A mediação da linguagem em Libras e do brincar na psicoterapia com
crianças surdas.
ANAUATE, Carla.
MARANGONI, Simone de Freitas Silva.
RESUMO
O trabalho tem como objetivo discutir a respeito da mediação da linguagem em
Libras e do brincar na psicoterapia com crianças surdas. A pesquisa está
fundamentada na teoria desenvolvida por Vygotsky que refere a um sujeito
socialmente e culturalmente constituído. Trata-se de um estudo de caso de um
menino denominado John de oito anos de idade, que veio encaminhado à
psicoterapia pela escola por apresentar hiperatividade e dificuldade de
aprendizagem e de relacionamento interpessoal. Para análise do estudo de caso
de John, foi selecionado um episódio de uma sessão de psicoterapia,
considerando a relação entre o psicoterapeuta e a criança, o movimento da
sessão, explicitando as observações, sensações e inferências realizadas pela
psicoterapeuta em função da atividade de John, bem como a mediação da língua
de sinas e do brincar por intermédio da psicoterapeuta com o auxílio das técnicas
psicológicas. Este trabalho demonstra que a mediação da língua de sinais e do
brincar pode ocorrer e ser analisada na sessão de psicoterapia com John.
Palavras Chaves: Mediação, Libras, Brincar, Desenvolvimento, Psicoterapia.
2. A MEDIAÇÃO DAS LIBRAS E DO BRINCAR NA PSICOTERAPIA COM
CRIANÇAS SURDAS
Para iniciar a discussão da mediação da língua de sinais e do brincar na
psicoterapia com crianças surdas iremos recorrer a alguns aspectos da teoria
desenvolvida por Vygotsky.
O autor refere que o desenvolvimento da criança ocorre em dois níveis:
interpsicológico e intrapsicológico e através do contato com o mundo das relações
a criança vai internalizando os instrumentos, as ações e as relações que são
apresentados a ela pelos outros passando a desenvolver as funções nervosas
superiores e vai se desenvolvendo como ser social e ativo. Tais instrumentos,
ações e relações sociais são apresentados à criança primeiramente ao nível
interpsicológico, social, para, posteriormente, se constituírem ao nível
intrapsicológico, interno, subjetivo, através do processo de internalização.
Robbins (2005) descreve que
“a internalização é um processo dinâmico e assimétrico de
incorporação dos componentes sociais e mesclando-os com a
alquimia espiritual e o mistério do signo da mediação cultural
consciente.” (Robbins, 2005, p.17)
Para Vygotsky (1995), as relações iniciais dos homens com o meio externo são
mediatas: a criança precisa manipular os objetos, vivenciar as situações e se
relacionar com as pessoas do seu círculo social para poder se apropriar,
internalizar, representar mentalmente os objetos, eventos e relações. Esse
processo de experiência relacional da criança é a mola propulsora para o
desenvolvimento psíquico das funções nervosas superiores.
A criança, à medida que se relaciona com os outros humanos do seu vínculo
social e com a cultura em que está inserida, vai se apropriando das coisas, das
situações do meio externo e vai sendo capaz de construir os signos psicológicos,
ou seja, de representar mentalmente os objetos, os eventos e as relações. Essa
construção mental artificial dos objetos, dos eventos e das relações denominados
como signos, passa a ser mediadora das ações da criança. Os instrumentos
externos ou ferramentas externas, quando internalizados, passam a ser
denominado como signos que vão mediar às ações dos homens no meio social.
A relação da criança com o mundo passa a ser mediada através da representação
mental que tem dos instrumentos do meio externo, das pessoas que a cercam e
da própria concepção de mundo que constrói. O acesso dos homens aos
objetos/eventos/pessoas é sempre mediado pelo mundo simbólico, pelas
representações mentais de que dispõem. A linguagem, como função nervosa
superior, é mediadora que traz em si os conceitos generalizados e os significados
individuais construídos pela cultura humana.
Nesse sentido podemos salientar que a criança surda utiliza a língua de sinais,
denominada Libras, para se comunicar com o mundo das relações e é através
dela que constrói os signos, significados e sentidos do mundo. A Libras possui
estrutura gramatical própria e os sinais são formados por meio da combinação de
formas e de movimentos das mãos e de pontos de referência no corpo ou no
espaço. Segundo a legislação vigente, no Brasil, as Libras constitui um sistema
lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas
com deficiência auditiva do Brasil, na qual há uma forma de comunicação e
expressão, de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria.
O uso de instrumentos externos e da linguagem anula o sistema de atividade
organicamente condicionado (função nervosa elementar), assim como o primeiro
emprego de signos indica que a criança já saiu dos limites do sistema orgânico de
atividade para a função nervosa superior. O uso dos signos se inclui na atividade
mediadora, devido ao fato de a criança influir na sua conduta por meio deles. A
função mais biológica, mediata, da criança deixa de estar no primeiro plano para
ser assumida pela função mediada, com o uso dos signos psicológicos artificiais.
A ação da criança no meio externo e a construção dos signos psicológicos
propiciam a construção interna e subjetiva do mundo social e cultural.
A criança, em relação com outros humanos e com os instrumentos externos,
passa a construir os seus sistemas simbólicos, os signos psicológicos que vão
mediar a sua ação no meio externo.
“A aplicação de meios auxiliares e o passo da atividade
mediadora reconstrói a raiz de toda operação psíquica, é
semelhante a como a ferramenta modifica a atividade natural dos
órgãos e amplia infinitamente o sistema de atividade das funções
psíquicas superiores. Na estrutura superior, o signo e o modo de
seu emprego é o determinante funcional e o foco de todo o
processo de desenvolvimento.” (Vygotsky, 1995, p. 123)
Nesse sentido, as representações mentais são produtos da internalização e estão
intrinsecamente relacionadas à subjetividade1 do homem, por representarem
mentalmente aquilo que faz sentido2 para eles, ou seja, o que está
intrinsecamente ligado às suas emoções. Cabe ressaltar, que no caso de crianças
surdas, os outros da relação necessitam estabelecer o contato mediado pelo uso
das Libras, para que a criança possa constituir as representações mentais do
mundo exterior de acordo com a sua subjetividade.
O mundo externo da criança está em constante relação dialética com o seu mundo
interno, devido ao processo de internalização que ocorre à medida que a criança
representa mentalmente os objetos, eventos e relações do meio em que está
inserida. A criança é um ser ativo no processo de desenvolvimento à medida que
se interessa, se relaciona e constrói com as coisas, eventos e relações do meio
externo.
Leal (2001) enfatiza que desses movimentos na relação da criança com o outro da
relação emergem cadências regulares que geram um intercâmbio em que se torna
explícito que há um interlocutor que pode completar os atos da criança, ou seja, a
criança pode compreender os seus próprios atos no intercâmbio relacional com o
outro. (p. 8)
As ações que a criança surda realiza no meio social podem ocorrer tanto através
da mediação das Libras como também na atividade do brincar e podem ser
considerados propiciadores do desenvolvimento das funções nervosas superiores,
uma vez que a criança se relaciona com os objetos externos, como mediadores,
na presença de um outro humano, que pode auxiliá-la na construção de
significados e de sentidos dos objetos, eventos e relações.
Leal (2001) enfatiza que para uma atividade ser considerada brincar deve-se levar
em conta “que o controle, a motivação e a realidade sejam, de algum modo,
estabelecidos pelo próprio sujeito que brinca” (p. 14), para possibilitar que a
criança seja um ser ativo no meio externo. Ressalta que o verdadeiro brincar
ocorre quando a criança, na interação com um outro, tem a condição de escolher
o que e como vai fazer no seguimento da própria imaginação.
O brincar propicia também a construção da autonomia e da consciência de que se
pode construir algo ou alguma ação de acordo com a sua necessidade e motivo3.
1
Segundo JUNQURIEA, W. (2006), A subjetividade humana é a instância que contempla, constitui, organiza
e dá organicidade aos sentidos que os homens produzem ao longo da vida e tem uma singularidade e que se
diferencia da realidade social. A subjetividade é a articulação dos sentidos construídos nas relações socais do
homem com o meio externo.
(Contribuição realizada no exame de qualificação)
2
JUNQURIEA,W. (2006) refere que Sentido é a construção interna, particular e individual da realidade
externa, social e, através do processo de internalização dos objetos, eventos e relações que os sujeitos
constroem o seu mundo interno, a sua subjetividade. (Contribuição realizada no exame de qualificação)
3
Leontiev destaca as categorias necessidade e motivo como a mola propulsora o desenvolvimento psicológico
do sujeito. A categoria necessidade pode ser descrita como uma mobilização interna que pode não direcionar
inicialmente o sujeito para uma ação específica, mas que auxilia na construção de significado dessa ação
como algo que pode satisfazer a sua necessidade, se configurando num motivo. O autor destaca que para
compreender o processo do desenvolvimento psíquico humano é necessário perceber qual a sua necessidade
interna, o que o está mobilizando para uma atividade no meio social e como o sujeito está construindo
significado capaz de satisfazê-lo. Portanto a ação do brincar da criança pode se configurar em atividade ligada
à sua necessidade e ao seu motivo.
A criança, em contato com os objetos, internaliza os significados dos mesmos e,
em contato com o outro da relação, tem a possibilidade de internalizar os
significados da própria relação, pois é nela que um exerce sobre o outro uma
influência que gera uma construção mútua e propicia um contínuo movimento de
desafio, transformação e desenvolvimento.
O brincar da criança possibilita a construção dos signos psicológicos, a
apropriação do mundo externo e a construção da representação interna do meio
externo. Num processo dialético, são as representações internas que fazem a
criança brincar e, brincando, esta constitui mais e mais a construção de sentido do
mundo. O brincar da criança propicia a construção subjetiva dos signos e dos
significados das coisas, eventos e relações humanas à medida que internaliza e
se apropria do significado dos objetos, coisas, eventos e relações e constrói
sentido das mesmas. A ação do brincar constrói a atividade mediada da criança e
é uma atividade no meio social que representa os objetos, eventos e relações
construídos e transformados num mundo externo internalizado.
Leal (2001) destaca que nessa atividade do brincar da criança podemos observar
o “brincar com olhares, sorrisos, sons, gestos, com o corpo e com as coisas de
que o corpo se serve”. (p.6) A criança, em relação com os outros humanos, com o
seu próprio corpo e com os objetos, se apropria do mundo e se constitui como
sujeito ativo no meio social.
Vygotsky (1995) refere que durante o brincar a criança substitui os signos dos
objetos por outros signos e esses se convertem em outros objetos. Para o autor, o
importante no brincar é utilizar funcionalmente os objetos com a possibilidade de
realizar a atividade com a ajuda do gesto representativo.
No brincar, a criança pode realizar tarefas para as quais na realidade não tem
habilidade física e psíquica, como, por exemplo, dirigir um carro. Um objeto
circular pode se converter na direção do carro e a criança pode dirigi-lo e
representar mentalmente a ação de dirigir, a atitude do motorista e o próprio
objeto, o carro. Um pedaço de pano ou de madeira pode se converter em um bebê
e a criança faz, no brincar, os mesmos gestos que representam o cuidado e a
nutrição dos outros com os bebês.
“É o próprio movimento da criança, seu próprio gesto, os que
atribuem a função de signo ao objeto correspondente, o que lhe
confere sentido. Toda a atividade simbólica representacional está
cheia desses gestos indicadores”.(Vygotsky, 1995, p. 188)
Vygotsky (1995) descreve “que é só nele (brincar) que radica a chave da
explicação de toda a função simbólica” das brincadeiras infantis e pode ser
entendido como um “sistema de linguagem muito complexo que mediante gestos
informa e assinala o significado dos diversos brinquedos”. (p. 187-188)
Vygotsky (2002) afirma que o brincar da criança é uma atividade que envolve a
imaginação. A criança brinca de ser alguém ou de fazer algo no momento em que
está construindo o significado e o sentido do objeto, da ação e da relação e, ao
brincar, constrói cada vez mais esses significados e sentidos. (p. 126)
Para Vygotsky (1995), inicialmente, a criança brinca com os objetos atenta às
ações e aos gestos; posteriormente, a criança se atém aos significados atribuídos
aos objetos, e passa a falar antes de iniciar a brincadeira, organizando a
brincadeira, o pensamento e a ação.
Leal (2001) enfatiza que, no brincar da criança, “os elementos dispersos da
experiência encontrarão lugar e contexto para se poderem diferenciar, organizar e
receber rótulos simbólicos que serão fonte de linguagem”. (p.1) A criança em
relação com um outro é capaz de significar, organizar e construir o mundo
simbólico e, no brincar com o outro, a criança se apropria dessas relações.
Vygotsky (2002) salienta que, à medida que a criança desenvolve as funções
nervosas superiores, pode-se observar um movimento para a realização de um
propósito, para um objetivo e, assim, a criança vai construindo as regras dos jogos
e se interessando pelos jogos de regras.
O autor descreve que
“no final do desenvolvimento surgem as regras e, quanto mais
rígidas elas são, maior a exigência de atenção da criança, maior a
regulação da atividade, mais tenso e mais agudo torna-se o
brincar.” (Vygotsky, 2002, p. 136)
O processo de construção e transformação, na psicoterapia, ocorre na relação da
criança com o psicoterapeuta, com os objetos disponibilizados na caixa de ludo e
na palavra de todos os envolvidos nesse processo. Essa relação pode ser
mediada pela palavra, pelas técnicas do psicoterapeuta, pelos brinquedos e pela
atividade do brincar.
A psicoterapia permite analisar, mediar e intervir na maneira como a criança em
relação com o seu mundo externo e interno se apropria dos significados dos
objetos, eventos e relações do mundo social e constrói o sentido dos mesmos.
Pode ocorrer pela linguagem de ambos da relação, pelos brinquedos
disponibilizados e nos momentos do brincar, pois, brincando, a criança se apropria
dos objetos do meio externo e das relações interpessoais do meio social.
O brincar em psicoterapia tem a conotação de construção da objetividade e da
subjetividade, da socialização e da individualização, no sentido de construção
interna de um mundo relacional, social.
Essa relação pode se estabelecer tanto nas relações familiares e sociais, uma vez
que a criança está cada vez mais exposta ao círculo social que a rodeia, bem
como na psicoterapia, que pode ser também um espaço de construção de novos
significados e sentidos do mundo social.
A psicoterapia pode servir para propiciar à criança, através da mediação a
construção dos sentidos dos objetos, eventos e relações sociais, bem como
propiciar o desenvolvimento das funções nervosas superiores.
A ação mediadora nos momentos de ludo4 com crianças surdas não constitui uma
atividade espontânea, nem aleatória, uma vez que a intenção é favorecer o
desenvolvimento psicológico da criança. As ações da psicoterapeuta são
4
A caixa de ludo é composta por: massa de modelar, lápis de cor, folhas brancas, peças de madeira de
diversos tamanhos e cores, boneco de encaixe, livro de pano, lenço de pano, martelo, arma de fogo, soldados,
animais selvagens e domésticos, carros de polícia, ambulância, táxi, família lúdica, panelas e utensílios de
cozinha, estetoscópio, seringa. Os instrumentos que constituem a caixa de ludo foram originalmente sugeridos
pela Professora Maria Rita Mendes Leal na Clínica Escola do Departamento de Psicologia da Universidade de
Lisboa e adotados pelo IPAF.
norteadas pelas técnicas psicológicas propostas por Leal (2004) e ocorrem
durante todos os momentos da sessão.
As técnicas utilizadas foram:
- marcação: utilizada para marcar o diálogo num movimento de vai e vem, com o
intuito de não deixar no vazio a palavra da criança. Os diálogos sociais são
marcados pelas pessoas implicadas na conversa, num movimento de agora-tu,
agora-eu, com o objetivo de não deixar a fala da criança sem resposta. Essa ação
sustenta o diálogo e marca a presença do psicoterapeuta na relação com a
criança;
- repetição: utilizada para a criança perceber a sua fala através da palavra do
outro;
- pôr verbo: quando o psicoterapeuta descreve a ação da criança no momento em
que a linguagem verbal não está presente. A ação de descrever a atitude do outro
possibilita à criança perceber, através da fala do outro, como está agindo no meio
externo. O objetivo dessa técnica é possibilitar à criança se perceber agindo no
meio externo, como um ser ativo;
- eco emocional: o psicoterapeuta descreve a emoção que está permeando a
relação naquele momento. O intuito é verbalizar e deixar claros os conteúdos
emocionais que permeiam as relações interpessoais. A possibilidade de
experimentar, na atividade principal, as emoções que são sentidas, possibilita à
criança reconhecer e nomear as suas próprias emoções;
- re-expressão: o psicoterapeuta reconstrói e organiza a fala da criança. Essa
técnica possibilita ao outro da relação organizar a fala e a ação da criança para
que a mesma possa construir sentido de suas ações e organizá-las.
Nesse trabalho iremos recorrer ao estudo de caso para melhor ilustrar um
atendimento em psicoterapia com crianças surdas, utilizando as Libras e o brincar
como mediadores do desenvolvimento da criança surda.
De acordo com Martins (2006), o estudo de caso fornece a busca de condições
para “explicar, demonstrar uma teoria específica sobre o caso a partir dos
resultados obtidos” (p.69) e disponibiliza o espaço para as proposições, teses,
explicações teóricas formuladas a partir de um conhecimento que se tem do
fenômeno, do caso e das reflexões do pesquisador.
Recorremos também a Chizzotti (2000) quando refere que o estudo de caso
“é uma caracterização abrangente para designar uma diversidade
de pesquisas que coletam dados de um caso particular ou de
vários casos a fim de organizar um relatório ordenado e crítico de
uma experiência, ou avaliá-la analiticamente, objetivando tomar
decisões a seu respeito ou propor uma ação transformadora (...) o
caso é tomado como unidade significativa do todo e, por isso,
suficiente tanto para fundamentar um julgamento fidedigno quanto
propor uma intervenção.” (p. 102)
No intuito de corroborar a coerência teórica e metodológica proposta por Vygotsky,
utilizando um estudo de caso como método de análise, é necessário analisar o
sujeito em seu processo de mudança, levando em conta os contextos social e
cultural em que está inserido, bem como explicar o processo de mediação da
palavra e do brincar.
A pesquisa foi realizada no consultório da clínica psicológica do IPAF – Instituto de
Psicologia Aplicada e Formação - no contexto em que habitualmente atendemos
os pacientes encaminhados para psicoterapia.
O caso a ser apresentado tem como personagem um menino de oito anos de
idade, denominado João, que veio encaminhado pela escola por apresentar
hiperatividade, dificuldades de aprendizagem e nos relacionamentos
interpessoais.
O ambiente da psicoterapia é o espaço para as dificuldades e facilidades da
criança serem construídas e ressignificadas e as ações do psicoterapeuta devem
propiciar esse espaço de construção durante todo o momento de ludo. Numa
relação segura e confiável, a criança pode se apropriar de novos significados e
construir sentido.
A análise de um episódio da sessão será realizada através do diálogo que
demonstra o movimento no brincar de João. Nessa análise foram realizados:
1. Explicação das observações, sensações e inferências que a psicoterapeuta
realizou em função da atividade de João; (indicados em verde)
2. A mediação no uso das Libras e do brincar da psicoterapeuta, utilizando as
técnicas psicológicas; (indicados em vermelho)
Sessão – 22/08/2007
J. entra na sala e dirige-se à caixa de ludo
Essa atitude demonstra que João está à vontade para ter alguma iniciativa no
meio externo, e ocorre também devido a função da espera da psicoterapeuta.
P. o acompanha em seus movimentos.
A psicoterapeuta usa a técnica da repetição para acompanhar os movimentos de
João e se mostrar disposta em estar em relação com ele.
J. olha para os brinquedos que tem na caixa e os levanta para ver o que tem
embaixo.
A curiosidade de João em explorar o mundo é demonstrada na sessão.
P. o ajuda a levantar a caixa.
A técnica da repetição é usada para acompanhar a iniciativa de João de
exploração do meio externo.
J. pega a massinha e olha para a psicóloga.
João parece convidar a psicoterapeuta a participar da atividade do brincar de
massinha e marcar a relação entre os dois
P. faz OK em LIBRAS.
A presença da psicoterapeuta é usada na técnica da marcação e deixa a iniciativa
da brincadeira para João.
J. abre o pote e começa a fazer bolinhas de massinha.
João parece ter percebido a atitude da psicoterapeuta em estar presente na
relação, mas não interferir na sua iniciativa.
P. senta ao seu lado e realiza a mesma atividade que a criança.
A técnica da repetição é utilizada para proporcionar que ambos permaneçam na
atividade do brincar com a massinha.
J. pega as bolas de massinha e se afasta para um canto da sala e joga para a
psicóloga.
João inicia outra atividade de acordo com a sua necessidade e motivo. Essa
atitude demonstra o quanto está à vontade para iniciar e conduzir a brincadeira.
P. não consegue pegar, pois foi jogado com muita força. A psicóloga pontua para
a criança, em LIBRAS, que a bola foi jogada com muita força e solicita para que
ele jogue mais devagar. A psicóloga joga a bola de volta com força adequada.
A psicoterapeuta acompanha a sua iniciativa e através da focagem mostra atitude
agressiva que João está tendo no brincar.
J. joga novamente com força.
A agressividade permeia a relação dos dois. Parece que João não consegue
medir a sua força na brincadeira.
P. pontua novamente, em LIBRAS, que não conseguiu pegar, pois a bola foi
jogada com muita força e que machuca desta maneira. A psicóloga joga a bola de
volta com força adequada.
O uso da focagem com o eco-emocional são utilizados pela psicoterapeuta para
mostrar a atitude de João em relação a ela e ao brincar.
J. joga a bola com força adequada.
João parece perceber e medir a sua força ao jogar a bola. A relação da
psicoterapeuta com ela está sendo mediada pelo brincar e pela Libra.
P. pega a bola e joga para ele de volta.
A psicoterapeuta utiliza a técnica da repetição para manter a atenção de João no
brincar com a bola com a força adequada para manter a brincadeira.
(Esta brincadeira se repete por alguns minutos)
J. joga a bola fazendo posse de jogador profissional.
João demonstra que além de brincar de acordo com as regras estabelecidas
naquele momento da relação com a psicoterapeuta, acrescenta a imitação dos
jogadores profissionais. Vygotsky enfatiza que a imitação promove a imaginação e
a apropriação dos objetos e dos papéis sociais.
P. pega a bola com posse e devolve a bola fazendo posse também.
A técnica da repetição é usada para que ambos permaneçam na brincadeira e
favoreça que João se aproprie de como se joga a bola, do papel de ser jogador e
da relação estabelecida por ambos.
J. ri e joga de volta fazendo posse.
João demonstra alegria ao ver sua atividade ser repetida pela psicoterapeuta e
continua a mesma atividade.
P. repete o mesmo ato.
A técnica da repetição foi usada para dar continuidade no movimento da atividade
estabelecida por João. O eco-emocional poderia ser utilizado nesse momento para
expressar a alegria que João está exteriorizando.
J. ameaça jogar a bola bem alto.
João demonstra querer alterar as regras estabelecidas. Inferimos que João está
testando o seu limite, os da brincadeira e os da psicoterapeuta.
P. diz, em LIBRAS que não pode jogar a bola na luz estabelecendo um limite.
A técnica da focagem foi usada para re-estabelecer e lembrar João das regras do
jogo.
J. joga a bola alta, mas não atinge a luz.
João demonstra ainda estar testando os limites.
P. em LIBRAS reafirma que não pode jogar a bola na luz.
A técnica da focagem foi utilizada para delimitar os limites e demonstrar que João
está testando os limites estabelecidos.
J. demonstra querer arremessar a bola para o alto e arremessa adequadamente.
Inferimos que João compreendeu as regras estabelecidas e o cuidado que deverá
ter no brincar.
P. fala, em LIBRAS, que faltam 5 minutos para acabar a sessão.
A psicoterapeuta delimita o tempo que resta para a sessão. Essa atitude promove
a compreensão do espaço e do tempo da relação.
J. diz que compreende acenando a cabeça e continua jogando a bola, desta vez
duas bolas, uma de cada vez tornando o jogo mais ágil.
João parece ter compreendido que a sessão estava perto do seu término, e
permanece na atividade.
P. pega as bolas e as devolve.
A psicoterapeuta utiliza a técnica da repetição para acompanhar a atividade de
João de acordo com a sua necessidade e motivo.
Quando faltava um minuto a psicóloga solicita, em LIBRAS, que J. guarde o
material que ele utilizou na caixa de ludo.
O término da sessão e a organização do espaço é explicitada pelas Libras
utilizada pela psicoterapeuta. A linguagem serve para organizar o pensamento e a
atividade.
J. continua jogando a bola.
João demonstra não obedecer aos limites estabelecidos pela psicoterapeuta para
o encerramento da sessão.
P. dirige-se à caixa de ludo e chamo-o.
A psicoterapeuta utiliza a linguagem em Libras para chamar a atenção de João em
relação à necessidade de guardar os brinquedos utilizados por eles e de organizar
a sala.
J. vem em direção da caixa de ludo para guardar as bolinhas de massinha no
pote. Questiona à psicóloga, em LIBRAS, se caiu uma embaixo do sofá.
João demonstra a responsabilidade em guardar todos os materiais que foram
utilizados.
P. responde que sim acenando a cabeça.
A psicoterapeuta utiliza a marcação para responder a questão de João e
acompanhar a sua iniciativa.
J. pega a bola embaixo do sofá e a coloca junto com as outras no pote de
massinha e fecha a caixa de ludo.
O fato de João guardar os materiais utilizados possibilita a representação do
término da sessão em psicoterapia e a responsabilidade de deixar o espaço
arrumado para o próximo que usará a sala.
P. o acompanha até a sua mãe na sala de espera e se despede de J. acenando a
mão.
Análise da Sessão
Neste episódio da sessão pudemos salientar que a atividade no brincar de João
propiciou a autonomia e a consciência de que ele podia construir algo ou alguma
ação de acordo com a sua necessidade. Ele pôde internalizar os significados dos
objetos e o significado da própria relação estabelecida com a psicoterapeuta
naquele momento, pois foi nessa relação que um exerceu sobre o outro a
influência que gerou a construção mútua e propiciou um contínuo movimento de
construção, transformação e desenvolvimento.
A atitude da psicoterapeuta nessa relação com João foi de demonstrar a sua
presença e atenção estáveis, organizar e direcionar ao nível interpsicológico para
que ele pudesse constituir a organização da atividade ao nível intrapsicológico. A
psicoterapeuta acompanhou o movimento estabelecido por ele na sessão.
João pareceu decidir a brincadeira e quem poderia participar dela. A iniciativa e o
poder de decisão estavam explícitos em sua atividade, demonstrando, assim, ser
um ser ativo na relação.
De acordo com Leal (2001), a criança em atividade de brincar com outro humano
se apropria do mundo e se constitui como um sujeito ativo no meio social. A
atuação da psicoterapeuta foi mediar através do brincar e da Libras a atividade de
João.
A linguagem em Libras foi a mediação principal da brincadeira e demonstrou as
ações e gestos necessários para a execução da mesma. A relação partilhada por
ambos facilitou ao João se apropriar e construir significados e sentidos dos limites
estabelecidos pelos outros e pelo meio externo.
Refiro ao que Quintino Aires (2005) salientou sobre que a relação psicoterapêutica
facilita e/ou promove os processos de formação partilhada e o registro individual
de significados e sentidos apontados e nomeados por ambos os envolvidos na
relação.
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