas fazem, é preciso supor que “elas obedecem a uma espécie de “sentido do jogo”, como se diz no esporte, e, para compreender suas práticas, é preciso reconstruir o capital de esquemas informacionais que lhes permite produzir pensamentos e práticas sensatas e regradas, sem intenção de sensatez e sem obediência consciente a regras explicitamente colocadas como tal”. É assim que o habitus, enquanto sistema de disposições para a prática, fundamenta de forma objetiva as condutas regulares. É, pois, a regularidade das condutas determinadas pelos habitus que faz com que os agentes se comportem de uma determinada maneira, em determinadas circunstâncias, o que possibilita prever as práticas. Contudo, a tendência para agir de uma maneira regular não se origina nem se embasa numa regra específica ou, de forma explícita, numa lei. As condutas geradas pelos habitus não têm a 30 regularidade das condutas que são reguladas por um princípio legislativo: “o habitus está intimamente ligado ao fluido, ao vago, a uma lógica prática, que define a relação do agente com o mundo. As condutas cotidianas são, pois, guiadas por esquemas práticos, isto é, por “princípios que impõem ordem na ação, possibilitando a classificação, hierarquização e divisão e a percepção das coisas. Depreende-se disso que o habitus é ao mesmo tempo um sistema de esquemas produtores de práticas e um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas. O habitus, enquanto princípio gerador de visão e divisão, é produto de toda a história individual. Essa história é produzida através das experiências formadoras desde a primeira infância, bem como de toda a história coletiva da família e da classe. Assim, através do habitus, temos um mundo de “senso comum”, um mundo social que parece evidente, que pode ser entendido e construído de diferentes maneiras, de acordo com os princípios de visão e de divisão de cada um. O habitus obedece a uma lógica prática, o que lhe dá o caráter de indeterminação, de incerteza e isto faz com que, em situações críticas, perigosas, não seja possível reverter-se inteiramente a ele. Para BOURDIEU (1998: 98), quanto mais perigosa for a situação mais a prática tenderá a ser codificada. Assim, em situações carregadas de violência em potencial, as condutas regidas pelas improvações do habitus são substituídas por condutas formalizadas e reguladas, que devem seguir um “ritual metodicamente instituído e ao mesmo tempo codificado”. A codificação permite acabar com o fluido, o vago, as fronteiras mal traçadas. Ela possibilita, através de cortes nítidos, que os limites sejam bem definidos. A codificação está, desta forma, intimamente ligada à disciplina e à normalização das práticas. 31 3 - O estudo das trajetórias de professores: uma abordagem de história oral para o estudo da disciplina e do disciplinamento. A pesquisa e a Metodologia utilizada. A proposta da Pesquisa Considerando os habitus enquanto estruturas estruturadas mas, também, estruturantes e, portanto, geradoras e organizadoras das práticas e representações dos atores sociais, me propus a, através do estudo da trajetória de vida de professores, analisar como estes construíram sua concepção de disciplina e disciplinamento e como essa concepção se manifesta, ao longo da carreira, no cotidiano do seu trabalho e nas suas relações com os outros atores do processo pedagógico. Nos estudos sobre disciplina, na teoria de DURKHEIM e de FOUCAULT, encontrei os conceitos que orientam o processo de disciplinamento. Nos estudos sobre habitus, na teoria de BOURDIEU, procurei desvelar as estruturas que integram as experiências passadas e que acabam por determinar as percepções, apreciações e ações dos professores face à questão da disciplina e do disciplinamento. À luz desses suportes teóricos, estudei a trajetória de vida de dois professores, ambos com mais de trinta anos de magistério nas primeiras séries do Ensino Fundamental, mas com trajetórias diferenciadas. Procurei identificar a concepção de disciplina construída por esses professores e como suas experiências influenciam suas ações em relação ao disciplinamento. A Metodologia utilizada Para a concretização da pesquisa optei pelo caminho da história oral de vida, considerando que, como afirma MEIHY (1998), a história oral implica a 32 percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. Essa escolha me possibilitou, através dos relatos da história oral de vida, ir desvelando os habitus que foram ao longo de cada trajetória compondo o pensar e o agir dos professores. O relato do professor sobre sua vivência em relação à disciplina e ao disciplinamento em sua trajetória familiar, social, escolar e profissional e sobre suas relações com os alunos ajudou a compreender sua visão sobre disciplina e disciplinamento. Ao estudar os aspectos da vida do professor, pude identificar sua concepção sobre o que é ser aluno disciplinado/indisciplinado e o seu modo de atuação frente a essa questão, uma vez que sua identidade resulta não apenas dos cursos de formação para o magistério, mas também de suas vivências e experiências pessoais e coletivas. CUNHA (1994) afirma que a vida cotidiana é a objetivação dos valores e conhecimentos do sujeito dentro de uma circunstância. É através dela que se faz concreta a prática pedagógica, no caso do professor. É tentar descobrir como ele vive e percebe as regras do jogo escolar, que idéias vivencia na sua prática e verbaliza no seu discurso e que relações estabelece com os alunos e com a sociedade em que vive. Assim, a história oral permitiu a recuperação de informações e possibilitou a visão particular de processos e vivências coletivos que se expressam através de sentimentos tais como: medo, alegria, expectativas, solidariedade, etc. MICHELAT (1980) afirma que há possibilidade de reconstruir os modelos de cultura e subcultura presentes numa sociedade através das trajetórias de vida, levando em conta os processos de socialização vividos e as influências recebidas, conscientes ou não, de diferentes grupos aos quais os indivíduos já pertenceram ou pertencem ainda. Os relatos pessoais, filtrados pelo tempo e pelos recursos individuais, mostram o modo como as pessoas sentem e vivem o mundo. A história oral, enquanto método de trabalho, incide sobre o passado dos atores, sobre os aspectos da vida social, particularmente da esfera do 33 cotidiano, nos dá o acesso à realidade, sem a exclusão do particular, do marginal, das rupturas, que normalmente escapam aos trabalhos de cunho quantitativo. Além disso, mediante a análise dos relatos orais, pude sentir a interferência dos acontecimentos sociais e políticos nas trajetórias individuais e as reações dos sujeitos a esses acontecimentos em diferentes momentos de vida. FONSECA (1997) diz que, ao estudar o relato da história de vida do professor e por entender que o mesmo é uma pessoa, a sua maneira de ensinar aparece diretamente ligada à sua maneira de ser, aos seus gostos, vontades, rotinas, acasos, necessidades, práticas religiosas e políticas. Ao ouvir os professores e atores envolvidos no processo de ação pedagógica, encontrei significação para os fatos relativos às questões da disciplina/indisciplina na sala de aula. Segundo MICHELAT (1980: 199), “numa pesquisa qualitativa, só um pequeno número de pessoas é interrogado. São escolhidas em função de critérios que nada têm de probabilísticos (...). É, sobretudo, importante escolher indivíduos os mais diversos possíveis”. Portanto, as escolhas dos sujeitos desta pesquisa não foi aleatória, mas sim, procurei intencionalmente, uma amostra que proporcionasse dados fiáveis e significativos para o desvelamento do objetivo deste estudo. Foram escolhidas duas professoras com aproximadamente o mesmo tempo de percurso profissional (mais de 30 anos de magistério), ainda em exercício e com histórias de vida diferentes. Tal delimitação permitiu uma análise de duas trajetórias profissionais paralelas, mas diferentes no modo de atuação. As duas professoras escolhidas têm percursos diferentes no modo de se relacionarem com os alunos. Uma tem fama de ser extremamente exigente, brava, tradicional. A outra é alegre, gosta de realizar com os alunos teatro, auditório, excursões. Ambas são consideradas boas professoras pela comunidade e gozam da confiança dos pais. 34 Entrevistas com as professoras. Os relatos da história oral de vida das duas professoras foram colhidos através de entrevistas diretas, com questões abertas, cujo roteiro encontra-se em anexo. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Foram realizados cinco encontros com cada professora, com duração entre uma hora e trinta minutos a duas horas cada. O intervalo de tempo entre os encontros foi pequeno, procurando, com isto, manter vivo o processo de reconstrução do passado. Com uma das professoras, as entrevistas foram realizadas com facilidade. A professora ficou muito feliz e se sentiu valorizada ao receber o convite para participar da pesquisa. Por sua vez, contou com todo apoio da direção da escola que cedeu uma sala confortável para a realização das entrevistas, além de permitir que as mesmas se realizassem no horário de trabalho da professora. Confiante, a professora falou com desenvoltura sobre seu passado, sua família e sua carreira. Com a outra professora, a fase das entrevistas foi mais embaraçosa e implicou em uma série de contatos telefônicos e conversas informais, uma vez que a mesma não se sentia segura diante do uso do gravador. Por fim, ao concordar em participar da pesquisa, mostrava-se no início bastante reticente. Foi necessário criar, primeiro, uma relação de confiança para que a professora tornasse o seu relato mais fluente. Constantemente, a professora pedia, ora a minha opinião, ora a minha aquiescência ao que dizia, com interlocuções do tipo: Sabe? Você concorda? Não é? As entrevistas foram realizadas durante o horário de trabalho da professora, na escola, com a permissão da direção. A sala cedida para a realização do trabalho era utilizada por várias pessoas que, muitas vezes, interromperam as entrevistas por terem necessidade de pegar alguma coisa que deixaram na sala. Essas interferências não foram agradáveis e dificultaram os relatos que, às vezes, foram interrompidos e tinham que ser retomados. 35 Na fase ainda de escolha dos atores da pesquisa, a maior dificuldade dos mesmos era o de encontrar tempo e local para as entrevistas. Daí, a solução para esse problema ter sido a de pedir a colaboração da direção das escolas para ceder o tempo e o local para a realização do trabalho. Nos relatos dos professores temos presente essa questão: “A professora, além do magistério é dona de casa, lavadeira, passadeira, cozinheira, arrumadeira, etc, etc; é mãe, é companheira, é..., é... não sobra tempo pra nada”. O obstáculo do tempo e do espaço pessoal, portanto, foi resolvido com a ocupação do tempo e do espaço profissional. A realização das entrevistas, no horário e no local de trabalho das duas professoras, permitiu dar seqüência e linearidade às mesmas. Não posso negar que o uso da técnica de entrevistas é, por vezes, bastante difícil. De fato, concordo com KANDEL (1980), quando afirma que a entrevista não é simplesmente um trabalho de coleta de informações, mas sempre uma situação de interação, ou mesmo de influência entre dois indivíduos. Afirma, ainda, que as informações dadas pelo sujeito podem ser profundamente afetadas pela natureza de suas relações com o entrevistador. Assim, reportando a BONAZZI (1996), o entrevistador deve, antes de mais nada, saber guardar silêncio, aprender a ouvir, respeitar o entrevistado, estar disposto a tomar, pacientemente, a conversa, suscitar a recordação através de um questionamento discreto, orientar o entrevistado sem precipitação, procurar não falar ao mesmo tempo que ele, não insistir quando ele evita uma recordação dolorosa, não se precipitar em perguntar de novo, repetir a mesma pergunta de diferentes maneiras para tentar vencer as barreiras. É necessário, portanto e sobretudo, ser paciente e procurar criar, entre o entrevistado e o entrevistador, um clima de cumplicidade. Constantemente, no decorrer dos relatos, tive que exercer um papel de vigilante do meu próprio papel de ouvinte imparcial, a fim de conservar o distanciamento necessário durante a realização do trabalho. Por vezes, as lembranças dos professores chegaram a me comover. 36 Outras vezes, os relatos chegavam a provocar sentimentos verdadeiros de contradição, o que dava vontade de discutir e interferir. Foi necessário lembrar sempre que, acima de tudo, como afirma FONSECA (1997), está o respeito pelos sujeitos, pelas suas lembranças posições, explicações e, sobretudo, pela autoridade dos mesmos sobre o que deve, ou não, ser conservado. Considero importante esclarecer que, muitas vezes, ao ouvir as histórias dos dois professores, eu, professora que sou, sentia como se fosse a protagonista daquela história, por ter vivido situações semelhantes. Portanto, a imparcialidade e o distanciamento foram dois fatores importantes para obter sucesso no desenrolar do trabalho. O objetivo das entrevistas, era o de reconstruir os acontecimentos vividos e as experiências adquiridas relacionados à questão da disciplina e disciplinamento, ao longo das trajetórias de vida, e tentar captar como influenciaram na formação dos habitus e na prática pedagógica dos professores. As entrevistas com os atores que conviveram com as duas professoras também demandaram um certo esforço. Ao falar sobre o tema das entrevistas os atores se mostraram reticentes e alguns alegaram que não se lembravam do tempo da escola primária. Contatei vinte atores para realizar oito entrevistas, das quais duas foram realizadas com diretores e seis com ex-alunos que conviveram com as professoras. Organização e Análise dos Dados Nas investigações qualitativas, a análise dos testemunhos orais deve-se considerar tanto a fala do sujeito, quanto o momento em que ele se cala, silencia. Portanto, a análise dos dados teve por objetivo a leitura dos relatos orais, para além das palavras e ultrapassando a simples descrição. Através desta análise, procurei desvendar o professor na sua história, a partir das circunstâncias que interferiam no seu modo de ser e agir, de suas percepções e da formação de seus conceitos. Assim, ao reconstituir os 37 acontecimentos vividos e as experiências adquiridas nas trajetórias das professoras, tentei captar como as mesmas influenciaram e continuam influenciando as suas relações com os alunos. Portanto, a análise dos relatos das trajetórias das duas professoras propiciou a compreensão da ação pedagógica por eles exercida. 38 4 - Os professores e suas trajetórias de vida Disciplina e disciplinamento: da concepção à ação. "Não é apenas uma parte de nós que se torna professor. (...) compromete a totalidade do eu – da mulher ou do homem, da esposa ou do marido, do pai ou da mãe, do apaixonado, do intelectual, do artista que há em cada um, bem como do professor que ganha a sua vida... Coincidiam, misturavam-se afectaram-se uns aos outros, contaminando-se muitas vezes, sendo o próprio ensino a sua caixa de ressonância. Se me sentia feliz, a sala de aula ganhava. Se pensasse que o meu marido não estava satisfeito comigo, não ensinava adequadamente, mas, se ele me beijasse de manhã antes de ir à escola, ensinava de modo adequado. Quando os meus filhos estavam bem, a classe estava bem, mas se um deles estivesse doente, saía e eu ia para casa... a minha descoberta de tudo isto foi o que me levou ao estudo de mim própria e do ser humano” (Ashton-Warner, 1967, pp. 10-11) citado por Nóvoa (1992: 81-82) Neste capítulo, após a contextualização das trajetórias – Duas trajetórias em um mesmo tempo: algumas referências contextuais – são analisados os relatos das duas professoras, considerando quatro eixos. • A vivência da questão disciplinar no âmbito da família: formação dos pilares da disciplina. • Disciplina e disciplinamento na trajetória escolar: consolidação de habitus disciplinares e formação de novos habitus. • Disciplina e disciplinamento na trajetória profissional: reflexo dos habitus na prática pedagógica. • Conceitos e representações sobre disciplina e disciplinamento e habitus disciplinares consolidados ao longo da trajetória. 39 4.1 Duas trajetórias em um mesmo tempo: algumas referências contextuais A década de 40, época do nascimento de Helena e Maria das Graças, na História da Educação Brasileira, é marcada pela Reforma Capanema, que tem início em 1942 e que determina no seu artigo 32: “Deverão ser desenvolvidos nos adolescentes os elementos essenciais da moralidade: o espírito de disciplina, a dedicação aos ideais e a consciência da responsabilidade (...)” Ao transpor os limites valorativos do campo social para se transformar em foro legal, a disciplina alcança o patamar de um preceito. É assim que nas escolas, nas décadas de 40 e 50 a disciplina é mais que um valor, ela é um ensinamento que deve ser “cultivado” e inculcado. Ao final da década de 50, inicia-se o chamado “período áureo do desenvolvimento econômico brasileiro” que traz em seu bojo algumas mudanças sociais e, entre elas, começa a delinear-se um novo papel da mulher. No campo educacional de um lado continua a luta pela escola pública, gratuita e laica, de outro lado continua a defesa dos princípios da escola particular de cunho religioso. Assim, as orientações teóricas predominantes no pensamento pedagógico, que determinaram o período da formação escolar de Helena e Maria das Graças, podem ser retratadas nos discursos dos defensores da escola pública e da escola particular, esta, representada sobretudo pela Igreja Católica. A Igreja Católica acusa a escola pública de ter condições de desenvolver somente a inteligência e, enquanto tal, instrui mas não educa. Para a Igreja Católica, a escola pública não tem uma filosofia integral de vida. Assim, a escola confessional seria a única a ter condições de desenvolver a inteligência e formar o caráter, ou seja, educar. “É preciso antes formar as almas”. A escola confessional defende a “cultura interior que dispõe as consciências a qualquer sacrifício no cumprimento fiel dos seus deveres”. É 40 assim, que nestas escolas, a ação educacional pauta-se na severidade e rigor e consiste em “ministrar a educação física, intelectual, moral e religiosa” nos moldes, ainda, de inspiração jesuíta. Os defensores da escola pública, inspirados pelas idéias da Escola Nova, demonstravam a necessidade da utilização dos “métodos comuns a todo gênero de investigação científica” e consideravam que aos grupos sociais cabia proporcionar condições para que cada um fosse responsável pela própria formação. Os seguidores da Escola Nova, ao lado da luta pela escola pública, gratuita e laica, defendiam a necessidade de participação do aluno no processo de aprendizagem, o respeito aos direitos individuais e coletivos, uma disciplina escolar menos rigorosa, assim como o desenvolvimento de outras formas de expressão além da linguagem oral e escrita, como a música, a dança, a arte dramática e as artes plásticas. Uma vez que Helena e Maria das Graças nasceram no início da década de 40, freqüentaram a escola no mesmo período. Contudo, a situação social e econômica das suas famílias define o tipo de escola e, portanto, o tipo de formação escolar de cada uma delas. Helena é filha de um ferroviário. Maria das Graças é filha de um fazendeiro que pertence a uma tradicional e poderosa família do coronel da região. Assim, embora tenham nascido dentro de uma mesma conjuntura histórica, o capital econômico e social das duas é completamente diferente. A rede familiar, nesta época, é essencialmente protetora e, principalmente as mulheres são cercadas de cuidados especiais potenciados pelas idéias religiosas. É assim que Maria das Graças e suas irmãs são enviadas para um Colégio Religioso e vão estudar num regime de internato. O Colégio Religioso além da garantia, da proteção e da educação, possibilita, ao mesmo tempo, que a sua família continue morando na fazenda. Maria das Graças tem na formação escolar a continuidade da rígida formação familiar. Ao longo da sua narrativa pode-se notar como ela defende 41 e preserva a dimensão da vida familiar, onde valores como obediência aos pais, ordem, respeito, organização se misturam às características da cultura própria da roça. Nota-se, ainda, que a ida para o internato foi um fato decidido pelo pai e que os estudos tinham a finalidade de aprendizagens sociais e culturais e não havia preocupação com a formação profissional. Assim é que, pode-se perceber, a vida profissional foi claramente rejeitada por ela, no início da carreira, passando contudo, a ser, ao longo da trajetória profissional a uma das grandes paixões de sua vida. Dedicada e responsável, ela é respeitada pelas colegas de trabalho e pela comunidade. É interessante observar que, apesar dos anos vividos no internato, ela não perdeu a sua identidade cultural e suas raízes estão fortemente fincadas na zona rural, que lhe proporciona grandes alegrias e de onde extrai toda a sua energia. Vivendo de segunda à sexta-feira em função da escola, os sábados e domingos são dedicados à fazenda e à comunidade rural, onde participa dos movimentos religiosos e sociais. É também dedicada professora de catequese, tanto na zona rural quanto na urbana, preparando crianças para a 1ª comunhão. Se, para Maria das Graças, os estudos não representaram uma escolha, para Helena representaram, além da escolha, a luta e a força de vontade. O magistério foi uma escolha de menina e a formação escolar foi a oportunidade para novas relações e descobertas de novos valores. O conflito com a mãe faz com que ela busque a realização fora do círculo familiar e, apoiada pelo pai, vai morar em um Orfanato, dirigido por freiras, destinado a crianças órfãs e abandonadas. Nota-se, na sua narrativa, que, partindo da experiência de rígida disciplina, no âmbito familiar e no orfanato, ao freqüentar a escola pública, foi fortemente influenciada por seu ambiente mais aberto, especialmente por alguns professores, que tinham comportamento mais liberal. O espaço de Helena torna-se um espaço aberto às mudanças. Ela descreve a transição dos anos 50 para os anos 60, quando se começa a revelar a mudança do papel da mulher e como ela, assimilando as idéias da época, torna a sua relação com a família predominantemente conflituosa. 42 O papel da profissão na vida de Helena parece ter um lugar central e, como fator principal de vida, é por meio dela que se afirma tanto no campo pessoal quanto no campo social. Os percursos profissionais de Helena e de Maria das Graças são completamente diferentes. Maria das Graças, durante todo o seu percurso profissional, só trabalhou em duas escolas públicas de 1ª à 4 ª série do Ensino Fundamental. Nas duas escolas só trabalhou e trabalha ainda com a 1ª, 2ª e 3ª séries do Ensino Fundamental. O percurso profissional de Helena é marcado pela diversidade de papéis, assumidos em diferentes escolas estaduais e particulares, séries escolares e níveis de ensino. Desde o início da carreira até agora já trabalhou com classes de pré-escola, com todas as séries do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Além dos conteúdos das 1ª séries do Ensino Fundamental, lecionou os conteúdos de Português, Inglês, Francês, Metodologia e Ensino Religioso. A cada desafio responde sempre com esforço e as leituras e os estudos autônomos parecem ser elementos fundamentais de conhecimentos que lhe dão segurança no trabalho. A importância da profissão é o fator marcante que domina todo o seu relato. Foi graças aos estudos e à profissão que ela pode sair do mundinho pequeno da roça e ganhar o mundo através da literatura, enquanto jovem, e através das viagens já na maturidade, depois da viuvez. Apesar da diferença dos percursos profissionais, as experiências relativas à disciplina, vividas durante a infância, projetam-se de forma bastante visível na relação com as crianças. A análise detalhada das histórias das duas professoras leva ao desvendamento dos fios condutores de suas narrativas pessoais e possibilita perceber os habitus disciplinares que tiveram raízes na cultura familiar e, consolidados na formação escolar, se tornam presença ativa na vida profissional delas. 43 4.2 A vivência da questão disciplinar no âmbito da família: formação dos pilares da disciplina. Os relatos da vivência da questão disciplinar no âmbito da família são analisados à luz dos aportes teóricos de BOURDIEU. Segundo ele (1990: 26), as estruturas dos habitus disciplinares adquiridos na família constituem um sistema de esquemas adquiridos que funciona, no nível prático, como categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação e simultaneamente como princípios organizadores da ação.” Afirma, ainda, que o habitus nada mais é do que essa lei imanente, “lex ínsita”, depositada em cada agente pela educação primeira (...) (1994: 71). Nesse sentido, os habitus disciplinares consolidados na família são os pilares da conduta disciplinar da pessoa em todos os outros momentos e setores da vida. Essa interiorização dos habitus disciplinares na história de vida familiar das duas professoras é forte e marcante embora, na vivência profissional, elas sigam caminhos, às vezes, opostos. A análise dos relatos leva à constatação de que a vivência das normas, regras e castigos, no âmbito familiar foi diferente para as duas professoras. Para a professora Helena, a autoridade era representada pela mãe; que impunha a disciplina, enquanto nos relatos da professora Maria das Graças, a figura de autoridade na família era o pai. A mãe não apareceu nenhuma vez nos seus relatos sobre disciplina e disciplinamento: “Minha mãe mandava e a gente obedecia. Gostasse ou não gostasse... Agora, papai era o extremo oposto, era a calma feito pessoa. Nem um filho se lembra de ver o papai chateado com alguma coisa. Era impressionante. Ele estava sempre de bem com a vida, sempre com fé que as coisas iam melhorar e nos tratava assim: incentivando e conversando. Claro que ele já deu algumas surras também. Já bateu. Mas, antes ele conversava demais. Se a gente extrapolava, ele falava: “ isso aqui” (ele mostrava a correia) eu não quero usar. Mas se for preciso, eu vou usar. Então, assim, raras vezes, eu pelo menos não me lembro de ter apanhado dele mais do que três 44 ou quatro vezes. E ele pedia e conversava, chamava, mostrava...” (Helena) “Meu pai era muito bravo. Quando meus dois irmãos completaram dez anos, dez anos certinho, o pai levava os dois para o serviço, trabalhavam junto com ele, os empregados sabiam da brabeza do pai, então os empregados protegiam os dois.” (Maria das Graças) “A mamãe, nós a chamávamos assim, escondidamente, “a baixinha terrível”, porque com ela era dessa maneira: ela mandava e a gente obedecia. Gostasse ou não gostasse. E era proibido discutir ou questionar. E ela sempre dizia assim: aqui eu mando e você obedece. Filho não tem o direito de perguntar porque pai e mãe estão dando determinada ordem. Era a expressão que ela usava conosco e qualquer indisciplina que ela considerava desobediência, não cumprir exatamente na hora que ela queria, as coisas, do jeito que ela queria, ela apelava mesmo pra castigo físico, ela xingava, ela reclamava, criava um caso.” (Helena) “Quando era período de férias, a gente preferia ir com papai para a roça capinar (ele marcava os quadros que cada um tinha que capinar) do que ficar com a mamãe, porque tudo com o papai era festa. Agora, com a mamãe, o melhor dos trabalhos era um flagelo, tanto que ela xingava, reclamava que não saia do jeito dela.” (Helena) “Minha mãe batia, ela batia mesmo, não tinha escapatória, sabe? Se alguém fugisse, corresse, ela não ia atrás. Ela ficava quietinha. Ela não ia atrás, quando voltava apanhava em dobro (Helena). Ela usava a mão, ela usava sapato, ela usava chicote, que havia chicote, ela usava vara, ela usava de tudo. Então, aprendi a tabuada com vara na perna. Ela tomava a tabuada e não podia pensar. Ela falava 4+7. Eu não lembrava que era 11. “Então, está pensando?” Uma varada. Tinha que aprender assim.” (Helena) Enquanto esquemas de percepção e apreciação e, ainda como estruturas cognitivas e avaliativas adquiridas através da experiência durável de uma posição no mundo social, o habitus, ao mesmo tempo em que produz práticas também leva à percepção e apreciação das práticas vividas. 45 Os fragmentos dos relatos das professoras, apresentados a seguir, constituem uma apreciação de práticas vividas: “A principal regra era: 5 horas da manhã, todo mundo de pé, então até hoje eu me levanto às 5 horas da manhã, mesmo não sendo necessário, porque o hábito faz o monge, né? Todo mundo obedecia. A gente levantava, tomava o mingau, fazia a higiene e ia buscar lenha no terreiro, carregar água. Isto era obrigação nossa. Não podia esperar mandar, já estava determinado, e, depois a gente pegava o trem às 8 horas da manhã, para ir para a aula” (Helena) “A gente tinha de aceitar as normas da casa. Tinha de aceitar. Na época de nossa criação era tudo imposto mesmo, tinha de aceitar.” (Maria das Graças) Também BOURDIEU (1994: 75), utiliza a expressão “o hábito faz o monge” ao explicar que os indivíduos vestem os habitus como hábitos e assim como o hábito faz o monge, isto é, faz a pessoa social, com todas as disposições são, ao mesmo tempo, marcas da posição social. (...)” O habitus de levantar cedo, adquirido na família, está no princípio de um hábito que é praticado mesmo quando não é necessário. As análises da percepção e a apreciação sobre a disciplina e o disciplinamento vivido pelas professoras no âmbito familiar remetem à reflexão sobre o “passado que sobrevive na atualidade” e, ainda, tende a perpetuar-se no futuro. Essas reflexões podem ser ilustradas em algumas passagens dos relatos das professoras: “Ela sentava a gente num banco alto. Eu olhava para baixo e esfriava toda. Então, eu não sou muito amiga de altura, não.” (Helena, referindo-se à mãe) “A autoridade do meu pai nunca prejudicou a gente. Tanto que, nós somos dez e todo mundo deu gente nesta vida. (Maria das Graças) Eu acho que a educação de antigamente era completamente diferente de hoje. De uns vinte anos para cá, 46 de duas décadas para cá, mudou. Mudou mesmo! Antes a coisa era melhor. O pai tinha autoridade. A autoridade do meu pai nunca prejudicou. Não. (Maria das Graças) “Aquele sentimento assim de que ela era opressora. Contudo, porque eu passei a ver que há certas situações em que você impõe limites, e nós temos que impor limites. Acho que essa debandada que está havendo aí, na área da educação infantil e na adolescência, é falta de limites. Então, ela tinha aquele jeito de impor limites, porque ela não havia estudado, ela havia convivido assim, o que ela aprendeu foi isto. Então, ela fazia do jeito dela. Aí, eu pude entender que esse era o jeito que ela tinha, e não outro.” (Helena referindose à mãe) Para BOURDIEU, as estruturas de um habitus conduzem ao processo de estruturação de novos habitus que podem vir a ser produzidos fora da família em outros momentos, em outras situações e em outras agências pedagógicas. Contudo, o habitus adquirido na família estará no princípio da estruturação de outros habitus. Mesmo nos habitus transformados pela escola, o princípio da estruturação estará presente e em todas as experiências ulteriores do sujeito, a interiorização dos valores, das normas e dos princípios sociais sob a forma de habitus vão assegurar a adequação entre as ações daquele e a realidade objetiva da sociedade. BOURDIEU (1996: 158) fala que o habitus, como estrutura estruturada e estruturante, engaja nas práticas e nas idéias, esquemas práticos de construção, oriundos da incorporação de estruturas sociais oriundas, elas próprias, do trabalho histórico de gerações sucessivas. Diante disso, evidencia-se que o habitus, estrutura que integra todas as experiências passadas e que funciona, portanto, como matriz de percepções, apreciações e ações, possibilita a continuidade e a regularidade de comportamentos que passam de pai para filho. Eu era muito rigorosa, não podia, por exemplo, ficar dever para fazer sábado e domingo. É interessante porque o mesmo castigo que eu dava para minha filha, ela dá à minha neta. 47 Ela diz:: Mãe, a senhora fez a mesma coisa comigo e não fez mal pra mim, porque vai fazer mal para minha filha? (Helena) Vale pontuar que as duas professoras viveram a fase infantil, anterior à formação escolar, na década de 40. Note-se que nesta época o contexto apontava para uma disciplina muito rígida e muito austera. Os pais exigiam obediência cega de seus filhos. Quando o pai falava, a criança ouvia de cabeça baixa, sendo considerado ato de rebeldia qualquer tentativa de resposta. Os castigos físicos eram aplicados e aceitos, naturalmente, como forma de disciplinamento. 4.3 Disciplina e disciplinamento na trajetória escolar: consolidação de “habitus” disciplinares e formação de novos habitus Martins (1987) afirma que a cultura escolar, enquanto uma das agências formadoras de habitus, propicia aos indivíduos a ela submetida, um corpo comum, de categorias de pensamento, de código comum, de percepção e de apreciação, que tendem a funcionar como forma de classificação dos homens e das coisas. Assim, o sistema escolar faz com que os agentes que estão sob o seu raio de ação, adquiram um sistema de disposições capaz de funcionar, não só como esquemas de pensamento particulares e particularizados, mas também como estruturas classificatórias, possíveis de serem aplicadas em diversas situações. Desta forma, o sistema de ensino produz estruturas mentais que são profundamente incorporadas nas mentes dos professores e alunos, de tal forma que tendem a escapar do domínio consciente desses agentes sociais. Os relatos de Helena e Maria das Graças sobre a disciplina e o disciplinamento, nas instituições escolares onde estudaram, deixam evidente que as regras escolares eram rígidas e estavam em consonância com o modo de educação familiar. Assim, a consolidação dos habitus disciplinares é evidente através dos esquemas de percepção e apreciação que as duas, Helena e Maria das Graças, fazem de seus professores. É possível, ainda, 48 através da análise dos relatos, perceber o princípio desse habitus na formação de novos habitus que estão presentes em suas próprias práticas escolares, reveladas na descrição da trajetória profissional. Desse modo, as duas professoras relatam a vivência escolar enquanto alunas, como um período em que a disciplina era rígida e imposta, cabendo ao aluno “obediência cega”. “Antigamente a disciplina era imposta pelo professor, professor era autoridade dentro da sala de aula. Hoje, já não é mais.” (Maria das Graças). “Eu sempre respeitei os professores. Eu acho que a gente estudou em colégio interno, então tinha as normas. As irmãs eram bravas, então respeitava. Respeitava mesmo!” (Maria das Graças) “Eu não tive problema disciplinar, eu era Caxias. Se eu questionava minha mãe em casa, na escola, eu era calada. Como aluna, eu fui muito aquela aluna Caxias, aquela aluna assim bem quietinha, que fazia tudo com perfeição, tinha mania de primeiro lugar.” (Helena) “Um dia a professora de latim me pegou jogando papelzinho. Aí ela realmente pegou no meu pé.Eu tive de passar a ser uma santa. Passei a ser uma santa na aula dela para não criar problema. Foi uma experiência positiva, aprendi a proceder dentro da sala dela.” (Maria das Graças) “Agora, a professora mais brava que eu tive foi a Irmã Regina. Ela era militarismo mesmo. O negócio com ela era assim: não admitia nada de errado. Eu acho que, até certo ponto, foi bom para nós, porque a gente aprendeu, assim, a ter uma disciplina com ela. Ela entrava na sala de estudo, o mosquito voava e a gente escutava o mosquito voar. Isso foi bom. Eu acho que tem que haver limite.” (Maria das Graças) “No 2º ano de Magistério tive o primeiro problema disciplinar. Eu questionei, numa aula de religião, o Padre Waldemar sobre uma questão de evangelho. Ele não gostou e chamou o diretor,O diretor chegou e perguntou o que tinha acontecido. Ele, então falou assim: quanto você tirou em religião ? Eu disse assim: 9. Ele falou: não, zero. Não senhor. Peguei a prova. Ele disse: quem manda aqui sou eu, e como você respondeu, você vai tirar zero nos próximos dois meses e eu mesmo vou ter o prazer de escrever na sua caderneta. 49 No currículo escolar tem 3 zeros em religião e, hoje eu sou professora de educação religiosa, tenho trabalho de religião publicado em revista. Isto me marcou muito negativamente. Eu acho que os 3 zeros foram suficientes para tudo o que eu fiz. (Helena) “Tenho lembranças desagradáveis, desagradáveis, com uma professora do 2º ano. Ela estava grávida e passando muito mal e então nós tivemos um entrevero e eu vomitei na sala. Ela estendeu a vara para eu sair com o meu vomitado. Coitada, ela estava muito mal! Depois ela faleceu, morreu de parto.” (Helena) Sem o objetivo de me afastar da perspectiva de habitus, reporto-me a FOUCAULT para analisar o disciplinamento na trajetória escolar e, assim, busco um melhor entendimento da formação de novos hábitus. Segundo ele (1996: 160), o castigo disciplinar tem a função de corrigir os desvios. Assim, o exame sob a forma de argüições, provas e notas, combina as técnicas da hierarquia que vigia com as técnicas das sanções que normalizam, causando o efeito corretivo que permeia a punição disciplinar. Tanto no relato de Helena quanto no de Maria das Graças, percebe-se um mecanismo de controle rigoroso, sendo que o castigo aparece, principalmente, aplicado através de argüições, provas e notas. “Um dia, eu não estava passando bem e a professora de Metodologia me argüiu na sala. Eu tinha tirado cem. A minha nota era cem e ela dividiu minha nota por 2. Ô gente? Eu tive paixão! Fiquei com a nota vermelha na caderneta, coisa que o papai e a mamãe não aceitavam de jeito nenhum” (Maria das Graças) “O professor Osvaldo. Ele catava até pingos nos “is” em português, dava centésimos de nota, dava zero em redação, ocupando uma página inteira, mas a gente aprendia português com ele; eu era apaixonada com ele.” (Helena) “Nossa senhora! Qualquer coisa que a gente fazia na aula dela, ela chamava lá na frente e fazia uma conversação em inglês e a gente passava o maior aperto. Aí a gente tinha que ficar caladinha. Ninguém queria ir lá na frente para conversar em inglês. Era o castigo dela.” (Maria das Graças) 50 “A professora de Matemática adoeceu e no seu lugar entrou um professor que era militar. Ele deu a prova, a maioria perdeu nota, então a maioria ficou presa no internato por causa disso. Se a gente perdesse média não saía não, tinha que ficar lá, não vinha para casa no final de semana. Vinha para casa só na semana santa, um feriado maior e férias em julho. Ficava sem ver a família.” (Maria das Graças) “A professora de desenho e eu nunca tive jeito para desenho, me chamou lá na frente e me fez fazer um desenho para ela. Ah, meu Deus do céu, nem tirando cola! Eu não dei conta de tanto que eu tremia. E a prova oral era desenho. Isso tudo já melhorou no ensino. Já pensou se tivesse prova oral hoje? Coitado dos meninos. Prova oral de desenho. Isso quase me matou. Quase que eu tomo bomba em desenho.” (Maria das Graças) O controle normalizante através da vigilância permite qualificar, classificar e punir, estabelecendo para os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. A qualificação dos comportamentos, a partir dos valores opostos do bem e do mal, vai desaguar no campo das boas e das más notas e, ainda, da divisão ou diminuição dos pontos. Segundo FOUCAULT (1996:), em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível. Os relatos das duas professoras evidenciam a presença do exame como dispositivo disciplinar e, ao mesmo tempo, percebe-se a presença de esquemas adquiridos, funcionando no nível prático, como categorias de percepção e apreciação e, ainda, como princípios de classificação. Ao relatar as práticas vivenciadas na trajetória escolar as duas professoras retratam o balanço positivo do disciplinamento. “Eu não sabia desenhar. Nem todo mundo tem o dom para o desenho. E tomei segunda época porque eu não sabia desenhar. Eu tomei antipatia e não sei desenhar até hoje. Culpa minha. Eu não culpo o professor. Não.” (Helena) 51 “Agora, lembranças agradáveis? Nossa! Eu tenho demais! Lembrança da minha primeira professora, dona Neide, que me dava aquele apoio. Eu chegava da roça, ela me levava para a casa dela. Eu subia com a pasta dela, pesada. Mas ela era muito brava, muito exigente, mas carinhosíssima. As recordações que eu tenho dela são as mais gostosas.” (Helena) “Dona Noêmia, professora de 3ª série, uma baixinha brava para danar. Mas, sabe? Aquela pessoa que levanta o astral de qualquer pessoa. Ela foi assim.” (Helena) “Dr. Lauro foi história. Eu tinha calo no dedo de copiar tudo que ele falava. Aquele pessoal todo me incentivou muito, mas havia ponto negativo, havia. O incentivo dos professores era muito grande, a ajuda que eles me davam, tanto na parte emocional como na parte material foi muito boa.” (Helena) “Todas as pessoas da minha época, aprenderam um pouco de Francês, porque o professor era tremendamente exigente, brincava muito, mas, era exigente, era rigoroso, e não era muito flexível com falta de responsabilidade no caso de dever, estudo e material, ele não era liberal mesmo. Em compensação, não estou falando mal, porque como pessoa ele era fantástico. O professor de inglês já era aquele bonzinho que a gente esquecia o material, não fazia dever, não queria ler, não queria falar, não falava. O pessoal da época não aprendeu inglês, no entanto o inglês era e sempre foi o mais necessário no sentido de relacionamento entre povos.” (Helena) “A professora de inglês, eu achava o ensino dela bem positivo porque, além de ser uma ótima professora, ela dava oportunidade, por exemplo: a gente fazia a prova, aí, ela corrigia, marcava os erros, mandava a gente procurar a palavra no dicionário. Ela era uma das professoras mais queridas da escola Ela era brava. Na aula dela ninguém conversava”. (Maria das Graças) Aqui, também, vale destacar o contexto e a época. As duas professoras vivenciaram o período da formação escolar na década de 50 e início da década de 60. A disciplina nesse período ainda era muito rígida e o professor não admitia questionamentos dos alunos. Autoridade absoluta na sala de aula, o professor não só era autorizado, mas também incentivado a se utilizar 52 de castigos para controlar os seus alunos. O bom professor, nessa época, era aquele que mantinha os seus alunos quietos e em silêncio. 4.4 Disciplina e disciplinamento na trajetória profissional: reflexo dos “habitus” na prática pedagógica “As pessoas sabem o que fazem; elas freqüentemente sabem porque fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o que faz (causa) aquilo que elas fazem”. FOUCAULT. BOURDIEU (1994: 45) afirma que a prática poderia ser definida como resultado incorporado de uma trajetória social. É dessa forma que o habitus se encontra no princípio de encadeamento das ações que são objetivamente organizadas como estratégias. Através do habitus enfatiza-se, nas ações presentes, a dimensão de um aprendizado passado que gera, além de práticas distintas e distintivas, esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e gostos diferentes. Assim, é que percebe-se, na prática das duas professoras, um distanciamento, por vezes paradoxal, embora, na formação familiar e na formação escolar tenham experiências próximas com a disciplina e o disciplinamento rígido e severo. Embora os conceitos e as representações das duas sobre a disciplina e o disciplinamento, sejam bem semelhantes, na prática profissional, as suas ações se distanciam bastante. Para as duas, as questões relativas aos limites, ao respeito e à responsabilidade são questões desafiadoras no processo educacional. Para Maria das Graças, contudo, o maior desafio da prática pedagógica é a indisciplina e para ela esse problema está ligado à abertura da escola aos pais e à comunidade. Diz ela: “O maior problema da disciplina, eu acho que é o pai vir à escola e tentar brigar com a professora. Porque tem pai que vem na escola e tenta desafiar a professora na frente do filho. Eu acho que isto aí é um verdadeiro desafio. Nas duas 53 primeiras décadas eu trabalhei com meninos e nem conheci os pais. Eles não vinham na escola, não. Eles não participavam da vida escolar do filho, não. O professor tinha autoridade.” (Maria das Graças) Esse desafio não existe para Helena. Desde o início de carreira ela relata as suas relações com os pais dos alunos e a importância desse contato. “O contato com os pais eu já estabelecia. Naquela época não havia muita abertura para os pais, mas como eu lecionava para turmas carentes, então eu ia lá, na casa deles, saber como é que era.” (Helena) Ela reclama, ainda, da falta de envolvimento da família com a escola. “Os pais estão esquecendo de que a base educacional é na família, a escola é apenas um auxiliar da educação. A família não se envolve e quando a gente chama um pai e diz que está aplicando um determinado castigo na criança e que ele pode nos ajudar, ele vira bicho e diz que nós estamos traumatizando a criança”. (Helena) Ambas afirmam a necessidade do limite ser colocado na família, pelos pais. Nesse sentido, percebe-se que os esquemas de percepção e de apreciação adquiridos na família e na escola, consolidados como habitus se reproduzem no seu cotidiano escolar. Não é sem razão que as professoras afirmam que na escola foram alunas aplicadas, obedientes e responsáveis. “Meu pai não aceitava nota vermelha na caderneta de jeito nenhum.” (Maria das Graças) Nos relatos de Helena, percebe-se que a consolidação dos seus habitus são o reflexo do conflito vivido entre a disciplina imposta pela mãe e a atitude conciliatória do pai. 54 “Eu tinha feito uma promessa a mim mesma, quando adolescente, que tudo aquilo que minha mãe fazia comigo que eu protestava, eu não faria com os meus filhos. E eu fui me fazendo aquela promessa: eu faria diferente, de minha mãe.” (Helena) Como a noção de habitus não somente se aplica à interiorização das normas e dos valores, mas, também, inclui os sistemas de classificação, nesta fala de Helena, pode-se entender o seu esforço, ao longo da sua trajetória familiar, como mãe, e da sua trajetória profissional, para temperar a disciplina como faziam seu pai e alguns de seus professores. É assim que, ao tentar conformar e orientar as suas ações no sentido de compreender as atitudes das crianças, percebe-se os esquemas generativos que estão presentes na sua “forma de ver” a disciplina. Não é sem razão que ela afirma a sua necessidade de estar sempre lendo e fazendo cursos de aperfeiçoamento. “Você tem que ler, você tem que estudar muito, você tem que buscar apoio em educadores diversos, pra você variar bastante. Você tem que conhecer os processos de aprendizagem, você tem que conhecer a psicologia infantil, e, à medida que a gente vai estudando e vivenciando a prática, regendo turmas, isso vai modificando a gente. Aliás, meu pai sempre dizia que a gente tem que ser como o vinho: quanto mais velho mais gostoso, porque se eu não for um bom vinho, vou virar vinagre, vou azedar”. (Helena) Nos relatos de Maria das Graças percebe-se que a função da disciplina e do disciplinamento na prática pedagógica não tem somente um caráter moralizador mas, também, um caráter de conformação, produção de docilidade e eficiência. Assim é que os estudos de FOUCAULT se tornam importantes para a compreensão das ações de Maria das Graças. Para ela, “menino tem que ganhar castigo mesmo, porque eles têm medo de castigo”. Esse sentimento reporta à sua própria infância, quando por “medo dos castigos do pai” ela fazia “tudo o que tinha de ser feito”, “sem questionamentos.” “O pai mandava e a gente obedecia.” 55 “Eu acho que tem hora que a gente tem que ser dura no castigo. Prometeu? Tem que dar, senão eles tomam conta da gente”. (Maria das Graças) “Na escola não é lugar de correria. Sala de aula?Menino tem de ficar calado. Prestar atenção. Não se aprende com bagunça. Eu sempre usei esse método: ninguém aprende com bagunça. Tem que haver ordem para haver progresso”. (Maria das Graças) FOUCAULT (1996: 127) afirma que o momento histórico da disciplina é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o desenvolvimento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. “A gente tem que dar liberdade para o aluno se manifestar, mas, na hora de aprender, ele tem de obedecer.” (Maria das Graças) É assim que, através da disciplina, os corpos se tornam submissos, dóceis e ao mesmo tempo, exercitados, portanto, capazes de professar e praticar a disciplina. FOUCAULT, tanto em Microfísica do Poder, quanto em Vigiar e Punir, fala sobre a distribuição espacial dos indivíduos. “Através da disciplina faz-se a individualização pelo espaço individualizado, classificatório e combinatório.” A professora Maria das Graças fala sobre a sua dificuldade em aceitar alunos “fora do lugar”, em aceitar o trabalho em grupo, em ver aluno andando pela sala... Para ela só pode haver aprendizagem num ambiente organizado. “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo” “Eu não deixo menino ficar andando dentro da sala de aula, porque eu acho que tem limite para tudo”. (Maria das Graças) 56 Para FOUCAULT, desse modo, evita-se as distribuições em grupos e anula-se os “efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração”. As duas professoras falam sobre a utilização do “mapa da sala”, que possibilita a localização permanente de cada aluno, tornando fácil controlar as presenças e as ausências, uma vez que se sabe onde e como encontrar os alunos. FOUCAULT (1996: 134) fala que a determinação de lugares individuais, torna possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Isto organiza uma nova economia do tempo de aprendizagem, o que explica a preocupação das professoras com a “organização da sala”, porque “ sem ordem não há progresso”. “Esse ano, tive problemas com disciplina no princípio do ano porque a professora do ano passado, excelente colega, ela era muito liberal e eu já não sou tão liberal quanto ela. Ela dava aula com um monte de menino atrás dela, eu trabalho em grupo mas, eu não deixo ninguém ficar andando na sala não.” (Maria das Graças) A lembrança dos horários rígidos do Orfanato (onde Helena viveu) e do Internato (onde Maria das Graças estudou), estão presentes nos relatos sobre a impontualidade dos alunos, o que enfatiza, nas suas ações pedagógicas, a intolerância com os atrasos das crianças. Esse fato, mais uma vez, reforça a dimensão do aprendizado adquirido e interiorizado sob a forma de habitus. Assim, o horário, como velha herança do controle, é um detalhe que preocupa as professoras, porque para elas “tem que ter hora para tudo”. Além disso, elas falam da importância da pontualidade e reclamam da irresponsabilidade dos pais, quando os alunos chegam atrasados à escola. “Tem menino, que se deixar, chega aqui (escola) às sete e meia. Tem que educar os pais, colocar relógio para despertar mais cedo...” (Maria das Graças) 57 FOUCAULT (1996: 137, 139) afirma que “o tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente: “ordem e progresso”. É assim que, estabelecendo “horário para tudo”, se afasta o perigo da “perda de tempo”. O ano passado eu trabalhei com a 1ª série, eu estava dobrando. Então, os meninos eram indisciplinados. Então, a primeira semana que eu trabalhei, foi só para a disciplina. Eu quase não dei nada. Uma mãe reclamou e eu disse: primeiro eu estou colocando-os no eixo, do meu jeito, para depois eu começar a dar a matéria. Essa primeira série foi na base do castigo mesmo. Vou te dizer a verdade: eles estavam sem limites mesmo. Estavam tão sem limite que um menino chegou a sentar a mão na “boca do meu estômago.” (Maria das Graças) FOUCAULT (1996: 159) diz que “na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal”. E, na escola, “funciona como repressora, toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações.” Para Maria das Graças, “escola é um lugar para estudar e aprender. Escola não é lugar de correria, de tagarelice, de bagunça”. É assim que, antes de “começar a dar matéria”, se torna necessário colocar os alunos “no eixo”, o que significa que cada um deve ficar ciente do que é “certo” e do que é errado e do perigo de fazer coisas erradas. A disciplina dialogada, de que fala a professora, pode ser entendida como uma série de combinados que 58 constituem uma lista de regras e de punições que são negociadas com os alunos. Nesse jogo de combinados, o castigo disciplinar tem por função reduzir os desvios e corrigir os erros. Eu ficava com eles na hora do recreio, ficava depois da aula. Conversava com o pai. Conversava com o aluno, com o pai perto dele, mostrava o que estava errado. Em setembro, estavam todos lendo e fazendo produção de texto. Na realidade, o pai e a criança sentem o valor da disciplina (Maria das Graças). FOUCAULT (1996: 140) fala sobre isto: “Já a disciplina organiza uma economia positiva; coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo (...).” Controlando, pois, o espaço e o tempo, Maria das Graças acredita que sua prática pedagógica se torna melhor e é, ao mesmo tempo, facilitada. Ela fala sobre o aluno indisciplinado como aquele que é relapso, que larga tudo no meio do caminho, não tem nada em dia, não obedece às ordens e tudo isto acaba atrapalhando a ele e à turma. Portanto, para ela, é necessário aplicar os castigos e é por medo deles que os alunos indisciplinados, às vezes, ficam quietos e cumprem as tarefas e as ordens. Pode-se distinguir, nas representações e ações das professoras, a influência dos habitus. Assim, eles asseguram a reprodução das relações que os engendraram, conformando e orientando as ações pedagógicas das duas professoras. Elas falam do sofrimento que os castigos provocam, o que faz com que se reporte ao sofrimento por elas sentido na infância e na escola. Esse sentimento, contudo, não muda a representação de que o “castigo seja necessário em alguns momentos” da prática pedagógica. Os castigos provocam sentimentos “de dor, sabe”? De dor, porque eu estou tirando da criança aquilo de que ela mais gosta. Então, dói em mim e depois falo isso com ele”. (Helena) DURKHEIM reflete sobre isto ao afirmar que 59 “o mestre não deve esmorecer pelo uso de sua sensibilidade profissional. É necessário que ele se interesse suficientemente pelos seus alunos para não olhar para suas faltas com lassidão, com indiferença; é necessário que ele sofra com elas, que delas se lamente, e que dê mostras de seus sentimentos. Isto, porque, a grande receptividade da criança às influências exteriores, faz com que os sentimentos que perante ela se expressam, nela se repercutam facilmente. A criança acaba por reproduzi-los e, por conseqüência, partilha-os também, sofre com o sentimento que vê exprimido ou regozija-se com a alegria, numa palavra, mostra a sua simpatia para com as outras pessoas.“ As duas professoras falam que, ao demonstrarem os seus sentimentos, conseguem sensibilizar os alunos, que acabam entendendo que o castigo foi necessário. As duas falam de alunos indisciplinados que hoje, depois de adultos, são seus amigos. Esta apreciação nos reporta à suas lembranças dos ex-professores, que são percebidos, hoje, como bons e responsáveis. “Aqueles professores que eram mais rigorosos, mais exigentes, que na época a gente considerava que mais atrapalhavam a nossa adolescência, foram aqueles que mais deixaram marcas porque a gente aprendeu mesmo aquilo que eles se propunham a fazer a gente descobrir. “ (Helena) Embora relatem o sentimento de tristeza que sentem quando aplicam castigos, as duas professoras relatam situações em que não há outra saída senão a de aplicá-los e, com a proibição dos castigos físicos, surgem outras formas de corrigir os erros. É, especialmente, sobre a disciplina e o disciplinamento na prática pedagógica, que os relatos das duas professoras mais se diferenciam e, é por isso que, às vezes, os relatos sobre os castigos nos reportam ao caráter moralizador e outras vezes ao caráter normalizador da disciplina. Neste sentido, o reflexo dos habitus consolidados ao longo da trajetória na prática 60 pedagógica são analisados ora com os aportes teóricos de DURKHEIM, ora com os de FOUCAULT. DURKHEIM (1984: 304) destaca como elementos principais da penalidade escolar a privação de divertimentos, deveres suplementares, as censuras e as reprimendas. Esses elementos aparecem também, nos relatos sobre a prática pedagógica das professoras. “Eu sou totalmente contra machucar uma criança. Agora, castigo: eu acho muito produtivo. Quando você tira da criança o que ela gosta, dá resultado. Ah! Dá mesmo! Aqui, dentro do colégio, surte muito efeito cortar a educação física, porque nós temos duas aulas de educação física dentro do horário escolar e eles têm paixão por esse horário. Outro castigo que surte efeito, quando a falta é dever de casa é assim: olha, você vai perder 15 minutos da aula de arte, para colocar o dever em dia”. (Helena) DURKHEIM chama a atenção para o fato de que o professor precisa ter todo o cuidado para que o sistema de punições não perca a sua eficácia e por isso se torna necessário graduar os castigos. Assim, “a autoridade do mestre deve temperar-se com benevolência, de forma que a firmeza não degenere em rudeza e inflexibilidade.” “Qualquer castigo, só é aplicado após três admoestações. Na quarta vez vai ficar 15 minutos da aula de arte ou de informática”. (Helena) “Quando eu chego a aplicar um castigo, que é incidência mesmo, já é na quarta vez, e eu vi que não resolveram as 3 primeiras chances. Quando falo que eles vão perder, eles pedem assim: “pelo amor de Deus, tia, me dá uma chance, só mais uma”. Então, aí eu amoleço. Olha aqui, você vai hoje, muito cuidado com a próxima vez. Mas geralmente isto resolve. Quando me pedem chance eu dou mesmo”. (Helena) 61 Apesar de considerar os castigos como necessários, as professoras afirmam que os mesmos são causa de sofrimento e dor também para os alunos que os recebem. “Geralmente o aluno que recebe castigo, ele fica extremamente chateado, a gente nota no olhar, nota na expressão facial, nos gestos. É como se ele estivesse pedindo socorro, essa é a sensação que eu tenho.” (Helena) A constatação desse sentimento faz com que, muitas vezes, o castigo seja perdoado. “Quando me pedem uma chance eu dou mesmo”. DURKHEIM considera que, uma vez que o castigo foi dado, só se deve revogá-lo “nos casos em que a criança resgate a sua falta de uma forma gritante, mercê de um ato espontâneo. Esta é uma regra pedagógica relativamente à qual toda firmeza não é demais.” Assim, apesar de considerar que a firmeza é importante quando se aplica castigo, “o que importa, não é que a criança sofra e que o seu ato seja energicamente reprovado”. Sem dúvida, é quase inevitável que a condenação provoque o sofrimento daquele sobre quem recai, uma vez que na exigência do cumprimento de qualquer dever existe uma privação, um sacrifício, uma renúncia, que custam sobretudo quando para os mesmos não estamos naturalmente propensos. Portanto, “castigar, não é torturarmos alguém no seu corpo ou na alma”; é sim, perante a falta, afirmar a regra que a falta negou. O castigo deve fazer o aluno refletir sobre a falta cometida, deve ajudá-lo, sobretudo, a ver o que é certo e o que é errado. “Agora, recreio, é expressamente proibido tirar minuto de recreio, porque a criança fica ocupada quase três horas dentro da sala e ainda ficar mais tempo lá? Não.” (Helena) DURKHEIM recomenda que não só não se deve bater, como também se deve proibir qualquer castigo susceptível de prejudicar a saúde da criança. 62 Por tal motivo, as privações de recreio só com muita moderação devem ser utilizadas, e jamais serem completas. Sobre a privação do recreio como castigo as duas professoras têm opiniões diferentes. Para Helena ”tirar o recreio é proibido”. Para Maria das Graças “tirar o recreio é um dos poucos castigos que ainda pode ser aplicado.” Maria das Graças repete, nos seus relatos, que hoje o professor perdeu a autoridade. Entendo que “a perda de autoridade” significa para ela o fato de não poder utilizar castigos “mais severos” para reduzir os desvios e corrigir os erros, bem como a interferência do pai nas ações escolares. “Hoje, por qualquer coisinha, o pai vem na escola. Antes a gente punha menino de castigo na frente, em pé. Hoje, se a gente fizer isso, você pode até ser presa”. (Maria das Graças) Um tipo de castigo que as duas professoras receberam durante a formação escolar e que hoje é utilizado por elas é o da cópia. Entretanto, a cópia utilizada “antes” era diferente. A cópia do tempo delas era, por exemplo, copiar cem vezes a frase “Não devo conversar na sala de aula.” Hoje, as professoras dizem que “a cópia só é aceita pelos pais quando, nela, eles enxergam um objetivo”. As cópias de textos literários, de textos informativos de ciências, geografia ou história, de questionários, de notícias são “cópias que têm objetivo”, porque estão fazendo a criança aprender alguma coisa”. As professoras observam que essas cópias são diferentes das cópias feitas no tempo de sua formação escolar e justificam que elas acabam “ajudando a criança a aprender mais”. Essa representação da cópia como um exercício é aplicada por FOUCAULT (1996: 160) que afirma: “ao lado das punições copiadas ao modelo judiciário, os sistemas disciplinares privilegiam as punições que são da ordem do exercício-aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido.” FOUCAULT (1996: 161), citando J. B. de LA SALLE, descreve: 63 “O castigo escrito é, de todas as penitências, a mais honesta para um mestre, a mais vantajosa e a que mais agrada aos pais; (permite) tirar dos próprios erros das crianças maneiras de avançar seus progressos, corrigindo-lhes os defeitos; (àqueles, por exemplo), que não houveram escrito tudo o que deviam escrever, ou não se aplicarem para fazê-lo bem, se poderá dar algum dever para escrever ou para decorar”. As duas professoras falam da aceitação da cópia com objetivo pelos pais. “ Outro castigo era dar cópias: ”Devo ficar calado na sala de aula”..., aumentar dever de casa. A diretora dizia assim: Está te amolando dentro da sala? Dá uma leitura para ele fazer. Dá uma cópia. A cópia sempre foi usada como castigo. Até hoje. Mas hoje a cópia tem de ser dentro de um objetivo, senão, o pai não vai gostar.” (Maria das Graças) A cópia foi, também, um castigo que as duas professoras vivenciaram no tempo da sua formação escolar. Quando relatam essa vivência, elas falam do resultado do castigo: “a gente aprendia. Aprendia mesmo”. Maria das Graças fala que os castigos resolvem durante algum tempo, mas “como brasileiro tem memória curta”, depois de um certo tempo eles esquecem e voltam a cometer outras indisciplinas. Também Helena fala sobre isto: “Os castigos resolvem. O castigo da indisciplina resolve um certo tempo. Por exemplo: no caso de dever de casa, se perderam 15 minutos da aula de arte, que eles adoram, então, o que acontece: durante um mês eles fazem o dever de casa. Depois... “ (Helena) FOUCAULT (1996: 163) afirma que “a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Na verdade, a penalidade tem a função de normalizar. 64 Além das cópias, outras formas de castigos usados hoje, pelas professoras, são as argüições sob a forma de leitura e interpretação, deveres extras e as “notas”. É interessante que estes mesmos castigos foram vivenciados por elas durante a formação escolar. Através destes castigos, controla-se o aluno indisciplinado mas, também, coloca-se à prova o que o aluno sabe. “Eles odeiam esses deveres extras”, dizem as professoras, principalmente, quando é dada uma nota através deles. FOUCAULT (1996: 164, 165) fala que o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. “É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.” Sobre o castigo que aplicavam no início e meio da carreira, Helena e Maria das Graças relatam que os mesmos eram mais severos e eram incentivados pelos diretores e aceitos pelos pais e pela comunidade. Helena relata: “As filas tinham que ser certinhas, cada um olhando para a cabeça do outro e não podia balançar... tinha horário para ir ao banheiro... os pintões ficavam em fila, no sol, no pátio até ficarem quietinhos um olhando a cabeça do outro, tudo certinho, igual militar. A gente podia colocar criança virada para a parede, colocar criança de pé, sentar menino com menina, porque era carteira dupla (eles odiavam isto), podia diminuir nota por comportamento (coisa que eu nunca aceitei), podia dar transferência para o aluno, suspender aluno de aula, dar reguadas, não deixando marcas, podiam ser dadas.” (Helena) Por sua vez, Maria das Graças narra: “Era bem mais fácil na primeira e na segunda década manter uma disciplina dentro da sala. A gente puxava o cabelo..., punha o menino de castigo na frente, em pé. Hoje se a gente fizer isso, pode até ser presa. “Agora, praticamente, a gente não pode dar castigo nenhum. Tem que ser tudo na base do diálogo. Quando muito, tirar recreio, dar dever extra.” (Maria das Graças) 65 As práticas de disciplinamento utilizadas no início e meio de carreira das duas se aproximam das práticas vivenciadas durante a formação escolar. Sabendo-se que o habitus assegura a interiorização da exterioridade, compreende-se a adequação das ações das professoras no início e meio da carreira. Sobre o momento atual da prática pedagógica os relatos das duas professoras ficam permeados pelas incertezas e insegurança diante das mudanças. Elas consideram que os pais estão mais relapsos e, ao mesmo tempo em que “cobram“ da escola um tratamento suave com seus filhos, entregam a ela a responsabilidade pela educação deles. “Tem pai que chega perto de mim e fala: conversa com esse menino para mim. A professora, hoje em dia, está sendo professora e mãe ao mesmo tempo. A gente acaba assumindo a responsabilidade de pai e mãe dentro da escola. E os pais vem e dizem assim: “eu não consigo colocar meu filho para fazer dever de casa”. O problema sério que eu acho é que a tarefa de casa é de casa, ela deveria ser castigada em casa, ela deveria ser resolvida em casa.” (Maria das Graças) “É de madrugada que o dia começa, muita gente diz que é de manhã, é dia, então, o dia começa de madrugada. Também a educação, ela não começa quando a criança nasce, tenho certeza de que ela começa na gravidez, ou quem sabe até na educação dos pais.” (Helena) Nos relatos de Maria das Graças, tanto no âmbito familiar, quanto no âmbito da formação escolar, no “Internato” onde estudou, a vivência da disciplina e do disciplinamento foi cercada pela vigilância e pelo controle. A formação dos pilares da disciplina sob a forma de habitus, bem como da consolidação desses hábitos e a formação de novos habitus na trajetória escolar aparecem na prática pedagógica das duas professoras sob a forma de percepções e apreciações que elas vão emitindo ao longo dos seus relatos. Na prática pedagógica de Helena, as percepções e apreciações sobre a disciplina e disciplinamento fazem perceber a influência do pai, ferroviário de visão larga e ampla, talvez proporcionada pelos horizontes sem fim que 66 percorria guiando o trem de ferro, e, ainda, a influência da trajetória escolar vivida em uma escola pública, onde teve a oportunidade de conviver com professores mais liberais que as freiras do Internato onde Maria das Graças estudou. Assim, embora tenha por parte da mãe recebido uma educação rígida e severa, Helena desenvolve uma resistência às formas de disciplinamento utilizado pela mãe. Tanto que ela repete em seus relatos que não quer ser igual à mãe, embora hoje entenda a sua forma de agir no passado, e faz questão de afirmar que ela mudou totalmente e que a sua relação com a mãe, lúcida e ativa aos 86 anos, é muito melhor. Com relação a Maria das Graças, o reflexo dos habitus consolidados na família e na trajetória escolar aparecem principalmente nos relatos das dificuldades encontradas na relação com os alunos – que mudaram muito, são respondões, relapsos - na relação com os pais – que não impõem limites para os filhos - na relação com os diretores – que querem modernidade - na relação com os colegas – que não dão conta da disciplina. Nos relatos de Maria das Graças percebe-se um “quê de saudade” dos velhos tempos quando o professor era autoridade, era o dono da sala de aula. As suas percepções e apreciações sobre a disciplina e o disciplinamento fazem perceber que os habitus consolidados na família e na escola estão no princípio organizador da sua prática pedagógica. É assim que ela valoriza a obediência, o silêncio, a ordem, a hierarquia, o capricho (caderno bonito, bem cuidado, letra bonita). Apesar de um “certo desencanto” decorrente das mudanças ocorridas na educação, principalmente com relação ao comportamento dos alunos, Maria das Graças afirma que pretende trabalhar “mais uns 4 ou 5 anos ainda”. Helena, por sua vez, afirma que muita coisa mudou, mas ela também mudou e pretende “trabalhar, ainda, mais uns vinte anos”. Com relação à questão da disciplina ela mudou muito, aprendendo com as crianças, nos livros, nos estudos. 67 “Com a evolução dos tempos eu tinha que adaptar, eu tinha que evoluir porque senão eu não seria aceita, como eu continuo sendo, na área educacional”. (Helena) “Eu tenho essa paixão pela educação. Se nascer de novo? Volto a ser educadora! Porque a educação é um processo contínuo, e eu acho que até fechando os olhos, pela última vez, eu ainda vou estar recebendo uma aula de educação da vida.” (Helena) Como se pode observar, ao longo dos relatos, percebe-se que as representações sobre a disciplina e o disciplinamento sob a forma de castigos vão mudando de acordo com a época e o contexto. Note-se que até a década de 70 as duas professoras consideravam que era mais fácil controlar os alunos. Nessa época, a disciplina também era muito rígida. Vivia-se o momento político do regime militar e as escolas constituíam o espaço institucional para a formação do trabalhador para a garantia do milagre econômico. A partir da década de 80 com a “abertura política” e a volta do regime democrático, a educação volta-se para a procura de novas alternativas educacionais. A tônica dos debates educacionais pauta-se pela crítica à escola tecnicista e autoritária. É a partir dessa década que as duas professoras, cada uma a seu modo, apresentam maiores dificuldades para lidar com a questão da disciplina. É, a partir daqui, que a falta de limite das crianças e a falta de autoridade dos pais passam a ser o maior problema para a ação pedagógica na trajetória profissional de Helena e Maria das Graças. 4.5 Representações sobre disciplina e disciplinamento e habitus disciplinares consolidados ao longo da trajetória Para mudar o mundo, é preciso mudar as maneiras de fazer o mundo, isto é, a visão do mundo e as operações práticas pelas quais os grupos são produzidos e reproduzidos. (BOURDIEU, 1990: 166) 68 As representações são estruturas estruturadas que exprimem o sentido que o sujeito dá à sua experiência no mundo social, utilizando-se dos sistemas de códigos e interpretações fornecidos pela sociedade e projetando valores e aspirações sociais. As representações têm, deste modo, íntima relação com a concepção que o agente tem do ser humano e da sociedade. FERREIRA e EIZIRIK (1994) afirmam que “muitos dos problemas vividos na escola advêm de formações e conceitos interiorizados, crenças cristalizadas na rotina do cotidiano, que acabam por naturalizar práticas (...)”. Assim, ao utilizar o conceito de representações sociais, procuro elementos essenciais para a análise dos mecanismos que interferem na ação educativa das duas professoras. Para Helena, embora afirme sempre a sua repulsa pelas normas impostas, a representação sobre a disciplina e o disciplinamento revela “a produção de uma percepção retida na lembrança”. Esperar-se-ia que, pela ojeriza com que relata as imposições da mãe, ela não fosse repetir o comportamento daquela. Contudo, ela se vê repetindo algumas regras e limites impostos pela mãe e, hoje, entende que eles são necessários. Isto se explica no fato de que, no princípio da representação está o habitus, que tende a conformar e a orientar a ação, assegurando a reprodução das relações objetivas que o produziram. “Na época em que eu era criança, isto tem mais de 50 anos - a gente tinha essa disciplina rígida, até repressora mesmo, com limites até em excesso. Eu sentia repulsa pelo excesso de regras que eram impostas. Por outro lado, hoje acredito que nós caminhamos no oposto. A criança não tem mais regras, não tem mais limites. Parece que os pais perderam... Parece não. Eles perderam realmente a noção de educadores. Eles chegam para a gente, aqui, e dizem: olhe, faça o que quiser com esse menino, porque eu não dou conta dele. O pai tem de dar conta do filho sim, porque a responsabilidade maior é dele. Eu considero a escola como uma auxiliar da educação. O educador é o pai, a educadora primeira é a mãe. Então, eles têm de dar conta dos filhos. Então mudou muito. Eles estão perdidos.” (Helena) 69 Por sua vez, os relatos de Maria das Graças confirmam as idéias de Helena. Também ela considera que “a educação vem mesmo de berço” e que a falta de limites é o maior problema da escola. “Não adianta o pai educar o filho perto da gente. Ele tem de colocar limite nele, dentro de casa. Eu acho que o limite está faltando é na família. Menino toma conversa do pai. É um limite que o pai tem de por: eu estou falando, você tem que ouvir. A educação vem mesmo do berço.” (Maria das Graças) “Acho que tudo deveria ter limite. Essa falta de limites é que está gerando tanto conflito dentro da escola. E, ela vem de casa. Não foram estabelecidos limites para a criança dentro de casa. Então, ela chega aqui e quer transferir para a escola aquilo que ela é em casa. Em casa ela faz o que quer, ela grita, ela xinga, ela suja as coisas, ela não guarda nada. Você sente isso: ela é indisciplinada, na convivência, ela é indisciplinada no seu material, ela é indisciplinada interiormente, ela não coordena as obrigações dela. Então, aquela dificuldade resume tudo em conflito com o professor.” (Maria das Graças) Assim, percebe-se que as representações que as duas professoras têm da educação familiar exprimem o sentido dado à suas experiências no mundo profissional, quando interpretam os comportamentos dos alunos como bons ou maus e traduzem “a crença cristalizada” de que a família é a responsável pela indisciplina do aluno na escola. GUARESCHI (1995: 197) afirma que toda explicação depende primariamente da idéia que nós temos da realidade. É essa idéia que governa nossas percepções e inferências construídas a partir delas, junto com nossas relações sociais. Ao relatar o comportamento das crianças de hoje as duas professoras relembram a época em que eram crianças, em que obedeciam e respeitavam os pais e os professores. Para elas isto constitui um valor que se tornou importante na formação moral das duas. BOURDIEU (1994: 65, 66) explica esse tipo de comportamento reportando a DURKHEIM: 70 “(...) Em cada um de nós, em proporções variáveis, há um homem de ontem, é o mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está predominantemente em nós, posto que o presente não é senão pouca coisa comparado a esse longo passado e no curso do qual nos formamos e de onde resultamos. Somente que, esse homem do passado, nós não o sentimos, porque ele está arraigado em nós, ele forma a parte inconsciente de nós mesmos. Em conseqüência, somos levados a não tê-lo em conta, tampouco as suas exigências legítimas. Ao contrário, as aquisições mais recentes da civilização, temos delas um vivo sentimento porque, sendo recentes, não tiveram tempo de se organizar no inconsciente”. Assim, percebe-se, principalmente, nos relatos das professoras que a disciplina familiar é essencial para a formação da criança. “O Estatuto da Criança e do Adolescente foi uma boa, foi, independente de determinados aspectos. Agora, essa empolgação alvoroçada que se faz desse estatuto, dizendo que a criança tem direito a tudo, e o adolescente também, não se pode fazer isso, não se pode fazer aquilo (com a criança e com o adolescente)... Não será isso a causa de tanta violência nas escolas e de tanto desleixo pelos estudos? Quer dizer: falta um limite e quem trabalha diretamente com limite não é quem legisla. Não! É quem está dentro da sala de aula”. (Helena) “Não adianta o professor aqui estabelecer determinado limite para a criança e depois, ela não tem limite em casa, ela vai vivenciar esta falta de limite dentro da escola também, que é o problema que estamos vivendo.” (Maria das Graças) “Os pais estão jogando essa educação toda em cima da professora, da escola. Agora, menino toma a palavra da gente dentro da sala de aula. Respondem. Esse problema de aluno responder, me tira do sério mesmo. Eu acho assim, atualmente, eles estão mais respondões. Eles estão bem mais relapsos também”. (Maria das Graças) Distingue-se nas representações das professoras a influência dos habitus disciplinares vividos na formação familiar. Os habitus disciplinares 71 fortemente marcados na infância fazem surgir representações que funcionam, como esquemas de percepção e avaliação da forma como as crianças de hoje são educadas pelos pais. Esses esquemas, por sua vez, remetem à apreciação dos comportamentos que as crianças apresentam na escola e que são diferentes dos comportamentos das crianças com quem trabalharam na primeira e na segunda década. “Eu acho que a educação de antigamente era completamente diferente da de hoje. Antigamente o pai sentava com os filhos na mesa, tomava refeição. Hoje o filho serve a sua comida e vai para a frente da televisão. E o pai não faz nada. Era bem mais fácil na primeira e na segunda década manter uma disciplina dentro da sala. A escola estava mais envolvida e o pai não vinha à escola. Hoje, por qualquer coisinha o pai vem na escola. (Maria das Graças) “Nós fazemos reuniões:só vêm às reuniões os pais cuja criança não têm problemas sérios de indisciplina. É a mais pura verdade. A família não se envolve. Então, é uma luta para mostrar para os pais que toda liberdade gera uma obrigação e toda obrigação gera um direito e que a liberdade da criança vai até onde começa a liberdade do outro. E eles, não vêem facilmente isso não.” (Helena) As representações sobre o papel da família na formação das duas professoras, forjadas no passado, interferem na definição sobre o papel da família, na formação das “crianças de hoje”. É assim que as representações interferem na maneira como elas observam e interpretam a ação dos pais, as situações de indisciplina na família e as formas como a realidade familiar é revivida na escola. Encontrase, portanto, nos habitus disciplinares das duas professoras o princípio ativo das práticas pedagógicas e das representações sobre a disciplina e o disciplinamento, bem como do uso dos castigos como forma de controle e de ordenação dos alunos. Também suas representações sobre o bom aluno e o bom professor, são fundamentais na consolidação dos habitus disciplinares. 72 Ao conceituarem o que é “bom aluno” pode-se perceber, em termos de comportamento e de ações, o que cada uma delas espera desse “bom aluno”. Helena considera como bom aluno: “Aquele que é curioso, é aquele que é questionador, é aquele que não só recebe, mas que dá – porque ele tem demais dentro dele -. Então, se ele não se expressar, ele não solta o que está dentro dele. Eu prefiro uma turma de pintões (eu coloco esta palavra entre aspas) do que uma turma de tímidos.” (Helena) A representação de ‘bom aluno elaborada por ela é diferente daquela elaborada por Maria das Graças: “O bom aluno, eu acho que é o aluno responsável, que traz suas coisas em dia, que participa (hoje em dia, nesses cursos que a gente vai, fala-se muito na participação do aluno). Eu acho que o aluno que participa, ele é um bom aluno. O bom aluno, o modo dele tratar o professor dentro da sala de aula, ele trata o professor, assim, com carinho, tem confiança no professor, chega perto da gente, conversa...” (Maria das Graças) Percebe-se, no conceito elaborado por Helena, a importância dada à manifestação e participação da criança na sala de aula, o que nos reporta à sua convivência com o pai, aos diálogos com ele entabulados e à resistência às imposições da sua mãe e de seus professores. “Eu prefiro uma turma de pintões”. Por sua vez, no conceito elaborado por Maria das Graças, percebe-se a idéia de obediência e de uma solicitude respeitosa que faz lembrar a sua convivência submissa com o pai e as professoras do internato. “Ele trata o professor assim, com carinho”. Quando se trata de falar sobre o professor, o bom professor, (e elas deixam bem clara a idéia de que bom professor é aquele que sabe manter a disciplina) as duas professoras afirmam a necessidade de gostar da profissão, de trabalhar com amor: 73 “Olha, eu não acho que bom professor é aquele que tem um montão de cursos por aí não, eu acho que o bom professor é aquele que trabalha com amor, porque tudo que a gente faz com amor vai para frente.” (Maria das Graças) “Eu acredito que o bom professor é aquele que é apaixonado por ser professor, apaixonado por aquilo que tem de fazer, apaixonado pelos educandos. Eu não posso ser educador se eu não gosto dos educandos.” (Helena) Diante disso, fica evidente que as professoras relacionam a questão do sucesso profissional, da sua aceitação pelos pais e pela comunidade, à dedicação e ao amor pelo magistério. Nas suas narrativas constata-se que viam os seus professores como modelos de responsabilidade e de dedicação. “Lembranças agradáveis? Nossa! Eu tenho demais. Lembrança da minha primeira professora que me dava aquele apoio! Eu chegava da roça, ela me levava para a casa dela...” (Helena) A percepção e apreciação das práticas de seus ex-professores aparecem sob uma forma positiva, o que faz refletir sobre as estruturas dos hábitus produzidos não só na família mas, também, na escola. É assim que as admoestações e castigos recebidos na escola são considerados hoje como um bem, porque ajudaram a torná-las pessoas disciplinadas e responsáveis. Sobre os castigos que “sofreram” na escola aparecem comentários assim: “...mas a culpa foi minha. Eu não culpo o professor por isso não.” (Helena) “Aqueles professores que eram mais rigorosos, mais exigentes, que na época a gente considerava que mais atrapalhavam a nossa adolescência, foram aqueles que mais deixaram marcas porque a gente aprendeu mesmo aquilo que eles se propunham em fazer a gente aprender. “ (Helena) 74 A professora não admitia nada de errado. Eu acho que foi bom para nós porque a gente aprendeu assim a ter uma disciplina com ela...” (Maria das Graças) Os habitus, portanto, presentes nos esquemas de percepção e apreciação das práticas pedagógicas de seus ex-professores se encontram presentes nos esquemas de produção das práticas das duas professoras. “O bom professor, eu acredito que é ser apaixonado por ser professor, ser apaixonado por aquilo que tem de fazer, ser apaixonada pelos educandos. Eu não posso ser educador, se eu não gosto de ser professor”. (Helena) “Apenas ser bravo, ser rígido, não leva ninguém à nada. O aluno pode ficar com medo do professor, tomar pavor dele, antipatia da cara dele. Eu acho que o professor deve ser exigente, ele não pode compactuar com a falta de responsabilidade, mas sobretudo tem de ter paixão por aquilo que ele representa ali, como professor de determinada matéria. Tem que ter paixão por aquela matéria, ele têm de mostrar essa paixão para fazer a gente ficar apaixonada.” (Maria das Graças) “O professor tem que ser responsável, gostar do que faz, ser amigo do aluno, eu acho isso muito importante, ser bom para ensinar, porque tem professor que repete, repete e o menino não aprende. Se ele fizer por amor ele sobe na vida. Os pais dão muito valor ao professor dedicado.” (Helena) As representações que Helena e Maria das Graças têm do bom professor e sua prática pedagógica remetem a DURKHEIM, que leva o leitor a refletir sobre a moral como sendo essencialmente idealista. Segundo ele, “o que é realmente um ideal, senão um corpo de idéias que pairam acima do indivíduo, solicitando energicamente a sua ação? A moral ordena-nos que nos entreguemos, que nos subordinemos a algo que não nós mesmos; e mercê dessa subordinação que nos impõe, ela eleva-se acima de nós próprios.” Assim, DURKHEIM afirma que, para podermos “tomar a peito” a obra educativa, “necessário se torna que por ela nos interessemos e 75 a amemos, e para a amarmos, há que sentirmos tudo que de vivo nela existe.” (DURKHEIM, 1984: 226, 228) Para DURKHEIM, a autoridade do professor surge do seu foro íntimo e, para que isso aconteça, é necessário “que ele creia na sua missão e na grandeza da mesma”. Essa necessidade é reafirmada pela professora Helena, para quem a disciplina dos alunos e a autoridade do professor, decorrem da capacidade de saber conduzir as aulas e está intimamente ligada à questão da criatividade e do gosto pela atividade docente: “A gente pensa que criança é boba, tudo que a gente quiser ela faz, e não é desse jeito. Nesse tempo todo em que estou vendo a criança, ela é muito mais ligada, muito mais viva do que já vimos. Ela percebe, muito antes, as coisas. E é por aí que o professor vai manter a disciplina: com trabalho e criatividade, porque se você se apresenta na sala sempre do mesmo jeito, com o mesmo tom de voz, mesmo modo de conversar, mesmo modo de chamar uma criança e de apresentar as coisas, não vai atrair ninguém não. Porque nós temos concorrentes fortíssimos aí fora, na mídia. Então, é trabalhar mesmo a criatividade e a interação. É muito necessário que o professor tenha realmente gosto por aquilo que faz, saiba planejar atividades dentro de um horário limite, porque a criança não tem capacidade para concentrar sua atenção durante muito tempo.” (Helena) Diante disso, não é difícil constatar que as duas professoras consideram que amor à profissão e aos alunos seja a principal virtude do professor. Assim, quando relatam sobre os castigos aplicados em seus alunos expressam um sentimento, que traduz o sofrimento que os mesmos provocam. “Nesses anos de carreira, eu, lamentavelmente, só não dei conta de dois alunos. Eu tive de apelar para a direção, na época, para tomar uma providência. Até hoje me sinto triste de pensar nisto: o que eu deixei de fazer para chegar ao ponto de eu encaminhar esses dois alunos para a direção?” (Helena) 76 Entretanto, ambas consideram necessários os castigos para que a criança se torne um adulto responsável e capaz de respeitar a si mesmo e aos outros. Para ambas o conceito de disciplina está ligado a dois valores: respeito e responsabilidade. Maria das Graças fala sobre o que é disciplina: Eu gosto de repetir: a base da disciplina no meu ponto de vista, está em duas palavras: “respeito e responsabilidade”. Para Helena, disciplina consiste em: “Respeito e responsabilidade”. Eu respeito meus alunos, eu respeito meu superior, eu respeito o pessoal que trabalha comigo, eu respeito os nossos serventes, e da minha parte eu procuro cumprir tudo que é inerente à minha profissão. Maria das Graças diz ainda: “A partir do momento em que é decidido o que se vai fazer, eu cumpro a minha parte, e acredito, ainda, que o exemplo educa mais que as palavras. E o respeito, a responsabilidade, são as bases de qualquer ação, principalmente na área de educação.” Nesse sentido, as análises sobre as situações em que os castigos são aplicados evidenciam o caráter formador e moralizador da disciplina. Para as duas professoras há certas situações em que só um castigo dá à criança a dimensão do que ela está fazendo e que não se reflete só contra ela, mas contra todo o ambiente familiar, contra todo ambiente escolar. Contudo, ao afirmar o valor do castigo, reflete-se sobre a necessidade de o mesmo ser dado após “um grande conhecimento de causa”. “Agora, que o castigo seja dado depois de um conhecimento de causa muito grande do que está levando a 77 criança à indisciplina.” (Helena, referindo-se à necessidade do castigo) DURKHEIM (1984: 307) leva à reflexão sobre esse “conhecimento”ao afirmar que é conveniente deixar decorrer um tempo, ainda que curto, entre o instante em que a falta é constatada e aquele em que a punição é infligida; um tempo de silêncio reservado à reflexão. Esse momento de suspensão não é uma simples simulação, destinado a dar à criança a ilusão de uma liberação; é sim um meio, para o mestre, de este se precaver contra as resoluções precipitadas, que seguidamente são tão difíceis de revogar como de manter.” É necessário que o mestre se precavenha de decisões precipitadas, uma vez que constitui sempre um problema e bastante complicado, saber se é necessário punir e, sobretudo, como se deve punir. “Eu sou totalmente contra espancar uma criança, machucar uma criança. Agora castigo: eu acho muito produtivo quando você tira da criança o que ela gosta, não em relação a alimentação, porque alimentação é fundamental. Os meus filhos são da era da televisão, os castigos deles eram tirar a televisão, tirar o futebol, era tirar uma ida a casa de um colega. Então, as coisas resultam quando você mantém. Agora, manter mesmo. Se eu falei que hoje não têm televisão, não têm mesmo. Ninguém vê para evitar o castigo relaxado.” Quando se dá um castigo tem de manter. (Helena) DURKHEIM (1984: 309) menciona essa questão, afirmando: “Todavia, qualquer que seja a punição, e seja qual for a forma pela qual a pronunciemos, necessário se torna que, uma vez decidida, seja irrevogável.” Ao reafirmar ser contra espancamento, a professora enfatiza a necessidade dos castigos, buscando justificativas para os mesmos na sua religiosidade. “Repito, eu sou contra espancamento. Mas há determinados momentos em que sou favorável a que uma palmada bem dada resolva os problemas. Mesmo porque na Bíblia você tem uma citação que diz lá que os pais têm a responsabilidade de usar uma vara quando necessário. Então eu não sou contra umas palmadas bem dadas, a criança 78 sabendo porque está recebendo aquela palmada. Eu dei algumas palmadas, em casa, poucas vezes, mas dei e sempre assim. Então não sou contra não quando o pai e a mãe não estão batendo por raiva, para descarregar a raiva. O que é mais difícil de fazer, porque geralmente quando se bate numa criança é descarregando a raiva.” (Helena) Também sobre esta questão, DURKHEIM (1984: 307) afirma e faz refletir que não se deve punir “ab irato”. Para ele, a criança deve sentir que o castigo foi resultado de um ato deliberado e de uma decisão tomada a sangue-frio. “Um castigo aplicado num impulso de cólera ou de impaciência nervosa tira-lhe todo o significado moral.” Para Helena o castigo deve ser precedido, sempre, de avisos que de fato, constituem forma de ameaça. “Melhor você dizer, insistir: “olhe, você vai apanhar por isso qualquer dia”. Por aí, a criança não vai perceber que você não está descarregando a raiva nela. Você avisou vários dias. Então, eu sempre avisei e avisei”. Note-se a semelhança entre a fala da professora e a seguinte afirmação de DURKHEIM (1984: 305) “a virtude do castigo só é total, quando ele se limita à condição de ameaça”. É por isto que o professor experimentado hesita em castigar um bom aluno, mesmo que ele o mereça. Para ele um castigo inadequado pode contribuir para que aluno venha a reincidir no erro. Continuando a fala do fragmento anterior a professora diz: “Você vai levar tantas palmadas pelas vezes que repetiu o erro. E eu dava essas palmadas. Agora, eu dava não era palmadinha de engano não. Ele tinha de sentir minha mão.” (Helena) As afirmações da professora remetem também à colocação de DURKHEIM (1984: 308) sobre a forma de castigar: “Se é certo que não 79 devemos castigar, levados pela cólera, não é menos certo que não devemos castigar friamente. Um excesso de sangue frio, de impassibilidade não resulta melhor que um excesso de arrebatamento. Com efeito, punir, dissemos nós, é reprovar, e reprovar é protestar, é repelir o ato que reprovamos, é darmos prova do distanciamento que ele inspira. Logo, se a punição for aquilo que deve ser, ela não se processa sem uma certa indignação, ou, se a expressão parecer demasiado forte, sem um descontentamento mais ou menos denunciado. Os relatos das duas professoras permitem a constatação de que, em sua trajetória, novos habitus foram consolidados, possibilitando novas representações sobre disciplina e do disciplinamento, deixando, contudo, perceber o princípio dos habitus primários e secundários na consolidação desses novos hábitos. Maria das Graças procura conformar-se às mudanças, enquanto Helena procura entender e acompanhar as mudanças. Assim, é possível perceber que a configuração dos novos habitus consolidados na última década fazem surgir formas de disciplinamento que ganham contornos mais sutis e mais suaves. Contudo, percebe-se, ainda, que os castigos não resolvem agora, como não resolveram no passado, o problema da indisciplina. A análise dos relatos das duas professoras leva à reflexão de que estudar a disciplina sob o enfoque dos habitus consolidados na família e na formação escolar dos professores pode dar uma contribuição importante para a compreensão desse problema desafiante. Isto, com certeza, aponta caminhos que levam a uma convivência mais harmoniosa (ou menos tensa) entre professores e alunos. 80 5 - Disciplina e disciplinamento na relação pedagógica: a visão de outros agentes. Nos relatos acerca das duas professoras os agentes que com elas conviveram – diretores, supervisores e ex-alunos - referem-se às duas de forma positiva, destacando a capacidade que cada uma delas tem de ensinar. As apreciações desses agentes sobre as questões da disciplina e do disciplinamento parecem conduzir, invariavelmente, à idéia de que sem disciplina não há possibilidade de uma boa aprendizagem. As diretoras e supervisores entrevistados restringiram-se aos elogios e ao destaque aos pontos positivos da prática pedagógica das duas professoras. Todas elas asseveram o valor da disciplina na aprendizagem e na formação da criança e a necessidade dos castigos moderados quando a indisciplina prejudica o próprio aluno e a classe. Já os ex-alunos foram mais espontâneos ao relatarem os momentos agradáveis e também os momentos desagradáveis ligados, principalmente, aos castigos recebidos ou apenas observados. Os relatos de todos os agentes nos reportam as idéias de DURKHEIM, FOUCAULT e BOURDIEU exploradas nos capítulos anteriores. Dois ex-alunos de Helena se lembraram, rindo, de que ela os ameaçava dizendo: “Não me façam ficar com raiva, porque eu viro o Hulk. Eu só não fico verde!” Os dois dizem que eles realmente acreditavam nisso e tinham medo, e isto os fazia obedecer as ordens da professora. 81 Por sua vez, os fatos marcantes vividos pelos seus ex-alunos são os relacionados aos teatros, às encenações, às excursões, enfim, a todas as atividades extra-classe. Todos eles falam da alegria da professora e das invenções que eles aprontavam juntos. Os castigos, dizem eles, são os mesmos de hoje: “Ficar sem recreio, aumentar o dever de casa, ficar sem aula de educação física. Essas coisas!” As lembranças dos ex-alunos de Maria das Graças estão ligadas às suas exigências quanto à organização, ao silêncio, ao “capricho”... Contudo, um deles fala: “Era muito difícil aceitar os castigos. A gente tinha raiva... raiva mesmo. Mas que a gente aprendia... aprendia mesmo”. O sentimento de raiva misturado à apreciação de que o “castigo faz aprender mais” é o mesmo relatado pelas duas professoras quando falam da época da formação escolar. Além da raiva e do medo, os ex-alunos falam da vontade de não ir à escola. As lembranças de alguns castigos parecem trazer ainda um sentimento de revolta. “Um dia uma colega estava distraída brincando com o lápis e por falta de sorte rabiscou a parede. A professora pegou a cabeça dela e aproximando-a da parede disse: lambe, lambe, você vai limpar o que você sujou lambendo. Isso foi terrível. Até hoje esta cena me revolta.” As descrições dos castigos são muitas e todas elas carregam uma certa dose de emoção. Ao narrar os castigos aplicados, um ex-aluno se lembrou de que a professora falava na sua própria educação, da severidade do pai e rigorismo do internato. E esse ex-aluno completa: “Ela queria educar a gente como ela foi educada.” Os relatos dos agentes sobre as duas professoras são completamente diferentes e a apreciação que os mesmos fazem a respeito do disciplinamento possui um sentido ambíguo: de um lado é evidenciado o “lado alegre”, da professora Helena e, isto, é considerado “legal”, de outro lado é evidenciado o 82 lado austero e rígido da professora Maria das Graças, e isto é também considerado “legal”. Assim, curiosamente, as representações dos agentes remetem às representações sobre a disciplina e o disciplinamento, das duas professoras e fazem evidenciar a idéia de que a ordem, o respeito e a responsabilidade são condições inerentes para a aprendizagem do aluno. Esta visão compartilhada faz com que a concepção de disciplina seja semelhante. Todos os entrevistados – diretores, supervisores e ex-alunos falam da disciplina como respeito às regras, ordem, respeito aos limites. Há, por parte dos agentes entrevistados, uma forte rejeição aos castigos físicos e ao “excesso de rigor”, contudo, não há rejeição às cópias, às argüições, aos exercícios extras, porque “através destes castigos há aprendizagem”. Curiosamente, considerados como uma “coisa ruim”, os castigos garantem a ordem e a boa aprendizagem e, isto, é bom. “Eu estava mal em matemática. Eu estava fazendo muita coisa errada na aula. O professor me mandou fazer 180 exercícios numa semana e eu tinha que fazer, se não me engano, 40 exercícios por dia. Eu ficava com a cabeça quente com tanto exercício. Mas eu aprendi a matéria e passei de ano.” (Sérgio, aluno do Ensino Médio). O sentimento de raiva misturado, à apreciação de que “o castigo ajuda a aprender mais” é relatado também pelas duas professoras quando falam do tempo da formação escolar. Assim, vale pontuar que a visão sobre a importância do castigo, por parte das professoras e de seus ex-alunos é semelhante, apesar da distância entre o tempo e o contexto escolar que as duas professoras vivenciaram. Assim, percebe-se que as representações que as duas professoras têm de seus professores que atuaram entre as décadas de 50 e 60, e as representações dos seus ex-alunos, entre as décadas de 70/80/90, curiosamente fazem surgir a imagem de um professor capaz de manter a ordem e o controle na sala de aula. Nota-se que as representações sobre o bom professor nas diferentes épocas continuam condicionadas não só ao aspecto pedagógico de 83 “ensinar bem” mas, também, ao aspecto disciplinar, uma vez que “sem disciplina não há aprendizagem”. Assim, vale ressaltar que, tanto para os diretores e supervisores quanto para os ex-alunos, parece não haver possibilidade de uma boa aprendizagem sem disciplina. Paralelamente às representações sobre a disciplina, surgem outras representações sobre os castigos. Embora os próprios alunos demandem a ordenação e o controle na sala de aula, suas apreciações sobre os castigos parecem diferentes daquelas relatadas pelas duas professoras. Nas suas representações sobre o bom professor na atualidade surge a imagem do professor que sabe fazer com que os alunos tenham vontade de estudar. Os ex-alunos consideram que um professor assim não precisa se utilizar de castigos, porque ele é capaz de dar aulas interessantes. Para eles só há “pintação” quando as aulas são monótonas e o assunto não é interessante. Eles não se sentem responsáveis pela indisciplina da classe. A disciplina, para eles, depende unicamente do professor, de sua capacidade em tornar as aulas interessantes. As apreciações dos ex-alunos são ilustradas pelos fragmentos dos seus relatos. “Não é com medo que se deve educar uma pessoa. A gente não tinha prazer de ir para a escola. A gente tinha medo. Se fosse hoje a gente não ia aceitar os castigos. Naquela época a gente era criança...” “A professora de quem a gente lembra com saudade é aquela que fazia uma festa na sala. Lembro-me dela, dos “Três Porquinhos” e a festa que ela fazia com cada capítulo da história. A gente ficava louco para assistir a aula seguinte.” “O aluno não precisa ficar o tempo todo calado e quietinho na sala de aula. A criança de hoje é muito mais inteligente. No nosso tempo, a gente apanhava mais. As crianças hoje têm mais liberdade de expressão e mostram o ponto de vista deles”. “A professora, hoje, tem muito mais condições para aprender e ser boa professora. A obrigação do professor é tornar a aula interessante e isto ele pode aprender. Hoje tem muitos recursos: tem cursos, palestras, a internet..” 84 Pode-se observar que as apreciações sobre os castigos parecem pautar-se em diferentes critérios: para as professoras o castigo é conseqüência da falta de disciplina e de limites dos alunos; para esses, a indisciplina que resulta em castigos é conseqüência da falta de “capacidade do professor”. Assim, para os ex-alunos entrevistados, a questão da disciplina passa pela competência do professor. Para eles, essa competência depende de muito estudo e atualização para que o professor possa acompanhar as mudanças e tornar suas aulas interessantes. 85 Conclusão 86 Conclusão “Sou um pouco de tudo o que passou em minha vida” (Ulisses, personagem da Odisséia, de Homero). “Muito longe de nos devermos desencorajar com a nossa impotência, teríamos mais motivos em nos sentirmos atemorizados com a amplitude de nosso poderio. Se, de uma forma mais constante, mestres e pais sentissem que nada se pode passar em presença da criança sem nela deixar qualquer vestígio, que a formação do seu espírito e do seu caráter depende desses milhares de pequenas ações, insensíveis, que se produzem a cada instante e às quais não prestamos atenção devido à sua aparente insignificância como passariam a acautelar mais a sua linguagem e a sua conduta”. DURKHEIM (1984: 31) Duas questões incitantes acompanharam todo o trabalho: 87 Primeira – Por que os castigos continuam sendo considerados necessários para o controle dos alunos na escola apesar da afirmativa de que os mesmos não resolvem o problema da indisciplina? Segunda – Por que, embora se lembrem com desgosto dos castigos recebidos na sua infância, os professores continuam castigando seus alunos? Encontrar as respostas para essas questões, a partir dos pressupostos de DURKHEIM, FOUCAULT e BOURDIEU, foi uma tarefa instigante e desafiadora. Ao procurar responder a questão “o que é disciplina para o professor” concluímos que as representações e conceitos acerca da disciplina e do disciplinamento emitidos por todos os entrevistados - professoras e agentes que com elas conviveram não fogem à idéia que perpassa toda a história da educação. Todos eles relacionam disciplina à idéia de ordem, de respeito, de responsabilidade, de organização e de obediência. Não se concebe uma sociedade sem regras, sem respeito pelo próximo, sem disciplina. Assim, a disciplina é considerada essencial para a vida em sociedade uma vez que, através dela, se exprime a conduta coerente, comedida e organizada de seus membros. A disciplina e, conseqüentemente, a indisciplina é uma questão que parece atravessar os tempos. Assim, problema da disciplina na escola não é inerente, somente, aos dias atuais e nem conseqüência da permissividade familiar e da abertura da escola, à família e à comunidade, a partir da década de oitenta, como argumentam Helena e Maria das Graças. Embora as duas professoras tenham histórias de vida diferentes e ações pedagógicas distintas, as duas apresentam semelhantes conceitos e representações sobre disciplina, considerada, por elas, como condição inerente ao processo educacional. Para elas, a indisciplina é o grande problema da ação educacional. Assim, parece-me razoável quando as duas professoras proclamam a disciplina como o requisito fundamental para a ação pedagógica e vêem a indisciplina como o maior obstáculo a essa ação, ao longo da trajetória 88 profissional, e este, tem sido cada vez maior e mais difícil de transpor. Percebe-se, nos relatos, um certo desalento e uma insegurança muito grande quando falam das mudanças de comportamento disciplinar das crianças, a partir da década de 80. Elas explicam esse fato como conseqüência da proibição dos castigos, reforçada pelo Estatuto da criança e do Adolescente e pela perda de autoridade do professor. Essa perda de autoridade é explicada, exatamente, como a impossibilidade de poderem conter a indisciplina através da aplicação de castigos e ainda, pela interferência dos pais e da comunidade na vida escolar. As duas professoras consideram que antigamente, no início e meio da carreira, entre os anos 60 e 80, o professor podia e era incentivado a usar castigos físicos , o que, segundo elas, facilitava a manutenção da disciplina. A ênfase da maior dificuldade em lidar com a disciplina nos dias atuais é explicada por ambas como sendo conseqüência da permissividade que a criança tem na família. Para elas os pais são os grandes responsáveis pela falta de limites da criança. Elas exprimem, nos insegurança seus relatos, a em lidar com a indisciplina e o medo da censura, às ações disciplinares, por parte da família e da sociedade. “Agora, praticamente, a gente não pode dar castigo nenhum. Tem de ser tudo na base do diálogo. “Os pais viram “bicho” quando o filho recebe um castigo.” (Maria das Graças) Apesar desse medo, da censura, as duas professoras ressaltam que sem disciplina não há ensino nem aprendizagem. As citações abaixo confirmam: “sem ordem, não há progresso”, para aprender o aluno precisa estar atento, silencioso,precisa ser organizado, bem educado”, “existem alunos que merecem castigos e precisam deles para “cumprir o dever e aprender”, fazem perceber que o castigo continua existindo e continua sendo considerado como necessário nas salas de aula da escola atual. Contudo, os instrumentos e as formas de castigar mudaram. A vara de marmelo, que 89 deixava marcas visíveis foi substituída pela “cadeirinha do pensamento”, pelo dever extra, pela suspensão do recreio e da aula de educação artística ou educação física, pelas “cópias com objetivo”. Elas afirmam que os castigos só resolvem o problema da indisciplina durante algum tempo. “Os alunos têm memória curta e se esquecem dos castigos” (Maria das Graças) Essa ambivalência em relação ao castigo, considerado necessário e, ao mesmo tempo, ineficaz, reflete-se na relação emocional das professoras que falam não só do sofrimento que os castigos recebidos na infância causaram, mas também, do sofrimento que a aplicação dos mesmos lhes causam ao longo da trajetória profissional Analisando os relatos dos ex-alunos verifica-se que a lembrança dos castigos, também, não é nada agradável. Os castigos escolares são lembrados com terror e os sentimentos provocados por eles são descritos como sentimentos de raiva e de medo. Apesar disso, tanto as professoras, quanto os agentes entrevistados – diretores, supervisores e ex-alunos – afirmam que a disciplina, além de ser fator importante na aprendizagem é, também importante na formação do jovem e da criança. Mesmo considerando a professora rígida e os castigos como lembranças desagradáveis, consideram que esses eram merecidos, necessários e resultaram em aprendizagem. Não se nega, em nenhum momento, a necessidade da disciplina. Não se pode, contudo, ignorar o constrangimento causado pela indisciplina e pelos castigos utilizados para contê-la. Parece-me evidente que quanto mais rígida e severa foi a construção dos pilares da disciplina, na infância e durante a formação escolar, tanto maior é a exigência com relação à mesma e maiores as dificuldades em adequar as ações disciplinares ao momento em que a criança vive. Pode-se explicar este fato, pela inculcação e assimilação dos habitus enquanto “estruturas estruturadas predispostas a funcionar 90 como estruturas estruturantes”. Portanto, os habitus, produto de toda a história individual, são princípios geradores de práticas, de representações e, ainda, princípios organizadores da ação. Enquanto produto da história, o habitus orienta as práticas dos professores e produz esquemas de percepção, de apreciação e de ação que tendem a se reproduzir. A presença dos “habitus” disciplinares pode ser percebida nos relatos das duas professoras: Maria das Graças apresenta muito mais dificuldade em lidar com as crianças de hoje do que Helena. Esta, ao longo de sua trajetória familiar, escolar e profissional, foi assimilando outras formas de apreciação e percepção sobre a disciplina e o disciplinamento que definiram mudanças visíveis nas suas ações pedagógicas. Se, “em cada um de nós, em proporções variáveis, há o homem de ontem e, é esse mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está predominantemente em nós”, o estudo das trajetórias de vida dos professores poderá trazer importantes contribuições para mudanças de esquemas de percepções, apreciações e, conseqüentemente das ações dos professores face à questão da disciplina e do disciplinamento. A reflexão de como os habitus disciplinares se formaram e se consolidaram ao longo das trajetórias de vida dos professores, pode fornecer dados que permitam uma melhor compreensão de suas experiências passadas e, isto, pode constituir uma fonte enriquecedora com vista a um melhor conhecimento da própria natureza do processo disciplinar na sala de aula. Constata-se que os pais, professores e, ex-alunos entrevistados se mostram convencidos de que o castigo é “bom porque faz aprender”. Portanto, parece que o conceito de educação que os orienta se impõe ainda na sociedade atual, uma vez que o castigo continua sendo incentivado e aplicado na escola toda vez que se entende que ele é necessário. Contudo, fica evidente que a disciplina é um conceito construído pelo próprio professor e, assim sendo, faz com que o que é indisciplina para um professor, não o seja para outro professor. A questão da disciplina e indisciplina tem, então, a ver com o modo como os espaços, o tempo e a voz do professor e alunos são percebidos e compartilhados na sala de aula. 91 Mais do que esperar a transformação das famílias ou de lamentar a falta de limites nos dias atuais, é necessário que o professor faça uma análise dos fatores responsáveis pela indisciplina na sala de aula. O professor não pode ignorar que cada aluno tem a sua história individual para poder situar o seu trabalho em direção à realidade do grupo com o qual trabalha. É importante a revisão das suas representações sobre o que é ser bom ou mau, sobre o que é certo e errado e, ainda, a consciência de que a obediência, a não contestação da autoridade conseguida através de práticas coercitivas e autoritárias resultam nas suas próprias afirmativas de que o “castigo ajuda a resolver o problema somente naquele momento”. Assim, o fato de o professor reforçar as regras e os padrões de comportamento por ele desejados por meio de provas, notas, prêmios, castigo, cria a submissão, a obediência e a conformidade. Contudo, mais do que obedecerem e se conformarem com as regras impostas, devido ao medo das punições, os alunos precisam ter a oportunidade de conhecer e discutir o porque das regras. Ao se conscientizarem adolescentes poderão avaliá-las disto as crianças e os e aprenderão a tomar as suas próprias decisões. A disciplina não pode prescindir da autoridade, mas também não pode deixar de considerar a autonomia, o conhecimento e a liberdade dos alunos. Respeitar as crianças como seres humanos, dar-lhes oportunidades de fazerem opções e apóia-las em suas atitudes cotidianas de autonomia é garantia de que terão condições de agir com base no respeito aos princípios e não somente por medo e por obediência. Assim entendida, a disciplina deve ser encarada não somente como um sistema de normas mas também como uma “aprendizagem” e, como tal, deve se transformar em um objetivo educacional, essencial para a orientação da prática disciplinar dos professores. O estudo das trajetórias de Maria das Graças e Helena, revela-se que embora o quadro geral da educação e do pensamento educacional brasileiro tenha se alterado nas duas últimas décadas – 80 e 90 -, época em que, gradativamente no Brasil, recrudescem os movimentos pela redemocratização da 92 sociedade, a sobrevivência dos castigos escolares evidencia a necessidade da reflexão sobre práticas pedagógicas autoritárias e coercitivas, ainda em vigor em algumas escolas. É nesse sentido que o estudo da disciplina e disciplinamento escolar a partir dos habitus é uma alternativa interessante que pode contribuir para uma redefinição dos conceitos e representações que o professor possui sobre essa questão. Certamente a partir disso, suas apreciações e percepções sobre a disciplina e o disciplinamento poderão ser mais adequadas ao momento atual e às crianças de hoje que precisam aprender, tanto quanto as da década de 40, 50 , ..., que a ordem, o respeito, a responsabilidade, a cooperação, são valores inerentes à disciplina. Conseqüentemente, a prática pedagógica dos professores deve dar condições para que as crianças interiorizem esses valores, não devido ao receio de ameaças e punições, mas através de ações que lhes possibilitem entender que as regras que fazem parte da nossa cultura são importantes quando se pensa numa sociedade mais justa e solidária. 93 ANEXOS 94 Anexo 1 A História de Vida de Helena: construção da vida profissional a partir de um ideal. Helena nasceu na zona rural, de onde saiu ainda bem pequena. O pai era ferroviário, o que fazia a família mudar, sempre, para diferentes lugares. A mãe cuidava das “lidas domésticas”. Têm 7 irmãos, dos quais 4 têm o 1º grau, 1 tem o 2º grau e 2 têm o 3º grau. Na sua narrativa, ela se lembra de quando tinha 6 anos de idade e “cismou” de ir à escola com o irmão que estava no 2º ano primário. O pai, ferroviário, colocou-a junto com o irmão, no trem e ao chegar à escola a diretora não teve outro recurso senão deixá-la ficar na turma da 1º série, naquele dia. Ficou fascinada pela professora que a deixou desenhar, copiar, participar do recreio, etc. Ao chegar em casa disse para o pai: “Quando eu crescer vou ser professora”. A partir dessa data a brincadeira de que mais gostava era a de dar aulas para a meninada da roça que ajuntava em seu quintal. O sonho de ser professora começou aqui e se dependesse da vontade da sua mãe ela não o teria realizado. A mãe achava que somente o ensino primário bastava. A professora relata o dia de sua formatura assim: “No dia da festa do diploma da 4ª série a professora tinha combinado que todo mundo ia cor-de-rosa. Só eu não pude comprar. Eu fui com o meu vestido verde de bolinha e com o sapato da filha de minha madrinha que calçava 35 e eu, 30. Cheguei lá, sem vergonha nenhuma, para receber meu diploma. Na hora que a professora me chamou, ela me deu um abraço tão apertado e cochichou no meu ouvido: “Helena, você não vai ficar só com esse diploma, palavra de D. Noêmia.” Isso me deu forças para ir contra mamãe que não queria que eu estudasse mais. Parece que por pertencer a uma família que passava por grandes dificuldades financeiras e sendo a primeira entre os irmãos a continuar os estudos, Helena fez todos os esforços possíveis para superar a falta de capital cultural familiar. BOURDIEU fala que as crianças de classes sociais onde 95 capital cultural têm que demonstrar um êxito excepcional para chegar ao ensino secundário. E Helena parece, não mediu esforços para chegar aonde queria. O relato de como conseguiu, sozinha, recursos para estudar comprova os seus esforços. Para continuar os estudos, ela foi morar em um orfanato para crianças órfãs e carentes, dirigido por freiras. Estudou com muita dificuldade mas sempre foi a melhor aluna da classe. “Fui uma aluna caxias, aquela aluna bem quietinha, que fazia tudo com perfeição. Tinha mania de 1º lugar.” Em uma aula de geografia, quando estudava sobre a implantação das primeiras siderúrgicas no país, ouviu falar da Siderurgia Queiroz Junior e de uma senhora, pertencente a essa família, Ana Amélia de Queiroz, que era presidente da Casa do Estudante do Brasil. Escreveu para ela, falando de suas dificuldades e necessidades e daí para frente obteve a ajuda de que precisava para terminar os Cursos de Magistério e de Contabilidade. O pai, diz ela, morreu cedo. Ele era uma pessoa alegre e que gostava de cantar. Ela se recorda de como doíam os castigos impostos pela mãe: “tirar de mim, minha mãe tirava. Achava que ela sabia que eu adorava sentar no terreiro com o papai e cantar. Então, por qualquer coisinha ela tirava uma semana inteirinha. Então, doía demais em mim, aquilo. Ficou uma marca muito grande porque papai morreu muito cedo. A gente não aproveitou o suficiente, sabe, aquela coisa toda”. Como mãe, se desdobrou para cumprir os “quatro turnos” do trabalho. Trabalhava de manhã, à tarde e à noite. Estabeleceu um horário só para as crianças (filhos) de 16:30 às 17:30h que era dedicado às brincadeiras e para resolver as dúvidas da escola. O quarto turno, de 22:00 às 24:00h era para arrumar a lida doméstica e o “trabalho de casa” do professor. Acha que a grande decepção do magistério é a falta de reconhecimento financeiro. “A gente trabalha, trabalha, trabalha e o reconhecimento financeiro é nenhum.” Ela se lembra de que ainda “pegou um pedacinho da carreira, “dois, três anos, quando o professor era valorizado e os rapazes até diziam que “casar com professora era um bom negócio”. 96 A professora fez o Curso de Magistério e o Curso de Técnico em Contabilidade entre os anos de 1957/1959 e fala o Inglês fluentemente. É viúva e têm 3 filhos, sendo um homem, formado em Curso Técnico, e 2 mulheres formadas em curso superior. Uma é dentista e a outra é pedagoga e dançarina clássica. A sua religião é a católica e é católica praticante. Iniciou a sua carreira no magistério em setembro de 1959, antes de se formar, numa turma de 4ª série primária. Como professora, tem experiência em todas as séries do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, nos cursos de Magistério e Técnico em Contabilidade. Atualmente, além de lecionar o conteúdo de Ensino Religioso no Ensino Fundamental, exerce a coordenação das quatro primeiras séries do Ensino Fundamental de um grande colégio particular. É presidente de um clube de serviços (Rotary) e participa de toda a programação social do mesmo. Já fez o intercâmbio rotário na Austrália. Conhece o Paraguai, a Argentina e os Estados Unidos. Acabava de chegar, no início das entrevistas, de uma viagem às Serras Gaúchas. Adora cinema, música e teatro. Já trabalhou em rádio, na década de 50, onde fazia um programa infantil e outro feminino. Fazia teatro também, tendo abandonado estas atividades com o casamento. Após a viuvez voltou a fazer teatro, participando de algumas peças, tendo sido premiada como melhor atriz do município em 1998. Ler é a sua grande paixão. Cita como livros que mais a marcaram, Clarissa de Érico Veríssimo, Dom Casmurro de Machado de Assis e O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint Exupery. Está relendo Monteiro Lobato e fala sobre a sua obra com verdadeiro entusiasmo. Gosta muito de escrever e já participou de vários concursos literários tendo sido premiada algumas vezes. 97 Anexo 2 A História de Vida de Maria das Graças: ser professora como conseqüência natural da formação escolar Maria das Graças nasceu na zona rural onde foi criada e onde, até hoje, mora a sua família. O seu pai era um abastado fazendeiro, dono de grande extensão de terras. A mãe sempre cuidou das lidas domésticas e teve 10 filhos, sendo 8 mulheres e 2 homens. Os dois filhos varões só fizeram o curso primário e como era natural na época (década de 40), “herdaram as lidas do pai, ao qual ajudaram desde pequenos. Às filhas foi destinado se tornarem professoras mesmo tendo que se afastar da família. Assim, Maria das Graças e sua irmãs foram estudar em Belo Horizonte, em um grande colégio particular, dirigido por freiras, em regime de internato. Das 8 irmãs somente duas não se tornaram professoras “porque se casaram antes de formar”. A irmã mais velha se tornou, uma vez formada, professora do próprio colégio interno que facilitou um pouco a vida das irmãs mais novas, inclusive a de Maria das Graças. Os relatos sobre o Colégio falam de uma escola extremamente rígida e austera, onde os castigos eram freqüentes e severos. Depois de formada Maria das Graças voltou para a fazenda e não queria ser professora. Contudo, em 1964, tendo sido convidada para lecionar em uma escola dirigida por freiras e anexa a um orfanato (o mesmo onde Helena morou), o pai a obrigou a aceitar o convite. Ela veio para a cidade e afirma que veio triste porque não queria sair da roça. A sua paixão pelo campo, pela vida do campo, é patente. Até hoje ela se divide entre a cidade e a fazenda, para onde vai todos os finais de semana. Não participa de nenhuma atividade social na cidade. No povoado ao qual pertence a fazenda ela participa das festas religiosas, barraquinhas, leilões. A sua rotina é extremamente metódica. Assim como não freqüenta clubes, nunca foi ao 98 cinema e nunca viajou. Não pratica esportes, mas na fazenda tem uma vida muito ativa, cuidando das lidas naturais da roça: cuidados com o jardim, com a horta, com o pomar, com o estábulo, com os animais domésticos, com a produção de queijo e doces e com o preparo de carnes. Gosta muito da música sertaneja, “aquela bem da raiz”. Nos relatos de Maria das Graças percebe-se os esquemas de percepção e de apreciação oriundos da influência do capital cultural transmitido pela família. Em seus relatos aparece todo um sistema de valores implícitos e interiorizados que, definem as suas atitudes e gostos. Mesmo na literatura apareceu sua ligação com o campo. Ela cita “Chico Bento” e o “Sítio do Pica-Pau Amarelo”. “Gosto de ler, principalmente livros infantis”. Monteiro Lobato é um autor do qual não se esquece. Sobre conferências, palestras e outras atividades ligadas à profissão ela diz: “eu não sou muito de ir não. Eu sou muito apegada ao serviço de casa, eu gosto de tudo arrumado. Então, eu não gosto de sair”. A professora fala que embora tenha começado a sua carreira quase obrigada pelo pai, hoje, ela não quer sair mais. O magistério se tornou a outra grande paixão de sua vida. Ela dedica todo o seu tempo aos cuidados com a casa e com os sobrinhos que ela criou e cria ainda, filhos dos irmãos que continuam morando na roça, e aos trabalhos da escola. “Sabe, se eu dou uma prova hoje, enquanto eu não corrijo aquela prova, eu não saio e não faço mais nada”. A sua prioridade é sempre a escola que se tornou, depois da roça, a outra grande paixão de sua vida.. 99 Anexo 3 Roteiro de Entrevista de História Oral de Vida Entrevistador: Maria José de Morais Pereira 1. Relatos Sobre as Práticas Sócio-Culturais • Tempo dedicado à família. • Conciliação entre as atividades docentes e as tarefas domésticas. • Freqüência à clubes. • Última viagem (motivo, destino e época). • Prática de esportes: Qual. Quantas horas semanais • Gênero de música. Último disco comprado. • Cinema: qual o último filme e quando o viu. • Filmes em vídeo: freqüência e tipo de filme. • Leitura o Qual o último livro lido. Quando. o Três melhores livros lidos. o Assinatura de revistas e jornais. Qual ou quais. o Qual a revista predileta. o Programa de televisão preferido. o Programa de rádio. Qual. Freqüência de escuta. • Última vez que foi a uma conferência, palestra ou debate. • Última vez que foi ao teatro, exposição, museu ou galeria de arte. • Participação em Movimentos, Associações, ou Grupos (popular, sindical, político, religioso, científico ou cultural). 100 2. Relatos Sobre a Carreira Docente • Forma de entrada na carreira docente. • Melhores momentos da carreira. Piores Momentos. Por quê? Especifique: início, meio, final. Se tivesse de começar agora faria novamente opção pela carreira • docente. (Explique) • De que mais gosta e de que menos gosta da carreira docente. • Decepções com a carreira. Por quê? • Realizações com a carreira. Por quê? • Conflitos que marcaram a trajetória. • Dificuldades encontradas: como foram contornadas. • Objetivo profissional no início da carreira e no momento atual. • Maior desafio enfrentado na vida profissional. • Lembrança da primeira aula ou do primeiro dia de atividade docente. • Fatos que definiram ou modificaram a conduta em sala de aula. • Relação entre competência, anos de experiência e séries assumidas. 3. Relatos sobre as experiências frente à questão da disciplina/indisciplina A) Na vida familiar ♦ Anterior • Como vê a figura do pai em relação ao disciplinamento? • E a figura da mãe? • Quem impunha as regras da casa? • Quais eram as regras impostas? • Havia aplicação de castigos? Quais? • Qual o fato relacionado a castigos de que se lembra ou que mais marcou no disciplinamento familiar? • Alguém da família infringia mais as regras? (Quem? Que regras eram infringidas e quais eram as conseqüências). 101 • Quando criança, quais eram seus sentimentos com relação à disciplina, às normas, às regras e à autoridade? • Esses sentimentos mudaram? Como, quando e por que? ♦ • Hoje Os papéis do pai e da mãe mudaram frente à questão do disciplinamento • Como vê a questão das regras, hoje? • Há aplicação de castigos? Quais? O que mudou? • Que fatos marcantes com relação à disciplina e ao disciplinamento vivencia hoje, na vida familiar. B) No percurso da qualificação profissional • Experiências positivas e negativas no percurso da qualificação profissional. • Lembranças dos professores. Situações envolvidas, o que mais gostou e o que menos gostou. Por quê? • Aspectos mais significativos e menos significativos da formação profissional. • Fatos relacionados à disciplina/indisciplina de que se recorda. • Como era o professor mais condescente e bonzinho? • Como era o professor mais bravo e rígido? C) na vida profissional 102 • O que é disciplina para você? • O que é ser um bom professor? • O que é ser bom aluno? • O que é aluno indisciplinado? • O que faz o professor ser capaz de manter a disciplina? • A disciplina tem relação com a educação familiar? • Os castigos são necessários para manter a disciplina? Quais você aplica em seus alunos? • Que sentimentos esses castigos provocam você? • Os castigos resolvem o problema da indisciplina? • Qual é a reação do aluno que recebe o castigo? E a dos colegas? • Como vê a figura do diretor em relação ao disciplinamento nos diferentes momentos da carreira? • Quais são as regras da escola e como são criadas e impostas? Houve mudanças ao longo da carreira? Quais? • Quais os tipos de castigos permitidos pela escola ao longo da trajetória? • Maior desafio com a indisciplina na escola (com a própria escola, com as famílias ou com o aluno indisciplinado). • Experiências relativas à disciplina que mais marcaram a sua trajetória profissional. • Lembranças envolvidos. 103 dos alunos indisciplinados e sentimentos Anexo 4 Roteiro de Entrevistas com agentes – diretores, supervisores – que conviveram com as professoras 1. Representação dobre disciplina e disciplinamento na família e na escola. • O que é disciplina • Que é ser bom professor • Que é ser bom aluno • Que é ser aluno disciplinado • O que faz com que o professor seja capaz de manter a disciplina 2. Necessidade de castigos. Por quê? 3. Tipos de castigo que considerava viáveis e tipos que considera absurdos. 4. Maior desafio com a disciplina na escola. 5. Quais eram os castigos permitidos pela escola? 6. As professoras obedeciam as regras da escola? 7. Houve mudanças de comportamento com relação às regras nas trajetórias das professoras? 8. Fatos que marcaram a trajetória das professoras na escola. 9. Dificuldades encontradas no convívio com a professora. 10. Como vê a professora com relação ao disciplinamento. 11. Relação entre a disciplina e desempenho na sala de aula. 12. Diferença (ou não) do tempo em que estudou e hoje. 104 Anexo 5 Roteiro de Entrevistas com agentes – ex-alunos – que conviveram com as professoras 1. Representação sobre disciplina e disciplinamento na família e na escola. • O que é disciplina • Que é ser bom professor • Que é ser bom aluno • Que é ser aluno disciplinado • O que faz com que o professor seja capaz de manter a disciplina 2. Necessidade de castigos. Por que? 3. Tipos de castigo que considerava viáveis e tipos que considera absurdos. 4. Fatos que marcaram a trajetória escolar durante o convívio com as professoras. 5. Dificuldades encontradas no convívio com a professora. 6. Quais as melhores lembranças da professora. 7. Quais as piores lembranças. (Qual sentimento provocado na época e hoje, ao lembrá-los) 8. Lembranças do primeiro dia de aula. 9. Fatos que definiram a conduta na sala de aula. 10. Do que mais gostava e do que menos gostava na sala de aula. 11. Que castigo chegou a receber da professora e por quê? Achou justo o castigo? 12. Reagia aos castigos? 13. Sentimento provocado pelos castigos naquela época e hoje como consegue vê-los. 105 14. Contava sobre o castigo recebidos aos pais. Qual a reação dos pais. 15. Tipo de professora de que mais gostava. E de que menos gostava. 16. 106 Como vê a professora com relação ao disciplinamento. Referências Bibliográficas AFONSO, Almerindo Janela. Notas para o estudo sociológico da (in)disciplina escolar na formação dos professores. Revista Portuguesa de Educação. Universidade do Minho. Vol. 4, nº 1, p. 119-128, 1991 AQUINO, Júlio Groppa. Relação professor-aluno: do pedagógico ao institucional. 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