A outra face do espelho de José Henrique Dias
É com gosto que saúdo cada um de vós (hoje aqui presente), tanto mais que, depois de
ter mergulhado no universo de José Henrique Dias, não estava certa de poder ainda
distinguir entre a ficção e a realidade, entre a recordação e o presente, entre mim
própria e outrem. Este apagamento das fronteiras psicológicas é o efeito mais
perturbador da leitura de A outra face do Espelho.
Para falar francamente, nada me garante que eu não seja, por exemplo, aquela mulher
escritora que, no texto intitulado “Outra vez”, assiste ao lançamento do seu livro
vigiando ansiosamente a porta do fundo de onde deveria surgir o seu amante João, que
ela acabara de magoar levianamente e que não voltará a ver com vida (pois que nesse
preciso instante, e por culpa dela, João acaba de morrer na auto-estrada).
Mas “tirem-me desse filme” ou melhor, dessa crónica! Não é legítimo que confunda os
papéis, que baralhe o momento e o lugar: estou de facto na Casa da Cultura de
Coimbra, a 8 de Julho de 2009, e é a mim, professora de literatura, que cabe apresentar
esta obra, na companhia do seu autor (e do seu editor).
Hesito na forma de proceder. Não podendo ler-vos em voz alta cada um das 61 criações
– o que seria a única maneira de lhes fazer justiça -, a minha tentação seria ou resumilas, fazendo-as acompanhar de um breve comentário que mostraria como cada uma se
assemelha e se distingue de todas as outras, ou interpretar os títulos em função do que
escondem ou do que permitem adivinhar do tema que anunciam, ou ainda escolher uma
única para a viver e a estudar até à exaustão. Este último método seria legítimo, pois
que cada uma destas crónicas existiu, antes de mais, em si mesma e para si mesma,
publicadas que foram uma a uma ao longo dos últimos anos em jornais da cidade (em
primeiro lugar n’O Despertar, depois n’Centro), cada uma constituindo pois um mundo
ou, em todo o caso, uma mónada leibnitziana, reflectindo por si só um universo ao
mesmo tempo familiar e estranho.
Mas como uma apresentação constitui um exercício híbrido, misto de conferência e de
ritual mundano, não tenho outra opção, para me conformar à regra, senão propor-vos
uma interpretação sintética e por conseguinte esquemática.
Permiti, para ganhar tempo, que indique o caminho que vou seguir. De entre
variadíssimas outras questões que me poderiam servir de fio condutor, escolho um
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problema, o do Destino que, sendo o mais geral possível, me libertará das numerosas
redes temáticas que ligam os textos uns aos outros.
Com efeito, poderia interessar-me pela infância, pela política, pela cidade, pela doença,
pela amizade, pela pintura, pelo futebol, pela música, pela mulher, pela velhice, pela
fidelidade e pela infidelidade, pela censura e pelo seu oposto – e por quanto mais…
Outros tantos temas que formam o entrançado contínuo que o escritor borda e que
mereceriam a nossa atenção. Mas parece-me que o melhor partido a tomar, perante um
objecto tão múltiplo e proteiforme, consiste em o geometrizar um pouco: o conceito de
destino servir-me-á de elemento estruturante.
Uma observação prévia impõe-se contudo. Aceitando, para categorizar estes textos, a
denominação de crónica, faço a economia da delicada problemática formal do género
literário, não me colocando pois a questão de saber quais poderiam ser arrumados sob a
etiqueta de poemas em prosa, nem o que faz de certas histórias “novelas” na acepção
que a narratologia confere à palavra para a distinguir do conto, nem o que leva algumas
outras a caírem no teatro. A teoria literária possui o inconveniente de nos tornar
cépticos perante as obras: em face de uma narrativa, ensinamos aos nossos estudantes a
recordar que tudo, em literatura, é “fabula” e jogo de linguagem.
Ora, estas crónicas devem ser lidas como foram escritas, com a preocupação da
verdade. Que revelem muitas vezes (em mais de metade dos casos) um maior ou menor
grau de ficcionalização, que o jornalista (isto é, aqui, aquele que escreve para um
jornal) se torne romancista ou poeta, em nada modifica a atitude do leitor que deve
responder com uma inteira boa fé ao desejo de autenticidade do autor. Se qualquer texto
literário requer um pacto de leitura, estas crónicas exigem de nós não suspeita mas
confiança. Se são escritas com arte e talento (para não dizer, em muitos casos, com
virtuosismo), serão lidas com toda a seriedade que a vida exige.
Em suma, estamos aqui nos antípodas das tentativas do Oulipo e dos jogos da literatura
potencial. Não que o escritor não tenha sentido de humor, bem pelo contrário. Mas se
estivermos de acordo com a célebre fórmula de Swift, “o mundo é uma tragédia para os
que sentem e uma comédia para os que pensam”, estes textos não são exercícios de
cerebralidade, mas de sinceridade.
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Todavia, se possuem a força pungente do documento, o título geral leva-nos a olhá-los
como textos que vão além do reflexo imediato da vida, podendo – ou devendo mesmo –
ser lidos de outra forma que não a da representação ilusoriamente realista do mundo.
José Henrique Dias sugere-nos que desafiemos uma concepção linearmente mimética
da literatura. Cito-o: “No espelho não nos vemos, vemos o nosso simétrico. Iludimonos com a imagem. Há uma outra face que oculta o visível e tece o mistério do que não
é evidente”. Por outras palavras, sinceridade não é ingenuidade, reflexão não é ilusão.
Assim, tendo considerado primeiro a obra na sua dimensão documental e realista,
teremos depois que a interrogar sobre essa simetria invertida da imagem especular.
Ora, por detrás dos destinos singulares há o Destino, por detrás das vidas individuais,
há a Vida. José Henrique Dias não quis fazer obra de filósofo mas de contador. Nada
então, depois de uma imersão na diversidade dos episódios e das evocações
(diversidade que, para o leitor, faz todo o prazer da crónica), nada impede que nos
elevemos a um plano mais abstracto onde o autor deixa entrever o que se esconde do
outro lado do visível. Tomemos então o Destino no seu sentido corrente, enquanto
conjunto dos acontecimentos, contingentes ou necessários, que constituem uma
biografia. Trata-se essencialmente de história e de estórias.
De História, antes de mais, com H maiúsculo. Todas as narrativas, todas as evocações
do livro têm como cenário Portugal, entre o final do século 19 e o início do século 21.
Estamos, grosso modo, no Portugal contemporâneo ou, pelo menos, contemporâneo de
um homem que tivesse nascido nos anos 30, que tivesse vivido os primeiros quarenta
anos da sua vida sob um regime autoritário, num canto da Europa. Completamente
diferente teria sido a experiência de um Inglês ou de um Francês nascidos no mesmo
ano, em Bristol ou Marselha e, por conseguinte, bem distintos teriam sido também os
ingredientes das suas crónicas.
É da sua infância, do seu meio, do seu bairro que José Henrique Dias fala em vários
textos expressamente autobiográficos. Não escolheu nascer português ou coimbrinha,
passar a sua juventude nessa Alta hoje desaparecida, no meio de uma população ao
mesmo tempo submissa e rebelde, simultaneamente infeliz e bem-humorada. Nascido
em 1934, faz-se o memorialista de um mundo e de uma cidade de que não ouvi senão
ecos, de que não tive senão vestígios através do testemunho de meus pais. O autor
passou a sua juventude num Portugal diferente daquele em que vivemos e, no limite,
hoje bastante inimaginável.
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É pois também uma Coimbra desconhecida que retrata, a da Alta demolida nos anos 40
e onde se desenrolou a sua infância. Os textos intitulados “Golpe a golpe, verso a
verso”, “Sonata ao luar”, “Deliquências”, “Enfarte de core ingrato”, “Na fonte do
Marco da Feira” desenham um cenário desaparecido, onde uma criança de hoje se
sentiria mais perdida do que na lua. A própria pobreza não é a mesma, e é difícil não
acreditar em fantasmas quando, guiados pelo escritor, passeamos em toda esta zona
reconstruída onde brincava com os seus companheiros de classe e comia fatias de pão a
que, muitas vezes, faltava a manteiga.
Colocando-me no plano da realidade vivida e restituída com uma intensidade tocante
nestes textos de 4 ou 5 páginas, procuro, com uma simpatia de leitora dócil, identificarme com o autor, e esta identificação é tanto mais fácil quanto é Coimbra que fornece o
cenário mais frequente das histórias ou das evocações. Algumas das nossas memórias
são comuns: reconheço lugares, pessoas, acontecimentos, reminiscências sobretudo de
atmosferas, de sensações, de sabores como, entre tantos outros, o daqueles “bolitos
amorenados, com um ligeiro gosto a canela, [que] fazem crescer água na boca da
memória” (p.229). Há aqui uma guloseima da lembrança que favorece uma intimidade
imediata entre o leitor e o escritor.
Esta sensualidade não se limita à exaltação da doçaria local mas estende-se a todos os
prazeres e antes de mais – noblesse oblige – ao prazer do amor. Aliás, é pouco – e
insuficiente – dizer que estas crónicas tematizam a volúpia: cantando-a, celebrando-a,
exaltando-a em quase todas as páginas, elas fazem do desejo a grande, a única
divindade.
Mas não chegou ainda o momento de definir o paganismo do autor ou, digamos, do
enunciador. Limito-me, para já, a observar, en passant, o realismo das notações
sensoriais que fazem com que uma palavra, ou algumas palavras valham, num bom
livro, muito mais do que mil fotografias ou imagens – a menos que se trate dos belos
desenhos de Nadir Afonso. Se uma espécie de pan-erotismo atravessa a obra e lhe
empresta aqui e além acentos líricos, é não só porque o amor é o grande ordenador da
vida, e que a obra nos dá a ver a vida, mas também porque, depois de um longo
recalcamento, a libertação do corpo e dos costumes chegou finalmente para os
protagonistas destas crónicas. Não esqueçamos que, em pano de fundo, existe a História
no sentido político, a ditadura castradora que proibiu muitas gerações – e talvez em
particular a do autor – de viver à saciedade a sua juventude, enquanto sob outros céus
rapazes e raparigas da mesma idade se entregavam por inteiro ao “furor de viver”. O
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salazarismo, como todos os regimes repressivos, cultivava as “paixões tristes” e a má
consciência é o mais sinistro dos destinos.
Tive, por contraste, a sorte de ter 20 anos em 1974 e de conhecer, através de certos
padres excepcionais, uma Igreja muito diferente da que foi cúmplice de um Estadopolicial e de que o cronista não guardou, e com razão, senão más memórias. São estas
autoridades teológico-políticas, muito mais do que a miséria material, que exerceram a
sua fatalidade sobre um povo que hoje, a exemplo do velho das Crónicas “Entre as
brumas da memória” e “Avenida da Liberdade” pergunta a si mesmo se deve lembrarse ou esquecer.
Da nossa alma colectiva, as crónicas são uma espécie de psicanálise selvagem. Mas
Portugal é um paciente distraído e indisciplinado, que como a personagem de “Chave
de vidro”, tem dificuldade em se libertar do passado compreendendo-o sob o olhar da
sua demasiado bela psicanalista. Leio uma passagem da crónica : “A verdade é que
somos muito frágeis. Um homem cresce, tira cursos, faz filhos, chega a ministro,
perfila-se nas tribunas dos desfiles militares, passa a administrador de empresa pública,
tem reconhecimento, andou na guerra colonial, fez trinta por uma linha, aguenta o
stress pós-traumático e não tem coragem para os coçar.”
Tenho pena de não me poder deixar levar pelos numerosos relatos ficcionais que, ao
lado de textos autobiográficos, compõem uma colectânea onde, mais ainda do que os
indivíduos, é a própria vida que é psicanalisada. Caberá ao leitor condoer-se com os
diversos dramas contados com frequência na primeira pessoa, dramas físicos da doença,
do acidente, do envelhecimento, dramas da traição, do abandono, da violência
doméstica: todo um material patético tirado da experiência comum e que a cultura das
personagens, seja ela literatura ou filosofia, música ou pintura, não consegue
transfigurar.
Apesar da diversidade dos destinos e das condições, somos todos iguais perante o
sofrimento, mesmo se, também aqui, uns são mais iguais do que outros…Um singular
dom de empatia permite ao escritor transportar-se até ao coração dos mais diversos
seres e tomar com a maior verosimilhança a voz de uma mulher, o que não é dado a
todos os romancistas, como no admirável texto “Tinham a cor das palavras do pai”,
justamente assinalado por Fernando Campos no seu prefácio, ou ainda em “Pesadelos”.
Podemos lamentar que não tenha sido dada a José Henrique Dias a oportunidade de
colocar a sua inventividade de cenarista e a sua experiência humana ao serviço daquilo
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a que os brasileiros chamam télé-dramaturgia : teríamos ganho, para os nossos ecrãs,
“novelas” de uma qualidade em nada semelhante à que é imposta hoje ao público!
É que, ao passar de uma existência a outra, da sua própria vida à vida de um médico, de
um banqueiro, de um pintor ou de um advogado, de uma demente ou de um pianista,
procura menos divertir do que interrogar. Que existe por detrás do palco onde passam,
tão brevemente, as vidas e os destinos individuais?
Lancemos então um furtivo olhar para a outra face do espelho.
Se me é impossível dar conta da colectânea na sua variedade sensível, e menos ainda no
seu pormenor, é-me, ao invés, bastante fácil compor, em algumas palavras, a unidade
filosófica, correndo os riscos próprios de quem quer simplificar demasiado.
A outra face do espelho é a da Anankè, essa divindade da Necessidade que nos dá e,
sobretudo, nos tira a nossa juventude, a nossa saúde, o nosso amor, a nossa liberdade.
“La vérité est peut-être triste » escreveu Renan e José Henrique Dias não está longe de
o pensar como já fazia o Salomão do Eclesiastes ou como Schopenhauer, o mestre de
Freud, que escreve num dos capítulos do seu Monde : “Se mergulharmos o nosso olhar
no tumulto da vida, vemos todos os seres acabrunhados pelos males e inquietações da
existência, procurando desesperadamente satisfazer desejos sem fim e defender-se
contra sofrimentos vários, sem poder todavia esperar mais do que a conservação dessa
vida individual atormentada, durante um breve lapso de tempo.”
O escritor multiplicou as variações sobre o tema fundamental do absurdo que não deixa
como escapatória senão a ilusão. Pessimismo radical que não atenua a doçura das
memórias de infância e que agrava a armadilha do amor, esse Eros que não faz senão
perpetuar a dor dos vivos.
Mas é, apesar de tudo, o desejo que, de uma ponta à outra do livro, impede a vida de
cair no desespero. Qual dos dois, o pessimismo metafísico e o erotismo, é o mais forte
na obra de José Henrique Dias : creio, felizmente, que é o erotismo, e que é a ele que
devemos as mais belas páginas do livro, como esta longa frase intensamente lírica, onde
a amante se confunde com a cidade e que, para terminar, e como recompensa pela vossa
atenção, vou ler na íntegra:
Precisava tanto deste momento que me deste, despir-te e percorrer o teu corpo e ficar
em ti, assim quieto, todo ternura de flor a abrir, todo violino e arco e música de
anoitecer, com a chuva lá fora, sentir-te deitada e tocar-te como preces, chegares-me
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divina e ficares, como se na praia nossos pés na areia, como se os corpos harmonias
de Debussy, minha capela sistina de eu miguelângelo, me leornardo de virgem dos
rochedos, rodin reenviado dos meus dedos para desenhar o barro de teu corpo, moldar
o te por dentro, espiral de mim em fogo preso nas margens do teu Mondego, santa
clara de meus olhos absolutos no miradouro dos teus, beijo nocturno sentado nas
escadarias da sé, serenata molhada na matemática da tua minha rua das flores, pão da
meia noite quente na porta da padaria do largo, sorriso de manteiga nos lábios, presos
no elevador da glória o tempo de te subir a saia, de me encostar a ti e chamares-me
com os olhos rasos de alegria, sinos de noite fora na torre, meu amor vem sobre as
ondas, meu amor vem sobre o mar, ao pé de ti a subir alturas de feiticeira, mãos em
garra do Paredes, balanço de verdes anos, verdes sonos, verdes sonhos, e ficar assim
contigo, demoradamente, deslumbrado, porque te chamo Márcia e eu não tenho nome,
chamas-me querido, sou os teus ais em tua cama deitada, absoluto, vivo, teu como não
sei dizer-te, porque sabes mais de mim que eu próprio, porque estou em ti com uma flor
na boca e canto o amor que há em nós, minha nossa senhora de todas as coisas
possíveis… (“A título póstumo”, pp. 385-386).
Casa da Cultura, 8 de Julho de 2009
Cristina Robalo Cordeiro
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1 A outra face do espelho de José Henrique Dias É com gosto que