Câmara Municipal de Redondo
Prémio Literário Hernâni Cidade 1997
“Emigrantes”
- O Sonho e a Fome –
Luanda anoitece. É quando nas searas da minha terra os grilos da minha terra
ensurdecem os ares. E as mulheres voltam, suadas, de mãos dormentes pelas últimas
ceifas.
Aqui, uma neblina húmida serve de véu à cidade. É cacimbo. E do miradouro de
Nossa Senhora da Muxima o nosso olhar espraia-se pela parte baixa, pela mole
cinzenta envidraçada que se estende pelo Bungo, até à rotunda de Cacuaco. Luzes
começam acendendo. Frio africano de Julho. Os ruídos parecem espreitar a chegada da
noite e está-se em Luanda como numa grande catedral de penumbras onde a
meditação é obrigatória. Acontece naturalmente. Sente-se o imponderável. O eterno.
É a expressão mais perfeita da nossa união com a natureza e o Belo criado do homem.
Lá, nas campinas que foram á tarde fulgurantes de oiro, uma nova cintilação
desperta. O céu, veludo negro, torna-se todo ele um frémito de luzeiros. A calma do
dia ainda subsiste e há vapor morno subindo do chão hoje ceifado.
É já, talvez, uma grande saudade como de moça agora casada olhando da
charrete que a leva a casa do marido, os campos e a horta, o lar de sua mãe….
Mal alvoreci no mundo benditas as horas de abraço, ó Alentejo! Foste tu que
me preparaste a alma para a grande sementeira. Tu que aceitaste, sem protestos, a
minha forçada ausência de menina. Me dotaste com esta minha maneira de amar, um
tanto louca, um tanto estranha, mas assim mesmo fecunda.
Anoitece. Luanda espera-me. Adeus hortas e campos, tectos do monte de
minha mãe!
Assim se vai o homem transtagano por esse mundo, sem cuidar horizontes,
caminheiro infatigável da esperança. Melhorar a vida? Sim! Mas também beber a
largos haustos a novidade de outras terras, doutras gentes. Doutros costumes, doutros
deuses… Leva nos olhos a ânsia do desconhecido. Nas mãos a força do trabalho, Na
boca, o sabor dos coentros, dos orégãos, dos poejos, quem sabe os tornará a provar, a
cheirar! Acompanha-o na sua parca bagagem, um pucarinho de Estremoz, um prato
2º Prémio (Crónica)
Maria Eduarda Morais Machado
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pintado de Redondo, uma cantarinha de Beringel… No bolso, a navalha jeitosa, de
cabo tauxiado a chifre. Com ela, parte os nacos de pão, de toucinho, de queijo de
ovelha. Com ela, talha lavoures preciosos em madeira macia. Vai com ela, na
esperança também de outros frutos a descascar, de outros rijos comeres, de outras
maciezas a esculpir!
Onde chega, absorve o que encontra: outros sabores, outros amores, bebe
água de outras fontes, sem jamais esquecer as que ficaram para trás. Passa a viver
outras vidas, sente-se bem em qualquer lado. Só lá no fundo do surrão que é a sua
grande alma, brilha a velha luz da candeia de azeite que alumiava, aos serões, os seus
avós de Moura, de Serpa, de Ferreira, Brinches, Salvada, Aljustrel, Borba, Portalegre,
Santiago do Cacém… Todo o território enfeitiçado a povoado de espíritos tutelares e
companheiros.
O mar atrai este homem, chama-o, envolve-o. Ele entende a linguagem das
águas, quietas ou alteradas. Funde-se mentalmente naquela liquidez profunda, porque
também ele é profundo e possui serenidades glaucas, grandes explosões interiores de
amor e ódio… Lá longe, onde ganha o pão que na sua terra que na sua terra não lhe
consentem ganhas as várias políticas e outras velhacarias, senta-se a ver um rubro pôrdo-sol, enquanto canta, canta e canta… A viola campaniça, se a levou, é a menina dos
seus olhos. Herança de algum tio, ou avô de há muito, quando morrer a deixará aos
filhos. Será olhada e tocada com lágrimas de saudade daquele pai, tantas vezes brusco,
tantas vezes sereno, tanto mais calado quando mais sofredor!
Adeus chamados de minha mãe, vozes de mando de meu pai, beijos da
companheira, rebaldarias dos filhos, por cima dos muros e das figueiras carregadas…
Adeus, que me vou à aventura! Tem de ser, minha rosinha de espigueiro…aqui não se
ganha p’rás migas… Vais ter comigo mal te arranje poiso capaz…
Adeus meus doce e áspero montado que te levo no fundo dos olhos! Adeus
meu cheiroso rosmaninho, minhas estevas rijas! Adeus pintassilgos, pêgas e poupas,
mochos e estouvados pardais, melharucos, belos pombos-bravos e subtis cotovias!
Adeus cachorros das ovelhas, companheiros meus de sol a sol, aquecendo-me o
Inverno com os seus bafos mornos!
Oliveirinha da serra, cá vou eu! Encavalitado no sonho e picado pela fome!
2º Prémio (Crónica)
Maria Eduarda Morais Machado
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Pois eu vou, mas hei-de vir, mais dia menos dia…nem que seja numa manhã de
nevoeiro!
E quando for a passar a fronteira do teu chão, vou descalçar-me, obediente à
voz do Deus bíblico rugindo dentro de mim: a terra que pisas é sagrada!
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