UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
Maria Beatriz de Souza Rangel
HISTERIA E FEMINILIDADE
Rio de Janeiro
2008
Maria Beatriz de Souza Rangel
HISTERIA E FEMINILIDADE
Dissertação apresentada ao Mestrado
Profissional em Psicanálise, Saúde e
Sociedade da Universidade Veiga de
Almeida como requisito para obtenção do
Título de Mestre em Psicanálise. Área de
concentração: Psicanálise e Saúde. Linha
de pesquisa: Prática Psicanalítica.
Orientadora: Gloria Sadala
Rio de Janeiro
2008
UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
SISTEMA DE BIBLIOTECAS
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã
20271-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 2574-8845 Fax.: (21) 2574-8891
FICHA CATALOGRÁFICA
R196h
Rangel, Maria Beatriz de Souza
2008
Histeria e feminilidade / Maria Beatriz de Souza Rangel,
102p. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida,
Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio
de Janeiro, 2008.
Orientação: Glória Sadala
1. Psicanálise. 2. Histeria. 3. Feminilidade. 4. Mulheres e
Psicanálise. I. Sadala, Glória. II. Universidade Veiga
de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise,
Saúde e Sociedade. III. Título.
CDD – 150.195
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Setorial Tijucal/UVA
Maria Beatriz de Souza Rangel
HISTERIA E FEMINILIDADE
Dissertação apresentada ao Mestrado
Profissional em Psicanálise, Saúde e
Sociedade da Universidade Veiga de
Almeida como requisito para obtenção do
Título de Mestre em Psicanálise. Área de
concentração: Psicanálise e Saúde. Linha
de pesquisa: Prática Psicanalítica.
Aprovada em 20 de Outubro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Gloria Sadala (Doutora/UFRJ) - orientadora
_______________________________________________________________
Maria Anita Carneiro Ribeiro (Pós-doutora/PUC-Rio) - UVA
_______________________________________________________________
Malvine Zalcberg (Doutora/PUC-Rio) - UERJ
Aos meus pais, minhas irmãs e meus sobrinhos, pelos anos de incentivo
e amor.
À Glória Sadala, por supervisionar a minha prática clínica e orientar este
trabalho aqui apresentado, sempre com tanto cuidado.
À minha analista Sara Leibovici.
Aos professores neste curso: Maria Anita Carneiro Ribeiro, Vera Pollo
Flores e Antonio Quinet pelos ensinamentos.
Às companheiras de estudo neste Mestrado.
Aos amigos e amigas, que tanto me incentivaram.
E especialmente, às minhas pacientes mulheres, que sem elas este
trabalho não seria realizado.
RESUMO
Instigada pela prática clínica com mulheres histéricas em meu
consultório particular, desenvolvo esta pesquisa que pretende investigar
feminilidade e histeria. Segundo Freud, há um mistério que circunda a mulher,
expresso através da pergunta “O que quer uma mulher?”.
São muitas as questões que se colocam frente ao enigma da
feminilidade e, dentre elas, destacamos aquelas relacionadas às dificuldades
da mulher histérica em seu acesso à feminilidade. Nesta pesquisa,
privilegiamos as formulações freudianas e lacanianas a respeito da sexualidade
feminina e da histeria.
Concluímos que a histeria é uma resistência à posição feminina, posição
esta na qual a mulher suporta ser objeto, reconhecendo a castração. A
histérica se furta deste lugar, pois não suporta a sua castração. Por isso ela
aponta no Outro a castração.
Palavras-chave: feminilidade, histeria, psicanálise.
ABSTRACT
The practice with hysterical women in my office has led me to develop
this research so as to investigate femininity and hysteria. According to Freud,
there is a mystery that surrounds women, as he pointed out thorough the
question: "What does a woman want?”. In order to carry on with this research
we have decided to follow Freud’s and Lacan’s theories as regards the feminine
sexuality and hysteria.
We know that there are many questions which are posed before the
enigma of femininity, especially the ones concerning the difficulties hysterical
women have in dealing with their own access to femininity itself.
That being so, we have come to the conclusion that hysteria is a
resistance to the feminine position once this would mean that the woman should
be able to bear ‘to be’ the object, and, consequently, should also be able to
recognize her own castration. However, the hysterical woman does not bear
such a position once she cannot bear her own castration and that is why she
denounces it in the Other.
Keywords: femininity, hysteria, psychoanalysis
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO, p. 9
2. CAMINHOS DA FEMINILIDADE, p. 13
2.1 O QUE FREUD NOS DIZ SOBRE A FEMINILIDADE?, p. 13
2.2 A FEMINILIDADE NO ENSINO LACANIANO, p. 26
2.2.1 SOBRE O GOZO DA MULHER, p. 32
2.3 A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO MÃE-FILHA PARA A MULHER, p. 34
3. A MULHER E SUAS MÁSCARAS, p. 43
3.1 UMA BREVE PASSAGEM PELAS CONTRIBUIÇÕES DE ALGUNS AUTORES AO
DESENVOLVIMENTO SEXUAL DA MULHER NOS ANOS 20, p. 43
3.2 A MASCARADA FEMININA, p. 49
3.3 A FALTA DO SIGNIFICANTE “FALA” NA CLÍNICA DA MULHER, p. 55
4. HISTERIA, p. 58
4.1 UMA ABORDAGEM HISTÓRICA: ANTECEDENTES DA PSICANÁLISE, p. 58
4.1.1 DE CHARCOT A FREUD, p. 61
4.2 NASCEDOURO DA PSICANÁLISE: FREUD E SEUS ESTUDOS SOBRE A
HISTERIA, p. 73
4.3 COM LACAN, p. 76
5. HISTERIA E FEMINILIDADE, p. 80
5.1 CLÍNICA DIFERENCIAL: A HISTÉRICA E A MULHER, p. 80
5.1.1 A PSICANÁLISE, O INCONSCIENTE, A LINGUAGEM E O SONHO, p. 80
5.1.2 A BELA AÇOUGUEIRA, p. 86
5.1.3 POSIÇÃO HISTÉRICA E POSIÇÃO FEMININA, p. 89
5.2 POR FIM... O CASO DORA, p. 93
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, p. 101
APÊNDICE, p. 106
1. INTRODUÇÃO
O interesse sobre o assunto a ser trabalhado no Mestrado Profissional
em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida surgiu
da prática clínica exercida especialmente com mulheres e também dos estudos
teóricos realizados na graduação, na Especialização e nas Formações Clínicas
do Campo Lacaniano - Rio.
O tema a ser pesquisado, Histeria e Feminilidade, teve seu início no
Curso de Especialização em Psicanálise da Universidade Santa Úrsula,
quando foi desenvolvido como trabalho final: A relação mãe e filha e suas
vicissitudes.
Nessa época, chamou atenção no discurso de pacientes algo em
comum: a presença, a princípio velada, da mãe e uma hostilidade direcionada
a esta. Queixas relacionadas aos maridos, namorados, pai, amantes, colegas,
sogras, encobriam, de uma forma geral, resquícios da relação com a mãe.
Cada vez mais ficava clara a importância de se investigar a relação primária
dessas pacientes com a figura materna.
O que é ser uma mulher? Essa é a questão sobre a feminilidade, que
representa o mistério que circunda a mulher. A mulher busca, através do olhar
de um homem, da relação com a mãe e as outras mulheres, a chave do
enigma.
Em suas queixas encontram-se sentimentos de inferioridade e de
injustiça. A necessidade de ser amada aparece como conseqüência de seu
sofrimento. Daí resultam suas indagações: O que é ser mulher para um
homem? O que é uma mulher na fantasia de um homem? De um modo geral, a
mulher busca no parceiro algo que preencha a sua falta, o seu vazio.
Muitas vezes, a busca da mulher pela análise ocorre devido ao fracasso
em uma relação amorosa. Sua angústia é de se perder, de não ser amada. Sua
infinita demanda de amor existe com o objetivo de sanar o desamparo, a falta
de algo que a represente. Cada mulher deve, portanto, encontrar uma saída
para a problemática da falta de um significante do sexo feminino. Isso constitui
a dor de existir própria da mulher.
Ao criar a psicanálise, Freud dá lugar à fala de mulheres que
denunciavam algo além da sintomatologia orgânica. Ele aprende com as
histéricas e percebe que suas queixas representam no corpo aquilo que é
impossível de dizer.
Durante seu percurso, Freud percebe que todas as mulheres possuem
uma queixa em comum, um ponto de apoio que as permita reconhecer seus
desejos: o que é uma mulher? Ele se cala diante da tarefa de responder essa
questão. A feminilidade é definida como uma conquista a ser realizada pela
menina: tornar–se mulher. Eis o cerne da questão freudiana sobre a
feminilidade. Esta é vista por Freud como um enigma. Ele se refere à mulher
como um continente negro e numa aproximação do feminino com a poesia,
deposita nos poetas a esperança de saber mais a respeito da mulher.
Freud, entre suas descobertas, afirma, em 1932, que o vínculo inicial da
menina com a mãe (relação pré–edípica) está especialmente relacionada à
etiologia da histeria.
Nesse mesmo texto Freud tenta responder o que ele chama de “enigma
da mulher”. Já Lacan, nos anos 70, chama esse enigma de “enigma do gozo
feminino”.
Freud aborda em 1932 de forma indireta a questão do gozo. Sua
hipótese é a de que a questão feminina passa pelo falo. Entretanto, Lacan
pensa que a mulher tem algo mais para além do falo: um gozo enigmático. Não
tendo o falo, a mulher se faz de falo e se oferece para ser amada por um
homem.
Para Freud, a castração é um obstáculo com o qual a mulher se depara.
Para Lacan a castração aponta para um mais além de si mesma.
Toda a obra freudiana é atravessada pelo mistério do desejo feminino.
Freud, ao fazer uma equivalência entre tornar–se mulher e tornar–se mãe,
interrompe sua elaboração teórica a respeito da feminilidade. O ensino de
Lacan vem sugerir um novo modo de abordar a questão do desejo feminino. O
desejo feminino não é obturado pelo desejo de filho como no texto freudiano.
Lacan
possibilita
ampliar
a
questão
da
sexualidade
feminina,
trabalhando a partir da dialética do amor, do desejo e do gozo.
A histérica provoca o desejo no Outro para sustentar seu desejo
insatisfeito, recusa para manter-se em falta, como veremos no caso da Bela
Açougueira. Ela cria um desejo não realizado pedindo a seu marido que a prive
daquilo que mais gosta: o caviar, seu prato predileto. A inteligente paciente
desafia a teoria de Freud de que o sonho é a realização de desejo ao afirmar
que seus desejos não foram realizados. A mulher histérica procura um mestre
que queira saber sobre seu mistério, mas, acaba por castrar o mestre de seu
saber mostrando-o impotente para dar conta dela. Colocar-se como objeto de
desejo na fantasia de um homem lhe é difícil. Ela se furta deste lugar de objeto,
não tolera a posição feminina.
Com este estudo pretende-se investigar, especialmente, a histeria e o
caminho da feminilidade. Supõe-se uma peculiaridade na neurose histérica no
caminho em direção à feminilidade. Sugere-se aqui algumas questões: Como
podemos articular a estratégia da neurose histérica frente ao desejo com a
recusa da feminilidade? O que provoca a dificuldade de acesso à feminilidade
na histeria? Por que a histeria presta-se a confusão com a feminilidade?
Escolhemos, então, estudar em Freud e Lacan suas contribuições sobre
a feminilidade, e pensar a questão da neurose histérica colocada por Freud
como uma das saídas frente à castração.
A relevância desta pesquisa consiste na possibilidade de fornecer
subsídios para profissionais que trabalhem com mulheres na área da
ginecologia, obstetrícia, psicologia, psicanálise, entre outros. Com o resultado
deste trabalho pretendemos contribuir para elaboração de Programas dirigidos
à mulher em instituições, postos de saúde e clínicas, além de permitir que a
prática clínica psicanalítica com mulheres histéricas se desenvolva. Propõe-se
também a criação de um curso para psicólogos e médicos onde trabalharemos
a clínica diferencial. O objetivo deste é esclarecer a confusão clínica
concernida à histeria expondo o que é da ordem da neurose histérica e o que é
da ordem da mulher.
2. CAMINHOS DA FEMINILIDADE
2.1 O QUE FREUD NOS DIZ SOBRE A FEMINILIDADE?
Através da história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da
feminilidade.
(FREUD, (1933[1932]), 1996, p. 114)
Falar em feminilidade é falar de uma conquista realizada pela menina,
de um tornar–se mulher, visto que ela, menina, não nasce como tal. É preciso
percorrer um caminho para que possa escolher ou não o caminho da
feminilidade. Veremos que Freud credita à mulher uma natureza pulsional
passiva que encontraria na maternidade a melhor solução para a inveja do
pênis.
O que é a mulher? Essa questão se coloca para todo sujeito, porque
todos, um dia, se defrontaram com uma mulher e seu desejo. Portanto, para a
clínica psicanalítica, o tema da feminilidade é da maior importância,
impulsionando–nos a efetuar uma investigação teórica.
Acompanhando a evolução dos fundamentos de Freud sobre a
sexualidade, assim como a construção do conceito do complexo de Édipo na
obra freudiana, verificamos, simultaneamente, as sucessivas aproximações de
Freud a respeito da feminilidade.
No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud, na
segunda parte deste trabalho intitulado a sexualidade infantil, aborda o descaso
para com a sexualidade da criança. As atividades sexuais precoces em
crianças pequenas são citadas por outros autores, segundo Freud, como
fazendo parte de processos excepcionais; não há o reconhecimento da pulsão
sexual na infância. Freud, a partir de suas investigações nos adultos faz
afirmações sobre as manifestações sexuais da infância. A sexualidade não
começa na puberdade, mas sim é despertada muito cedo após o nascimento.
Ele destaca a idéia de uma perversidade polimorfa da criança, instituída na
própria base da sexualidade “dita” normal. A sexualidade da criança é desta
maneira necessariamente perversa. A mesma disposição polimorfa encontrada
na criança é também vista nas prostitutas no exercício de sua profissão.
(FREUD, (1905), 1996, p. 180).
Na reflexão freudiana de 1905: “[...] a sexualidade perversa é, [...],
menos uma marginalização do processo sexual que o próprio fundamento da
sexualidade
normal
como
disposição
inevitável
no
desenvolvimento
psicossexual de todo sujeito.” (KAUFMANN, 1996, p. 416).
A criança quando pequena é desprovida de vergonha, asco e possui
satisfação em desnudar seu corpo, dando ênfase às partes sexuais. Há a
curiosidade de ver a genitália de outras pessoas. As crianças atraídas,
geralmente pela masturbação, costumam desenvolver um forte interesse pelos
genitais de seus colegas.
Em 1908, Freud escreve sobre as teorias sexuais infantis. A primeira
delas surge do não conhecimento das diferenças entre os sexos. A criança
pequena não faz uma articulação direta entre diferença sexual anatômica e
gênero. A todos, incluindo as mulheres, é atribuído a posse de um pênis.
Uma outra teoria gira em torno do nascimento, a origem dos bebês. A
ignorância da existência da vagina permite que a criança acredite que se o
bebê se desenvolve no corpo da mãe, ele só pode ser retirado através da
passagem anal. Ele será expelido como excremento em uma evacuação.
A terceira das teorias sexuais surge quando a criança testemunha a
relação sexual entre os pais. Ela encara a relação sexual como um ato violento
imposto pelo participante mais forte (o pai) ao mais fraco (a mãe), adotando o
que poderia chamar de uma concepção sádica do coito. Segundo Freud, se a
criança se deparar com as manchas de sangue na cama dos pais, ela irá
considerar o fato como uma confirmação de sua concepção. Isso servirá como
prova de que o pai agrediu a mãe. Diante de tal conexão podemos explicar o
grande horror ao sangue dos neuróticos.
Em 1923, Freud volta a abordar a teoria da sexualidade e escreve que a
principal característica da organização genital infantil está no fato de que, tanto
para o menino quanto para menina, apenas um órgão genital é considerado, e
esse é o masculino. É em torno do modelo masculino que Freud elabora
primeiramente sua teoria da sexualidade. A primazia do falo, e não dos órgãos
genitais, é que está presente.
Dando continuidade a elaboração dessa pesquisa, a criança passa da
crença da universalidade do pênis para a descoberta de que “... o pênis não é
uma possessão, comum a todas as criaturas que a ela se assemelham”.
(FREUD, (1923), 1996, p. 159). A falta é considerada como conseqüência da
castração. Assim, a criança se depara com um trabalho psíquico a ser feito em
relação à castração.
É justamente a teoria da castração que leva Freud a romper com a
simetria entre o Édipo do menino e o da menina. Freud, ao articular o complexo
de Édipo com o de castração, coloca este primeiro na dimensão de conceito
fundador, conceito que organiza o ser humano em torno das diferenças dos
sexos.
Segundo Kaufmann, o complexo de castração possibilita o acesso à
cultura pela submissão e a identificação com o pai portador da lei que regula o
jogo de desejo ao produzir a interiorização da interdição oposta aos dois
desejos edipianos: o incesto materno e o assassinato do pai. (KAUFMANN,
1996, p. 135).
Todo ser humano se encontra diante da tarefa de superar o complexo de
Édipo. Este, como fenômeno central do período sexual da primeira infância,
nos revela sua importância. Podemos considerar a questão do Édipo como um
conceito fundamental da teoria freudiana, como o momento decisivo quando
culmina a sexualidade infantil.
O fato do complexo de Édipo ser construído em torno do conceito de
castração e da figura paterna nos leva ao enigma do feminino. A feminilidade é
vista por Freud como um obstáculo para psicanálise, um continente negro.
Freud, em seu artigo A dissolução do Complexo de Édipo de 1924,
enfatiza o curso diferente tomado pelo desenvolvimento da sexualidade em
meninos e meninas. A partir da observação analítica, Freud inicialmente
focaliza o desenvolvimento sexual do menino e questiona: “Como se realiza o
desenvolvimento correspondente nas meninas?” (FREUD, (1924), 1996, p.
197).
Inicialmente, o clitóris para a menina é visto como um pênis. Porém,
quando ela o compara com o órgão sexual do menino, percebe que “se saiu
mal”, ou seja, sente como uma injustiça feita a ela, justificativa para sua
inferioridade. Seu consolo está na expectativa de um dia ainda possuir um
órgão tão grande quanto o do menino.
A menina não compreende a ausência do pênis como sendo um caráter
sexual. Pensa que anteriormente possuíra um órgão também grande e
perdera–o por castração: “Dá–se assim a diferença essencial de que a menina
aceita a castração como um fato consumado, ao passo que o menino teme a
possibilidade de sua ocorrência”. (FREUD, (1924), 1996, p. 198).
Constatamos que o complexo de castração se dá na menina de maneira
diferente. Há indicação de uma particularidade na constituição do supereu, já
que o temor da castração não é aplicável no caso dela. Além disso, a castração
fica sendo representada na mulher como o medo da perda de amor, ou seja, a
ameaça está no medo de não ser amada. Freud, em 1914, escreve: “Sua
necessidade não se acha na direção de amar, mas de ser amada”. (FREUD,
(1914), 1996, p. 95).
Neste mesmo artigo de 1914 intitulado Sobre o narcisismo: uma
introdução, Freud faz uma comparação entre os sexos masculino e feminino e
indica que entre eles há uma diferença referente ao tipo de escolha objetal,
sublinhando que tal diferença naturalmente não é universal.
Ao homem é reservado o amor objetal do tipo de ligação ou analítico.
Tal escolha está referenciada ao Édipo. O homem exibe uma supervalorização
sexual que tem sua origem no narcisismo original da criança.
Quanto ao sexo feminino, a ele está reservado um tipo de escolha
objetal que deve ser denominado narcisista. As mulheres, especialmente
aquelas que são belas, desenvolvem um certo autocontentamento que faz
compensar as restrições que lhes são impostas pela sociedade. Estas amam
somente a si mesmas. Como já dissemos, elas querem é ser amadas. Nessa
posição recuperam o que de seu narcisismo se escoou pela posição de
amante. “Amar em si, na medida em que envolva anelo e privação, reduz a
auto-estima, ao passo que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o
objeto amado, eleva-a mais uma vez”. (FREUD, (1914), 1996, p. 106).
Segundo Freud, tais mulheres exercem o fascínio sobre os homens, não só por
causa da bela estética, mas também por uma questão de combinação; o sujeito
narcísico atrai aqueles que renunciam parte de seu próprio narcisismo em
busca do amor objetal.
No menino, a ameaça de castração é vista como um poderoso motivo
para o estabelecimento de um supereu rígido. A menina, por sua vez, encontra
a castração não pelo viés de uma ameaça que não lhe diz respeito e sim pela
comparação de seu sexo com o dos meninos e, conseqüentemente, possui um
supereu, podemos considerar, mais flexível, demonstrando ser, segundo
Freud, mais influenciada pelos sentimentos de afeição. Entendemos então que
as mulheres estariam mais sujeitas ao desejo de serem amadas: já que não
tenho (o pênis), então me ame. O apelo ao amor pode ser interpretado como
conseqüente do medo de perder-se de si própria.
Pode–se até pensar, de início, que o complexo de Édipo na menina é
mais simples que no menino, por implicar em assumir o lugar da mãe e ter o
pai como objeto de amor. Entretanto, seguindo o desenvolvimento acerca da
feminilidade vemos que não foi essa a conclusão de Freud.
Segundo Freud, a menina passa a desejar receber do pai um bebê como
presente. Tal formulação é possível graças a equivalência entre falo e bebê. O
desejo de um filho corresponde, portanto, ao desejo de possuir o falo. O desejo
de possuir um pênis e um filho ficam catexizados no inconsciente, dando uma
diretriz no trajeto da feminilidade pela via da maternidade.
Em Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os
Sexos (1925), Freud destaca a importância do período mais remoto da infância
nas análises dos neuróticos. Ele escreve que somente podemos avaliar as
forças que levaram o sujeito à neurose, a partir do exame das primeiras
manifestações da constituição do sujeito e os efeitos de suas primeiras
experiências.
Nesse artigo ele questiona como a menina abandona a mãe, seu objeto
original, e toma o pai como seu novo objeto de amor. Investigando a partir
dessa idéia, Freud chega à formulação da conhecida relação pré–edípica. No
caso da menina é a relação que corresponde à pré–história do Édipo.
Freud, insatisfeito com sua teoria, irá, neste artigo de 1925, apresentar
uma nova descrição de Édipo feminino, ou seja, propor uma nova teoria sobre
a sexualidade feminina, não mais calcada no modelo masculino. Ele amplia e
modifica sua concepção acerca do complexo de Édipo feminino. É observado
que na menina o complexo de Édipo possui uma longa pré–história e o
confronto com a castração é determinante na constituição edipiana. Já nos
meninos, o declínio do complexo de Édipo se inicia a partir do complexo de
castração.
A menina, ao fazer a descoberta do pênis em relação ao sexo oposto, o
identifica como algo superior ao seu pequeno órgão. Ao perceber isto, torna–se
presente na menina a inveja do pênis.
O desejo do pênis proporciona, na evolução da sexualidade feminina,
muitas conseqüências. Entre elas encontramos o afrouxamento da relação
afetuosa da menina com mãe. A mãe é a responsável pela falta do pênis. Outro
efeito é a intensa corrente de sentimentos contra a masturbação clitoriana.
Segundo Freud: “[...] seu sentimento narcísico de humilhação ligado à inveja do
pênis, [...] é um ponto no qual ela não pode competir com os meninos, e que
assim seria melhor para ela abandonar a idéia de fazê–lo.” (FREUD, (1925),
1996, p. 284).
Um outro deslocamento realizado pela menina com o objetivo de seu
ingresso no complexo edípico trata–se de um deslizamento para uma nova
posição ao longo da linha da “equação pênis – criança”. A menina, então,
transfere o desejo de um pênis para o desejo de um filho, tomando o pai como
objeto de amor e a mãe como objeto de seu ciúme.
Temos assim duas tarefas que a menina vê–se obrigada a cumprir na
realização do seu complexo edípico: troca da zona erógena (do clitóris para
vagina) e do objeto de amor (da mãe para o pai).
Em 1931, em artigo intitulado A Sexualidade Feminina, Freud amplia
alguns aspectos das descobertas enunciadas seis anos antes. Ele irá expor a
importância da fase pré–edípica nas mulheres. Entre suas descobertas, esta
fase está especialmente relacionada à etiologia da histeria:
[...] o que não é de surpreender quando refletimos que tanto a fase
quanto a neurose são caracteristicamente femininas, e, ademais, que
nessa dependência da mãe encontramos o germe da paranóia
posterior nas mulheres, pois esse germe parece ser o surpreendente,
embora regular, temor de ser morta (devorada?) pela mãe. É
plausível presumir que esse temor corresponde a uma hostilidade
que se desenvolve na criança, em relação à mãe, em conseqüência
das múltiplas restrições impostas por esta no decorrer do treinamento
e do cuidado corporal, e que o mecanismo de proteção é favorável
pela idade precoce da organização psíquica da criança. (FREUD,
(1931), 1996, p. 235).
Segundo Freud, para a menina, são apresentados três caminhos em
função da sua situação em relação à castração. No primeiro, a menina,
assustada pela comparação com os meninos e insatisfeita com seu clitóris,
abre mão de sua atividade fálica, de sua sexualidade em geral. Esta via a
conduz a inibição sexual, ou à neurose. Já no segundo caminho, ela possui a
esperança de conseguir um pênis. O complexo de masculinidade nas mulheres
poderá levá–las a uma escolha de objeto homossexual manifesta. A terceira
possibilidade consiste no caminho da maternidade, no qual o pai é tomado
como objeto, alcançando o complexo de Édipo feminino, ou seja, a conduz à
feminilidade.
Freud, baseando–se na importância da fase de ligação exclusiva à mãe,
afirmará que muitos fenômenos da vida sexual feminina podem ser explicados
a partir dessa fase:
[...] observamos que muitas mulheres que escolheram o marido
conforme o modelo do pai, ou o colocaram em lugar do pai, não
obstante repetem para ele, em sua vida conjugal, seus maus
relacionamentos com as mães. O marido de tal mulher destinava–se
a ser o herdeiro de seu relacionamento com o pai, mas, na realidade,
tornou–se o herdeiro do relacionamento dela com a mãe. (FREUD,
(1931), 1996, p. 239).
Da mesma forma em que a construção da ligação com o pai foi realizada
a partir do relacionamento original da menina com a mãe, no casamento esse
relacionamento poderá emergir, visto que o conteúdo principal de seu
desenvolvimento para o estado de mulher está situado na transferência de
suas ligações objetais afetivas da mãe para o pai.
A proibição da masturbação faz com que a menina se afaste da mãe,
entretanto também torna–se motivo para que ela se revolte contra a pessoa
que a proíbe, ou seja, a própria mãe. Da mesma maneira em que o
ressentimento da menina, pelo fato de ser impedida de uma atividade sexual
livre, é o grande causador do desligamento da mãe, mais tarde, após a
puberdade, esse ressentimento entrará em funcionamento quando a mãe
assumir seu papel de guardiã da filha.
Diante da insuficiência dos vários motivos fornecidos por Freud para
justificar o afastamento da mãe e a hostilidade final da menina, ele irá propor
que a ligação à mãe está destinada a ser semelhante aos primeiros
casamentos de mulheres jovens, considerando seu lugar de primeira relação
amorosa assim como a intensidade de tal relação. Diz Freud:
[...] ela falhou em fornecer à menina o único ou órgão genital correto,
que não a amamentou o suficiente, que a compeliu a partilhar o amor
da mãe com outros, que nunca atendeu às expectativas de amor da
menina e, finalmente, que primeiro despertou a sua atividade sexual e
depois a proibiu [...]. (FREUD, (1931), 1996, p. 242).
A ambivalência é claramente observada nas primeiras fases da vida
erótica. Assim podemos concluir que os sentimentos de amor e ódio também
existem na intensa ligação da menina com a mãe.
Os objetivos sexuais da menina são tanto ativos quanto passivos em
relação à mãe. Há uma oscilação entre passividade e atividade que ocorre de
forma diferente em cada criança. Podemos concluir que o comportamento de
uma criança dependerá da intensidade de masculinidade e feminilidade que ela
apresenta em sua sexualidade.
Quando nos referimos ao par passividade – atividade podemos tomar
como ilustração o brincar, tal como Freud o fez em seu artigo Mais além do
princípio do prazer de 1920. É observado que a criança tende a produzir uma
reação ativa quando recebe uma impressão passiva. O brinquedo utilizado tem
a função de contribuir para elaborar uma experiência passiva através de um
comportamento ativo. Do mesmo modo que o médico a examina, essa criança
irá brincar de ser médico, enquanto seu irmão menor será o alvo indefeso. Há
uma reação contra a passividade e, conseqüentemente, uma preferência pelo
papel ativo.
As primeiras experiências sexuais da criança com a mãe são passivas.
Ela é amamentada, limpa, ensinada. Parte de sua libido mantém–se ligada a
essas experiências e outra tenta transformar–se em atividade. A preferência da
menina por brincar de boneca é vista como um lado ativo da feminilidade, é a
prova de sua ligação exclusiva à mãe.
Freud observou em suas pacientes que aquelas que demonstravam uma
intensa ligação com a mãe costumavam apresentar maior resistência e
reagiam com medo e gritos de raiva quando suas mães aplicavam lavagens
retais. Uma observação feita por Ruth Mack Brunswick o fez compreender o
motivo de tal comportamento. Esta compara este sentimento de raiva com o
orgasmo que se segue à excitação genital: “A ansiedade acompanhante,
pensava ela, deveria ser interpretada como uma transformação do desejo de
agressão que fora despertado”. (FREUD, (1931), 1996, p. 246).
Em relação aos impulsos passivos da fase fálica, Freud escreve que é
comum às meninas acusarem suas mães de seduzi–las; visto que suas
primeiras sensações genitais ocorrem quando estão sendo limpas pela mãe ou
babá. Para ele, isto poderá justificar o fato de, posteriormente, nas fantasias o
pai aparecer como o sedutor sexual.
Segundo Freud, o afastamento da mãe é um passo bastante importante
no desenvolvimento da menina, ultrapassa uma simples mudança de objeto.
Observa–se uma grande diminuição dos impulsos sexuais ativos e um aumento
dos impulsos passivos. As frustrações afetam intensamente as tendências
ativas. Com esse afastamento, a masturbação clitoriana, na maioria das vezes,
cessa, e boa parte de suas tendências sexuais fica danificada quando a
menina reprime sua masculinidade prévia. As tendências passivas auxiliam a
transição para o objeto paterno. Como Freud, afirmamos que: “O caminho para
o desenvolvimento da feminilidade está agora aberto à menina, até onde não
se ache restrito pelos remanescentes da ligação pré–edípica à mãe, ligação
que superou.” (FREUD, (1931), 1996, p. 247).
Freud, depois de um ano, retorna ao tema da sexualidade feminina em
seu último trabalho sobre o assunto na conferência A Feminilidade. Esse texto
baseia–se principalmente em dois artigos anteriores: um de 1925–Algumas
Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos e outro de
1931–Sexualidade Feminina.
Freud, diante da dificuldade de encontrar uma significação psicológica
para masculino e feminino, afirma a incapacidade da psicologia para solucionar
o enigma da feminilidade. Ele relata: “[...] a psicanálise não tenta descrever o
que é a mulher..., mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma,
como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual.”
(FREUD, (1933[1932]), 1996, p. 117).
Nesse texto, Freud revê a equivalência proposta por ele anteriormente
entre: feminino = passivo e masculino = ativo, e passa a examinar o complexo
de Édipo e o de castração.
Freud, ao comparar o desenvolvimento de uma menina em mulher com
o que ocorre com os meninos, observa que aquele é mais difícil e complexo, ao
contrário do que pensava em 1924, pois inclui justamente duas tarefas extras.
Aqui ele retoma as duas tarefas que a mulher tem que realizar no decorrer do
seu desenvolvimento: mudança de zona erógena e de objeto, ao contrário do
menino que mantém ambos.
Freud, no trabalho analítico, encontra algumas características psíquicas
da feminilidade. É atribuída à feminilidade maior quantidade de narcisismo. Isso
tem influência na escolha objetal da mulher, pois para ela ser amada é mais
necessário que amar. A inveja do pênis produz efeitos, visto que a mulher
tende a valorizar seus encantos como forma de compensar a sua inferioridade
sexual original.
Freud, no final do artigo de 1932, volta a abordar a importância da fase
pré–edípica:
A hostilidade que ficou para trás segue na trilha da vinculação
positiva e se alastra ao novo objeto. O marido da mulher, inicialmente
herdado, por ela, do pai, após algum tempo se torna também herdeiro
da mãe. Assim, facilmente pode acontecer que a segunda metade da
vida da mulher venha ser preenchida pela luta contra seu marido, do
mesmo modo como a primeira metade, mais breve, fora preenchida
pela rebelião contra a mãe. (FREUD, (1933[1932]), 1996, p. 132).
Ele finaliza seu trabalho sobre a Feminilidade expondo duas camadas
distinguidas a partir da identificação de uma mulher com sua mãe. Primeiro
vem a pré–edípica, onde se apóia a vinculação afetuosa com a mãe, sendo
esta tomada como modelo. Já a camada a seguir surge do complexo de Édipo,
e nesta a menina procura eliminar a mãe e tomar seu lugar junto ao pai.
Acrescenta ainda que tanto a camada pré–edípica quanto a edípica subsistem
no futuro e nenhuma das duas é adequadamente superada.
Freud então conclui que a fase de ligação afetuosa pré–edípica é
importante para a aquisição das características que exercerão mais tarde o
papel na função sexual e nas suas tarefas sociais.
Freud escreve, no final dessa conferência, ter sido incompleto ao
abordar a feminilidade e sugere que recorramos aos poetas em busca de
respostas. Como, muito bem, nos diz Dunker: “A feminilidade é uma questão
que resiste a se inscrever sob forma de um saber.” (DUNKER apud PRATES,
2001, p. 9).
Como vimos, as formulações de Freud acerca da construção da
sexualidade feminina acabaram por possuir um caráter enigmático.
Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da
própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou
aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais
profundas e mais coerentes. (FREUD, (1933[1932]), 1996, p. 134).
2.2 A FEMINILIDADE NO ENSINO LACANIANO
A relação pré-edípica constitui-se como a referência freudiana, por
excelência, nas formulações sobre a feminilidade. Para Lacan, é a lógica do
não todo que permite ampliar a análise da feminilidade, em seus aspectos
específicos que englobam o gozo suplementar e a dialética entre ser e ter.
Freud propõe uma partilha dos sexos a partir do falo - ter ou não ter o
falo - e coloca o desejo feminino como o desejo de ter um filho, fazendo
equivaler, portanto, a mãe à mulher como vimos no item anterior (2.1).
O ensino de Lacan tem como proposta dar continuidade ao texto
freudiano e nos apresenta algumas contribuições importantes sobre o enigma
da sexualidade. A mãe, modelo de mulher para Freud, deixa de sê-lo na ótica
de Lacan. Ele expõe que, em vez de investigarmos a questão freudiana do que
quer “a” mulher, indaguemos o que quer “uma” mulher. Ele nos diz: “Agora, o
outro lado. O que eu abordo este ano é o que Freud deixou expressamente de
lado, o Was will das Weib? O que quer uma mulher?” (LACAN, (1972-73),
1985, p. 108).
Lacan, portanto, vai além do ponto deixado por Freud. A mulher
lacaniana depara–se com a questão de ser o falo, justamente por não tê–lo. “É
pelo que ela não é que ela pretende ser desejada ao mesmo tempo que
amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele
a quem sua demanda de amor é endereçada.” (LACAN, (1958), 1998, p. 701).
É preciso ocupar o lugar de “ser o falo” para se tornar objeto causa de desejo.
Para isso, ela na posição feminina terá que rejeitar uma parcela essencial da
feminilidade, se apresentar com o sinal de menos, como “objeto a” na relação
com o homem. Enfim, estar marcada pela castração, castração esta que a
histérica não suporta e por isso se esquiva da posição feminina. Trabalharemos
mais essa questão no capítulo 5, quando articularemos a histeria e a
feminilidade.
Soler (2005), ao tratar do livro de Léon Bloy La femme pauvre, escreve
que a verdadeira mulher só existe “sob a condição de existir sem pão, sem
pouso, sem amigos, sem marido e sem filhos”, (BLOY apud SOLER, 2005, p.
22), de outra maneira, ela envolve algo que se articula ao sacrifício do ter,
quando tem consentido com a modalidade própria da sua castração. A
verdadeira mulher só existe de verdade quando se apresenta como menos,
com o sinal de menos, como escrito acima, rejeitando nomeadamente todos os
seus atributos na mascarada. (LACAN, (1958), 1998, p. 701).
Lacan formula a respeito da verdadeira mulher ao separar a condição de
mulher da de mãe. A seu ver, a verdadeira mulher é aquela que escolhe ser
mais mulher do que mãe, ou melhor, é aquela que coloca em segundo plano
sua condição materna. Carneiro Ribeiro em seu artigo “Ela anda em beleza,
como a noite” ressalta: “Lacan nos diz que a verdadeira mulher só está
presente no ato [...] quando cai fora do significante, lançando-se neste espaço
indeterminado em que o sujeito é abolido.” (CARNEIRO RIBEIRO, 1995, p. 97).
Lacan convoca a figura de Medéia para abordar a verdadeira mulher.
Essa é uma das figuras míticas dos grandes romances que sacrifica tudo para
obter o amor de um homem. A personagem não tem dúvida ao sacrificar a vida
de seus filhos com o intuito de atingir Jasão, o qual a abandonara como
mulher. Mais nada, além do amor de Jasão, interessa Medéia.
“Ser o falo” é uma invenção lacaniana que amplia a questão da
sexualidade feminina trabalhando-a a partir da dialética do amor, do desejo e
do gozo.
O que é o falo? Lacan, em A significação do falo ((1958), 1998, p. 693)1,
aponta que para a mulher a relação ao falo é especialmente difícil – espinhosa
- levando em conta que a menina se considera, nem que seja por um
momento, castrada, privada de falo. Escreve também que o falo é um
significante, significante do desejo do Outro, ou seja, é “o nome do desejo” e,
portanto, pronunciável. (FINK, 1998, p. 129).
Tendo em vista que o desejo sempre está relacionado com a falta,
dizemos então que o falo é um significante da falta, da perda primordial à qual
a castração está referida. A visão dos órgãos genitais do outro sexo dá início
ao complexo de castração para menina. (ver página 14, item 2.1). A menina ao
se deparar com tal diferença sucumbe à inveja do pênis (Penisneid), o que
Lacan chama de a nostalgia da falta-a-ser, de algo que nunca tivera.
A partir da operação da metáfora paterna, o falo, enquanto significante
da falta e, portanto do desejo, se inscreve no Outro. Nessa operação, o Nomedo-Pai deve substituir o desejo da mãe. A função paterna sustenta a lei do
desejo para o sujeito. É o pai quem garante uma relação simbólica com o
desejo, ou seja, é a referência de um pai que barra o Outro primordialmente
materno. Como a mãe é o primeiro objeto de investimento sexual da criança, o
sujeito só pode buscar investimentos externos ao âmbito familiar a partir da
interdição do Nome-do-Pai que barra o desejo materno.
Ao contrário de Freud, Lacan acredita que a castração indica para um
1
Conferência proferida em 9 de Maio de 1958 em Munique.
mais além dela própria. O falo não é uma fantasia, um objeto e nem tão pouco
um órgão (LACAN, (1958), 1998, p. 696).
Quanto à função do falo, Lacan nos diz que o falo é um significante que
determina como se constituem as relações entre os sexos. Essas relações irão
girar em torno de um ser e de um ter, que por estarem remetidas a um
significante, o falo, têm como efeito dar realidade ao sujeito e tornar
impossíveis as relações sexuais: devido a “intervenção de um parecer que
substitui o ter, para, de um lado, protegê-lo e, de outro mascarar sua falta no
outro, ...”. (LACAN, (1958), 1998, p. 701). Pela via do significante, a relação
sexual é uma relação de fazer semblante, na qual a mulher está no registro do
ser e o homem no do ter. Este último, na verdade, não é possuidor do falo. Ele
possui um pênis que é investido de valor fálico. A relação com o falo irá
desempenhar um papel para o homem e para a mulher a partir do
reconhecimento da castração da mãe. Então, enquanto o homem faz máscara
de ter para proteger o que possui, a mulher faz máscara de ser para encobrir o
que não tem, fazendo-se assim de falo. Como já dissemos, é exatamente pelo
que ela não é que a mulher deseja ser desejada e amada.
Em Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina (1958)2,
Lacan nos sugere que, na partilha dos sexos, o homem possui a forma
fetichista de amor e a mulher a forma erotomaníaca; e nos afirma que um
“homem serve... de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela
mesma, como o é para ele”. (LACAN, (1958), 1998, p. 741). Quinet em 1995
nos esclarece essa afirmativa, a partir da lógica do não-todo, ao responder que:
Congresso que teve sob o nome de Colóquio Internacional de Psicanálise de 5 a 9 de
Setembro de 1960 em Amsterdam.
2
A mulher utiliza o homem como traço distintivo da função fálica [...]
por um lado, ela é igual ao homem podendo se espelhar nele a partir
deste traço distintivo do falo inserindo-se na ordem fálica; por outro
lado, tem algo totalmente diferente, para-além do falo. Essa divisão a
constitui como um Outro para si mesma. (QUINET, 1995, p. 17).
Freud, em 1914, coloca a cura pelo amor como sendo uma forma da
mulher retornar ao narcisismo. Aquele que ama perde parte do narcisismo e
para compensar é preciso colocar-se como sendo amado. Enquanto as cargas
libidinais estão dirigidas para os objetos, o eu se empobrece. O eu somente se
enriquece se as cargas estiverem dirigidas para si. As satisfações devem ser
conseguidas através dos objetos. Se a necessidade da mulher se acha na
direção de ser amada e não de amar, é através do amor erotômano pelo
homem que ela se ama.
A forma erotomaníaca de amor da mulher difere da erotomania como
forma de delírio psicótico, o qual se encontra marcado pela certeza. A mulher
como neurótica duvida: será que ele me ama? A mulher, desta forma, pergunta
para suas companheiras se o homem através de olhares ou palavras deixou
algum sinal.
Como sabemos, a condição do desejo é a falta. Para que um homem ou
uma mulher deseje o(a) seu(ua) parceiro(a) é preciso que este se apresente
como faltoso. Para a mulher, em sua forma de amor erotomaníaca, essa falta é
necessária para que o homem possa ser desejado por ela.
Lacan, na forma de amar da mulher, propõe um jogo de cena onde
existe um homem na frente do véu (castração), e outro por trás. Na frente há o
parceiro sexual, aquele que possui o pênis, e atrás aparecem os efeitos da
castração no homem, ou seja, o amante castrado, o homem morto, as
figurações que Lacan denomina íncubo ideal.
O termo íncubo no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2004)
significa um tipo de “demônio masculino que, segundo velha crença popular,
vem à noite copular com uma mulher, perturbando-lhe o sono e causando-lhe
pesadelos” (2004, p. 1092). Lacan toma emprestado esse termo da
demonologia para dizer que o desejo feminino visa o parceiro sexual, aquele
que está diante do véu. O amor, por sua vez, encontra-se por trás do véu,
dirigido para o íncubo ideal. O objeto de adoração da mulher é a figura de
homem submetido à castração.
O íncubo ideal “é uma figuração do pai morto como guardião do gozo,
instaurador
da
lei
e
do
desejo,
sendo
também
o
agente
da
castração”.(QUINET,1995, p. 19).
Véu
parceiro sexual
desejo sexual
amante castrado
homem morto – Cristo
amor
recalque
(QUINET, 1995, p. 18)
Esse esquema nos faz visualizar a duplicidade da sexualidade feminina
entre o parceiro sexual e o íncubo ideal, a duplicidade representada entre o
desejo na mulher e o amor. Isso irá fazer com que Lacan, nos anos 70,
proponha o desdobramento da sexualidade feminina como vinculada ao gozo
fálico e ao gozo enigmático (feminino, suplementar), louco, que não tem
significante para conter em um universo. Como já esboçamos neste item, a
mulher se encontra não apenas no gozo fálico.
2.2.1 Sobre o gozo da mulher
O conceito de gozo foi introduzido por Lacan. Sua definição refere-se à
concepção jurídica do termo. Para ele, a noção de gozo, se trata de gozar de, o
que é diferente de gozar. A noção de gozo no Direito se refere à noção de
usufruto, que é o gozo da coisa enquanto objeto de apropriação. Segundo
Pommier: “Em Psicanálise, esse termo é útil porque permite falar simplesmente
da meta da libido.” (POMMIER, 1992, p. 209).
Acompanhando os desenvolvimentos teóricos da psicanálise, o conceito
de gozo sofreu diversas modificações. O ponto que nos interessa aqui é o que
Lacan desenvolveu no Seminário 20, onde ele aborda os problemas do amor,
clareando as questões propriamente femininas.
Lacan defende a tese de que o gozo feminino, apesar de estar
relacionado à função fálica, se trata de um outro gozo que não o gozo fálico.
A inexistência da angústia de castração na mulher torna-a não-toda, ou
seja, a mulher não se situa totalmente na norma fálica. E isso que daí escapa,
permitiu Lacan formular suas idéias a respeito do gozo suplementar.
O gozo suplementar feminino é abordado, de forma indireta, por Freud
em 1932 na Conferência XXXIII – Feminilidade, através, podemos pensar, da
expressão: enigma da mulher. A hipótese é de que a questão feminina passa
pelo falo e o ultrapassa, ou seja, não está reduzido a ele.
É a existência do gozo fálico que nos leva a crer na existência do gozo
suplementar. Lacan relata:
[...] ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um
gozo suplementar. Mais adiante continua: Vocês notarão que eu
disse suplementar. Se estivesse dito complementar, aonde é que
estaríamos! Recairíamos no todo. (LACAN, (1972-73), 1985, p. 99).
Esse gozo suplementar também pode ser nomeado de indescritível
devido ao fato de se situar fora da cadeia significante; tal gozo escapa ao
domínio do significante. Somente parte do gozo feminino é possível de ser dito,
aquela parte do gozo sexual, fálico: determinado pelo significante.
Algumas questões relativas à posição feminina serão esclarecidas pela
hipótese da existência do gozo suplementar.
Na partilha dos sexos, Lacan define que a mulher está na posição de
não-toda, não-toda submetida à função fálica. A falta da identidade feminina é
uma das conseqüências do fato da mulher se encontrar nessa posição.
A posição feminina consiste em fazer de conta de objeto, fazer
semblante, fato que abordaremos no próximo capítulo sobre a mascarada.
Então, o gozo da mulher é dividido, ela é não-toda na ordem fálica. A
mulher possui um gozo que escapa à ordem do ter e do ser. Uma mulher sente
que parte dela está presa no gozo fálico, e a outra parte situa-se no gozo do
Outro, ou gozo do corpo, gozo do qual nada se sabe... só se pode supô-lo; está
fora-de-linguagem, fora-do-simbólico. (CARNEIRO RIBEIRO, 1995, p. 94).
Trata-se de um gozo sem regulação fálica, podendo ser qualificado de “louco”
por não estar submetido ao significante do Nome-do-Pai.
2.3 A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO MÃE-FILHA PARA A
MULHER
De início, Freud não se deu conta da importância da mãe no destino da
mulher. Sua descoberta foi se revelando na medida em que seus estudos
sobre a sexualidade feminina avançavam. A leitura psicanalítica dessa relação
trouxe para a dinâmica feminina uma nova compreensão.
O lugar ocupado pela mãe enquanto mulher é fundamental no processo
de constituição de uma identificação feminina da filha. Ao voltar–se para a mãe,
a menina ainda possui a esperança de receber desta um significante do sexo
feminino, entretanto terá que se deparar com a mãe destituída desse
significante específico de feminilidade. Em um momento posterior, a filha vendo
que à mãe falta um símbolo específico de seu sexo, busca nesta um modo que
lhe permita criar uma identificação feminina. À outra mulher e ao homem
também será dirigida a interrogação sobre o que é ser mulher.
Entretanto, a transmissão da feminilidade não é possível. Cabe a cada
uma, tanto mãe quanto filha, passar pelo luto da separação no que diz respeito
à questão da feminilidade.
À mãe cabe renunciar a relação que elas mantiveram na infância e, em
um processo de compensação da filha pela falta de identificação feminina, criar
artifícios que possibilitem o acolhimento desta, ou seja, ajudá–la a suportar a
falta dessa identificação que nunca poderá ser preenchida. Mas que artifícios
seriam esses? Podemos pensar nas roupas, jóias, pinturas, perfumes,
acessórios que a enfeite e que facilitem serem desejadas pelos homens, assim
como a mãe é pelo pai. Desta forma, a mãe estaria traçando um percurso de
feminilidade para que a filha o utilize mais tarde. Essa seria a porta para o
caminho da filha no processo de tornar–se mulher para si mesma.
No caso da filha, esta deverá libertar–se da mãe, não prejudicando seu
percurso no desenvolvimento do tornar–se mulher. Desta forma, é preciso
aceitar a perda.
Em nossas clínicas observamos o quanto esse processo é difícil. A
menina entra no Édipo em busca de obter do pai o que não tem e, no seu caso
irá manter–se no decorrer da vida, um resto da relação com a mãe. Ou seja, a
relação da filha com o pai não fará desaparecer a relação primária desta com a
mãe. Estamos aqui falando de um resto, em nível de Édipo, que não pode ser
simbolizado.
Muitas mulheres possuem a dificuldade de separar–se da mãe para
entrar em uma relação com um homem. A seguir apresentaremos um
fragmento de caso de nossa clínica no qual observamos tal complexidade.
Uma paciente, no percurso de sua análise, relata que a mãe é aquela
que “lhe atrasa”, “lhe sufoca”, “atrapalha seu trabalho”, “tira sua privacidade a
ponto de não poder transar com o marido”. Sua apnéia (fato que a trouxe para
análise) expressa claramente a relação mal resolvida com a mãe. Seu discurso
queixoso que no início da análise estava voltado para uma possível traição do
marido, volta–se em dado momento para a mãe, cheio de ressentimentos.
Outras mulheres buscam em seus companheiros ou companheiras uma
mãe substituta. Esta última irá surgir sempre de diversas formas no discurso de
nossas
pacientes
em
algum
momento
da
análise:
através
do(a)
companheiro(a), da sogra, da Outra mulher, do pai. Nossa clínica nos
demonstra tal fato:
Outra paciente de aproximadamente 49 anos, homossexual, na primeira
entrevista relata: “Busco geralmente ter relação com mulheres mais velhas...
procuro nelas a mãe que não tive”.
Apresentaremos dois casos de Freud onde podemos observar a busca
de uma mãe substituta.
O primeiro caso clínico (1915) consiste em uma jovem de 30 anos que
por muitos anos trabalhara em uma firma comercial. Segundo o relato de
Freud, esta nunca havia procurado casos amorosos com homens, vivendo
tranqüilamente com a mãe. Era filha única e o pai morrera anos atrás. A jovem
(que primeiramente consultou um advogado) queixava–se “das investidas de
um homem que a arrastava para uma aventura amorosa”. (FREUD, (1915),
1996, p. 271). Para Freud, a jovem transformara o amante em um perseguidor,
defendendo–se contra o amor por um homem.
Certa vez, a conversa de sua chefe idosa (por ela descrita da seguinte
forma: “Ela tem cabelos brancos como minha mãe”) com o jovem amante
despertou sua desconfiança. Achou que este último falara com a “dama de
cabelos brancos” sobre sua aventura amorosa.
Freud conclui que a chefe era uma substituta da mãe e que esta primeira
ao saber da relação amorosa da moça, desaprovou–a:
Seu amor pela mãe se tornara o porta–voz de todas as tendências
que, desempenhando o papel de uma consciência, procuram
embargar o primeiro passo de uma moça na nova estrada que leva à
satisfação sexual normal – sob muitos aspectos perigosa -, e na
realidade conseguiu perturbar sua relação com homens. (FREUD,
[1924 (1915)], 1996, p. 275).
Podemos então supor que a poderosa ligação emocional com a mãe a
colocou afastada de homens até seus 30 anos. O amor não é pela mãe que
hoje se apresenta e sim pela imagem mais antiga desta.
Voltamos aqui à idéia que Freud desenvolveu mais tarde (1931), a de
que a mulher com dificuldade de separar–se da mãe pode determinar
dificuldades para abraçar uma relação com um homem.
Observamos na clínica o intenso vínculo da mulher com a figura materna
e suas conseqüentes questões sobre sua posição enquanto sujeito desejante.
A dificuldade de separar–se da mãe e aceder à feminilidade expressa–se com
freqüência na relação da mulher com um homem.
No caso da jovem homossexual (1920), Freud retoma o complexo
materno ao estudar a questão da ligação da menina com a mãe. Esse caso
podemos dizer que representa um marco no pensamento freudiano: para além
do pai há a relação da filha com a mãe a ser considerada.
A jovem é levada à consulta a Freud pelos pais, preocupados com o
amor da filha por uma senhora de “má reputação”.
Como vimos no item 2.1 do presente trabalho, o Édipo, para toda
menina, se baseia na promessa de receber do pai uma criança. A jovem, ainda
elaborando este processo, é surpreendida pela gravidez da mãe. A mãe é
então a prova de ser a destinatária do dom paterno de uma criança. “Não foi
ela quem teve o filho, mas sua rival inconscientemente odiada, a mãe”.
(FREUD, (1920), 1996, p. 169).
Decepcionada e amargurada, a jovem se afasta do pai e dos homens,
procurando outro objetivo para sua libido. O desejo de um filho, o amor dos
homens e o papel feminino em geral são repudiados inteiramente, e
conseqüentemente a moça se transforma em homem e toma a mãe como
objeto de seu amor. “[...] dessa transformação de sentimentos nasceu a busca
de uma mãe substituta, a quem poderia ligar–se apaixonadamente”. (FREUD,
(1920), 1996, p. 170). A análise da jovem para Freud revelou que a amada
dama era uma substituta da mãe.
Freud escreve: “A jovem, tornando–se homossexual e deixando os
homens para mãe [...], poderia afastar algo que até então fora parcialmente
responsável pela antipatia da mãe”. (FREUD, (1920), 1996, 170). Cabe
ressaltar que a mãe, ainda jovem, via a filha, de acordo com Freud, como uma
“competidora inconveniente”. Ela ficava atenta a qualquer aproximação entre a
filha e o pai, e demonstrava preferência pelos filhos homens.
Nos dois casos de Freud acima apresentados, observamos a busca de
uma mãe substituta: a dama de cabelos brancos e a mulher do mundo.
É muito importante sabermos sobre a existência da fase pré–edípica,
pois a partir dela uma série de questões surgem. Quantas vezes já escutamos:
a culpa é sempre da mãe. Essa afirmação ressentida nos faz pensar na
necessidade de um corte, ou melhor, de uma separação no contexto da relação
mãe–filha.
Evoquemos aqui outro caso clínico:
Uma moça de 21 anos, em análise há aproximadamente um ano,
descreve o olhar raivoso de sua mãe: “Quando eu era pequena minha mãe,
nas horas de briga, ficava por cima de mim com os olhos inquietos, feito uma
cobra, e esbugalhados de ódio... parecia que queria me esmigalhar”. Em
seguida relata: “Teve uma vez, também em uma briga, minha mãe virou para
mim e disse que meu pai teria que escolher entre eu e ela”. Ainda questiona:
será que sou homossexual? Suas associações apontam a idealização do pai,
seu desejo incestuoso. Ser homossexual, nesse caso, surge como defesa ao
desejo pelo pai. Diante do desejo, ela retorna à relação com a mãe. Podemos
observar que a própria briga com a mãe nos sugere uma relação incestuosa
também com a mãe.
Propomos
tecer
neste
ponto
algumas
considerações
sobre
a
devastação. Esse termo pode se referir ao que uma mãe representa para a
filha ou o que um homem representa para uma mulher. A devastação na
relação mãe-filha tem referência ao laço pré-edípico. Esse laço que é
conservado pelas meninas às suas mães é designado por Freud, em 1931,
com o termo catástrofe. (FREUD, (1931), 1996, p. 247). Enquanto Freud se
refere à relação mãe-filha como catástrofe, Lacan fala em devastação.
Quando falamos de devastação estamos nos referindo ao sentido da
destruição de um lugar ou de um espaço vindo do Outro, do invasor. (SOLER,
1995, p. 127).
Lacan utiliza esse termo reforçando o alheamento da relação para
acentuar o domínio do Outro sobre o sujeito, para indicar que o desejo do
Outro importa mais que o desejo do sujeito. A “devastação” designa um sujeito
que está à mercê da vontade do Outro.
A elaboração da idéia de devastação correlaciona-se ao gozo
suplementar formulado por Lacan ao tratar da feminilidade. A devastação é
conseqüente da ligação entre dois sujeitos situados não-todos na norma fálica,
o que determina a circulação de um gozo sem a regulação fálica.
A mãe é quem primeiro ocupa o lugar de Outro na demanda de amor.
Ela é o primeiro Outro da demanda incondicional do amor e, portanto, virá dela
a primeira decepção. A mãe está encarregada de introduzir a criança nas
primeiras exigências do discurso, exigências relacionadas com o corpo:
limpeza, nutrição, sono, excreção. Por fazer a criança entrar no discurso, a
mãe, para Lacan, tem efeitos de inconsciente.
É o pai quem pode resgatar a criança dessa mãe voraz, propondo outras
maneiras de lidar com a falta da mãe, de maneira menos prejudicial. A função
do pai é de dizer que o objeto que satisfaz à mãe não é a criança, e sim o falo.
Diante dessa ação do pai, a criança poderá deixar de acreditar ser esse objeto
satisfatório.
Segundo Zalcberg (2003), a resolução da devastação na relação mãefilha está em poder separar seu próprio corpo do corpo da mãe e do corpo da
outra mulher.
Uma jovem em análise descreve tal dificuldade: “Não sei dizer onde
começo... Não tenho noção de espaço entre mim e minha mãe... Quem eu
sou? O que eu desejo? O que eu quero?”.
O olhar da mãe leva à construção de uma imagem importante para
menina, tem um papel estruturante que é sustentado pelo seu desejo. A
menina depende da cobertura imaginária para um corpo para o qual falta um
significante. O olhar da mãe, em muitos casos, fará com que a filha se separe e
torne-se mulher. “É preciso que o olhar ou sorriso de sua mãe digam, de
alguma maneira, à criança: ei-la”. (ZALCBERG, 2003, p. 155).
Na relação mãe e filha observamos claramente, em muitos casos, a
necessidade de se efetuar tal separação e ascender a feminilidade. O medo de
perder o amor da mãe e conseqüentemente se perder pode vir a impedir a filha
de se separar dela.
Lacan, no Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, formula as duas operações de causação do sujeito derivadas da
lógica formal: alienação e separação.
A articulação entre a alienação e a separação na mulher é ainda mais
complicada, levando em conta que a ligação da filha com a mãe permite que
ela continue mais facilmente alienada a esse desejo, o que dificulta a filha
erguer-se diante de seu próprio desejo.
Essa ligação tão íntima, pelo risco de se tornar mortífera, não pode durar
para sempre. Isso vale tanto para mãe quanto para filha. A mãe precisa ter
outros objetos e a criança necessita sair da posição de objeto.
Enquanto a alienação é um destino ligado à fala e se faz necessária
para constituição do sujeito, a separação exige que o sujeito deseje separar-se
da cadeia significante à qual está petrificado. “A separação supõe uma vontade
de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa
dizer, para além daquilo inscrito no Outro”. (SOLER, 1997, p. 62/63). O Outro
da separação (A) não é o Outro da alienação (A). Ao primeiro falta alguma
coisa, enquanto que o segundo Outro é cheio de significantes.
A presença do desejo sinaliza a existência de algo que na fala falta. Para
Lacan, o desejo é impossível de capturar, é metonímia, desliza na fala, na
cadeia significante. A condição da separação está no encontro com a falta.
(SOLER, 1997, p. 64).
O sujeito na separação busca ser. Para compreender a vontade como
busca é necessária a falta. O sujeito histérico é aquele que demonstra a busca
do ser. Ele sofre, tem um forte sentimento de ser um vazio, de ser nada.
Evoquemos um fragmento de nossa clínica:
A paciente é uma histérica e, como tal, não tolera sua posição feminina.
Diz não à posição de objeto de desejo na fantasia de um homem, colocando-se
na posição subjetiva de “ser nada”, o que de certa forma aponta para falta de
um significante referente à mulher. A paciente, frente ao homem, se coloca
como “nada”, como uma “ameba”. Toma aversão quando este somente se
interessa pelo seu corpo e não por sua inteligência. Desta forma, se furta do
lugar de objeto, causa de desejo para um homem, permanecendo segundo ela,
como um mero pedaço de carne do qual o homem goza. Tomada de angústia
como “mulher não suficientemente boa” prefere ficar sozinha a sofrer. Tentando
mostrar sua inteligência, declara revanche aos homens mostrando como eles
são um “lixo”. Paula é aquela que trabalha, ganha dinheiro, banca a casa.
Sente-se injustiçada perante o não reconhecimento de todo seu apoio. Eis a
prevalência do significante “batalhadora”, significante que não a faz mulher.
A busca de mulheres histéricas pela análise ocorre devido, muitas
vezes, ao fracasso em uma relação amorosa ou à perda de um ser amado.
Soler (1997) nos coloca que isso ocorre porque um sujeito histérico se
posiciona no nível da separação, ou seja, no nível do questionamento do
desejo do Outro. A angústia do sujeito histérico talvez seja devido ao fato de
duvidar de haver lugar para ele no Outro. É por isso que tenta sempre tornar o
Outro incompleto. Apesar do histérico e do obsessivo compartilharem a falta no
Outro, o sujeito obsessivo fica angustiado com a falta no Outro e foge do
desejo deste.
3. A MULHER E SUAS MÁSCARAS
[...] Lacan aponta que, no que tange à feminilidade, a melhor saída está do lado do ser... Para
isso, lança mão de máscaras. Máscaras da feminilidade.
(MAIA, 1999, p. 52)
3.1 UMA BREVE PASSAGEM PELAS CONTRIBUIÇÕES DE
ALGUNS AUTORES AO DESENVOLVIMENTO SEXUAL DA
MULHER NOS ANOS 20
Nos anos 20, vários psicanalistas escreveram artigos sobre a questão do
desenvolvimento sexual da mulher frente à premissa fálica. Observamos,
nesse contexto, os primeiros desvios teóricos em relação à teoria freudiana da
sexualidade feminina. A teoria freudiana, que se encontra no postulado da
primazia do falo no complexo de castração de ambos os sexos e no
desconhecimento original da vagina, despertou grande polêmica no movimento
psicanalítico. Entre alguns autores destacamos: Abraham, Horney, Deutsch,
Jones e Klein.
Karl Abraham, psiquiatra e psicanalista alemão, inaugura, em 1922, um
grande debate ao estudar o “complexo de castração” na mulher. Seu
argumento está pautado na existência de um grande número de mulheres que
se encontram descontentes com sua condição feminina ao manifestarem,
diante da visão do órgão sexual masculino, um desejo de ser homem.
A constatação, por parte da menina, das diferenças sexuais estaria
representando uma injustiça a seu narcisismo. Para ele, o sentimento de
inferioridade frente ao fato de não possuir um pênis se articularia ao medo da
perda do amor dos pais. Desta forma, a expectativa em possuir uma criança
compensaria para mulher seu “defeito físico”.
Karen Horney, que havia sido analisanda de Abraham, faz críticas, por
sua vez, ao complexo de castração como sendo esse uma fase normal do
desenvolvimento feminino.
Em 1924, frente à formulação de Abraham sobre o sentimento de
desvantagem da mulher em relação aos seus órgãos genitais, ela promove
uma grande discussão em um artigo onde aborda a gênese do complexo de
castração na mulher.
Na visão dessa psicanalista, o desejo de ser homem por parte de
algumas mulheres seria manifestação de uma identificação paterna forte e,
portanto, uma fase secundária do desenvolvimento. Ao sublinhar a importância
da estrutura anatômica feminina para seu desenvolvimento, Horney discorda
da assertiva de que a inveja do pênis é fruto da insatisfação da mulher com seu
sexo, fazendo dessa inveja uma manifestação da neurose na mulher. Ela
atribui fatores culturais e não constitucionais à existência desse fenômeno na
clínica.
Dentro desse contexto, Horney foi a primeira a discordar da tese
freudiana sobre a feminilidade, justificando que tais idéias estavam sendo
abordadas por um enfoque essencialmente masculino. Por que a mulher,
constituída fisiologicamente para desempenhar funções tipicamente femininas,
era caracterizada pelo desejo de ter atributos do outro sexo?
Em sua opinião, a menina, desde muito cedo, apresenta sensações
vaginais, ou seja, já sabe da existência da vagina. Essa idéia também era
compartilhada por Josine Muller. Ambas acreditavam que, em uma fase
posterior haveria a negação da vagina, sendo esta uma defesa aos ataques
inconscientes contra a mãe, rival neste momento da menina.
Horney pensava, ao contrário de Freud, que a fase fálica seria, na
menina, secundária, e não desembocaria na inveja do pênis. A etiologia dos
sintomas neuróticos das mulheres, para ela, não é desencadeada por tal
inveja.
Outra contribuição foi de Hélène Deutsch, psiquiatra e psicanalista
americana contemporânea de Freud, e por muitos chamada de filha querida
deste. Esta, em 1925, adianta alguns pontos abordados posteriormente nos
texto de Freud em 19313 e 19334 sobre a sexualidade feminina.
Deutsch concorda com Freud ao considerar a existência da fase fálica
para ambos os sexos. Segundo ela, enquanto o menino faz a descoberta da
vagina pela via de sua apropriação sádica, a menina, em seu próprio corpo,
percebe a existência desta submetendo-se de maneira masoquista ao pênis. A
menina deve renunciar à fase fálica, em dado momento, e deslocar sua zona
erógena do clitóris para vagina.
Por outro lado, Deutsch faz uma crítica a Freud ao não acreditar no fato
de que os conflitos neuróticos femininos e as manifestações psíquicas das
mulheres sejam atribuídos à falta de pênis. Na formação dos conflitos
femininos, a inveja do pênis é, considerada por ela, um fator secundário. A
inveja é, de modo geral, uma tendência comum a todas as crianças, ainda mais
quando um irmão menor nasce. A inveja do pênis dependeria da influência do
meio, da maneira como os pais lidam com os conflitos ocorridos durante o
desenvolvimento da menina.
Enquanto Deutsch acredita no masoquismo e na passividade como
características femininas organicamente condicionadas e provenientes do lugar
3
4
Sexualidade feminina, volume 21 das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Feminilidade, volume 22 das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
que a mulher ocupa na cultura, e respaldados na diferença anatômica entre os
sexos, Horney considera, como vimos, a sensibilidade vaginal como algo
primariamente feminino. Hèlène Deutsch, nesse caso, não abre mão de que o
descobrimento da vagina é secundário, pois a passividade e o masoquismo
seriam primários e constitutivos da feminilidade.
Sobre a importância dada à passividade feminina e ao masoquismo,
Deutsch enfoca a relação da mulher com a mãe, afirmando que esta é da
ordem de uma dependência passiva. Tanto no caso da menina, quanto no do
menino, ambos, neste aspecto, teriam que lutar para adquirir atividade e
independência diante da mãe. No entanto, na mulher a atividade somente seria
atingida na maternidade. A mulher encontrar-se-ia, a seu ver, biologicamente
mais receptiva e passiva que o homem.
A hipótese de que a passividade feminina é constitucional é baseada por
Deutsch na hipótese filogenética. Para explicar tal hipótese, ela faz referências
às fêmeas animais e também à hegemonia de seu comportamento passivo.
Quanto ao masoquismo, a psicanalista fundamenta-o em dois aspectos
da feminilidade: o do individualismo e o da espécie. O masoquismo feminino
teria como função a adaptação à realidade. Dois destinos são dados à
sexualidade feminina: a obtenção de prazer e a dor implicada na função
reprodutora. A dor, tanto no ato sexual quanto no parto, teria que ser suportada
pela mulher para que ela alcance seus objetivos.
Ernest Jones, em 1927, inicia-se nesse debate com uma questão: a
angústia de castração do homem corresponderia a da mulher? Para ele, a
castração teria impossibilitado a visão do conflito fundamental que está em jogo
na mulher. Seu texto, O desenvolvimento inicial da sexualidade feminina, serve
de referência para muitos psicanalistas, inclusive Jacques Lacan.
Ele introduz o conceito de aphanisis5 para explicar a extinção de prazer
sexual do homem frente ao medo da castração. Esse medo em ambos os
sexos seria exatamente a mesma coisa, a aphanisis.
Entre os sexos, a diferença psíquica e comportamental, seria
determinada pela ordem biológica. Neste caso, o mecanismo da aphanisis teria
que ser diferente. Enquanto no homem está em jogo a forma ativa da
castração, na mulher a separação é seu medo primitivo. A mãe como rival se
coloca entre a filha e o pai. Desta forma, a mulher estaria mais dependente de
seus pais querendo ter gratificação e aceitação por parte destes.
O termo privação é introduzido por Jones para abordar esse horror à
aphanisis. Esse conceito é, a seu ver, a origem do sentimento de culpa e da
formação do superego. Uma fórmula é proposta: privação = frustração. A
primeira defesa formada contra a ameaça de privação dos desejos sexuais é a
construção do superego.
Sobre a inveja do pênis, Jones acredita que a vagina é um órgão
receptivo, assim como a boca e o ânus. A inveja do pênis e o desejo do pênis
do pai, assim, precisam ser distinguidos. Ao desejo do pênis do pai refere-se a
fantasia de ser penetrada por ele no coito. A não realização dessa fantasia
despertaria na mulher o desejo de ter um pênis. Diante de tal fato, dois
destinos existiriam: a menina teria que sacrificar sua feminilidade, e daí
teríamos o complexo peniano, ou abrir mão de sua ligação erótica com o pai e
desenvolver uma atitude vaginal positiva. Então, tal inveja seria uma regressão
e uma defesa por não ter obtido um pênis do pai.
5
Que significa desaparecimento.
Em 1928, o debate se torna ainda mais intenso com Melanie Klein,
quando esta declara suas hipóteses. Para ela, o complexo de Édipo atua na
vida psíquica da criança desde o desmame. No caso da menina, o sofrimento
ocorrido pelo desmame provocaria o deslocamento da libido, que antes era
direcionado à mãe, para o pai. As tendências genitais seriam reforçadas tanto
pelo desmame quanto pelas frustrações de seus impulsos anais.
Enquanto essa psicanalista coloca a privação do peito como sendo a
causa da aproximação do pai, Freud, ao contrário, pensa que é a ausência do
pênis que irá promover tal distanciamento da mãe e conseqüentemente, a
aproximação do pai. Para Klein, a menina deseja incorporar o pênis paterno
como objeto de gratificação oral e não possuir um pênis para si. Tal desejo é, a
seu ver, expressão das tendências edípicas e não produto de seu complexo de
castração.
Outro ponto de discordância entre Melanie Klein e Freud é quanto ao
superego feminino. Segundo ela, esse é tão ou mais exacerbado que o
superego masculino. Isso ocorre por causa da complexidade das identificações
primitivas da menina com sua mãe e depois com o pai, e também devido ao
sadismo característico nessas relações desde as primeiras fases do
desenvolvimento libidinal.
De acordo com Horney, Klein acredita que o reconhecimento
inconsciente e consciente da vagina seria provocado pelo surgimento dos
impulsos edípicos. Quanto a Deutsch, o ponto de encontro entre elas reside na
idéia de que o desenvolvimento da feminilidade seria completado pelo
deslocamento da libido oral a genital.
Sobre a preocupação das mulheres com a beleza e também quanto a
maior susceptibilidade à histeria de conversão, Klein expõe dois motivos: o fato
dos seus órgãos genitais serem internos, dificultando verificar as fantasias de
retaliação por parte da mãe; e o fato do desejo de maternidade da menina não
poder ser concretizado até a fase adulta.
Daremos continuidade a esse cenário conturbado dos anos 20 no
próximo item deste capítulo com a contribuição original de outra psicanalista
chamada Joan Rivière. Esta aborda a feminilidade como disfarce.
3.2 A MASCARADA FEMININA
A sexualidade feminina ganha um novo estatuto com o conceito de
mascarada, representando um maior entendimento da feminilidade.
Para
abordarmos
a
questão
da
mascarada
faz-se
necessário
retornarmos, primeiramente, ao que Lacan nos ensina no final dos anos 50,
quando ele faz referência à mascarada em sua relação com o feminino. A
mulher para encobrir, camuflar, esconder a sua falta se mascara de ser, ser o
falo.
Como já sabemos, a fórmula freudiana, diante da divisão que a
castração produz, envolve o ter/não ter o falo. A mulher freudiana está do lado
da falta-a-ter e retomando a idéia freudiana, três respostas são viáveis: a
escolha pela neurose, o complexo de masculinidade e a maternidade.
Entretanto, nas idéias lacanianas há um desdobramento do ter para ser o falo.
Através da mascarada, a mulher faz algo com sua falta com o objetivo
de despertar o desejo do homem. Por essa via podemos pensar em uma
possível resposta para a pergunta: o que quer uma mulher? Ela quer que sua
própria existência seja metáfora do desejo do Outro. (ZALCBERG, 2007, p. 73).
Muitas mulheres mudam, com extrema facilidade e rapidez sua
aparência de forma camaleônica. A mulher mascarada é aquela que “abre
mão” de parte de seus atributos femininos, de todos os seus atributos na
mascarada para ser o falo. (LACAN, (1958), 1998). Na posição de não-toda,
não totalmente referida à função fálica, ela recorre às máscaras frente à não
posse de uma identidade feminina. Caldas Ribeiro escreve: “De um lado, elas
se valem do semblante de forma inevitável, porém do outro, estão diretamente
vinculadas à falta de um significante em que possam se ancorar numa
identidade”. (CALDAS RIBEIRO, 1995, p. 37).
Segundo Lacan, a mascarada equivale ao conjunto de meios aos quais
as mulheres recorrem para, de maneira enganosa, dissimular a falta de uma
identidade especificamente feminina. É, ao mesmo tempo, máscara e véu do
que não se tem. Um verdadeiro arsenal é evocado para sustentar a ausência
do significante que lhe diria quem é como mulher.
Para Zalcberg (2007), a mascarada representa não só uma solução,
mas também constitui um problema.
A solução implica em um saber fazer com a falta que existe em todo
sujeito feminino: a mascarada deixa claro que cabe à mulher fazer-se mulher,
da mesma forma que deve o homem mostrar-se homem (ZALCBERG, 2007, p.
66). Cada mulher irá inventar, de uma maneira criativa e subjetiva, o que fazer
com a falta-a-ser. Freud acredita que a mulher não nasce mulher e sim se torna
uma.
No caso do problema, a mascarada leva a mulher ao campo da
significação fálica, ou seja, pretende ter para esconder. Isso irá fazer com que
ela se distancie do eixo através do qual poderá caminhar em direção à
feminilidade.
Podemos observar que uma mulher, quando se coloca do lado da faltaa-ter e faz semblante de que tem, está na mesma posição de um homem que
vai em busca de um complemento que venha suturar a fratura produzida pela
castração.
No texto Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina
(1960), Lacan aprofunda o aspecto da contradição referente aos dois destinos
do corpo da mulher. Primeiro, a identificação ao padrão fálico, e segundo a
aptidão para um destino mais feminino. A mulher quanto mais identificada ao
falo, mais se afasta da especificidade da sua sexualidade, que envolve um
gozo que lhe é particular, gozo suplementar.
Voltemos aqui ao que Lacan citou no seu texto A significação do falo:
[...] é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a
mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade,
nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela
não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada.
(LACAN, (1958), 1998, p. 701).
Nessa citação, Lacan faz uma referência implícita a um texto de Joan
Rivière. Lacan utiliza-se de Rivière no que ela aborda sobre a mascarada
feminina e afirma que esta não deixa de ser uma construção do feminino. Para
ele não existe uma essência feminina. Ao contrário, a seu ver, o feminino se
constrói.
No curto artigo La femineidad como máscara6 de 1929, respaldada pela
sua clínica, Rivière traz contribuições originais e interessantes à questão da
feminilidade, e defende que a feminilidade não passa de uma máscara: uma
mulher é sempre uma mascarada. Sobre a equivalência entre a mascarada e a
6
Este texto precede duas grandes contribuições freudianas: A sexualidade feminina (1931) e
Feminilidade (1932).
verdadeira feminilidade, ela escreve: “O leitor pode perguntar-se como posso
distinguir a feminilidade verdadeira do disfarce. De fato não defendo que tal
diferença exista. A feminilidade, seja fundamental, seja superficial, é sempre a
mesma coisa.” (RIVIÈRE, 1929, p. 15-16).
Sobre tal equivalência exposta acima, Joan Rivière aposta que a única
diferença estaria na maneira como a feminilidade é utilizada: não como um
modo de gozo primário e sim como uma forma de defesa contra a angústia
promovida pelos conflitos edípicos.
A tese de Rivière é: “Aquelas mulheres que desejam a masculinidade
podem revestir-se da máscara da feminilidade para afastar a angústia e a
vingança dos homens”. (RIVIÈRE, 1929, p. 12). Ou seja, a mulher, na tentativa
de evitar a angústia, coloca-se na posição de mascarada.
A autora ilustra a sua tese relatando um caso da sua clínica. Trata-se de
uma mulher casada, com filhos, excelente dona-de-casa, intelectual, engajada
em uma carreira de propagandista militante que sofre de um sintoma toda vez
que é obrigada (e isto ocorre com freqüência) a escrever e falar em público.
Tal mulher, tomada por uma forte angústia, teme ter cometido um erro:
ter dito algo inapropriado, inconveniente; e sente a necessidade de se fazer
reassegurar de que nada lhe aconteceria. Isso a leva atrair as investidas dos
homens na saída das reuniões onde desempenhará o papel principal.
Apresentando-se como não possuidora do falo, procura seduzir os homens.
Desses homens ela espera mais a manifestação de um desejo sexual do que
um cumprimento quanto ao valor de seu desempenho. Quer dizer, ela
esperava, por trás de um reconhecimento de seu trabalho, a manifestação de
um desejo sexual. Sobre a estratégia de tal paciente, Caldas Ribeiro escreve:
[...], a função da máscara é a de causar desejo justamente porque
não mostra e assim leva a supor que há algo quando, na verdade não
há. [...] Lacan ressalta, no texto de J. Rivière, a sutileza do
deslizamento do ter para o ser o falo. (CALDAS RIBEIRO, 1995, p.
38).
A paciente dirige-se a um tipo específico de homem, este substituto da
figura do pai: um intelectual que tinha sido escritor antes de escolher a carreira
política. Ao mesmo tempo em que essa jovem mulher se encontra identificada
ao pai pelo significante escritor, ela rivaliza com ele como detentora do falo que
se apresenta em suas conferências.
Rivière explica que sua paciente exibe o falo que teria roubado do pai e
se oferece a ele no plano sexual para não ser punida, disfarçando-se de mulher
castrada. A feminilidade é portada, portanto, como uma máscara com o
objetivo de disfarçar sua masculinidade e evitar uma vingança por parte dos
homens que se sentiriam roubados de seus atributos: “como ladrão que mostra
seus bolsos e exige que nós o revistemos para provar que ele não detém os
objetos roubados”. (RIVIÈRE, 1929, p. 15). De forma cômica, Joan compara
assim a feminilidade à situação de alguém tomado como ladrão.
Joan Rivière nos fornece uma grande contribuição para o estudo da
sexualidade feminina, e tem também um ponto em comum com Lacan. Lacan
destaca que, na partilha dos sexos, a inscrição do sujeito não está baseada em
uma diferença anatômica, como também acredita Rivière. O pênis surge como
máscara de falo, ou seja, o pênis encarna a máscara da falta-a-ser. Da mesma
maneira, a mulher recobre seu corpo com máscaras. Ela pode ser para o
homem o falo. Ele, homem, a mascara de falo ao tê-la como objeto de desejo
de sua fantasia. Sobre o desejo, Soler, em seu livro O que Lacan dizia das
mulheres (2005), aponta que não podemos padronizar as condições
imaginárias da fantasia do desejo masculino. A psicanálise nos revela que
condições imaginárias particulares existem para cada sujeito.
Para Rivière, a mulher castrada é aquela que se deixa ser admirada pelo
homem. Observamos aqui uma certa proximidade com Lacan, pois este postula
que a mulher histérica se recusa a sustentar-se como objeto causa de desejo,
no lugar de objeto a, para o homem. Para ser admirada, portanto, a mulher tem
que aceitar sua castração, seu sinal de menos, seu lugar de objeto a.
O fascínio da mulher para o homem reside no “não ter” da mulher, que
se apresenta sob o signo de uma falta. Soler nos diz: “Ela só é objeto sob a
condição de encarnar para o parceiro a significação da castração, e se
apresentar sob o sinal do menos”. (2005, p. 34). Isto equivale ao que Lacan
nos ensina no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano: “é a ausência do pênis que faz dela o falo, objeto do desejo”.
(LACAN, (1960), 1998, p. 840).
Gallano em La alteridad femenina (2000) retorna ao enigma insolúvel da
feminilidade tratado por Freud abordando a mascarada:
Pode, por um lado, encontrar sua identidade na pseudo identidade de
semblante, a mascarada [...] E por outro lado, pode tornar-se mãe,
ser tomada como mãe e tamponar o campo ignorado de seu gozo
com valor fálico do objeto bebê. (GALLANO, 2000, p. 61).
Uma reportagem do Jornal O Globo7 no Caderno Ciência e Saúde (p.
50) nos aponta que para as mulheres a preservação da beleza é uma
afirmação da sexualidade. O investimento no corpo ocorre em todas as faixas
etárias apesar de se manifestar de forma diferente. Uma pesquisadora8 da
PUC-Rio, em um levantamento realizado em 2007, verifica que as mulheres
estão mais preocupadas em impressionar as outras do que em chamar atenção
7
8
28 de Outubro de 2007.
Joana Novas.
dos homens. Confirma-se, assim, na contemporaneidade, algumas premissas
da psicanálise sobre a feminilidade: a falta de um significante essencialmente
feminino, a função da mascarada e a importância de outra mulher. Podemos
considerar que, na sociedade contemporânea, os recursos da medicina
estética como as cirurgias plásticas, botox, silicone, correspondem aos apelos
do culto ao corpo característico de nossa época, mas também atendem ao que
a mulher busca como mascarada no caminho de sua feminilidade.
3.3 A FALTA DO SIGNIFICANTE “FALA” NA CLÍNICA DA
MULHER
Proponho aqui retornarmos à questão da falta do significante de uma
identidade feminina. Apesar de não existir um significante da mulher, ela insiste
que o Outro lhe responda: O que é uma mulher? A falta do significante está no
centro da problemática da mulher. Zalcberg escreve:
As queixas femininas são freqüentes e numerosas. ... Se as mulheres
queixam-se mais facilmente, é porque a confissão de suas fraquezas
de ser, de sua tristeza, de sua dor, de seu desamparo,..., é mais
compatível com as imagens conhecidas da feminilidade do que com
os ideais da virilidade. (ZALCBERG, 2007, p. 77).
Evoquemos a prática clínica:
Uma analisanda vem sofrendo com o término do namoro. Após um ano
de relacionamento, o namorado diz que não a ama mais. Desesperada, liga
para a analista, chora ao telefone, diz que quer morrer e afirma: Estou
atrapalhando o seu final de semana... Está aí curtindo o seu companheiro. Para
ela, a analista tem neste momento o que ela não tem: um namorado, tem o
segredo de como manter um homem ao seu lado. Como mulher, a paciente
está dilacerada, sente–se um lixo: feia e gorda. O que precisa fazer para tê-lo
de volta? Na analista fica depositada a resposta de como ser mulher, de como
ser mulher para um homem.
Outra jovem analisanda, queixa-se do namorado. Segundo conta, ele é
frio, não lhe faz carinho e passa o dia sem beijá-la. Já o traiu várias vezes: “já
que não tenho isso com ele, vou procurar em outros”. Como mulher sente-se
infeliz, não tem nem mais vontade de se arrumar para sair com o namorado.
Pensa que o namorado só a vê como uma simples companheira e não como
uma mulher desejada. Como mesmo diz, seu valor como mulher está
totalmente atrelado ao namorado. Relata também que sempre abre mão de sua
vida para ver o namorado feliz.
Nesses dois casos verificamos a dor de todo desamparo. Elas dizem:
faço tudo por nada. Abdicam de sua própria vida querendo que o outro lhes dê
sempre mais e mais.
Nessa clínica escutamos a articulação do discurso do amor com a falta
do Outro. Ao Outro ela pergunta: você me ama? Na posição histérica, a mulher
faz seu ser depender, em grande parte, do amor. Através do amor, ela busca
uma sustentação para seu ser, ou melhor, ela visa obter uma harmonia para
sua indefinição. É no encontro com o desejo do homem que dela se faz uma
mulher amada. Se, para uma mulher, a prova essencial do desejo do Outro
falha: “um buraco se abre sobre seus pés pelo qual ela escorregará facilmente
para uma passagem ao ato ou ao desespero”. (ZALCBERG, 2007, p. 74).
No caso do homem, na maioria das vezes, o problema, ao contrário da
mulher, não passa pelo amor. Sua preocupação gira em torno da dúvida, em
conseguir escolher uma mulher: qual seria a melhor parceira?
Exponho aqui outro caso da nossa clínica:
Uma jovem em análise ilustra muito bem em seu relato aquilo que
considera que como mulher deveria ter para ser desejada e refere-se a uma
atriz da Globo que é invejada por muitas mulheres. Ela diz: Gostaria de ser
como essa atriz... Não pelo corpo escultural e os seios de silicone, mas sim
pela forma que os homens a vêem... Eles babam por ela... Adoraria ser olhada
de mesma forma.
Pommier escreve (1987): “[...] sua feminilidade lhe é estranha, ela
venera, através do seu próprio corpo, o mistério da Outra mulher, que detém o
segredo daquilo que ela é”. (p. 35). Segundo ele, não é apenas através do
olhar de um homem que a mulher assimila uma feminilidade. Nesse mesmo
livro Pommier relata que é através de um jogo de múltiplas identificações,
iniciado com a mãe e perpetuado nas relações com as outras mulheres, que a
mulher se constitui em relação ao seu sexo. Parece haver uma reedição da
relação da filha com a mãe na relação de uma mulher com outra. O que está
em jogo para mulher é o fato da Outra ter ou não o falo.
4. HISTERIA
A Psicanálise deve grande parte de suas descobertas às histéricas... Se Freud deve às
histéricas a descoberta da transferência, estas devem o dar-lhes, através de sua escuta, uma
possibilidade de se reencontrarem com seu próprio desejo alienado no sintoma.
(LIBÓRIO, 1991)
4.1 UMA ABORDAGEM HISTÓRICA: ANTECEDENTES DA
PSICANÁLISE
Antes de Freud a história da etiologia da histeria se divide em vários
grandes períodos: Antiguidade, Idade Média, Renascimento.
Em sua origem, a histeria encontra sua definição na própria palavra:
doença do hystera, ou seja, do útero (ou matriz). A histeria é uma questão de
mulheres, ou melhor, das parteiras. Estas acumulam o saber sobre a arte de
colocar no mundo crianças, sobre os mistérios da infância, sobre o sexo da
mulher e as doenças que o acometem. Desta forma, duas características eram
associadas: déficit funcional de um órgão sexual e déficit relativo às mulheres.
Na Antiguidade e em Hipócrates, a histeria era considerada uma doença
orgânica de origem uterina e, portanto, feminina, que afetava o corpo em sua
totalidade, por sufocações da matriz, sufocação que vem da migração de baixo
para cima do útero.
A idéia de que o útero é um organismo vivo semelhante a um animal
dotado de certa autonomia e de uma possibilidade de deslocamento vem
desde a Antiguidade, cerca de 2000 anos antes de Cristo. Desde a medicina
egípcia, com o papiro Kahoun, um grande número de perturbações era
explicado devido às migrações do útero para a parte superior do corpo. O
remédio utilizado era fazer o útero voltar ao seu lugar supostamente natural,
fazer descer esse estranho animal. Relações sexuais, gestações e trabalhos
manuais ajudariam a acalmá-lo. Eis o que Hipócrates diz a esse respeito: “Esta
afecção sobrevém sobretudo às mulheres que não tem relações sexuais e às
mulheres de uma certa idade, mais do que às jovens; [...]”. (TRILLAT, 1991, p.
19). Platão, contemporâneo e amigo de Hipócrates, dizia que o que chamamos
de matriz ou de útero nas mulheres é nelas um ser vivo tomado de desejo de
fazer filho. O útero se irrita, agita-se em todos os sentidos dentro do corpo
quando elas permanecem estéreis durante muito tempo, impedindo-as de
respirar e ocasionando outras séries de doenças. (KAUFMANN, 1996). Platão,
ao retomar a tese hipocrática, destaca que a mulher, diferente do homem,
trazia em seu seio um animal sem alma. Tal crença deu suporte às teorias da
histeria até o começo da era cristã.
O cristianismo, a partir de Santo Agostinho, foi contrário a essa etiologia
– o gozo do sexo não podia ser um remédio devido ao fato da natureza não ser
um princípio de ordem. A natureza é desordenada e enganosa por causa do
mal
introduzido
por
maus
espíritos
e
demônios.
Os
sintomas
são
conseqüências da vitória das forças do mal. Houve, nesse período, a recusa da
abordagem médica e a palavra “histeria” quase deixou de ser empregada. O
que antes era chamado de histeria ganha o nome de possessão diabólica,
possessão que se manifesta sobre o corpo enfeitiçado por influência de uma
ordem erótica: visões e carícias. As convulsões e as sufocações da matriz
eram a expressão de um prazer sexual, de um pecado.
As neuroses então, na Idade Média, apareceram sob a forma de
epidemias, conseqüência do contágio psíquico, e encontravam–se na base da
história da possessão e da feitiçaria. Em conseqüência de um pacto com o
demônio, a feitiçaria tinha o poder sobre o corpo daquele a quem quer fazer
mal, poder esse de enfeitiçar, lançando uma praga. Os exorcistas curavam,
com suas palavras expulsando o demônio. Ao poder político cabia a execução
da condenação. A alma estaria salva se tivesse havido confissão, caso
contrário, ao inferno estaria condenada. Em relação à sua sintomatologia,
documentos daquela época (século XV) nos mostram que não houve
modificação9.
Um retorno da Antiguidade ocorreu com o Renascimento. Esse
movimento cultural teve início no século XIV na Itália e no século XVI no norte
da Europa. A caça às bruxas fez inúmeras vítimas, mesmo que a opinião
médica tentasse resistir à concepção demoníaca da possessão. O médico
alemão Jean Wier (1515-1588) foi contra o poder da Igreja e defendeu as
“possuídas” destacando que elas não eram responsáveis por seus atos. Era
necessário considerar toda sorte de convulsivas como doentes mentais. Na
verdade foi Mesmer que contribuiu para a passagem da concepção demoníaca
da histeria (da loucura) para uma concepção científica. Assim, a histeria
escapou da religião, transformando-se numa doença dos nervos.
Nesse período ocorreram transformações sociais, científicas, culturais,
religiosas e políticas. A histeria foi caracterizada como uma doença que
depende de causas internas e naturais. Desta forma, houve o nascimento de
uma ciência teórica e terapêutica.
Três correntes distintas se formam a partir do século XVII na busca de
9
Freud concluiu em 1893, Charcot, que a teoria de uma divisão (splitting) da consciência já
estava presente na Idade Média, quando a possessão demoníaca era vista como causa dos
fenômenos histéricos. Era preciso somente trocar a terminologia religiosa daquela época
obscura e supersticiosa pela linguagem científica.
uma etiologia da histeria. A primeira, uma corrente organicista na GrãBretanha. A teoria uterina de Hipócrates foi contestada em nome da neurologia.
Esse período é marcado pelo abandono da teoria uterina que reinava desde
Hipócrates e Platão. Um distúrbio nervoso do cérebro é a causa da histeria.
Com a segunda corrente (Sydenha na Grã-Betanha e Pinel na França),
a histeria recebe pela primeira vez um fundamento psíquico; é conseqüência
de uma desordem das paixões e não está ligada a uma doença orgânica do
cérebro. A histeria era tida como uma alienação mental, uma afecção do
espírito, que exigia um tratamento moral ou psíquico.
A terceira via surge a partir do século XVIII, com Mesmer na França,
Braid na Grã-Betanha e Charcot em Salpêtrière. Eles mostram o poder da
hipnose sobre os sintomas histéricos. Os sintomas formaram um quadro clínico
do ponto de vista de Charcot. A histeria para ele tinha sua etiologia na
hereditariedade, na degenerescência.
4.1.1 De Charcot a Freud
Sigmund Freud inicia sua carreira universitária no curso de medicina em
Viena aos dezessete anos, e na primavera de 1881, já com 25 anos de idade,
tira seu diploma de médico. Sua imensa curiosidade e preocupação com a
pesquisa impedem-no de se formar no prazo usual de cinco anos do curso.
Dedica-se inicialmente, segundo conta, aos temas humanísticos
(filosofia), que apesar de não terem relação direta com sua futura profissão,
não são inúteis a ele.
Ainda estudante, Freud, em 1876, vai trabalhar no laboratório de
fisiologia de Ernst Brücke, sob cuja direção efetua pesquisas de histologia
nervosa. Depois de formado, ingressa no serviço do grande psiquiatra Theodor
Meynert, dedicando-se, por essa época, a estudos de neuroanatomia.
Resolve partir para clínica particular por causa da questão financeira.
Essa será a via para obter o considerável rendimento necessário para montar o
lar de classe média em que ele e sua futura esposa insistem. Freud, até então,
não havia adquirido experiência clínica com pacientes, coisa que nunca obteria
fazendo experiências em laboratório e ouvindo conferências.
Em 1884, ele se interessa pela pesquisa sobre a cocaína e pela
descoberta de suas propriedades analgésicas. Ele está pensando em
experimentar seus possíveis usos para aliviar problemas cardíacos e casos de
esgotamento nervoso. Em torno dessa pesquisa há todo um interesse pessoal.
Ele espera que a cocaína possa ajudar seu colega Ernst von Fleischl-Marxom,
que está sofrendo as dolorosas conseqüências de uma infecção, a largar seu
vício em morfina, que estivera tomando como anestésico.
Nos
anos
1880,
continua
com suas
pesquisas em
anatomia,
especialmente cerebral, e inicia sua dedicação à psiquiatria. Relata que a
anatomia do cérebro não foi nenhum avanço em relação à fisiologia. O ramo do
estudo de doenças nervosas em Viena pouco é praticado.
Freud, em 1885, obtém da Universidade de Viena uma bolsa de estudos
para continuar suas pesquisas sobre neuropatologia em Paris, no Hospice de
La Salpêtrière. Vários fatores contribuem para sua escolha, entre eles, o
grande acervo de material clínico que, em Viena, não é de fácil acesso, e a
possibilidade de acesso à experiência do renomado psiquiatra J.-M. Charcot
que, por dezessete anos, já trabalhava e lecionava em Salpêtrière.
Freud afirma que nada de novo poderia esperar aprender numa
universidade alemã, e acrescenta que a escola francesa de neuropatologia
parecia a ele prometer algo diferente. Cientistas franceses ingressam em novas
áreas da neuropatologia que são abordadas de formas parecidas pelos
cientistas da Áustria e da Alemanha. As descobertas dos médicos franceses
sobre o hipnotismo e a histeria, segundo Freud, são recebidas em seu país
com dúvidas, sem reconhecimento e crédito.
Inicialmente, quando chega em Paris, seu tema de estudo é a anatomia
do sistema nervoso, ou melhor, o estudo das atrofias e degenerações
secundárias que seguem às afecções do cérebro nas crianças. Entretanto, no
principio de dezembro do mesmo ano, ele dá às costas à neurologia e se volta
para psicopatologia, quando termina seu trabalho no laboratório de patologia.
Sua mente está povoada com os problemas da histeria e do hipnotismo após
obter a permissão de Charcot para ver pacientes no laboratório experimental
da histeria.
A grande influência pessoal de Freud é Jean-Martin Charcot (18251893), cujo campo de estudo é a neurologia, tendo sido nomeado médico do
Salpêtrière (hospital de mulheres) em 1862. Charcot, anos antes (1856),
quando ainda é médico recém-formado, percebe a necessidade de fazer das
doenças nervosas crônicas e de sua base anatomopatológica, um tema de
estudo constante e exclusivo.
Charcot se dedica à histeria a partir de 1870, sendo responsável pela
direção do pavilhão dos “epiléticos simples”, e abandona a neurologia. Freud
relata sobre Charcot e sua relação com a histeria:
Ele declarou que a teoria das doenças nervosas orgânicas estava
então bastante completa e começou a voltar sua atenção quase
exclusivamente para a histeria, que assim se tornou de imediato o
foco do interesse geral. Esta, a mais enigmática de todas as doenças
nervosas, para cuja avaliação a medicina ainda não achara nenhum
ângulo de enfoque aproveitável, acabara então de cair no mais
completo descrédito, e esse descrédito se estendia não só aos
pacientes, mas também aos médicos que se interessassem pela
neurose. (FREUD, (1893), 1996, p.28).
Charcot e seus discípulos se dedicam a investigar as diferentes formas
de perturbações da sensibilidade da pele e dos tecidos mais profundos, e do
comportamento dos órgãos dos sentidos, estudando–os por intermédio tanto
das peculiaridades das paralisias e contraturas histéricas quanto das zonas
histerógenas (fazendo a relação destas com os ataques) – pontos ou placas
super sensíveis do corpo suscetíveis de desencadear ataques e distúrbios do
campo motor e visual. Tais áreas são encontradas com mais freqüência no
tronco do que nos membros e têm preferência por determinados locais que nas
mulheres equivalem a uma área da parede abdominal correspondente aos
ovários, na região coronária do crânio e na região inframamária; e nos homens
nos testículos e no cordão espermático. É descoberto que a histeria nos
homens, especialmente nos da classe trabalhadora, é bastante freqüente.
Desta maneira, graças a Charcot, há a recuperação e a retomada da histeria.
Em 1878, Charcot inicia o estudo e a prática do hipnotismo, mostrando o
poder da hipnose sobre os sintomas histéricos. Esse procedimento, até então
reservado a charlatões, desperta o interesse da comunidade científica. Seu
aluno Paul Richer (1849-1933) reúne o resultado de suas pesquisas em uma
obra sobre o grande histérico, levando a público na Academia de Ciências em
1882 e desencadeando o interesse científico pela hipnose. (CHARCOT, 2003).
Jean-Martin Charcot descreve três estados hipnóticos. No cataléptico e
no letárgico, o sujeito é inapto à sugestão. Já no sonambúlico, a submissão do
sujeito é total aos caprichos do hipnotizador. O conteúdo é introduzido
facilmente pelos procedimentos habituais de sugestão magnetizadores.
Segundo o aluno Richer, “o sonâmbulo nada mais é que uma simples máquina.
É escravo da vontade de um outro, o verdadeiro sujeito do operador. Seu
automatismo é feito de servidão e obediência”. (CHARCOT, 2003, p. 9).
Freud escreve sobre a característica “não teórica” de Charcot:
Não era Charcot um homem dado a reflexões excessivas, um
pensador: tinha, antes, a natureza de um artista — era, como ele
mesmo dizia, um “visuel”, um homem que vê. Eis o que nos falou
sobre seu método de trabalho. Costumava olhar repetidamente as
coisas que não compreendia, para aprofundar sua impressão delas
dia-a-dia, até que subitamente a compreensão raiava nele. Em sua
visão mental, o aparente caos apresentado pela repetição contínua
dos mesmos sintomas cedia então lugar à ordem: os novos quadros
nosológicos emergiam, caracterizados pela combinação constante de
certos grupos de sintomas. (FREUD, (1893), 1996, p. 21-22).
Essa postura de pesquisador de Charcot afirma a autenticidade e a
objetividade dos fenômenos histéricos, dando dignidade à histeria e indo contra
os preconceitos e a suposição de que esses fenômenos eram somente uma
simulação dos doentes. Em séculos anteriores, os histéricos tinham sido
lançados à fogueira ou exorcizados; seu estado era tido como indigno de
observação clínica.
Durante doze anos, Charcot dá aulas de clínica como professor
voluntário e, em 1881, ocupa a cátedra de Neuropatologia em Salpêtrière.
Funda uma seção clínica, na qual eram internados para tratamento pacientes
tanto masculinos quanto femininos, selecionados a partir das consultas
semanais realizadas num departamento de pacientes de ambulatório. Sua
concepção
“neurológica”,
considerada
científica
e
séria,
possibilita
a
generalização da histeria para os dois sexos. É atribuída à histeria masculina
uma causa traumática, como os acidentes ferroviários, por exemplo. As
massas trabalhadoras eram chamadas de histéricas quando entravam em
greve.
Charcot tem à sua disposição um estúdio de fotografia, um serviço de
oftalmologia e de otorrinolaringologia, um instituto de eletricidade e hidropatia;
e até um museu de patologia com moldes em gesso de paralisias e
contraturas. Esse serviço no hospital de Salpétrière adquiriu fama internacional,
atraindo Freud e outros médicos de diversas nacionalidades. Charcot, em seu
trabalho, rompe com a tradicional visita médica ao leito dos doentes, fazendo
com que os pacientes viessem ao seu gabinete para serem examinados e os
apresenta a uma audiência mais ampla nas terças-feiras. O jovem Freud
assiste a essas aulas públicas durante seu estágio de outubro de 1885 a
fevereiro de 1886 e assim descreve sua experiência:
Tive, assim, oportunidade de ver um grande número de pacientes, de
examiná-los e de ouvir a opinião de Charcot a respeito deles. O que
me parece ter tido maior valor do que essa efetiva aquisição de
experiência foi, no entanto, o estímulo que recebi, durante os cincos
meses que passei em Paris, do meu constante contato científico e
pessoal com o Professor Charcot”. [...] a clínica era acessível a
qualquer médico que se apresentasse, e o trabalho do Professor era
executado abertamente, cercado de todos os jovens que atuavam
como seus assistentes, [...]. Parecia que ele, por assim dizer,
trabalhava conosco, pensava em voz alta e esperava que os
discípulos lhe apresentassem objeções. [...] A informalidade que
prevalecia no relacionamento e a maneira como cada um era tratado,
com cortesia e em condições de igualdade [...], facilitavam a situação,
de modo que até os mais tímidos tinham a mais viva participação nos
exames de Charcot. (FREUD, (1956[1886]), 1996, p. 43-44).
“Uma vez derrubadas suas teorias e desaparecidos os quadros por ele
descritos, Charcot não caiu em total ostracismo e esquecimento graças a
Freud, que o vinculou ao nascimento da história da psicanálise”. (QUINET,
2005, p. 80). A importância de Charcot para história da histeria e para
constituição da psicanálise é reconhecida e enfatizada por Freud em diversos
momentos da sua vida.
A admiração por Charcot não impossibilitou Freud de fazer críticas à
concepção do mestre sobre a histeria. Ele, de qualquer forma, facilita Freud o
acesso ao material para sua pesquisa em neuroanatomia patológica.
Charcot jamais postula uma causalidade psíquica para a histeria. Seu
interesse é descritivo e nosológico, e não etiológico e terapêutico. Ele utiliza a
hipnose para mostrar a solidez de fundamento de suas hipóteses, e não para
curar ou tratar seus doentes. Ele trata a histeria como sendo um tópico da
neuropatologia, fornecendo uma descrição de seus fenômenos e mostrando
como reconhecer os sintomas que possibilitam fazer o diagnóstico de histeria.
Os fundamentos para o diagnóstico da histeria não eram jamais
estabelecidos pela etiologia ou pelo mecanismo de formação dos
sintomas, mas unicamente relacionados ao tipo previamente
estabelecido e descrito [...] Embora Freud tenha relatado que ouviu
de Charcot a afirmação, [...], de que a histeria c’est toujours la chose
génitale!, seria necessário esperar que o próprio Freud, ao teorizar a
etiologia sexual da histeria e fundar a psicanálise, pudesse comprovála. (CHARCOT, 2003, p. 11).
Freud em seu relatório sobre os estudos em Paris e Berlim, escrito em
1886 e publicado setenta anos mais tarde, resume o que Charcot realiza no
estudo clínico da histeria. Até aquele momento, a palavra histeria não tem um
significado bem definido.
Inicialmente, afirma que o estado mórbido da histeria caracteriza-se
cientificamente apenas por sinais negativos. Havia a suposição de que a
histeria dependeria de irritação genital; não era atribuída à doença histérica
uma sintomatologia definida – qualquer combinação de sintomas poderia
ocorrer; e como já dissemos, existia a suspeita de simulação no quadro clínico
da histeria.
Freud, no departamento de laboratório em Berlim, observa que sinais
somáticos da histeria são praticamente desconhecidos, e que no diagnóstico
de histeria não parece haver interesse em obter informações a mais sobre o
paciente.
Segundo ele, Charcot, posteriormente, reduz a conexão entre a neurose
e o sistema genital, demonstrando a freqüência dos casos de histeria
masculina e de histeria traumática. Com esses casos, Charcot se depara com
vários sinais somáticos que viabilizavam estabelecer com firmeza o diagnóstico
de histeria, com base em indicações, ao contrário, positivas. Com o estudo
científico do hipnotismo Charcot chega à “teoria da sintomatologia histérica” e
reconhece tais sintomas – a natureza do ataque, a anestesia, os distúrbios de
visão, os pontos histerógenos – como sendo reais.
Graças a esse estudo, a histeria é excluída do caos das neuroses e
diferenciada de outros estados semelhantes, além de a ela ser atribuída uma
sintomatologia multiforme que afirma imperar nela uma lei e uma ordem.
Freud afirma não ter visto nenhum sinal de que Charcot tentasse
explorar o material observado para fins místicos. Ao contrário, o hipnotismo é
considerado uma área de fenômenos que Charcot submete à descrição
científica, da mesma forma que fizera com a esclerose múltipla ou com a atrofia
muscular progressiva anos antes. Freud escreve que Charcot “não consegue
descansar enquanto não descreve e classifica corretamente algum fenômeno
que o interesse, mas dorme tranqüilamente sem ter chegado à explicação
fisiológica do fenômeno em questão”. (FREUD, (1956[1886]), 1996, p. 47).
Segundo Freud, em 1888, a histeria é uma neurose que está baseada
em modificações fisiológicas do sistema nervoso, levando em conta as
condições de excitabilidade nas diferentes partes do sistema nervoso.
Na opinião sustentada por Charcot, a histeria é um quadro clínico
circunscrito e bem definido, que pode ser reconhecido nos casos extremos de
“Grande Hystérie” (Grande Histeria) ou histeroepilepsia – casos graves de
histeria que incluíam em seus ataques uma fase epileptóide.
A sintomatologia da “grande histeria” é composta por uma série de
sintomas, entre eles: ataques convulsivos, zonas histerógenas, distúrbios de
sensibilidade, distúrbios da atividade sensorial, paralisias, contraturas. Em
relação ao tratamento direto da histeria, Freud escreve que consiste na
remoção das fontes psíquicas que estimulam os sintomas, ou seja, “consiste
em dar ao paciente sob hipnose uma sugestão que contém a eliminação do
distúrbio em causa”. (FREUD, 1888, p. 93). Segundo relata, uma tussis
nervosa hysterica seria curada fazendo pressão sobre a laringe do paciente
hipnotizado, removendo o estímulo que o faz tossir. Quanto ao maior sucesso
do resultado, Freud afirma:
O efeito até se torna maior se adotarmos um método posto em
prática, pela primeira vez, por Joseph Breuer, em Viena, e fizermos o
paciente, sob hipnose, remontar à pré-história psíquica da doença,
compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica em que se originou o
referido distúrbio. Esse método de tratamento é novo, mas produz
curas bem-sucedidas, que, por outros meios, não são alcançadas. É
o método mais apropriado para a histeria, justamente porque imita o
mecanismo da origem e da cessação desses distúrbios histéricos. [...]
O tratamento psíquico direto dos sintomas histéricos ainda será
considerado o melhor no dia em que o entendimento da sugestão
tiver penetrado mais profundamente nos círculos médicos [...].
Atualmente, não se pode decidir com certeza até que ponto a
influência psíquica desempenha um papel em alguns outros
tratamentos aparentemente físicos. (FREUD, (1888), 1996, p. 93).
Depois que retorna para Viena, em 1886, Freud tem sua atenção voltada
para o estudo do hipnotismo e da sugestão. Como especialista em doenças
nervosas
em
Viena,
ele
tenta
vários
métodos
então
corretamente
recomendados: eletroterapia, hidroterapia, massagens e a cura pelo repouso,
de Weir Mitchell, mas acaba recaindo na hipnose quando esses métodos se
revelam insatisfatórios. Na carta para Fliess, em 28 de Dezembro de 1887,
Freud escreve: “atirei-me à hipnose e logrei toda espécie de sucessos
pequeninos, mas dignos de nota”. (Carta 2 ref. FREUD, (1893-1895), 1996, p.
15).
Freud resume, em 1888, que a histeria é uma anomalia do sistema
nervoso
que
se baseia na diferente distribuição das
excitações
e,
provavelmente, é acompanhada de excesso de estímulos – distribuídos por
meio de idéias conscientes e inconscientes – no órgão da mente.
A amnésia, característica encontrada em pacientes histéricos, como é o
exemplo de Anna O. – paciente tratada por Josef Breuer (1942-1925) entre
1880 e 1882 – nos levou a compreensão de que a mente do paciente possui
por trás uma parte inconsciente. O problema não estava em investigar os
processos mentais conscientes através de métodos empregados na vida
cotidiana, e sim os processos mentais inconscientes utilizando a sugestão
hipnótica com a finalidade de persuadir o paciente a produzir material
proveniente da região inconsciente da mente. Segundo Freud, o verdadeiro
valor terapêutico da hipnose está nas sugestões que são feitas. Sob hipnose,
as lembranças da época em que os sintomas surgiram pela primeira vez
emergiam e eram cessados. Tornava–se claro demonstrar a conexão causal
entre o evento desencadeador (trauma psíquico) e o fenômeno patológico
(sintoma). Com Anna O.10, bastava Breuer ouvi-la sem interrompê-la para que
o material proveniente de seu inconsciente fosse produzido. Esta apresentava
uma série de perturbações físicas datadas da época em que seu pai estava
doente. Anna, nos primeiros meses da doença do pai, dedicou sua energia a
cuidar dele e pouco a pouco sua saúde foi-se deteriorando de forma
acentuada.
Freud encontra obstáculos em adaptar-se ao uso do método hipnótico. O
10
Ela inventou a “cura pela conversa”, talking cure, que de forma jocosa chamava de limpeza
de chaminé.
caso clínico da Sra. Emmy von N. ilustra tais dificuldades. Parece ter sido esse
o primeiro caso a ser tratado por Freud pelo método catártico11. Sobre a
eficácia terapêutica de tal método, Freud e Breuer explicam que o sintoma
desapareceria, ou seja, a força que mantivera o sintoma deixaria de atuar, se a
experiência original traumática junto com seu afeto pudesse ser introduzida na
consciência. (FREUD, (1893-1895), 1996).
Nos anos que se seguiram aos Estudos sobre a histeria, Freud vai
pouco a pouco deixando de lado a sugestão deliberada e passa a confiar mais
no fluxo de associações livres do paciente. Não basta remeter o paciente ao
seu passado de modo que ele próprio encontrasse o fato traumático
produzindo a liberação da carga de afeto. É preciso fazer com que o paciente
vá além da repetição da idéia intolerável. O objetivo não é mais produzir a abreação do afeto, mas tornar consciente as idéias patogênicas possibilitando
sua elaboração.
O abandono do hipnotismo faz Freud ampliar sua compreensão sobre os
processos mentais e revela mais um obstáculo, a “resistência” ao tratamento
pelos pacientes. A opção de Freud por investigar tal relutância leva–o a
explorar o mundo desconhecido pelo resto de sua obra. Sem utilizar a hipnose
Freud verifica que novas lembranças aparecem e que é possível trazer à luz
por mera insistência. Tal insistência exige esforços da parte de Freud; é
necessário superar a resistência, superar uma força psíquica nos pacientes
que se opõe a que as representações patogênicas se tornem conscientes,
lembradas. O processo hipnótico é o maior obstáculo ao processo de defesa,
noção que Freud depois dá o nome de recalcamento: um dos pilares da sua
11
Freud já gozava da confiança de Breuer e tinha tomado conhecimento do seu método antes
de 1885 quando foi para Paris.
teoria (FREUD, (1914), 1996). Na histeria, a conversão é o seu modo de
defesa.
Apesar de abandonar cedo a hipnose como método de tratamento, a
partir do momento em que verifica que apesar de todos os esforços não
consegue hipnotizar muitos pacientes, ele nunca deixa de expressar sua
admiração por ela. Freud dá origem aos desenvolvimentos técnicos,
juntamente com os conceitos teóricos de resistência, recalcamento e
conversão; e afirma que o material recalcado como insignificante pelo paciente
representa para o psicanalista o minério de onde com a interpretação há de
extrair o metal precioso. (FREUD, (1910[1909]), 1996).
Freud teoriza a etiologia da histeria como sendo sexual, criando desta
forma um novo saber: a psicanálise.
A divergência entre Freud e Breuer surge de uma questão relativa ao
mecanismo psíquico da histeria. Para Freud, a divisão mental é conseqüência
de processo de “defesa”. Quanto a Breuer, a divisão mental nos histéricos é
explicada devido à ausência de comunicação entre vários estados mentais –
“estado de consciência”. Ele constrói a teoria dos “estados hipnóides”. A teoria
de “defesa” de Freud passa então a se opor à teoria “hipnóide” de Breuer.
O rompimento entre eles é causado pela crença de Freud de que o
elemento de sexualidade está presente no caso de Anna O. “Breuer disse de
sua primeira e famosa paciente que o elemento de sexualidade estava
surpreendentemente não desenvolvido nela”. (FREUD, (1914), 1996, p. 22).
Anna O., ao longo do tratamento, vem melhorando. No final de dois anos de
trabalho, Breuer resolve atender ao pedido da sua esposa enciumada e
comunica à paciente a interrupção do tratamento. No mesmo dia da
comunicação, Anna tem uma grave crise histérica na qual simulava um parto
de um filho de Breuer. Desta forma, a paciente expressa seu amor erotizado
pelo médico. Este resolve definitivamente sair de cena e partir em viagem com
sua esposa. Freud, ao chamar atenção da sexualidade na etiologia das
neuroses, provoca em Breuer uma reação de desagrado e repúdio.
Charcot, que também não leva adiante a importância do componente
sexual nos sintomas histéricos, coloca as histéricas em cena, desfazendo seus
sintomas por meio da hipnose. Algumas delas demonstram–se apaixonadas
transferencialmente e se tornam vedetes de Salpêtrière.
Tanto Breuer quanto Charcot “passam longe” do que Freud quer
destacar: a transferência. De qualquer forma, a hipótese da etiologia sexual
das neuroses já está presente em ambos, assim como também pensada pelo
ginecologista vienense Chrobak, cuja prescrição médica em latim é: Penis
normalis dosim repetatur. Este último comentara com Freud sobre uma
paciente ainda virgem após dezoito anos de casamento.
4.2
NASCEDOURO
DA
PSICANÁLISE:
FREUD
E
SEUS
ESTUDOS SOBRE A HISTERIA
Freud lança mão da figura da histérica para demonstrar como a teoria e
a clínica se articulam. O nascimento da Psicanálise foi permitido pelo
deslocamento realizado de um olhar sobre os sintomas, como fazia Charcot,
para a escuta de um dizer. Freud, indo além da histeria como patologia,
identifica várias características dos histéricos, principalmente no que diz
respeito à sexualidade. Ele aborda a histeria tirando-a do foco da patologia e
aproximando-a do dito “normal”.
No início da sua obra, Freud defende a origem da histeria como vestígio
de um trauma. O histérico haveria sofrido, na sua infância, uma experiência
traumática. A criança, apanhada desprevenida, fora a vítima de uma sedução
sexual.
No percorrer de suas pesquisas Freud reelabora sua teoria. Suas
correspondências com Fliess nos mostram suas descobertas. Na carta 52,
datada de 6 de dezembro de 1896, Freud faz as primeiras referências às zonas
erógenas. Exatamente quatro meses depois (carta 59) escreve: “[...] O que
tenho em mente são as fantasias histéricas, que, habitualmente, segundo me
parece, remontam a coisas ouvidas pelas crianças em tenra idade e
compreendidas somente mais tarde. [...]”. (FREUD, 6/4/1897). Enfim, em
setembro do mesmo ano na carta 69 ele afirma: “[...] Não acredito mais em
minha neurótica [...]”. (FREUD, 21/9/1897).
A partir de 1900, Freud, portanto, modifica sua teoria colocando a origem
da histeria em uma fantasia inconsciente. É preciso verificar o desenvolvimento
do corpo pulsional e entender que uma experiência vivida enquanto criança
tem valor de trauma.
O que de início era explicado pela ação perversa de um adulto sobre
uma criança passiva, passa a ter o próprio corpo erógeno da criança como
produtor de eventos psíquicos. Esse corpo é sede do desejo, o foco de uma
sexualidade fervilhante.
A partir da segunda teoria freudiana – a teoria da fantasia – o analista
passa a investigar o trauma de uma fantasia angustiante e não mais procurar
por trás do sintoma um acontecimento real.
A fantasia, então, ganha não só força sobre a realidade, mas também
uma dimensão de causalidade na etiologia da histeria e das neuroses em geral.
A etiologia das neuroses passa a ser baseada nas experiências sexuais da
infância devido a vida sexual da criança e não em função de uma experiência
real de sedução.
Na concepção freudiana, a histeria é uma defesa contra a recordação
(idéia) de um evento traumático de natureza sexual ocorrido na infância: “Freud
descreve duas características sexuais da histeria: o desprazer e a contradição
interna de sua sexualidade”. (QUINET, 2005, p. 104). O sujeito ainda criança,
diante de uma experiência sexual, cuja carga de afeto foi insuportável à
consciência, recalca tal idéia (experiência inconciliável) deixando-a ativa no
inconsciente. Já na fase adulta, esse mesmo sujeito, despertado por algum
acontecimento, recorda tal fato e converte em um sintoma corporal.
A etiologia sexual da histeria nos leva à descoberta da natureza sexual
do inconsciente. As leis que regem a histeria são as mesmas que comandam a
formação do sonho: metáfora (condensação) e metonímia (deslocamento).
Como nos diz Carneiro Ribeiro em seu livro A Neurose Obsessiva:
Na histeria, por exemplo, o sujeito pode condensar numa parte do
corpo todo o investimento libidinal. É o caso de uma paciente de
Freud que fez uma paralisia no braço que se encostava na cama do
pai enfermo, do qual cuidava. O braço paralítico era então a metáfora
de sua história de amor edipiano proibido.” (CARNEIRO RIBEIRO,
2003, p. 12).
A significação do sintoma é sexual, apresenta valor simbólico, e
expressa a realização de um desejo. Lembremos que o evento traumático não
necessariamente é vivido e sim fantasiado, mantendo de qualquer forma sua
carga traumática.
Dora12, a jovem paciente de Freud, nos ilustra tal processo. Após a cena
do beijo em que o Sr. K lhe dá estreitando subitamente a moça contra si, Dora
evita ficar a sós com ele recusando–se a acompanhar os K e apresenta três
sintomas: repugnância, sensação de pressão na parte inferior do corpo e evita
conversas afetuosas com os homens. Em sua análise do caso Dora, Freud
afirma:
Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem
uma oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos
preponderante ou exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não
capaz de produzir sintomas somáticos. (FREUD, (1905[1901]), 1996,
p.37).
Freud observa o caráter sexual subjacente aos sofrimentos histéricos de
suas pacientes nos quatro casos que narra nos Estudos sobre a histeria: Sra.
Emmy Von N., Miss Lucy R., Katharina e Srta. Elisabeth Von R.. Sobre esta
última ele escreve:
Ela recalcou uma idéia erótica fora da consciência e transformou a
carga de seu afeto em sensações físicas de dor. (p. 187). Suas [...]
dores sempre se irradiavam daquela região específica da coxa direita
e atingiam ali sua intensidade: era nesse lugar que seu pai
costumava apoiar a perna todas as manhãs, enquanto ela renovava a
atadura em torno dela [...]. (FREUD, (1893-1895), 1996, p. 172).
4.3 COM LACAN
Para Lacan, o sujeito histérico é aquele que se queixa da desordem do
mundo e sustenta um desejo insatisfeito. Há uma recusa para manter-se em
falta, desejante. De uma maneira geral, a histeria está caracterizada também
pela recusa ao sexo. É errado pensar que a histérica quer sexo e que estaria
curada se ficasse satisfeita sexualmente, como fez Chrobak, amigo de Freud e
ginecologista vienense, ao prescrever às histéricas: pênis normalis, dosim
repetatur, como foi apontado no item 4.1.1.
12
Sobre quem falaremos mais no capítulo 5.
Enquanto insatisfeito, o histérico está protegido do perigo de viver a
satisfação de um gozo máximo, gozo que se ele vivesse enlouqueceria,
desapareceria. O problema está em evitar, de qualquer forma, uma experiência
que venha fazer emergir um estado de plena satisfação. O centro da vida
psíquica do neurótico histérico é ocupado pela necessidade de pedir ao Outro
que lhe dê o ser e pela recusa de tornar-se objeto de gozo do Outro.
A conotação de desprazer conferida ao gozo sexual da histérica
encontra-se desde o rascunho K (1896) da correspondência de Freud com
Fliess. Nesse rascunho, anexado à carta 39, Freud busca diferenciar histeria,
neurose obsessiva e paranóia a partir da modalidade de gozo vivida no
primeiro encontro com o sexo. No caso da histeria ele escreve:
[...] pressupõe necessariamente uma experiência primária de
desprazer – isto é, de natureza passiva. A passividade sexual natural
das mulheres explica o fato de elas serem mais propensas à histeria.
Nos casos em que encontrei em histeria em homens, pude
comprovar, em suas anamneses, a presença de acentuada
passividade sexual. (FREUD, (1896), 1996, p. 275).
A mulher histérica procura um mestre que queira saber sobre o mistério
que ela guarda segredo e coloca–se como enigma a ser decifrado. Entretanto,
ela acaba por castrar o mestre de seu saber mostrando–o impotente para dar
conta dela. A Bela Açougueira, paciente de Freud, nos ilustra tal mecanismo
quando lhe propõe contar um sonho:
O senhor sempre me diz... que o sonho é um desejo realizado. Pois
bem, vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto –
um sonho em que um de meu desejo não foi realizado. Como o
senhor enquadra isso em sua teoria? (FREUD, (1900), 1996, p. 180).
O sujeito histérico, desta forma, se oferece como objeto de pesquisa
para justamente desbancar o saber do mestre e reinar, sublinhando as falhas
de sua mestria. Ele desmascara a função do senhor fazendo greve.
Tanto na histeria masculina quando na feminina, o Outro aparece como
detentor do saber sobre o que é ser macho, o que é ser mulher. A presença do
Outro e o questionamento: sou mulher ou homem são fundamentais no
diagnóstico da histeria. A histérica se furta como objeto e dirige à outra mulher
um suposto saber sobre o que é ser mulher. É essa outra mulher que sabe ser
objeto para um homem. Ela detém a chave do enigma a ser decifrado. A
histeria é uma resistência à posição feminina, ou seja, posição de objeto e a
histérica não tolera ser objeto causa de desejo do Outro.13
A histeria é um tipo clínico de neurose, é uma maneira de lidar com a
castração, diferente da neurose obsessiva. A menina, assustada pela
comparação com os meninos e insatisfeita com seu clitóris, abre mão de sua
atividade fálica, de sua sexualidade em geral.
Com referência às neuroses, estas nos revelam a relação do sujeito com
o desejo. Se o desejo é o inferno, como o neurótico escapa desse inferno?14
No caso da neurose obsessiva, o desejo coloca-se como impossível. Já na
histeria, ele se torna insatisfeito, como podemos observar no caso da Bela
Açougueira: esta cria um desejo não realizado pedindo a seu marido que a
prive daquilo de que mais gosta. A histeria sustenta esse desejo confundindo–o
com a demanda e enche o Outro de queixas e insatisfações.
Lacan em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano (1960) escreve que o neurótico é aquele que identifica a falta do
Outro com sua demanda:
[...] no obsessivo, na medida em que ele nega o desejo do Outro,
formando sua fantasia para acentuar a impossibilidade do
esvaecimento do sujeito, e outro no histérico, na medida em que nele
o desejo só se mantém pela insatisfação que lhe é trazida ao se furtar
13
Aula da Prof. Maria Anita C. Ribeiro ministrada em 8/12/2006 – disciplina: Conceitos
Fundamentais de Psicanálise. Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade/UVA).
14
Pergunta instigante formulada na aula da Prof. Maria Anita C. Ribeiro ministrada no dia
17/11/2006 – disciplina: Conceitos Fundamentais de Psicanálise. Mestrado em Psicanálise,
Saúde e Sociedade/UVA.
ali como objeto. Esses traços confirmam-se pela necessidade,
fundamental, que tem o obsessivo de se colocar como caucionador
do Outro, e também pelo aspecto Sem-Fé da intriga histérica.
(LACAN, (1960), 1998, p. 838).
A histeria inspirou Lacan a nomear uma das formas de laço social como
discurso histérico, discurso esse caracterizado pelo fazer desejar. Tomando a
teoria dos discursos de Lacan, encontramos quatro tipos de discursos: do
mestre, da universidade, do analista e histérico.
Quinet, em seu livro Psicose e Laço Social (2006), na apresentação que
faz dessa teoria, refere-se ao trabalho de Freud O Mal-Estar na Civilização
(1930[1929]). Afirma que o mal-estar dos laços sociais é o mal-estar na
civilização. Esses laços, nos diz Quinet, aparecem nos atos de governar e ser
governado, educar e ser educado e, também, como ele mostrou, tanto no
vínculo entre analista e analisante, quando no ato de fazer desejar, como as
histéricas ensinaram. (QUINET, 2006, p.17). Mais adiante, o autor ressalta que
a histeria, aqui, não se refere à neurose do mesmo nome, e sim a uma maneira
de relacionamento humano.
Lacan, por sua vez, estabelece uma analogia entre discurso e cultura
denominando de discursos essas quatro formas das pessoas se relacionarem:
governar, educar, psicanalisar e fazer desejar, visto que tais laços são
entrelaçados e estruturados pela linguagem.
Quinet, então, descreve sobre as quatro modalidades de laço social:
discurso do mestre (governar), da universidade (educar), do analista
(psicanalisar) e do histérico (fazer desejar). Quanto a este último ele afirma:
“quando o médico se vê impulsionado a se deter, a estudar e a escrever para
produzir um saber provocado pelo caso do paciente, estamos no discurso
histérico”. (QUINET, 2006, p. 19).
5. HISTERIA E FEMINILIDADE
Sofremos de uma confusão clínica concernindo à histeria. De fato, qualquer mulher que se
apresente é suposta histérica, a não ser que pensemos que seja louca. Isso é um erro clínico.
A histeria é uma coisa muito preciosa...
(SOLER, 1998, p. 223)
5.1 CLÍNICA DIFERENCIAL: A HISTÉRICA E A MULHER
Primeiramente perguntemos: Por que a histeria presta-se à confusão
com a feminilidade? Para isso propomos agora abordar a estrutura da
linguagem a partir dos sonhos, mostrando que a condição como sujeitos
falantes é estarmos submetidos ao significante, e em seguida trabalhar a
histeria a partir do exemplo da Bela Açougueira.
5.1.1 A psicanálise, o inconsciente, a linguagem e o sonho
Em Radiofonia (1970) Lacan afirma: “[...] a histérica é o sujeito dividido,
ou, em outras palavras, é o inconsciente em exercício, que põe o mestre contra
a parede de produzir um saber” (p. 436). Podemos observar com essa
definição que em todo sujeito há histeria, e revigorar a idéia do núcleo histérico
da neurose – em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem.
Lacan faz referência a esse núcleo ou corpo histérico, em 1953, no
trabalho Função e campo da fala e da linguagem, abordando-o como lugar
privilegiado para recuperar a verdade do discurso inconsciente. Ele nomeia
esse núcleo de “monumento” situando-o em uma série de lembranças da
infância a evolução semântica da língua. Sobre isso Pollo nos diz: “Lacan
emprega a expressão freudiana hieróglifos da histeria para se referir à
possibilidade de deciframento do sintoma por parte daquele que sabe ler”.
(2003, p. 99).
É fato que Freud funda a Psicanálise com a descoberta do inconsciente
que tem como manifestação tudo que é da ordem da linguagem. Em seu artigo,
A Interpretação dos Sonhos (1900), podemos verificar o aforismo lacaniano – o
inconsciente é estruturado como uma linguagem - e a produção dos sonhos
como submetida às leis de condensação e deslocamento (organizadores da
linguagem onírica), que na leitura lacaniana é renomeada lingüisticamente de
metáfora e metonímia respectivamente. O sonho é considerado a via régia para
se investigar o funcionamento e a lógica do inconsciente.
Na metáfora, uma significação é substituída por outra a partir de uma
relação de semelhança, ou seja, está associada à semelhança de sentidos,
consiste em uma comparação condensada, resumida: como por exemplo, a
primavera da vida ou a mulher é uma rosa. A metáfora é, como podemos
observar, uma superposição de significantes. A metonímia está associada à
contigüidade e consiste em tomar a parte pelo todo: dizer vela em vez de
barco. Há uma articulação significante: a vela se articula com o barco. A
metonímia faz a palavra deslizar de uma parte do objeto para outra, havendo
um deslizamento de sentido que pode fazer emergir sentidos e associações.
Para construir uma teoria sobre a relação entre o inconsciente e a
linguagem, Lacan desenvolve a lógica do significante. O significante, para
Lacan, é a imagem acústica do signo lingüístico, tomando-se como base as
formulações do lingüista Ferdinand Saussure. É uma unidade mínima do
simbólico que nunca aparece isolado, mas sim articulado com outros
significantes. É preciso pelo menos dois significantes para que se crie um
sentido. O significante é o que representa um sujeito para outro significante.
Essa definição implica precisamente a inclusão do sujeito do inconsciente.
O sujeito do inconsciente emerge entre dois significantes e desta forma,
só pode ser representado no intervalo de um significante para o outro (S1, S2).
O sujeito do inconsciente é incompleto, é intervalar, é barrado na medida em
que nenhum significante, nem S1, nem S2, basta para representá–lo
integralmente.
A fundação da psicanálise, portanto, tem uma ligação íntima com a
linguagem e, além disso, uma parceria importante com as pacientes histéricas
de Freud. Como vimos no capítulo 4, estas fazem fracassar a hipnose (que
tinha como função, pela via da sugestão, remeter o paciente ao seu passado
produzindo a liberação da carga de afeto que estava ligada à experiência
traumática) e fundam o lugar do analista, a própria psicanálise, ao fazer Freud
mudar sua técnica para associação livre. Somente com o abandono da técnica
da hipnose, Freud tem acesso ao fenômeno de defesa. O procedimento até
então utilizado era o maior obstáculo ao fenômeno do recalque – um dos
pilares da teoria psicanalítica. A história da psicanálise propriamente dita só
começa com a nova técnica que dispensa a hipnose.
Freud verifica que os pacientes tinham um tipo de fala lacunar,
utilizavam uma sintaxe na qual faltavam palavras devido à impossibilidade de
dizer sobre seu desejo, desejo este que é a metonímia da falta, que desliza de
significante em significante, que está no próprio deslizamento do significante
que busca se realizar de significante em significante. (QUINET, 2003, p. 33).
Em outras palavras, o desejo é o que circula na fala, desliza nos significantes
da demanda e não é possível de capturar. O desejo como vetor é inarticulável.
Está para além da demanda: o que ela quer naquilo que ela disse? O problema
não é tanto saber o que o sujeito quer nos dizer, mas o que quer esse sujeito
que diz: Que é que isso quer?.
O desejo é o resto da operação de subtração da demanda à
necessidade. (N – D = d). A necessidade tem um objeto que a satisfaz (como o
alimento para fome) e por isso está do lado do animal. Já a demanda, é a
cadeia de significantes que se dirige ao Outro, de onde virá a resposta ao
sujeito de forma invertida. Desta forma, o analisante, ao situar o analista no
lugar do Outro, aguarda receber a interpretação que fale sobre o sentido do
que está dizendo. Cito: “[...] o desejo, [...], só é capturado na interpretação”, diz
Lacan. (LACAN, (1958), 1998, p. 629).
É também fato que o sonho, via régia do inconsciente, é realização de
desejo inconsciente e, por ser muitas vezes contraditório e enigmático, clama
por investigação e decifração por parte do sonhador. O sonho é uma metáfora
que torna presente a dimensão do desejo. Os sonhos não são absurdos e
possuem um sentido. Segundo Freud, “o sonho, [...], toma o lugar de diversos
pensamentos que derivam de nossa vida cotidiana e formam uma seqüência
completamente lógica”. (FREUD, (1900), 1996, p. 619).
A função da interpretação é produzir a inteligibilidade do sentido oculto
do sonho. É neste sentido que a psicanálise se articula com a linguagem, pois
é no nível da linguagem que o trabalho de interpretação será realizado, e não
no nível das imagens oníricas recordadas pelo paciente. Encontramos o
sentido do sonho ao percorrermos o caminho que nos leva do conteúdo
manifesto (transcrição dos pensamentos oníricos latentes cuja sintaxe é dada
pelo Inconsciente) aos pensamentos latentes (material oculto, inconsciente). As
distorções dos pensamentos oníricos latentes nos servirão de via para
chegarmos à sintaxe do Inconsciente. Garcia-Roza escreve:
Para Freud, a questão do sentido do sonho prende–se aos vários
elementos oníricos que funcionam como significante e que, uma vez
estruturados, fornecerão o sentido do sonho. (GARCIA-ROZA, 1996,
p. 64).
É a rede de significantes, através de suas relações de oposição, que irá
constituir a significação do sonho. Lacan, em A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud, nos diz que:
[...] o sonho se parece com o jogo de salão em que se deve, estando
na berlinda, levar os espectadores a adivinharem um enunciado
conhecido, ou uma variação dele, unicamente por meio de uma
encenação muda (mímica). (LACAN, (1957), 1998, p.515).
No trabalho do sonho, em seu efeito de distorção, observamos o
deslizamento do significado sob o significante. Essa distorção é produzida
pelos mecanismos básicos, anteriormente
citados neste
trabalho, de
deslocamento e de condensação. Tais mecanismos desempenham, no sonho,
uma função homóloga à da metáfora e metonímia no discurso.
Nós encontramos em funcionamento os processos metafóricos e
metonímicos em todas as chamadas formações do inconsciente. Eles são
responsáveis por uma das mais importantes características da linguagem: o
seu duplo sentido; ou seja, o fato de ela dizer outra coisa.
Retornemos ao sentido do sonho. Convém lembrarmos que ele é
inesgotável em uma única interpretação. Isso porque todo sonho é
sobredeterminado, tem múltiplas determinações. Um mesmo elemento do
sonho manifesto pode nos remeter a um série de pensamentos latentes
inteiramente diferentes. O conteúdo latente não tem limite, está sempre se
remetendo a outros significantes. A sobredeterminação é uma característica
não só dos sonhos, mas também de qualquer formação do inconsciente:
chistes, atos falhos, lapsos, sintomas.
Em análise, com a associação livre, o sujeito desliza na cadeia
significante fazendo surgir os significados, e cabe ao analista escutar os
significantes da história de seu paciente, significantes que o representam. É
importante ressaltar que nessa escuta, o analista não deve significar. A análise
deve trabalhar na lógica do significante e não pela via da hermenêutica, da
decodificação. No caso do significado, ele vem a posteriori. Só há sentido
depois, quando termina, quando é colocado um ponto final. De acordo com
Lacan, o analisando, ao contrário do sujeito petrificado no significante que não
faz perguntas sobre si, é aquele que se questiona, escolhe o sentido, enfim,
luta pela causa dos seus sintomas e se desindentifica dos significantes que
regem a sua vida.
A linguagem – cadeia simbólica – determina o homem desde antes do
seu nascimento. Ao vir ao mundo, a criança é marcada por um discurso, no
qual as fantasias dos pais, a cultura, são inscritas. É no campo do Outro que o
sujeito se forma, ou seja, é na operação de alienação que o sujeito irá se
constituir. Observamos claramente na clínica com adolescentes essa operação,
onde o jovem sujeito se encontra muitas vezes alienado aos pais, e é no
processo de análise que isso será trabalhado no sentido de promover a
separação. Daremos, pela via da análise, voz a esse sujeito fazendo emergir
os desdobramentos do seu próprio desejo.
5.1.2 A Bela Açougueira
O sonho da Bela Açougueira é um belo exemplo de estrutura de
linguagem. Lacan no capítulo V de A direção do tratamento e os princípios de
seu poder (1958) comenta:
É preciso tomar o desejo ao pé da letra. [...], e acrescenta mais
adiante: [...] O desejo do sonho da histérica, [...], resume o que o livro
inteiro explica sobre os chamados mecanismos inconscientes,
condensação (metáfora), deslizamento (metonímia) etc., atestando
sua estrutura [...] a relação do desejo com essa marca da linguagem,
que especifica o inconsciente freudiano e descentra nossa concepção
do sujeito. (LACAN, (1958), 1998, p. 626 e 627).
Comentemos o caso da Bela Açougueira, paciente de Freud, cujo sonho
foi relatado em: A Interpretação dos Sonhos (1900), no capítulo IV sobre a
distorção nos sonhos.
A inteligente paciente, antes de contar seu sonho, desafia a teoria de
“que o sonho é um desejo realizado” afirmando que os seus desejos não foram
realizados. Citemos então o sonho:
Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de
um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma
coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as
lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns
fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de
abandonar meu desejo de oferecer uma ceia. (FREUD, (1900), 1996,
p. 181).
Freud solicita suas associações. Primeiramente conta sobre seu honesto
e competente marido, um açougueiro atacadista. Este, no dia anterior, lhe
dissera que estava engordando, que queria iniciar um regime e propunha–se
acordar cedo, praticar exercícios físicos e recusar os convites para jantar. Ela
relatou, rindo, que o marido conhecera um pintor que pedira para pintar seu
retrato. Seu marido, entretanto, sugeriu que ele pintasse parte do traseiro de
uma bonita garota.
A esposa, por sua vez, implorara que o marido não lhe desse caviar, seu
prato predileto. Ela se encontrava apaixonada pelo marido e zombava muito
dele. (FREUD, (1900), 1996, p. 181).
Freud, intrigado com o que falara sobre o caviar, pergunta-lhe o que
significava. Ela contou que há muito tempo, todas as manhãs, desejava comer
sanduíche de caviar e que relutara em ter tal despesa.
Freud observa de imediato que tal sonho representava a criação de um
desejo não realizado na vida real e que significava a renuncia posta em prática.
Apesar da resistência da paciente, outras associações surgiram.
Confessava ter ciúmes de uma amiga por causa dos elogios constantes de seu
marido sobre esta. Tal amiga era ossuda e magra e, felizmente o marido da
paciente
apreciava
formas
mais
cheinhas.
Essa
amiga
perguntara
recentemente quando a paciente iria oferecer outro jantar e elogiou seus dotes
culinários. Freud então interpreta:
É como se, quando ela fez essa sugestão, a senhora tivesse dito a si
mesma: ‘Pois sim! Vou convidá-la para comer em minha casa só para
que você possa engordar e atrair meu marido ainda mais! Prefiro
nunca mais oferecer um jantar.’ O que o sonho lhe disse foi que a
senhora não podia oferecer nenhuma ceia, e assim estava realizando
seu desejo de não ajudar sua amiga a ficar mais cheinha. O fato de
que o que as pessoas comem nas festas as engorda lhe fora
lembrado pela decisão de seu marido de não mais aceitar convites
para jantar, em benefício de seu plano de emagrecer. (FREUD,
(1900), 1996, p. 182).
E sobre o salmão que aparece no enunciado do sonho? A paciente
exclamou: “salmão defumado é o prato predileto da minha amiga!”. (FREUD,
(1900), 1996, p. 182).
Esse sonho nos serve de exemplo do mecanismo de deformação dos
sonhos por meio da identificação histérica. O desejo renunciado (pelo
sanduíche de caviar) na vida real corresponde a um sintoma que delata a
identificação histérica com a amiga. Sua amiga, da mesma forma, expressara
um desejo – de engordar – e a paciente sonhou que o desejo da amiga não
fora realizado, pois seu desejo era o de que sua amiga, que desejava engordar,
não se realizasse. A pessoa indicada no sonho da Bela Açougueira não era ela
mesma, e sim sua amiga. O salmão defumado que aparece no sonho, diz
Freud, é uma alusão à amiga que afirma desejar salmão e proibir-se de comêlo. A paciente de Freud colocara-se no lugar da amiga, ou seja, se identificara
com esta última.
Lacan coloca a tese freudiana num matema, escreve-a na estrutura
significante/significado. O desejo de caviar é o significante (S) cujo significado
(s) é o desejo de um desejo insatisfeito. Assim temos:
S
s
“desejo de caviar”
“desejo de um desejo insatisfeito”
Entretanto, sabemos que no sonho o “caviar” não aparece. O que
aparece é o “salmão”. Este último vem substituir o caviar por efeito metafórico,
de substituição.
Quanto à metonímia no sonho, Lacan nos diz que o desejo é expresso
como insatisfeito pelo significante “caviar”, entretanto, a partir do momento em
que o desejo desliza como desejo no caviar, o desejo de caviar é sua
metonímia, tornada necessária pela falta-a-ser a que ele se atém. (LACAN,
(1958), 1998, p. 628).
Esse caso nos mostra que o desejo inconsciente é o desejo do Outro,
cujo tipo no caso da histérica, como já dissemos anteriormente, é a nãosatisfação. O salmão defumado surge no lugar do desejo do Outro, da amiga, e
não é satisfeito, representando assim o desejo de um desejo insatisfeito. O
sonho assim configura uma realização de desejo, o desejo de que o desejo da
amiga não fosse satisfeito.
Lacan, ao fazer a interpretação do sonho da paciente de Freud, a Bela
Açougueira, passa pela distinção prévia de três identificações. A primeira
consiste em uma identificação com a conduta, com a amiga: ambas recusam
aquilo que dizem querer. A paciente, o caviar e a amiga, o salmão. A segunda
identificação passa pelo eixo simbólico, é uma identificação com o desejo do
homem. Será que a Bela Açougueira olha sua amiga do ponto de vista do
Outro, no caso o marido? Isso nos leva a pensar o sujeito histérico e a questão
sobre o desejo. Já a terceira é com o significante do desejo: ser o falo.
Destacaremos a segunda identificação. Apesar do marido da paciente
gostar de mulheres carnudas, e ela preenche a sua demanda sendo cheinha, a
amiga magrela apresenta-se como enigma por causa do interesse discreto que
seu marido mantém por esta. Lacan nos diz:
Mas, como pode uma outra ser amada (não basta, para que a
paciente pense nisso, que seu marido a considere?) por um homem
que não pode se satisfazer com ela [...]? Eis a questão esclarecida,
que é, em termos muito gerais, a da identificação histérica. (LACAN,
(1958), 1998, p. 632).
A Bela Açougueira, do ponto de vista do homem, interroga o agalma da
amiga, o mistério da sua sedução. Essa questão compromete o seu ser, ser o
falo, nem que seja um falo meio magrelo. (LACAN, (1958), 1998, p. 633).
5.1.3 Posição histérica e posição feminina
Uma mulher assume sua feminilidade a partir do momento que concorda
em instalar-se na posição de objeto na fantasia de um homem, no lugar de
complemento do desejo masculino. Para isso, ela deve não se sentir ameaçada
por retornar à posição de objeto do desejo e de gozo que foi um dia para mãe:
receio de ser reabsorvida nas malhas devastadoras da mãe.15 Faz-se
necessário, portanto, que a mulher ultrapasse o horizonte da devastação
estrutural da relação mãe-filha e alcance um além do amor ao pai. Nesse
processo de tornar-se, a filha, enquanto mulher, depara-se com uma maneira
de fazer alguma coisa com o nada que marca sua condição feminina.
Há, por parte da mulher, uma esperança (e isso é uma ilusão) de que o
amor venha lhe dar a sustentação para o seu ser, de que ela consiga de
alguma maneira resolver a questão da não consistência que lhe é peculiar e
com a qual deve se confrontar. O amor e a existência estão intimamente
ligados. Quando ela sofre uma desilusão amorosa é o seu ser que oscila, ou
seja, vacila. O amor a identifica como mulher, daí a angústia de perda do amor.
Na posição feminina, a mulher faz o seu ser depender quase exclusivamente
do amor.
Na relação que os sexos estabelecem é preciso que a mulher se deixe
desejar e o homem deseje. Querer gozar e fazer gozar corresponde ao aceitarse na posição de objeto a na fantasia de um homem: posição feminina. A
mulher aí quer gozar tanto quanto o homem deseja.
Ou seja, é preciso, como vimos anteriormente, a mulher assumir o lugar
de “ser o falo” para, desta forma, se tornar objeto causa de desejo. Ela, na
posição feminina, rejeitará uma parcela essencial da feminilidade, se
apresentando com o sinal de menos, se fazendo de “objeto a” na relação com o
homem e, portanto estando marcada pela castração.
Podemos diferenciar uma solução feminina de uma histérica com a
aceitação ou recusa de uma mulher em colocar-se no lugar de ser objeto de
15
Como vimos no capítulo 1: a devastação pode ser a mãe para filha ou o homem para a
mulher.
desejo de um homem.
Para aquela mulher que ocupa a posição histérica, ocupar o lugar de
objeto lhe é difícil. Podemos justificar tal fato com as condições vividas com a
mãe: qualquer posição de objeto pode trazer à lembrança um temor de
reabsorção. Na relação que uma mulher, na condição de objeto, estabelece
com um homem encontramos parte da experiência com a mãe. Na clínica com
mulheres verificamos que por trás da relação com o marido existe a relação
com a mãe. Freud, em 1931, observa que o marido herda aspectos do
relacionamento da mulher tanto com a mãe quanto com o pai.
Uma mulher em posição histérica não quer ser um objeto de gozo para o
Outro e nem quer satisfazer o gozo do Outro. Sua questão passa por outros
caminhos: se quer provocar o desejo do Outro, não é com o objetivo de
satisfazê-lo.
Então, o que quer ela afinal? Ela que ser, quer gozar de ser o objeto
causa de insatisfação. A histérica, em sua estratégia, insatisfaz o gozo do
Outro. Nessa posição a mulher exige ser qualquer coisa para o Outro que não
seja objeto de gozo. Ela quer ser o objeto agalmático, precioso que sustenta o
desejo do homem. Daí encontra seu interesse pelo desejo do Outro. Ela
pergunta ao homem: Diz para mim o que sou para ti? Essa é a maior questão
da histérica. Sua vocação está em fazer o Outro dizer o que é para ele o objeto
mais precioso.
A mulher histérica, na contramão de sua natureza feminina, entra em
contato com a função viril justamente por não poder tolerar a posição de objeto.
Uma questão surge: sou homem ou sou mulher? Essa resposta a histérica irá
buscar na figura de um terceiro.
Como já abordamos no capítulo 4, a histérica tem como objetivo inspirar
no homem o desejo de saber. A busca pela produção de um saber – saber que
é sempre um não-saber – é um meio de gozo. Sua interminável queixa é
promovida pela não obtenção dessa resposta, e aí temos a histérica que
denuncia o homem pela sua suposta falha. Tal queixa nos fala de seu lugar de
vítima, lugar no qual se encontra privada.
Estamos falando aqui do gozo feminino da privação, que pode ser o
nome da castração numa mulher. A histérica goza de estar privada. Não é de
seu interesse o gozo sexual, pois ela se esquiva enquanto objeto de gozo na
fantasia do homem. Sua estratégia é ficar longe do gozo da mulher, gozo da
sexualidade feminina que a mulher abraça ao aceitar a posição de objeto
diante do desejo masculino, e exaltar a feminilidade da Outra mulher para fazer
existir A Mulher que falta no homem.
Encontramos, portanto, na histérica, o interesse pela posição da Outra
mulher no lugar de objeto-causa do desejo de um homem. Evoquemos aqui
Dora, paciente histérica de Freud. Lacan, em Intervenção sobre a transferência
(1951), faz a releitura do caso dessa jovem e esclarece a relação entre ela e a
Sra. K., relatando “o valor real do objeto que é a Sra. K para Dora. Isto é, não o
de um indivíduo, mas o de um mistério, o mistério de sua própria feminilidade,
quer dizer, de sua feminilidade corporal.” (LACAN, (1951), 1998, p. 220).
Uma mulher encontra–se atrelada à figura da Outra mulher, a quem
atribui o saber sobre o que é ser mulher. A Outra detém a chave do enigma a
ser decifrado.
5.2 POR FIM... O CASO DORA
No caso Dora, observamos todos os traços de uma estrutura histérica.
Destacaremos os traços que assinalam a abordagem histérica da questão da
feminilidade, especialmente a função que Dora atribui à Sra. K.. Para ela, a
Sra. K. é a encarnação da própria feminilidade, pois aparece como suplemento
de feminilidade da qual Dora se sente em falta.
Dora é levada a consultar Freud, aos 18 anos, por intermédio de seu pai.
Filha e pai mantêm um relacionamento de amizade com o casal K.. Este último
vive em uma espécie de relação a quatro com o par formado pelo pai e a filha.
A Sra. K. cuidara do pai de Dora, atingido por uma grave doença quando esta
ainda era pequena. Em seguida, tornara-se sua amante, embora fosse
impotente. Dora se encontrara, por outro lado, oferecida aos avanços do
marido da Sra. K.. Este sempre se mostrou muito amável para com ela,
levando-a para passear e dando-lhe pequenos presentes. O pai de Dora
“fechara os olhos” para tal fato.
A situação complica-se mais por ocasião das férias em que Dora se
ocupa com grande solicitude das duas crianças do casal K., ocupando de fato o
lugar da mãe delas, como Lacan aponta em Intervenção sobre a transferência
(1951).
Na realidade, cada um é cúmplice do outro casal. O pai abre caminho
para o Sr. K. se aproximar de Dora, tanto que esta concebe a idéia de um
pacto no qual ela, Dora, seria objeto de troca entre os dois homens. Freud
afirma:
[...] imponha-se a ela a concepção de ter sido entregue ao Sr. K.
como prêmio pela tolerância dele para com as relações entre sua
mulher e o pai de Dora; e por trás da ternura desta pelo pai podia-se
pressentir sua fúria por ser usada dessa maneira. [...] Naturalmente,
os dois homens nunca haviam firmado um pacto formal de que ela
fosse tratada como objeto de troca, tanto mais que seu pai teria
recusado horrorizado ante tal insinuação. (FREUD, (1905[1901]),
1996, p. 42).
Dora, por outro lado, é protetora das relações do pai com a Sra. K., até
ocupando-se dos filhos desta para que não perturbassem o casal. A paciente
declara a Freud que sempre soubera da existência dessa ligação.
Quando Dora defronta-se com propostas mais concretas do Sr. K., tal
harmonia é rompida. Dora esbofeteia o Sr. K. e exige que seu pai rompa
relações com o casal K.. Como seu pai não cede ao seu pedido, Dora vai
deixando elementos para se pensar que cometeria o suicídio. Nesse momento
o pai decide levá-la a Freud.
Freud, ao acrescentar uma nota ao caso em relação à interrupção do
tratamento, afirma ter errado ao subestimar a corrente de amor homossexual
de Dora pela Sra. K.: verdadeira significação do estabelecimento da posição
primitiva de Dora, e, também, de sua crise.
Quando mais me vou afastando no tempo do término desta análise,
mais provável me parece que meu erro técnico tenha consistido na
seguinte omissão: deixei de descobrir a tempo e de comunicar à
doente que a moção amorosa homossexual (ginecofílica) pela Sra. K.
era a mais forte das correntes inconscientes de sua vida anímica. [...]
Antes de reconhecer a importância da corrente homossexual nos
psiconeuróticos, fiquei muitas vezes atrapalhado ou completamente
desnorteado no tratamento de certos casos. (FREUD, (1905[1901]),
1996, p. 114).
No posfácio do caso, Freud sublinha a importância da predisposição à
bissexualidade na histeria. ((1905[1901]), 1996, p. 109).
Relembremos o que Lacan nos diz em 1951: para Dora a Sra. K.
encarna o mistério da sua feminilidade. A jovem, ao admirar a brancura do
corpo da Sra. K., prevê uma possibilidade de ter acesso ao enigma de sua
feminilidade. Desta maneira, Dora visa na Outra mulher, na Sra. K., retornar ao
questionamento sobre seu ser. Esse aspecto não deve ser confundido com
homossexualismo.
Lacan enfatiza as palavras do Sr. K. na cena do lago como sendo elas
as responsáveis pela reação agressiva de Dora. Ela toma partido da Sra. K.,
quando o Sr. K. diz: minha mulher não está no circuito.16 O Sr. K. só tinha valor
para Dora na medida em que estivesse desejando a Sra. K.: era preciso que
Dora acreditasse que o Sr. K. amava nela um para-além, a Sra. K. Desta
forma, a paciente acreditaria que seu pai amava na Sra. K. um para-além
desta, Dora - como o suplemento de feminilidade da qual ela mesma se sente
em falta. Lacan nos diz:
Dora não pode tolerar que ele não se interesse por ela senão na
medida em que ele só se interesse por ela. [...] Se o Sr. K. só se
interessa por ela, é porque seu pai só se interessa pela Sra. K., e a
partir daí ela não pode mais tolerá-lo. (LACAN, (1956-57), 1995, p.
146).
A partir dessa cena podemos pensar na identificação histérica de Dora,
cuja polaridade se coloca enquanto identificação masculina por um lado, na
medida em que ela se identifica à posição do Sr. K. ou à de seu pai para
contemplar a Sra. K.; e identificação feminina, por outro lado, na medida em
que desejaria ser amada pelo Sr. K. e por seu pai à maneira pela qual a Sra. K.
é amada por seu pai. A histeria se coloca na dupla polaridade das
identificações para interrogar a feminilidade.
Assim como em todas as mulheres, e por razões que estão no próprio
fundamento das mais elementares trocas sociais [...], o problema de
sua condição está, no fundo, em se aceitar como objeto do desejo do
homem, e é esse o mistério, para Dora, que motiva sua idolatria pela
Sra. K.,[...]. (LACAN, (1951), 1998, p. 221).
Dora, ao tomar o lugar de um homem (seu pai), quer verificar a medida
do desejo que esse homem pode manter em relação a uma mulher. Ao marcar
a posição da Sra. K. do ponto de vista do homem, Dora conclui que gostaria de
16
“Ele não diz que sua mulher nada é para ele, e sim que, pelo lado de sua mulher, não há
nada [...]”. (LACAN, (1956-57), 1995, p. 146).
ser amada por um homem, ou seja, por seu pai, como a Sra. K. é amada por
ele. Através da Sra. K., Dora encontra o amor de seu pai.
Então, a identificação histérica expressa o desejo de se colocar no lugar
da outra mulher, ser amada, admirada como ela, “ser como” ela em alguns
aspectos, de forma que a mulher, ao se identificar com os atributos de uma
outra, possa se apropriar também de um saber sobre a feminilidade e de como
uma mulher deseja. Ou seja, a identificação histérica é utilizada pela mulher
como forma de obter um saber sobre a feminilidade. Sobre Dora, Lacan
questiona: “Que diz Dora através de sua neurose? Que diz a histérica –
mulher? Sua questão é a seguinte: o que é ser uma mulher?”. (LACAN, (195556), 2002, p.200).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fundação da psicanálise tem uma parceria importante com as
pacientes histéricas de Freud. Essas fazem fracassar a hipnose e fundam o
lugar do analista, a própria psicanálise, ao levar Freud a mudar sua técnica
para associação livre. Somente assim Freud teve acesso ao fenômeno da
defesa.
O feminino se inscreve na psicanálise por meio da histeria com a
questão: o que é uma mulher? Nas histéricas, Freud percebe a repetição de
um discurso onde há uma queixa constante de insatisfação. Hoje em dia, com
o ensinamento lacaniano, podemos falar sobre tal insatisfação como sendo a
ausência de um registro psíquico referente à mulher.
O caminho da feminilidade aponta para um permanente tornar-se e é
tarefa de cada mulher, em cada momento da vida, escolher o que lhe é
possível.
No que concerne à primeira parte deste trabalho, trouxemos as
contribuições freudianas sobre a feminilidade. Apesar da psicanálise não
pretender descrever o que é uma mulher, Freud não se eximiu de investigar
como uma menina transforma-se em mulher. Percorrendo seus artigos, vimos
que, para ele, é preciso que a menina realize uma série de mudanças em sua
sexualidade para escolher o caminho que trilhará ao se confrontar com a
castração. Sob a ótica freudiana, são indicados três possíveis caminhos: um
conduz à inibição, ou neurose, o outro à modificação do caráter no sentido de
um complexo de masculinidade, e por fim, à maternidade. No tornar-se mulher,
a via da feminilidade é uma escolha a ser feita. Ele destaca o percurso do
Édipo na menina mostrando a não simetria ao complexo de Édipo. Nos anos
30, Freud expõe a importância da fase pré-edípica. Essa fase é muito
importante na compreensão do psiquismo das crianças e, em especial, das
mulheres. Freud também faz equivaler o tornar-se mulher com o tornar-se mãe,
e propõe a partilha dos sexos a partir do ter ou não o falo. Freud não consegue
encontrar outra resposta senão a de ter um filho. A construção freudiana
acerca da sexualidade feminina acaba por possuir um caráter enigmático, ou
seja, a teoria freudiana sobre o vir-a-ser feminino permanece incompleta.
Freud, assim, indica os poetas para se tratar sobre o impossível de dizer.
O ensino de Lacan nos é de grande valor, pois esse deixou importantes
contribuições para que a psicanálise pudesse avançar no estudo da
feminilidade. Diante do desafio de abordar a sexualidade feminina, vai mais
além. O feminino ultrapassa a maternidade. A mulher lacaniana depara-se com
a questão de ser o falo por não tê-lo. Para isso é preciso que o homem a tome
como falo, significante do desejo do Outro. A mulher irá ocupar a posição
daquela que finge ser o que não é: o falo. Ao se fazer de falo para um homem,
ela se mascara. Enquanto que para Freud a questão da menina está
centralizada em ter ou não ter o falo, para Lacan a dialética está entre o ser ou
ter o falo. Lacan, para abordar a verdadeira mulher, convoca a figura da
Medéia, aquela que sacrifica a vida dos filhos, colocando a condição de mãe
em segundo plano, para obter o amor de um homem, Jasão. Ele propõe o
desdobramento da sexualidade feminina como articulada ao gozo fálico e ao
gozo Outro, feminino, suplementar. Esse gozo Outro está além do falo e marca
a posição não-toda das mulheres na norma fálica. Dizer que uma mulher é nãotoda equivale dizer que as palavras não a descrevem inteiramente. É o
desdobramento do gozo que irá caracterizar para Lacan a feminilidade da
mulher.
Destacamos a importância da mãe no processo de constituição de uma
identificação feminina da filha. É do olhar da mãe que a filha retirará o que
precisa para no futuro se constituir mulher. A leitura psicanalítica da relação
mãe-filha nos forneceu uma nova compreensão para a dinâmica feminina,
principalmente, no que se refere à problemática da identidade feminina.
Em relação ao histórico da histeria, verificamos que tal palavra,
morfologicamente, vem do grego hystera e significa útero. Somente no século
XIX essa enfermidade é considerada própria de ambos os sexos.
Na Antiguidade existia a crença de que a causa dessa patologia era a
ausência de relações sexuais. Já a partir da Idade Média, quando a Igreja era
considerada centralizadora do poder, há uma modificação dessa patologia. O
que antes era chamado de histeria, não é mais uma doença, mas sim um
enfeitiçamento. Assim, a ciência teológica toma lugar e permite decidir se sua
causa é divina ou demoníaca.
Com a evolução histórica, a histeria, a partir do século XVII, é assumida
como patologia. O saber médico agora supera o saber teológico. Estigmas
vindos de possessões demoníacas são, na verdade, sintomas de uma doença
histérica.
Com a psicanálise foi visto que a causa da histeria não podia ser
explicada com base apenas no funcional. Haveria, portanto, a importância dos
afetos: causa esta que viria estabelecer uma nova teoria da neurose histérica.
Ressaltamos que a histeria pressupõe necessariamente uma experiência de
desprazer, de natureza passiva.
Observamos, portanto, que o emprego da palavra histeria apresenta
diferentes significados em diversos contextos. Percebemos, nesta pesquisa, o
conhecimento de que desde o início da teoria psicanalítica a histeria vem
sendo tratada como objeto de estudo.
Retornemos à pergunta: Por que a histeria presta-se a confusão com a
feminilidade? A distinção entre feminilidade e histeria está presente na ênfase
que uma dá ao fazer gozar e a outra ao fazer desejar. Apresentemos uma
fórmula, sugerida por Soler em 1998, que opõe a mulher e a histérica: uma
mulher quer gozar, uma histérica quer ser. Cada qual tem uma forma de
defrontar-se com a questão de ser objeto de desejo de um homem. Enquanto
uma mulher aceita ser objeto de desejo e pela mediação do homem se torna
Outra para si mesma, a histérica se furta desse lugar e encarna o lugar da
Outra na outra mulher e não em si mesma. Temos aí o exemplo da jovem
histérica de Freud, Dora, na relação com a Sra. K..
Enfim, a histeria é uma resistência à posição feminina, posição esta em
que a mulher suporta ser objeto e na qual reconhece a castração nela mesma.
A mulher, nesse lugar, quer gozar e satisfazer o desejo do Outro. No entanto, a
histérica se furta desse lugar, pois não suporta a sua castração. Por isso ela
aponta no Outro a castração.
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APÊNDICE
Produto da Dissertação
Curso: Sexualidade Feminina e neurose histérica.
1. Introdução
Como produto da Dissertação, intitulada Histeria e Feminilidade, desenvolvida
no Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade
Veiga de Almeida, apresento a proposta de um curso sobre Sexualidade
Feminina e neurose histérica.
2. Objetivo
Face às tantas questões trazidas pelas mulheres, em especial as histéricas,
sobre a feminilidade, este curso terá como objetivo fornecer subsídios teóricos
e práticos, a partir do enfoque psicanalítico, para profissionais da saúde:
obstetras, pediatras, ginecologistas, psicólogos, entre outros.
3. Público-alvo
Profissionais e alunos da área das ciências da saúde.
4. Metodologia
Aulas expositivas e discussões de casos clínicos.
5. Carga-horária
8 encontros distribuídos em 1 encontro semanal de 3 horas/cada.
6. Conteúdo programático
Módulo I – Contribuições teóricas sobre a sexualidade feminina:
A feminilidade em Freud.
A feminilidade no ensino lacaniano.
A importância da relação mãe-filha.
Modulo II – A histeria:
A neurose histérica e a psicanálise: de Charcot à clínica atual.
Modulo III – A clínica psicanalítica:
O caso Dora e a Bela Açougueira.
Modulo IV – Histeria e Feminilidade:
A mulher em posição feminina e em posição histérica.
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Histeria e feminilidade