Câmara Municipal de Redondo
Prémio Literário Hernâni Cidade 1997
“RECEITA PARA UMA CRÓNICA”
A pessoa apanhou-me no meio da rua, ao voltar da esquina, e atirou sem papas na
língua:
- Ouça lá: O senhor não está cansado de escrever crónicas?
- Não. Ainda não… - respondi displicentemente. Depois um tanto sarcástico: - Mas,
quando estiver, pode ficar descansado que eu aviso-o.
A pessoa encaixou a piada (é um homem de sessenta e poucos anos), certo riso
amarelo a subir-lhe até aos olhos piscos, e martelei então:
- E o meu amigo?... Não está cansado de ser gerente bancário?
- Também não – respondeu o fulano. Aliás, mesmo se o estivesse - e dava agora um
tom mais humano à conversa -, de que me serviria? A vida não pára, as coisas têm sempre que
avançar…
E fomos beber um café. No decorrer do paleio, veio à baila, de novo, a questão das
crónicas. O meu interlocutor tinha qualquer trunfo escondido na manga do capote. E
aproveitou a primeira deixa para voltar à vaca fria:
- Sabe uma coisa? – disse a pessoa. – O meu rapaz mais velho gostava de ser jornalista
ou escritor. E vai daí prometi-lhe que, quando o senhor a jeito, havia de perguntar-lhe como se
escreve uma boa crónica…
- Oh homem, essa nem lembrava ao diabo! Então você quer que eu lhe dê uma
receita?...
- Era mais ou menos isso – respondeu o cidadão
- Mas não existem maneiras indiscutíveis de escrever boas crónicas. Não há assuntos
que dêem para crónicas e outros que não sirvam. Tudo interessa, mas depende de quem toca
a guitarra… percebe?
- Eu julgava que…
- Não, não pense nisso! Seja como for, não sei se escrevo, como o amigo disse, boas
crónicas. Desconheço como se faz para chegar até aí. Mas sei o que devo fazer para não
escrever más crónicas. E, quando penso que posso colocar à vontade o meu nome nesse
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trabalho, portanto, sem me envergonhar, fico relativamente satisfeito com o que fiz, e começo
a congeminar a próxima crónica…
- Mas, ao cabo e ao resto – voltou à carga o homem, o pai pertinaz -, não me diga que
o senhor não pode dar um conselho ao meu filho!...
- Nem pensar nisso! Dar conselhos é um perigo. Por outro lado, ainda não sou velho,
tenho 50 anos… Como posso dar conselhos a alguém?!...
- Ná, o senhor não quer é ensinar!... – e o fulano, algo abespinhado, não desarmava.
- Mas ensinar o quê, criatura? – perguntei-lhe. - O seu filho é que tem que descobrir o
respectivo caminho, a sua própria verdade, saber o que mais lhe convém… Isso é um trabalho
puramente pessoal. Se vou dizer-lhe para fazer assim, para fazer assado, posso muito bem
estar a desviá-lo do seu autêntico filão…
Pronto, acabou-se – disse o homem contrafeito. – O senhor é um amigo da onça, gosta
de fazer caixinha. Parece aqueles jogadores que querem a bola apenas para si, não a largam
nem à pancada.
- Está redondamente enganado. Mas podemos discutir isso noutra altura. Vou ter uma
tarde bastante preenchida. Olhe, mas sempre lhe digo uma coisa: eu tinha intenção de fazer
seguir, esta noite, uma crónica, e não dispunha, de momento, de qualquer assunto ou motivo
interessante… E, afinal, foi você que me deu o mote. Além disso, quando o meu amigo
esbarrou comigo, proferi baixinho para os meus botões, e desculpe-me a franqueza: “Logo
agora…, que estás com tanta pressa, vem este tipo fazer-te perder mais tempo. “ E, contudo,
foi muito prestável para mim este encontro.
- Hum!!! – exclamou o pai do candidato a autor.
Prossegui:
- De uma forma ou de outra, sempre me atrevo a dar um conselho ao rapaz, para que
escreva, porventura, boas crónicas: estar com os olhos bem abertos e não ser duro de ouvido.
Está satisfeito agora?
- Bem-haja – respondeu o bancário, dando mostras de alguma boa disposição. E
apenas nessa altura percebi, depois de um controverso e outrossim, divertido quarto de hora
de conversa, que estivera na presença de um incorrigível beirão.
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1º prémio - 1997 - Receita Para Uma Crónica - pt