PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL Chanceler Dom Dadeus Grings Reitor Norberto Francisco Rauch Vice-Reitor Joaquim Clotet Conselho Editorial Antoninho Muza Naime Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Helena Noronha Cury Jayme Paviani Jussara Maria Rosa Mendes Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva Marília Gerhardt de Oliveira Mirian Oliveira Urbano Zilles (Presidente) Diretor da EDIPUCRS Antoninho Muza Naime ELVO CLEMEMTE ORGANIZADOR Porto Alegre 2004 EDIPUCRS, 2004 Capa: AGEXPPUCRS Preparação dos originais: Ir. Elvo Clemente Revisão de normas: Anaí Zubik Camargo de Souza Revisão: Elvo Clemente Editoração: Supernova Impressão e acabamento: EPECÊ Coleção CONESUL – 4 Coordenação da Coleção: Elvo Clemente Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 161 Integração: história, cultura e ciência: 2003 / Elvo Clemente, Organizador. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 189 p. il. – (Coleção CONESUL; 4) ISBN 85-7430-475-1 1. História – Cone Sul. 2. Cultura – Cone Sul. 3. Ciência – Cone Sul. 4. Integração Regional – Cone Sul. I. Clemente, Elvo, Irmão. II. Série. CDD 301.2098 980 Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BCPUCRS. EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 CEP 90619-900 Porto Alegre, RS – BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3523 E-mail: [email protected] www.pucrs.br/edipucrs Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora. SUMÁRIO ___________________ 1 Introdução − O tema e a força da integração Elvo Clemente .................................................................................................... 7 2 Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués Elvo Clemente .................................................................................................... 9 3 Ciudades Invisibles: su función narratológica Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués.................................................... 15 4 República Rio-grandense e as fronteiras Platinas Moacyr Flores................................................................................................... 41 5 Brasil e Uruguai: a “fronteira viva” como estopim para a eclosão da Guerra do Paraguai Carla Ferrer ...................................................................................................... 56 6 Duas Visões do Rio Pardo da Prata: Expedição de Pero Lopes de Sousa (1531) e Expedição de Alvar Nunez Cabeza de Vaca (1541) Harry Rodrigues Bellomo ................................................................................. 67 7 Jesuíta Gaúcho se Doutora em Buenos Aires Luiz Osvaldo Leite............................................................................................ 94 8 Itália Solta a Garganta Décio Andriotti ................................................................................................ 103 9 O Panorama Celeste da Bandeira do Brasil Geraldo Rodolfo Hoffmann ............................................................................ 123 10 Sociedade Oitocentista II Hilda Agnes Hübner Flores ............................................................................ 148 11 Arquitetura e Escultura Barroca no Brasil e no Rio Grande do Sul Thiago Nicolau de Araújo ............................................................................... 162 12 As Colônias de Nova Friburgo (RJ) e Torres (RS): um estudo comparativo Marcos Antonio Witt ....................................................................................... 175 13 A Inversão da Imagem da Coluna Prestes na Imprensa: de revoltosos para heróis Júlia Matos ..................................................................................................... 184 14 Conflitos e Identidades: a ação marista nos núcleos teutos do Rio Grande do Sul Kate Fabiani Rigo........................................................................................... 194 1 INTRODUÇÃO ___________________ Elvo Clemente Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS O tema e a força da integração Os sócios do Círculo de Pesquisas Literárias (CIPEL) em seus quarenta anos de investigações literárias, históricas, filosóficas e políticas trazem para esta coletânea temas e ilustrações da realidade que se acentua cada dia no Cone Sul da América, na região rio-pratense. É a vastidão das águas que se encontra com a imensidão do pampa na contemplação dos alcantilados contrafortes dos Andes. Aí vive um povo de nacionalidades distintas, de línguas aparentemente diversas mas unido nos ideais do progresso, nas conquistas da liberdade regida pelo decálogo do amor. Procurou-se apresentar os textos de acordo com os temas afins: • PETRONA DOMÍNGUEZ DE RODRÍGUEZ PASQUÉS – força e exemplo de integração – Elvo Clemente; • CIUDADES INVISIBLES: SU FUNCIÓN NARRATOLÓGICA – a ficção representa a realidade – Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués; • REPÚBLICA RIO-GRANDENSE E AS FRONTEIRAS PLATINAS – espaço de conflitos e de colaboração – Moacyr Flores; • BRASIL E URUGUAI: “A FRONTEIRA VIVA” COMO ESTOPIM PARA A ECLOSÃO DA GUERRA DO PARAGUAI – fato doloroso de sangue e heroísmo – Carla Ferrer; 7 • DUAS VISÕES DO RIO PARDO DA PRATA – EXPEDIÇÃO DE PERO LOPES DE SOUSA (1531) E EXPEDIÇÃO DE ALVAR NUNES CABEZA DE VACA (1541) – aproximações e fontes de discórdias – Harry Rodrigues Bellomo; • JESUÍTA GAÚCHO SE DOUTORA EM BUENOS AIRES – cultura não tem fronteira, confraterniza – Luiz Osvaldo Leite; • ITÁLIA SOLTA A GARGANTA – ópera e música unem as pátrias – Décio Andriotti; • PANORAMA CELESTE DA BANDEIRA DO BRASIL – o céu austral é de paz e de harmonia nas alturas e entre os povos – Geraldo Rodolfo Hoffmann; • SOCIEDADE OITOCENTISTA II – a vida, o comportamento e dificuldades da mulher nesse século – Hilda Agnes Hübner Flores; • ARQUITETURA E ESCULTURA BARROCA NO BRASIL E NO RIO GRANDE DO SUL – as construções revelam as idiossincrasias dos povos – Thiago Nicolau Araújo; • AS COLONIAS DE NOVA FRIBURGO (RJ) E TORRES (RS): ESTUDO COMPARATIVO – as variações dos usos e costumes ensinam – Marcos Antonio Witt; • A INVERSÃO DA IMAGEM DA COLUNA PRESTES NA IMPRENSA: DE REVOLTOSOS PARA HERÓIS – a mente humana e a opinião pública são mutáveis – Júlia Matos; • CONFLITOS E IDENTIDADE: A AÇÃO MARISTA NOS NÚCLEOS TEUTOS DO RIO GRANDE DO SUL – a história dos educadores maristas uniu povos diferentes marcando o Cone Sul – Kate Fabiani Rigo. Nas diferenças ou semelhanças entre os capítulos percorre a força misteriosa e eficiente da inteligência que une, que integra os povos e as idades na civilização do Amor. 8 2 PETRONA DOMÍNGUEZ DE RODRÍGUEZ PASQUÉS – Força Integradora – ___________________ Elvo Clemente Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS Introdução Quis a benevolência da estimada Diretora da Faculdade de Letras, Dra. Regina Zilberman cometer-me a honrosa tarefa de saudar a Dra. Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués na ocasião em que o Reitor, Prof. Ir. Norberto Francisco Rauch, cumprindo a resolução do colendo Conselho Universitário lhe outorga o título de Professor Honoris Causa. A solenidade e adereços acadêmicos desta hora não tolhem a manifestação de sentimentos e de caras reminiscências. Corria o frio mês de julho de 1962, o saudoso Irmão Faustino João convidou-me a acompanhá-lo a uma viagem à Argentina e ao Uruguai por ocasião da celebração do Congresso de Pax Romana, em Montevidéu. Em Buenos Aires em rápida permanência de três dias tivemos o convite da família Domínguez. Encontramos as três irmãs Clarita, Cristina e Petrona (Mignon) recentemente diplomada em Letras. Nunca mais esquecemos o encontro e a amabilidade das três irmãs. Em nossas palavras apresentaremos os seguintes aspectos da homenageada desta tarde: a aluna de Letras; a professora e pesquisadora; a escritora; a integradora do Cone Sul. 9 Estudante exemplar Nos idos de 1960 a Universidade de Buenos Aires florescia com bons programas de estudos, com excelente corpo docente e brilhante alunado. A jovem Mignon, que adotava este nome desde os artigos e crônicas publicados em La Prensa, desde os 15 anos. Lembramos os professores que marcaram época na Argentina e alhures: Angel Battistessa, exímio crítico literário; Raul Castagnino, o mestre da Teoria da Literatura; Enrique Anderson Imbert, o contista e o mestre da historiografia e da crítica, Amado Alonso, da Real Academia, iniciador da Estilística. A estudante Mignon encontrava o que seus sonhos procuravam, cada lição dos mestres era mais luz para seu caminho de professora de Letras. A conclusão do curso teve Diploma de Honor. Após o casamento com o jovem colega de atividades na Ação Católica, Rafael Rodríguez Pasqués, a estudante continuou a estudar conquistando, em 1966 o Máster of Science of Language na Georgetown University, Washington, com a dissertação: Morfologia y sintaxis del adverbio enmente, na língua castelhana. Continuando nos Estados Unidos, graças aos Cursos de Rafael e de bolsas renovadas, empreendeu o doutoramento, na The Catholic University of América, na Capital americana. Defendeu a tese – El discurso indirecto libre en la novela argentina. O título de Doutora en Lenguas Romances y Literatura (PhD) lhe sorria triunfante em 1968. O grande mestre que lhe acompanhara os passos era o saudoso Dr. Hastfedt, da Estilística. Os estudos e investigações lingüístico-literárias continuaram em pósdoutorados realizados: em seminário de Narratología del discurso pela Prof. Dra. Elsa Dehemin de Galle, na Université Libre de Bruxelles, em 1988. A Teoria da recepção foi-lhe ministrada no Romanisches Seminar der Universität Heildelberg, Alemanha em 1972 e 1974 com os mestres Gadamer e Jauss. Estudante soube manter-se atualizada nas teorias da literatura, nos métodos e na historiografia: estudante de vida inteira, pesquisadora em todas 10 as horas e em todos os ambientes, onde pudesse encontrar mais luzes, mais saber da arte e da ciência da literatura. Professora e pesquisadora Durante o curso universitário praticava sua vocação de professora na escola secundária, ensinando Língua Espanhola e Literatura hispano-americana. Ao realizar seu doutoramento em Washington foi professora assistente na Georgetown University de 1966-1970. Em 1972 era professora visitante da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Por seis anos lecionou no Curso de Pós-Graduação de Letras: Teoria da Literatura; Literatura hispano-americana: crítica literária estilística; crítica genética e estudo especial sobre Jorge Luís Borges. Nos cursos regulares e nos especiais de janeiro e julho a doutora Petrona lecionava a grande número de professores de universidades brasileiras federais e particulares do Norte, Nordeste e Centro-oeste e do Rio Grande do Sul. Os seus ensinamentos caíram em terra boa e frutificaram pelo Brasil a fora. Quantos recordam a professora Petrona em suas aulas e na orientação de dissertações e teses! A vida e o florescimento do Programa de PósGraduação de Letras muito devem às aulas, ao entusiasmo e à visão humanista e cristã da doutora Petrona. De 1981 a 1996 foi professora associada de Literatura Brasileira e Portuguesa na UBA. Já alcançara o título de professora titular por concurso na UBA. Em 1971 consagrou-se professora titular de História da Cultura na Universidad Tecnologica Nacional. Exerceu as funções de Diretor de área de lntegración Cultural na mesma Universidade. Deu sua brilhante contribuição na Universidad del Salvador e na Universidad Nacional de La Pampa. Manteve a cátedra na UBA, até sua aposentadoria em 1996, como professora titular de Seminarios de lnvestigación em Teoría Literária y Literatura Iberoamericana. 11 Atualmente mantém-se como professora titular de Ingeniería y Sociedad na Universidad Tecnologica Nacional, UTN. O que faz Mignon no reino da Tecnologia? É professora de humanismo entre os colegas e alunos que aspiram algo mais acima dos sucessos da Tecnologia. É o espírito novo da provecta professora que sabe que os valores do espírito e da eternidade se sobrelevam aos milagres e misteres da tecnologia. A escritora O uso da pena e da máquina de escrever estiveram presentes desde cedo na família Domínguez – o pai dirigia EI Mundo, jornalista robusto e de grandes horizontes, a filha Mignon ensaiara desde cedo as manhas da crônica literária, do conto e dos comentários críticos. Lamentável é a ausência do álbum de crônicas daqueles tempos... Em 1995 lançava o livro El pacará de los tucos de la pátria vieja, Buenos Aires: Colombo, 1955. Em 1958, apareciam 16 Cuentos Argentinos que comemoram, hoje, 17ª edição. Em 1968 recebia o Premio da Sociedad de Escritoras Católicas pelo livro Tucma; diálogos con Las tierras del Norte. EI discurso indirecto libre en la novela Argentina, tese do doutoramento, era publicado pelo editorial da PUCRS, em 1975. Com excelente estudo introdutório e comentários críticos de Petrona, publicava-se em 1980, a Antologia de Cuentos fantásticos hispanoamericanos. Há numerosos capítulos seus em livros coletivos tais como Borges, em 1991; Estádios de Narratología, 1991; Cartas desconocicias de Julio Cortazar, 1992 e 2ª ed. 1994; Historia, ficción y metaficción en Ia novela latinoamericana contemporanea, em 1996; La función narrativa y sus nuevas dimensiones, Centro de Estúdios Narratológicos, 2001; Nuevas tendências y perspectivas contemporaneas en la narrativa, em 2001. Numerosos são os 12 artigos seus em revistas argentinas e de outros países como o Brasil, Espanha, Estados Unidos, França e Portugal. Mignon é escritora, ensaísta e beletrista nos contos e crônicas. Força integradora A professora doutora Petrona por suas atividades de escritora, de professora e de pesquisadora tornou-se há meio século uma força integradora de culturas e de povos pelo culto e cultivo das Letras. A integração realiza-se pela presença em cursos, em congressos e em seminários. Em sua força juvenil passou dez anos em Washington realizando cursos e ministrando aulas sobre temas latino-americanos. Durante 50 horas, na Universidade de Salamanca assistiu e colaborou no curso extraordinário “La Literatura Iberoamericana en el 2000, Balance y Perspectivas”. Ainda no mesmo ano, ministrou o curso de especialização em “Medios de Comunicación Social y Valores”, no Centro de Investigaciones de Ética Social. Tudo encaminha integração de pessoas, de atividades para o bem das pessoas e da sociedade. A sua ação integradora é manifesta em sua colaboração decisiva nos Cursos ministrados durante um lustro no Programa de Pós-Graduação de Letras nesta Universidade. Outra manifestação de sua força integradora são as associações e instituições que a tem como sócia: Asociación Internacional de Hispanistas, membro de número do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana; membro da Associação Internacional de Lusitanistas: membro da Sociedad Argentina de Escritores e do Pen Club Argentino; membro da Modern Language Association. A sua força integradora tem seu ápice no Centro de Estúdios de Narratologia, de Buenos, de que é a fundadora, a presidente e alma das reuniões e dos simpósios bienais. Fato exemplar foi a I Jornada Internacional de Narratologia realizada nesta Universidade em 2001 junto com os Seminários de Crítica Literária. 13 Professora Petrona em sua abertura ao estudo e à investigação literários por suas conferências em congressos na Argentina, na França, nos Estados Unidos da América, no Brasil, revela-se como força de aproximação de culturas e de pessoas que se transformam em energia propulsora de união e de confraternização entre pessoas de línguas e povos diferentes. Tudo se une, se irmaniza pelas Letras, na exposição e discussão do fato literário. Recordando o velho e sempre novo Cícero direi: Mignon Domínguez é a mensageira que traz a novidade perene das Letras que humanizam sempre mais o peregrino por estes caminhos tateantes de nossa civilização até encontrar o conforto aos pés do Mestre que integrou, reuniu a família humana no seu abraço do alto do Gólgota e que mostrou nova vida em sua Ressurreição, verdadeira evocação das Letras que unem no tempo e na eternidade. A vida e a obra da Professora Doutora Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués estão a nos apontar o caminho de aproximação e de fraternidade a começar no Cone Sul e abraçar todos os povos no milagre da verdadeira arte de Amar. 14 3 CIUDADES INVISIBLES: SU FUNCIÓN NARRATOLÓGICA ____________________ Petrona D. de Rodríguez Pasqués Universidad Tecnológica Nacional – Argentina La crítica holandesa Elrud Ibsch ha señalado que en literatura la ciudad, que no está hecha ni con ladrillos ni con piedras sino con palabras, tiene tres funciones: Ia primera una función documental: una ciudad geográficamente identificable es un elemento factual, el efecto de lo real evocando ciertas expectativas en el lector. La segunda función es la narratológica que tiene en literatura un elemento estructural que contribuye a la articulación de acontecimientos en el texto. En tercer término la ciudad en literatura tiene una función modelizadora: por concentración en ciertos aspectos semánticos – mientras se descuidan otros – la representación de una específica ciudad constituye un “modelo”, un esquema cognitivo de la 1 difusa realidad urbana . Demás está decir que la interdependencia y la interacción entre las funciones documental, narratológica y modelizante se dan en primer plano dentro de la literatura. Antes de entrar en nuestro tema conviene partir de Aristóteles quien al hablar de la polis y el régimen ideal de la ciudad en la Política creía que el N.A. Los números de las páginas de texto se consignan entre paréntesis. Las traducciones del português, inglés y francés que figuran en las citas son nuestras. 1 Cfr. Erud lbsch. “The representation of the city in modernist and postmodernist literature”, CÂNONES & CONTEXTOS, 5 ABRALIC. Anais... Brasil: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. v. I, p. 177. 15 ser humano era por naturaleza, no tanto un animal “político” sino en realidad cívico o ciudadano (zoon politikón) o sea miembro de una ciudad 2 . Convengamos en que este ciudadano no tiene que ser entendido necesariamente en términos de participación política sino en términos de alguien que pertenece a una ciudad. Vivimos por naturaleza en una ciudad y así Rafael Gutiérrez Girardot recuerda que “toda literatura es urbana” 3 . Italo Calvino en su libro Las ciudades invisibles (1972) propone una suerte de reescritura entre alegórica y poética del Libro de Ias maravillas de Marco Polo. El autor veneciano se esforzó por hacer creíbles sus afirmaciones acerca de las maravillas vistas en su viaje por Asia 4 . Pero esos relatos no convencieron a sus contemporáneos debido a las circunstancias en que se escribieron: el Libro de Ias maravillas fue dictado por Marco Polo en la cárcel a Rusticello de Pisa, autor de libros de caballería del ciclo del rey Arturo. Calvino logra en Las ciudades invisibles una estrategia narrativa borgesiana: finge que su libro fue escrito por un autor de otra época. Marco Polo es el narrador y el venerable Kublai su oyente. Las historias tienen una o dos páginas. Son historias breves a la manera de Borges o de Kafka en las que Calvino recupera un relato antiguo para un texto de ficción contemporánea. 2 Aristóteles. Política (VIl. 5, 1277). 2. ed. Trad. Julián Marías. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,1970. p. 120. 3 R. Guitiérrez Girardot. “La transformación de la literatura por la ciuad”. La ville et la littérature. Marche Romane, Liège XLIII, 1993. p. 1-4, p. 121-131. El autor comienza su ensayo con estas palabras “Es el principio eran las ciudades. Con ellas nace el intelectual en el Occidente medieval” escribió Jacques Le Goff. Y agrega Rodríguez Girardot “Toda literatura es urbana, y al menos según eI concepto secular de literatura no hay una literatura catupesina Como literatura urbana se considera la que tiene a la ciudad como tema central” (121) 4 Marco Polo. Libro de las maravillas. Madrid: Anaya, 1983. Paul Pelliot y C. Moule publicaron en 1938 la primera edición completa reconstituida. Véase Víctor Chlovski Le voyage de Marco Polo. Paris: Payot, 1993. 16 Estas ciudades de Marco Polo nunca existieron ni pueden existir y sin embargo la mayoría de los lectores – según Harold Bloom 5 – iría allí si fuese posible. Las ciudades de Calvino aparecen en once grupos dispersos: Las ciudades y la memoria, Las ciudades y el deseo, Las ciudades y los signos, Las ciudades y los cambios, Las ciudades tenues, Las ciudades y los ojos, Las ciudades y el nombre, Las ciudades y los muertos, Las ciudades continuas, Las ciudades y el cielo, para concluir con las ciudades ocultas. “Aunque uno puede marearse teniéndolas a todas en la mente, no ayuda nada decir que cada una de esas ciudades es en realidad el mismo lugar” 6 . Todas las ciudades invisibles tienen nombre de mujer pero esto no significa que todas las mujeres sean una. Kublai Kan escucha los relatos de Marco Polo sobre remotas ciudades. Cada ciudad invisible se presenta como un fragmento que desarrolla una variable de la ciudad única “que todos llevamos dentro” dice Calvino. Fernando Ainsa en excelente ensayo 7 señala la obra de Calvino como “un apasionante catálogo de variantes caleidoscópicas. “En las ciudades que dan forma a los deseos o en aquéllas en que “los deseos o bien logran borrar la ciudad o son borrados por elIa, se dan las tenues diferencias entre ciudades felices e infelices” (Zenobia) 8 . En cuanto al libro de Marco Polo, pertenece a esa categoría de textos que al decir de Calvino “se esconden en los pliegues de la memoria mimetizándose con el inconciente colectivo o individual y nos Ilegan trayendo 5 Harold Bloom. How to read and why. New York: Scribner, 2000. p. 62. Harold Bloom. Ibidem. 7 Fernando Ainsa. “Los sueños de Borges y Calvino revisitados por Marco Polo”. Cuadernos Hispanoamericanos, n. 553/554, p. 105-119, jul/ago. 1996. 8 Idem, p.113. 6 17 impresa la huella de las lecturas que han precedido a la nuestra y tras de sí la huella que han dejado en la cultura o en las culturas que han atravesado” 9 . Pero Fernando Ainsa hace esta observación: “A diferencia de Marco Polo que trató de convencer a sus contemporáneos de la veracidad de su relato sobre las maravillas vistas y oídas en el curso de su viaje por Asia. Calvino prefiere recuperar en el relato del veneciano “la invención” imaginativa a la que la descripción de ciudades exóticas invita, es decir, la condición de crónica increíbIe...” 10 . El Libro de las maravillas (1938) tuvo un destino aciago porque su autor quedó vinculado con fantasías y fábulas. No obstante el libro de Marco Polo constituye el núcleo generador y además representa un arquetipo narrativo como es el del topos del viaje en función del horizonte cultural contemporáneo. Pero la función narratológica implícita en la continuidad del viaje en el Libro de las maravillas es sustituida en Calvino por un curso discontinuo generado por un procedimiento combinatorio la “contrainte” es el nuevo itinerario propuesto por Calvino en el espacio del texto. Según el crítico Andrea Martines la imagen en forma de red reproduce el orden combinatorio de la obra 11 . Así la ciudad denominada Zora es como una red en cuyas casillas cada uno puede disponer las cosas que quiere recordar. Zora, ciudad que quien Ia ha visto una vez no puede olvidarla más. Ottavia (Ciudades tenues, p. 87) es una ciudad telaraña suspendida en el abismo: “Hay un precipicio entre dos montañas abruptas; Ia ciudad está en el vacío atada a las dos crestas con cuerdas, cadenas y pasarelas”. En Las ciudades y los cambios, Ersilia, se rehace continuamente; los habitantes tienden hilos para establecer las relaciones, hilos blancos o negros 9 Italo Calvino. Por qué leer los clásicos. Barcelona: Tusquets, 1992. p. 17 Fernando Ainsa, idem, p. 106. Veáse la tesis doctoral de Andrea Martínes La Ietteratura combinatoria, Roma: Universita degli Studi di Roma, 1997. El autor realiza un excelente análisis de Las ciudades invisibles. 10 11 18 o grises según indiquen parentesco, autoridad o intercambio. Cuando los hilos son muchos y no se pueden pasar, los habitantes se van, después de haber desmontado sus casas y vuelven a edificar a Ersilia en otra parte (p. 88). Pero sobre todas Smeraldina (Las ciudades y los cambios) la ciudad acuática, responde a Ia estructura de red, “una red de canales y una red de calles se superponen y se entrecruzan” (p. 100). A la imagen reticular Calvino inserta en otras ciudades invisibles la reelaboración combinatoria del topos del viaje con la búsqueda de la clave interpretativa por deducción. Laudomia en Las ciudades y los muertos (p. 152) tiene a su lado otra ciudad con los mismo nombres de sus habitantes: es la ciudad de los muertos. Pero a su vez comprende una tercera Laudomia que es la de los no nacidos y para sentirse segura la Laudomia viviente necesita buscar en la Laudomia de los muertos la explicación de si misma. La Laudomia de los recién nacidos no trasmite seguridad, sino sólo zozobra a los habitantes, como la de los muertos. Como otro recurso narratológico además de la estructura reticular y del “topos” del viaje y la búsqueda de las claves interpretativas del imperio por deducción. Calvino reitera diversos modelos miméticos del procedimiento combinatorio. Las relaciones entre los habitantes de Cloe (p. 63) son sólo hipotéticas, imaginadas combinatoriamente casi como los habitantes de Eutropia. En Cloe, gran ciudad, “las personas que pasan por las calles no se conocen”. Pero nadie saluda a nadie, las miradas se cruzan un segundo y después huyen, buscan otras miradas, no se detienen (Las ciudades y los cambios). En cambio en Valdrada (p. 65) perteneciente a la clasificación Las ciudades y los ojos los antiguos la construyeron a orillas de un lago con casas todas de galerías una sobre otra y calles altas que asoman al agua sus 19 balaustradas. Así el viajero ve al llegar dos ciudades: una directa sobre el lato y otra de reflejo, invertida. Llegamos al fin a Las ciudades ocultas y una de ellas es Berenice (p. 172) “la ciudad injusta” que tiene una ciudad justa dentro de ella y “en la semilla de la ciudad de los justos está oculta a su vez una simiente maligna: la certeza y el orgullo de estar en lo justo — y al estarlo más que tantos otros que se dicen justos — fermentan en rencores, rivalidades, despechos y el natural deseo de desquite sobre los injustos, se tiñe de manía de ocupar su sitio haciendo lo mismo que ellos”. O sea otra ciudad injusta va excavando su sitio. Berenice es entonces una secuencia de ciudades justas e injustas pero “todas las Berenices futuras están ya presentes en este instante, envueltas una dentro de la otra, estrechas, apretadas inextricables”. Marco Polo ha terminado. No hay entonces más ciudades invisibles. Sólo queda un diálogo final entre Kublai Kan, el emperador, y Marco Polo. El Gran Kan tiene un Atlas con ciudades visitadas con el pensamiento pero todavía no descubiertas o fundadas: la Nueva Atlántida, Utopía, la Ciudad del Sol, Icaria, Armonía. Kublai Kan pregunta a Marco Polo: “Tú que exploras en torno y ves los signos sabrás decirme hacia cuál de estos futuros nos impulsan los vientos propicios”. Marco Polo responde que para esos puertos no sabría trazar la ruta en el mapa ni fijar la fecha de llegada (p. 174). La ciudad a la cual tiende su viaje es discontinua en el espacio y en el tiempo. Entonces el Gran Kan repasa en su atlas las ciudades de pesadillas y de maldición: Enoch, Babilonia, Yahoo... Desesperado declara su nihilismo: La corriente lleva al infierno de los vivos, pero Calvino coloca las últimas palabras en boca de Marco Polo para encender la esperanza en el lector: “El infierno de los vivos no es algo que será; es aquel que existe ya aquí, el infierno que habitamos todos los días que formamos estando juntos. Hay dos maneras de no sufrirlo: hay que aceptarlo y volverse parte de él hasta no verlo 20 más”. Pero hay un mejor camino — y aquí reconocemos la sabiduría de Ítalo Calvino — “buscar y saber reconocer quién y qué en medio del infierno no es infierno y entonces hacerlo durar y darle espacio” (p. 175). Calvino nos aconseja cómo vigilar, captar y reconocer la posibilldad de lo bueno, ayudar a que permanezca, darle espacio en nuestra vida. Santiago Kovadloff sostiene que hay “una paradoja resultante del hecho de que la literatura brasileña es entendida independientemente de la hispano-americana y ésta a su vez enfocada como un corpus indiferenciado y uniforme por acción de la lengua española sin que se tenga en cuenta que la ficción brasileña está más cerca de la argentina que de la boliviana. Brasil no encontró todavía — agrega el crítico — en América Latina los lectores hispanoamericanos que precisa porque éstos no encontraron los recursos que favorezcan su comprensión de la literatura brasileña como una dimensión más de su identidad” 12 . Kovadloff emitió este juicio hace ya algunos años. En cierto aspecto — salvo excepciones — su visión se mantiene, pero creemos que en las dos literaturas perdura su acento y su mensaje propios. Si cada ciudad invisible se presenta como un fragmento que desarrolla una variable de la ciudad única que “todos llevamos dentro” examinemos de cerca, algunos ejemplos en la narrativa argentina y en la brasileña. Calvino en Las ciudades invisibles (1974) fue influido notoriamente por Borges. Ahora para hablar de Borges partimos de la creación de Calvino, del acierto de sumergirse en las ciudades invisibies, imagen que nunca concretó Borges, pero a Ia que recurrió con singular maestría. 12 Santiago Kovadloff. “La literatura brasileña en el exterior”, Brasil Cultura, año V, n. 46, dic. 1980. (Sector Cultural de la Embajada del Brasil en Buenos Aires). 21 Buenos Aires está en Borges y Borges está consustanciado con Buenos Aires. Veamos ante todo un punto de convergencia con Calvino, o mejor vayamos al intertexto de Calvino. Borges, en una página de Otras inquisiciones (1960) titulada “El sueño de Coleridge” ya había abordado un episodio en la vida del poeta y La génesis del fragmento lírico Kublai Khan que fue soñado por Coleridge en 1797. Este escribió que había tomado un sedante y se sumergió en un sueño después de una lectura que refería la edificación de un palacio por Kublai Khan, el emperador famoso por los relatos de Marco Polo. En el sueño de Coleridge aquel texto previamente leído fue cobrando forma y se multiplicó a punto de que el sofiador pudo ver una serie de imágenes visuales y de palabras que las explicaban. Cuando se despertó tuvo la certidumbre de haber compuesto o recibido un poema de 300 versos. Lo recordaba fielmente y así transcribió el fragmento Kublai Khan. Coleridge soñó el poema en el siglo XVIII pero en el siglo XIII Kublai Khan erigió un palacio según un plano que había visto en un sueño. La ciudad de Buenos Aires asoma en Borges desde los albores del siglo XX; puede remontarse a época anterior por la mención de los mayores o el testimonio escrito de otros; puede asumir nombres o lugares geográficos diferentes: siempre será Buenos Aires. Su primer libro Fervor de Buenos Aires (1923) se abre con estos versos que señalan el dualismo: visible-invisible: Las calles de Buenos Aires ya son mi entraña. No las ávidas calles incómodas de turba y de ajetreo sino las calles desganadas del barrio casi invisibles de habituales, enternecidas de penumbra y de ocaso... (Calles de Buenos Aires) 22 “Fundación mítica de Buenos Aires” auna las dos ciudades: la Buenos Aires visible y la invisible. Imagina una fundación que saltea el tiempo y el espacio avalada por el adjetivo “mítica”. Prendieron unos ranchos trémulos en la costa durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo, pero son embelecos fraguados en la Boca. Fue una manzana entera y en mi barrio: Palermo. Una manzana entera pero en mitá del campo expuesta a Ias auroras y lluvias y suestadas, La manzana pareja que persiste en mi barrio Guatemala, Serrano, Paraguay, Gurruchaga. (Cuaderno San Martín, 1929) El poeta vislumbra la fundación de la ciudad de Buenos Aires y la ubica en la manzana de un barrio con almacén rosado, un organito y una cigarrería sahumada como una rosa. Allí alienta una ciudad visible pero a la vez invisible porque es trascendente: A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires La juzgo tan eterna como el agua y el aire. Hasta ahora hemos espigado en sus primeras manifestaciones poéticas. Examinemos brevemente sus cuentos. Borges recorre en ellos los barrios con pinceladas realistas. En “La muerte y la brújula” (Ficciones, 1956) Borges revela en el prólogo a la Colección que la ciudad de su cuento es Buenos Aires: “Pese a los nombre alemanes o escandinavos ocurre en un Buenos Aires de sueños: la torcida rue de Toulon es el Paseo de Julio; Triste Le Roy, el hotel donde 23 Herbert Ashe recibió y tal vez no leyó el tomo 11 de una enciclopedia ilusoria” (Ficciones, p. 115). En “El jardín de senderos que se bifurcan” (Ficciones) no obstante su corte policial hay un elemento fascinante en el escamoteo de una ciudad que en la mente del espía del Imperio Alemán sólo se revela al final. Así todo el relato se construye sobre el enigma de una ciudad invisible. “Fundar Iiterariamente una ciudad puede ser también construir la idea de la misma: algunas urbes son la idea que de ellas ha construido la literatura”. Tales expresiones pertenecen a José Carlos Rovira 13 . Rovira se pregunta si narrativamente no es “El jardín de los senderos que se bifurcan” el primer texto en que Borges funda una ciudad en la literatura... porque el jardín, siendo sobre todo esa “red creciente de tiempos divergentes, convergentes y paralelos que se cruzan, es también la fundación de una ciudad que se llama Albert para indicar a los alemanes que la bombardeen”. El diario del protagonista-espía Yu Tsun nos cuenta que no ha encontrado mejor forma de hacerlo que asesinar el sinólogo llamado Stephen Abert. Todos los cuentos de Borges exigen mucha sabiduría y lecturas. “Un cuento está metido dentro de otro y el mismo esquema se repite o se invierte” 14 . La mente poderosa de Borges ha fundado un canto único a la belleza de la vida argentina que él ha descubierto en las casas, los patios y las calles de Buenos Aires. La conciencia de su originalidad no le ha permitido ser un escritor popular. El cuento “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” ha inquietado a la crítica por su complejidad. En el Prólogo a Ficciones su autor confiesa que es “un desvarío laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros... Mejor procedimiento 13 José Carlos Rovira. “Borges, Calvino y la fundación literaria de ciudades”, Borges, Calvino, Ia literatura. Madrid: Fundamentos, 1986, v. lI, p. 89. Enrique Anderson Imbert. Historia de Ia literatura hispanoamericana. México: Fondo de Cultura Económica, 1966, 5. ed. v. II, p. 286. 14 24 es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen”. Pero él ha preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios y entre ellos menciona a “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”. Jaime Alazraki considera el cuento como una “alquimia” que consiste en mostrarnos nuestra realidad transfigurada en un sueño, en una fantasmagoría más del espíritu que nada o muy poco tiene que ver con este mundo real que se propone penetrar 15 . “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” presenta un mundo fantástico que a su vez incluye un segundo mundo fantástico y éste contiene un tercero. Está estructurado al modo de las “muñecas rusas” o “cajas chinas”. Este recurso aparece en varios cuentos de Borges: recordemos El Aleph. “El jardín de senderos que se bifurcan”, “Las ruínas circulares”. La estructura interna, el andamiaje consiste en tres dimensiones de fantasía que Echavarría Ferrari llama tres parámetros de referentes lingüísticos 16 . Si hay entre los cuentos de Borges uno que puede aproximarse más a los que aparecen en Las ciudades invisibles de Calvino indudablemente es éste. Pero difiere notablemente en su extensión y en su complejidad aunque se asemeja en la estructura circular. “Borges nos ha hecho creer en un mundo imaginario urdido por hombres, capaz de invadir un mundo real y hacerlo desaparecer” 17 . Estructuralmente tanto Las ciudades invisibles como Tlön responden a las mismas motivaciones, según José Luis de la Fuente. “En Tlön por la sinuosidad del tiempo y el abigarrado pormenor de datos. También del espejo 15 J. AIazraki “Tlön y Asterion: anverso y reverso de una epistemología”. Nueva narrativa hispanoamericana, org. J. Laforgue, v. I, sept. 1971. Arturo Echavarría Ferrari. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Creación de un lenguaje y crítica del lenguaje”. Revista Iberoamericana, n. 100/101, p. 401, jul.-dic. 1977. 17 Idem, 412. La prirnera dimensión de la fantasía reside en la literatura de Uqbar que es de carácter fantástico. La segunda dimensión es una región imaginaria de un país imaginario: Tlön, la tercera es una Enciclopedia que se llamará Orbis Tertius. 16 25 como metáfora estructural sobre la que se construye el texto pues ambas realidades responden a una peculiar visión del mundo” 18 .. En su libro Seis propuestas para el próximo milenio (1985) Calvino otorga a Borges tres de las cualidades válidas para el siglo XXI. Rapidez, exactitud, y multiplicidad. Saúl Yurkievich en “El cristal y la llama” ha declarado que Calvino al caracterizar a Borges se autocaracteriza y agrega: “Borges va a contracorriente de nuestra época... La literatura contemporánea persigue en lenguaje locuaz la suma magmática de la existencia... Borges encarna la revancha del orden mental contra el caos del mundo” 19 . En esa prosa condensada la ciudad es el más complejo de los laberintos construidos por el hombre. Si hablamos de la ciudad no podemos dejar a un escritor argentino que desde París habló siempre de Buenos aires. Su obra Rayuela (1963) obedeció a un impulso de realizar una obra que tuviera “el gesto amplio de la novela (en oposición al cuento) pero que rompiera con Ias convenciones del lenguaje y del género...” 20 . Hay allí un continuo desdoblamiento entre dos mundos: el de aça y el de allá; entre dos ciudades: París y Buenos Aires, expresiones de la situación de exiliado en un ámbito diferente. El protagonista se mueve entre los dos espacios urbanos pero desde el ángulo narratológico se observa que “los movimientos superficiales de los personajes de una ciudad a otra, son en realidad la cara visible de un verdadero sistema de desplazamientos en cuyo origen se encuentra el ritmo como generador” 21 . 18 José Luis de Ia Fuente. “Las ciudades invisibles de Tlön”. Borges, Calvino, Ia literatura, op. cit., vol. 2, p. 117. 19 Saúl Yurkievich. “El cristal y la Ilama”. Borges, Calvino, la literatura. Op. cit., v. 1, p. 37. 20 Ana María Barrenechea. “Génesis y circunstancias”. Julio Cortázar, Rayuela. (Ed. crítica), Madrid: Archivos, 1991, p. 552. 21 Gerardo Goloboff. Julio Cortázar. La biografia. Buenos Aires: Seix Barral, 1998, p. 140. 26 La novela se abre con una pregunta: “Encontraría a la Maga? Y así se descorre el telón de París: “Tantas veces me había bastado asomarme, viniendo por la rue de Seine, al arco que da al Quai de Conti, y apenas la luz de ceniza y olivo que flota sobre el río, me dejaba distinguir las formas, ya su silueta delgada se inscribía en el Pont des Arts ...” “Pero ella no estaría ahora en el puente. Su fina cara de traslúcida piel se asomaría a viejos portales en el ghetto del Marais, quizá estuviera charlando con una vendedora de papas fritas o comiendo una salchicha caliente en el boulevard de Sebastopol.” Todo lo denominado “Del lado de allá” es un recorrido y descripción de París. En cambio “Del lado de acá” está enfocado desde los diálogos, los fragmentos de tango y el mate elementos todos, junto con el nombre de algunas calles y de algún barrio que dan el clima del ambiente porteño. La idea y el título de 62, Modelo para armar (1968) provienen del capítulo 62 de Rayuela. Cortázar explicó posteriormente que los personajes están motivado por fuerzas ocultas más bien que por las usuales fuerzas psicológicas 22 . Tiempo y espacio están constantemente violados. La perspectiva narrativa cambia con frecuencia y los motivos se ven dificultados por la presencia de paredros y eI dominio de la ciudad. La palabra “paredros” se refiere según Cortázar al doble de una divinidad egipcia y está usada en la novela para indicar otro personaje con el cual el personaje narrador siente afinidad. “Del mismo modo la ciudad no es un lugar fijo o un lugar real; existe en la mente de los personajes como un sueño de centro urbano que todos ellos han visitado una u otra vez y a la cual muchos retornan; aunque como en las ciudades reales Londres, París, Viena, en la ciudad invisible ellos 22 Omar Prego Gadea. Julio Cortázar Ia fascinación de las palabras. Buenos Aires: Alfaguara, 1997. 27 tienen dificultad de encontrarse unos con otros”. La ciudad invisible de Cortázar que nos muestra 62, Modelo para armar (1968), es el producto de un sueño en él cual él fue en busca de algo o de alguien 23 . Dentro del texto de la novela aparece un poema titulado “La ciudad” señal de la ansiedad lírica de Cortázar. No es un trabajo poético independiente sino que está inserto en la masa de una novela y es el poema de la novela. “Entro de noche a mi ciudad, yo bajo a mi ciudad donde me esperan o me eluden, donde tengo que huir de alguna abominable cita, de lo que ya no tiene nombre, una cita con dedos, con pedazos de carne en un armario, con una ducha que no encuentro, en mi ciudad hay duchas, hay un canal que corta por el medio mi ciudad y navíos enorme sin mástiles, pasan en un silencio intolerable hacia un destino que conozco pero que olvido al regresar, hacia un destino que niega mi ciudad donde nadie se embarca, donde se está para quedarse aunque los barcos pasen y desde el liso puente alguno esté 24 mirando mi ciudad . Antes de entrar a Ia consideración de las ciudades brasileñas y su condición de invisibles recordemos unos conceptos de Calvino: “Cada pessoa tem en mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma preenchida pelas cidades particulares” (Zoe, p. 44). Los escritores brasileños han recorrido a lo largo de su literatura una serie de variables en el abordaje de sus ciudades que van de la continuidad a la discontinuidad. Las estrategias constructivas del imaginario literario logran un aprovechamiento fecundo de recursos lingüísticos y además una renovación de las tradiciones. 23 24 Véase Terry J. Peavler. Julio Cortázar. Boston: Twayne Publishers, 1990, p. 108. Julio Cortázar 62, Modelo para armar. 2. ed. Buenos Aires: Sudamericana Planeta, 1968, p. 32. 28 Sólo la aplicación de las tres funciones señaladas al principio: documental, narratológica y modelizante en la obra del inigualable Machado de Assis sería ejemplo suficiente. El poeta Augusto dos Anjos (1884-1914) esbozó en sus poemas fragmentos de una ciudad que bien podríamos aproximar a alguna de “Las ciudades y los muertos” de Calvino. No es precisamente Rio de Janeiro sino una ciudad anónima donde se encuentran calles y puentes, reflejos de inmundicia y miseria, Augusto dos Anjos “expone públicamente lo que la ciudad escondió u olvidó haciendo diseminar por los aires parisienses de la ciudad carioca los efluvios miasmáticos de la descomposición” (Maciel, 1997) 25 . La ciudad negra está representada como un cuerpo enfermo y a veces como un cuerpo muerto. La influencia de Baudelaire es innegable. En esa “ciudad negra todo se deshace y se desmorona al punto de apartarse del mundo: “Súbito surge como un catafalco Uma cidade ao mapamundi estranha” (Insônia) Dedos denunciadores escreviam Na lúgubre extensao da rua preta todo o destino negro do planeta” (Noite do visionario) Hay dos ciudades en Gabriela Clavo y Canela, de Jorge Amado (1912-2001), la Ilhéus geográfica plena de ritmo y color. La otra: la invisible, que ubicamos en “las ciudades y los cambios” de Calvino. Así Ilhéus se compone de dos medias ciudades: una, la de calma provinciana; la otra en ebullición. La primera, como sucede en las pequeñas ciudades del interior del 25 María Esther Maciel. “Metrópole/Necrópole A cidade alegórica de Augusto dos Anjos. Perspectivas literarias desde el fin del siglo. Buenos Aires, UBA, Sección Literaturas en Lenguas Extranjeras, 1997, p. 164-167. 29 Brasil sumergidas en un tiempo detenido para siempre y en una rutina espesa que tan bien escribió Massaud Moisés 26 . Hay que recordar que la novela trae como subtítulo Crónica de una ciudad del interior. El núcleo de Ia obra, es la del idilio amoroso de la mulata. Gabriela y el árabe Nacib; pero sin duda esos amores cobran importancia en la realidad social del Ilhéus. De allí la extensión panorámica hecha de la historia y de la vida de la pequera ciudad en la que se mueven los dos personajes. La protagonista oculta es la ciudad tenue de Ilhéus. Desde las primeras páginas el asesinato de dos amantes “consiguió que la ciudad olvidara los restantes asuntos” (p. 9). “Ilhéus se transformaba” (p. 10): nuevas casas se levantaban para Ias familias, lujosos moblajes serían encargados directamente a Río; llegarían pianos de cola para aristocratizar las salas... el progreso en fin (p. 15). El mismo Jorge Amado afirma la importancia del amor de Gabriela y Nacib para la ciudad. En la segunda parte de la novela se afirma el valor de Ilhéus con las continuas digresiones, estructuración y desestructuración de escenas y diálogos; el novelista se evade de la intriga central y vuelve con maestría a encontrarse en ese escenario único que es la ciudad de Ilhéus: visible sin discusión pero invisible en el mensaje social para un mundo en crisis. Jorge Amado funda literariamente la ciudad de Ilhéus. Lo visible en elIa es un reflejo de lo invisible. Una de las primeras obras de Erico Veríssimo (1905-1975) fue la breve novela titulada Sonata, un verdadero poema en prosa, admirable por su concisión donde se puede apreciar el problema relativo a la temporalidad, idea que preocupó siempre al renombrado escritor 27 . 26 Massaud Moisés. A criação literária. 7ª ed. São Paulo: Melhoramento, Ed. de la Universidad de São Paulo, 1975, p. 210. 27 Erico Verissimo. “Sonata”. O Ataque. Rio de Janeiro: Globo, 1959 (Coleção Catavento, 1). 30 En Sonata el protagonista es un músico solitario a quien Ia gente de la pensión donde vive mira “con extrañeza y alarma”. El relato asume la forma de un fragmento autobiográfico, escrito en primera persona. Este profesor de piano, tímido y solitario, un día de abril deambula por las calles de la ciudad; se mueve como sonámbulo, con la impresión de que el otoño es un ópalo en el cual está encerrada la ciudad con su gente, sus casas, calles y monumentos, tal como aparecen los barcos dentro de una botella, esos que construyen los presidiarios. En su deambular concibe la idea de componer una sonata y ensimismado con los acordes de la misma se salva de ser atropellado por un ómnibus gracias al auxilio de un transeunte. Aturdido, se refugia en la Biblioteca y en su indecisión pide un diario de 1912 por ser ese el año de su nacimiento. Desde allí, en plena irrealidad, el tiempo se detiene. Un aviso del viejo diario solicita un profesor de piano para una joven y el protagonista se dirige a la rúa de Salgueiro n° 25 − calle que por supuesto ha cambiado de nombre en la realidad. Por los detalles el lector advierte que se trata de Porto Alegre en las primeras décadas del siglo pasado. Las imágenes opalescentes envuelven las escenas de esa ciudad antigua. Todo el relato está en consonancia con la composición de la Sonata en Re Menor, paralela a las lecciones que el profesor imparte a una joven delicada. Hay dos ciudades en esta obrita de Erico Veríssimo: una, la real; otra, la invisible, representada dentro de un ópalo. La mirada recorre sus calles como si fueran las notas de una Sonata. Calvino la hubiera ubicado en su libro, clasificada en eI rubro de “ciudad oculta”. El punto más alto de la fama de Erico Verissimo fue alcanzado por su trilogía O tempo e o vento, 1961. Dividida en tres partes y a su vez — a manera de rizoma — ampliada en capítulos con el personaje central, la obra 31 se proyecta como Ia saga de una familia y de una ciudad de Rio Grande do Sul desde sus orígenes a mediados del siglo XVIII hasta el siglo XX. Podría pensarse que existen semejanzas entre O tempo e o vento y Antares. Ambas novelas enfocan momentos brasileños muy parecidos, presentan representantes de la oligarquía rural ambiciosos de mantener el poder, además de ofrecer la saga familiar de quienes poblaron Rio Grande do Sul 28 . Pero aunque Erico descubre en las dos obras la corrupción y la injusticia la trilogía termina en 1945, en tanto que incidente en Antares avanza en la situación de Ia ciudad hasta 1970. La novela tiene dos partes; en toda la acción está el conflicto de dos familias por el poder. En Antares hay una ascensión continua de autoritarismo que va desde el caudilismo hasta un régimen de opresión y de tortura. En la segunda parte se desenvuelve la acción principal de la trama: la fuerza opuesta a ese estado de cosas, que no está del lado de la vida sino de la muerte implicados en ésta Ia desaparición de las posibilidades de transformación de la sociedad. Incidentes en Antares, según María da Glória Bordini potencializa su efecto chocante y su esfuerzo crítico al establishment brasileño: pone la muerte a enseñar a la vida pero la muestra como inocua pues los vivos no cambian. Si la vida es movimiento, devenir, conciencia en expansión Antares, el microcosmos de Brasil, no remite a nada sino a inmovilidad, estancamiento y ceguera: 29 muerte en vida de las élites y ei pueblo” . Queda sólo el acto de denuncia, reverberando en la plaza. Hay una nota del autor al abrirse la novela, que está aclarando la inclusión de la ciudad de Antares en la galería de las “ciudades invisibles”. “Neste romance — dice Erico — as personagens e localidades imaginárias aparecen disfarçadas. Sob 28 Cfr. Márcia I, de Lima e Silva. “O processo criativo em Incidente em Antares: uma análise genética.” Perspectivas literarias desde el fin del Siglo. Buenos Aires: UBA, Sección de Literatura en Lenguas Extranjeras, 1997. p. 231-234. 29 María da Glória Bordini, prefacio a la 2ª edición de Incidente em Antares, São Paulo: Globo, 2002. p. 12-13. 32 nomes ficticios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existen ou existiram são designados pelos seus nomes verdadeiros”. La ciudad de Antares es el centro del dramático “Incidente” del 13 de diciembre de 1963: la huelga de los sepultureros (coveiros). Éstos se niegan a enterrar a los muertos ese día y estos insepultos vuelven a la vida y pasan a intimar con amigos y parientes y a descubrir la podredumbre moral de Antares. Erico Veríssimo reaiza en esta novela-río de más de 400 páginas un desafío a la corrupción y a la hipocresía. Antares es como Eusapia de “Las ciudades y los muertos”. Para que ei salto de ia vida a la muerte sea menos brusco - declara Calvino — los habitantes han construido una copia idéntica de su ciudad bajo tierra. “Dicen que en las dos ciudades gemelas no hay ya 30 modo de saber cuáles son los vivos y cuáles los muertos” . Las dificultades de la vida urbana se mostraron desde el siglo XIX en la literatura brasileña. Ejemplo de ello en el siglo XX fueron, entre otros, Lima Barreto, Fernando Sabino y Dalton Trevisan, en la generación de posguerra. Pero nadie se compara con la aspereza y la acidez satírica de Rubem Fonseca (1925). Las cincuenta y tantas historias de Fonseca demuestran, de acuerdo con Malcolm Silverman 31 “notable coherencia y se conjugan en un vacío asociado a la vida urbana moderna”. Las inter-relaciones están sintetizadas por Fábio Lucas: “Junta los diversos segmentos dramáticos, los contrapone en conflictos, explora las contradicciones. Casi nunca se resuelven en una función catártica sino que producen una sensación de vacío y náusea” 32 . Rubem Fonseca satiriza, se diría con placer, los abusos de la burguesía. En “Paseo nocturno” retrata a los ricos como locos y pinta su consumismo con negras tintas. El protagonista es un asesino que no teme 30 Las ciudades invisibles, op. cit., p. 122 Véase Malcolm Silverman. Moderna Ficção Brasileira 2. Trad. João G. Linke. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 263 32 Fábio Lucas. Fronteiras imaginárias. Rio de Janeiro: Cátedra, 1971. p. 116 31 33 atropellar con su auto a los peatones. La hipocresía social está en el fondo de la ciudad carioca y está evidente en todos sus cuentos calcados en los abusos de la burguesía. Río de Janeiro aparece en su literatura como la ciudad oculta que él revela si piedad por medio de un lenguaje a veces macabro, otras brutal, y frecuentemente deshumanizado. Wilson Martins llegó a considerarlo un renovador del cuento brasileño “en la totalidad de su universo propio” 33 . EI universo es el que encierra la alienación del hombre de la ciudad en la hipótesis de Fonseca. En estos breves ejemplos sobre escritores brasileños la figura de Clarice Llspector (1920-1977) representa un emblema pues ia presencia de la ciudad de Río de Janeiro en sus múltiples aspectos, aparte de ser frecuente en sus novelas y cuentos, domina en esta obra con claros trazos. De su abundante producción seleccionamos A cidade sittiada (1949), obra que mereció del crítico y escritor Assis Brasil vazios estudios. Assis Brasil ha señalado una particularidad renovadora en la narrativa de Clarice: concibe sus trabajos de dentro para afuera o mejor a partir del personaje 34 . De ese modo el mundo narrativo se encuentra conducido por el personaje y así desaparece el narrador omnisciente. Y lo que más nos interesa, Assis Brasil considera A cidade sittiada como libro de la escritora mejor realizado. En esta tercera novela presenta en Lucrécia Neves — la protagonista — el reverso de sus dos heroínas anteriores Joana y Virginia. Como muy acertadamente apunta Olga de Sá “el universo ficcional de Clarice es en ese texto “una ciudad sitiada” 35 porque el personaje es mirado a la distancia y el lenguaje adquiere un tono crítico. Esta novela de espacio determinado 33 Wilson Martins. “A escada da glória”. O Estado de São Pauto, 19-3-1976 Luiz Antonio de Assis Brasil. Clarice Lispector: ensaio. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1969. p. 23. 35 Olga de Sá. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis, ed. Vozes, en coedición con PUC-São Paulo, 1933. p. 244 34 34 transcurre en São Geraldo por los años veinte. La transformación de barrio en ciudad mata todos los símbolos e imágenes y con ellos los presagios y las señales. Los caballos y la moza provinciana son todavía los últimos vestigios de São Geraldo, que en breve cambiará de nombre 36 . Hay un paralelismo entre el destino del barrio São Geraldo (RJ) y el de la protagonista Lucrecia. “Tanto ella como el caballo representaban los constructores que iniciaron la futura metrópolis; ambos podían servir de armas para su escudo. La última función de La joven en su época era una función arcaica que renace cada vez que se forma una villa. No se podría saber qué reinado representaba ella Junto a la nueva colônia...” 37 . Hay una suerte de parodia de visión, la incapacidad de ver constituyen el “estado de sitio” de São Geraldo y el de la propia Lucrecia. Curiosa la observación de Clarice en relación a la perspectiva, pues Lucrecia ve las cosas como un caballo, separadas, porque éste tiene un ojo de un lado y de otro de Ia cara. Y de allí la imagen de la protagonista como emblema de la ciudad, como emblema del espíritu suburbano, de la incapacidad de ver y la imposibilidad de tener una voz... “La realidad de Lucrecia se disloca... a partir de la marcación espacial alegórica como bien observó Benedito Nunes. Se trata del suburbio de São Geraldo en los años 20, del cual se procura un centro, un punto que parece estar siempre más allá de él, metáfora de la realidad de Lucrecia... que se disloca para afuera de São Geraldo y que al final parte en busca de su propio ser (o su retrato, guardado por la madre)... 38 La ciudad sittiada fue publicada en 1949. Las ciudades invisibles en 1972. Evidentemente puede haber un parentesco entre las dos obras. Ambas tienen una forma estética autónoma. Ambas convergen en una experiencia 36 Op. cit., p. 245. Veáse A cidade sitiada. 1. ed. Rio de Janeiro: A. Noite, 1949, Rio de Janeiro: Ed. Alfaro, p. 22. 38 Véase Olga de Sã, op. cit., p. 62. 37 35 estructural curiosa. En ambas hay una respuesta a una indagación vital: “es una vuelta a los orígenes, una meditación sobre la condición del hombre” 39 . La función narratológica se cumple en el paralelismo: ciudad-Lucrecia. Conclusión En el universo infinito de la literatura siempre se abren nuevos caminos. A veces — como es nuestro caso — la meta propuesta no deja de ser un “Jardín de senderos que se bifurcan” en medio de “ciudades invisibles”. Algunos senderos han quedado sin explorar en esta conferencia: son las ciudades que imaginaron excelsos escritores no sólo de la rica literatura brasileña, sino especialmente de la Argentina ya que sólo presenté a dos. Quedaron atrás Eduardo Mallea con La ciudad junto al río inmóvil, el gran Leopoldo Marechal y su Adán de Buenos Ayres. Ernesto Sábato y El túnel, Manuel Mújica Láinez con Misteriosa Buenos Aires, Ricardo Piglia y La ciudad ausente y el último libro de Juan José Sebreli Buenos Aires, vida cotidiana y alienación con su visión actual Buenos Aires, ciudad en crisis (2003). He procurado explicar para mí misma y para ustedes, ese misterio de las ciudades invisibles y la hondura del pensamiento de su autor. Es notable cómo es misterio lo devela el propio Calvino quien en su libro póstumo Seis propuestas para el próximo milenio (1985) deja esta suerte de testamento: “Mi fe en el futuro de Ia literatura consiste en saber que hay cosas que sólo la literatura con sus medios específicos puede dar”. Referencias 39 Cfr. también Nádia Battella GotIib, “Um fio de voz: história de Clarice”. Clarice Lispector. A paixão segundo GH. (Ed. crítica, coord. Benedito Nunes). Florianópolis: Ed. da UFSC, 1988, p. 167-168. 36 AINSA, Fernando. “Los sueños de Borges y Calvino revisitados por Marco PoIo”. 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Desde o início da formação do Rio Grande do Sul, era mais fácil ir a Montevidéu em busca de mercadorias, tratamento médico e de novidades, do que viajar até o distante Rio de Janeiro. As relações da República Rio-Grandense com o espaço externo platino realizaram-se principalmente em nível de proteção aos exilados políticos e de comércio de gado em troca de armas e munições. As fronteiras do Império do Brasil com a República da Argentina e com a República Oriental do Uruguai, continuaram sendo as mesmas da República Rio-grandense com os dois Estados platinos. Em nenhum momento os republicanos rio-grandenses discutiram a questão de limites com o Uruguai, pois estavam preocupados em ampliar seu domínio no território brasileiro. ∗ Professor Doutor de História do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. E-mail: [email protected] 41 Desde o início do século XIX surgiu uma malha de trilhas de carretas e de tropas de mulas que partiam de São Borja, Alegrete, São Gabriel, Encruzilhada, através da fronteira com Santana do Livramento, Bagé, Jaguarão e Chuí, confluindo para Montevidéu. Inicialmente os farroupilhas rio-grandenses conseguiram armas e munições quando invadiram Porto Alegre e encontraram o Trem de Guerra (Arsenal) intacto, apesar das ordens do presidente da província Antônio Rodrigues Fernandes Braga de destruir o material bélico. Outras fontes de aprovisionamento foram os barcos norte-americano e hamburguês que aguardavam no porto a invasão de Porto Alegre, no dia 21 de setembro de 1835, para entregarem armas e munições aos rebeldes, que foram encomendadas na Europa. A República Oriental do Uruguai fornecia à República Rio-Grandense homens, cavalos e armamento. Em agosto de 1836, a brigada do general Antônio de Souza Neto foi reforçada com 130 homens vindos do outro lado da fronteira, trazendo 800 cavalos gordos (CV 203) 1 . Na mesma ocasião, Paulino da Fontoura passou o rio Uruguai com mais de 300 entrerrianos e correntinos com ordem de reuni-los na força do general Neto (CV 203). O jornal O Artilheiro, de Porto Alegre, noticiou que os farroupilhas recebiam armamento de Santa Catarina, contando com a conivência do presidente catarinense Machado de Oliveira. Com o gado pilhado nas estâncias dos legalistas, os rebeldes compravam material bélico na República Oriental do Uruguai (O Artilheiro, 22.7.1837, p. 1). Durante o governo de Frutuoso Rivera, em 1838, o porto de Montevidéu conservou-se livre aos farrapos. O governo uruguaio permitia inclusive a venda de tropas de gado e de couro, bem como o emprego de 1 CV significa Coleção Varela do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e a numeração corresponde ao documento da referida coleção. 42 escravos de proprietários rio-grandenses nos saladeros nas proximidades de Montevidéu. Em 25 de maio de 1838, o capitão Luís Schuz comprou, para a República Rio-Grandense, 11 mil libras de pólvora, cornetas de música para a tropa, engajando um médico francês e um oficial estrangeiro de artilharia. O capitão Schuz esperou durante oito dias pela carta topográfica da barra do Rio Grande, que não foi remetida de Buenos Aires. Só restou ao capitão Schuz subir o rio Uruguai de barco até o Passo de Santana, atual cidade de Uruguaiana, onde era esperado por carretas carregadas de couro para o pagamento dos artigos comprados ao capitão do barco (CV 2827). O comércio envolvia também o ministro da Guerra. Em 17 de junho de 1838, o ministro republicano José da Silva Brandão ordenou ao cel. João Antônio da Silveira que arrebanhasse couros do Estado e mesmo de particulares, levando-os para o Passo de Santana, providenciando o transporte e proteção da pólvora. O chefe de polícia de Alegrete deveria auxiliar o cel. João Antônio (CV 2836). Havia ao longo do rio Uruguai três pontos de entrada no Rio Grande do Sul: os Passos de Santana, Itaqui e São Borja. Referindo ao passo de São Borja, Nicolau Dreys escreveu: Para essa parte que se dirigem todas as pessoas que querem embarcar-se nesse rio ou atravessá-lo a fim de passarem para o país de Entre Rios ou dali seguirem para o Paraguai (Dreys, 1990, p. 72). Em abril de 1839, o vice-presidente da República Riograndense, José Mariano de Matos, foi enviado a Montevidéu para comprar espadas e clavinas, remetidas em carretas acompanhadas pelo ten. Pedro Alves. O cel. João Antônio da Silveira enviou para a República do Uruguai jornais com a notícia sobre o movimento republicano de Lajes, para convencer as autoridades e comerciantes de Montevidéu que a República Rio-Grandense estava aumentando seu espaço territorial (CV 2932). 43 Devido à situação de guerra, nem sempre os comerciantes de Montevidéu entregavam a mercadoria que fora encomendada, trocando-a por outra. O cel. João Antônio da Silveira requisitou 100 espadas e 50 clavinas para a cavalaria republicana, só então descobriu que vieram de Montevidéu armas de infantaria e 50 espadas, remetidas em uma carreta. O ministro da Guerra avisou ao cel. Silveira que havia lanças para suprir a falta de clavinas (CV 2938). Mas não eram só os comerciantes que não cumpriam os acordos comerciais. O vice-presidente da República Rio Grandense, José Mariano de Matos, teve que ir a Montevidéu, em janeiro de 1839, a fim de embargar a tropa de gado destinada ao comerciante Antônio Casas, para entregá-la ao português Costa Guimarães, procurador do legalista marechal Sebastião Barreto Pereira Pinto. A tropa chegou sem formalidades, parecendo tropa de gado roubada, sem que as autoridades uruguaias a embargassem. Mariano de Matos informou que havia um clamor geral do comércio de Montevidéu contra o governo da República Rio-grandense por falta de comprimento de seus tratos em negócios. Em 6.3.1839 Dom Frutuoso Rivera estabeleceu um acordo por escrito com D. Antônio Casas, com o aval do vice-presidente José Mariano de Matos, para que o comerciante entregasse em 15 de abril do mesmo ano, mil novilhos de quatro anos, na fronteira com a República do Uruguai, pelo preço de quatro pesos e dois reales por cabeça (CV 298). A República devia 1.000 pesos ao comerciante Gaspar Russo, que tentou negociar o título com o legalista Pedro Gonçalves Chaves, mas o gen. Frutuoso Rivera meteu-se no negócio e entregou o título a José Mariano de Matos. Relata ainda que o argentino Marins, com contrato de 60 mil pesos com os republicanos, levou gêneros no valor de 17.500 pesos, mas teve de retornar depois de dois meses, com prejuízo de dois mil pesos. Mariano de Matos advertiu na carta que: 44 Seria melhor que não entrassem para o Trem tantos gêneros de luxo e nos limitássemos aos indispensáveis ao Exército (CV 2922). Os líderes da República estavam aproveitando os negócios do Estado para abastecerem suas residências. No mesmo momento, os monarquistas cel. Medeiros, José Rodrigues, Olivério Ortiz, cel. Bonifácio Izás Canderón, Felipe Néri e o ten. cel. Pereira encontravam-se em Montevidéu com dinheiro para realizarem negócios políticos com o presidente Frutuoso Rivera. Mariano de Matos denuncia que a conduta do presidente Rivera era bastante equívoca, alimentando a um e outro partido, mas a quem atraiçoaria, republicanos ou imperiais? Mariano de Matos refere-se que uma coisa é certa: o presidente uruguaio adorava ouro (CV 2922). Na luta com os republicanos, os imperiais também buscavam recursos no espaço exterior. O ofício do cel. Bonifácio Izás Calderón ao presidente provincial Antônio Elzeário de Miranda e Brito, em 26 de junho de 1939, dá uma idéia das relações dúbias de Frutuoso Rivera, que ao mesmo tempo tratava com os republicanos e imperiais em busca de vantagens. Durante nove meses o cel. Calderón esteve na República do Uruguai refazendo a cavalhada, recolhendo desertores, comprando armas, e só em 7 de março de 1839 atravessou o rio Uruguai na altura do arroio Mocoretán, onde encontrou o governador da província de Corrientes, que lhe franqueou todos os tipos de auxílio (CV 2922). Calderón entrou na província do Rio Grande do Sul pelo passo de Santana do Uruguai, seguiu para Etaqui e São Borja, sempre reunindo emigrados. Enviou partidas sob o comando de Chara, Catalã e Bugreiro, que foram batidas pelos rebeldes no passo de Santa Maria do Uruguai, a 20 de abril de 1839. Os legalistas se precipitaram para atravessar o rio Uruguai, abandonando armas, cavalos e vestuários nas mãos dos rebeldes que perseguiram os imperiais na outra margem. Os imperiais foram salvos com a aproximação do major João André de Almeida, que protegeu os fugitivos até 45 repassarem no passo de São Borja. Calderón fez grandes despesas para suprir os refugiados de cavalos, lombilhos, caronas, cinchas, estribos, xergas, freios, fumo, sabão, erva-mate, baeta para ponchos e chiripás, algodão para camisas e ceroulas. Entregou também algum dinheiro aos refugiados. Restava agora armar a tropa, para isto Calderón atravessou o rio Uruguai, indo a uma ferraria no Povo de La Cruz, onde comprou ferro e tesouras de tosquiar para fazer ponta de lanças. Mas o governo entrerriano mandou uma tropa desarmar os soldados imperiais, obrigando Calderón a abandonar a ferraria e comprar facas para fixar nas pontas das lanças. Patrulhas farrapas vigiavam o rio Uruguai, impedindo a passagem dos soldados imperiais para o território rio-grandense. Enquanto esteve no Povo de La Cruz, Calderón foi auxiliado por vários emigrados brasileiros, com dinheiro, cavalos e roupas. O civil Belisário dos Santos Loureiro atravessou a tropa legalista por um vau no rio Uruguai, junto ao rio Butuí, numa região cerrada por mato, sendo necessário abrir uma picada para escapar da perseguição de tropa farrapa comandada por José Ribeiro (CV 3112). Por esse ofício nota-se que existiam brasileiros legalistas emigrados no Povo de La Cruz e em Itapua, no Paraguai, que auxiliavam e serviam de intermediários com as autoridades locais. Os comerciantes de Itapua fizeram subscrição para a compra de lanças e gado de munício para mais de 50 extraviados da tropa do major João Guilherme Catalán, mas a falta de suprimentos obrigou-os a procurar se reunir com Calderón que também estava passando necessidades e sem cavalhada. Buscando cavalos para invernar e tentando comprar armas, Calderón atravessou o Quaraí e acampou no rincão de Sopas, pedindo auxílio ao encarregado dos Negócios do Império, em Montevidéu. Com o auxílio recebido, Calderón seguiu para a vila de S. Frutuoso, onde reuniu emigrados e amigos, comprou 200 espadas e 200 pistolas, negócio intermediado pelo dúbio presidente Frutuoso Rivera (CV 3108). 46 Fazendo jogo duplo, Frutuoso Rivera consentiu que as forças de Calderón permanecessem em S. Frutuoso, no território uruguaio. Os legalistas encontraram dificuldades para comprar cavalos e mulas por causa da luta que os uruguaios sustentavam com a província argentina de EntreRios. Os comerciantes só aceitavam dinheiro à vista. Em junho de 1839, Calderón distribuiu a seus soldados 100 clavinas, 100 espadas, 100 boldriés de sola, 100 cananas de sola, tudo novo, e 200 cavalos reiúnos gordos que recebeu de Frutuoso Rivera. Conseguiu ainda mais 200 lanças que cidadãos legalistas emigrados mandaram fazer e deram gratuitamente, exceto os cabos e bandeirolas. Calderón encontrou alguns desertores do Exército imperial e como não podia prendê-los em território estrangeiro, tratou de incorporá-los à tropa (CV 3111). Na exploração das informações fragmentadas sobre as relações com o espaço externo da República Rio-grandense, encontrei a entrada, em 21 de fevereiro de 1842, de um tenente, um alferes e três soldados com trinta e tantos cavalos vindos da República do Uruguai, entrando pelo Pai Passo, prontos para prestar serviço à República Rio-grandense, que foram imediatamente incorporados às tropas de João Antônio da Silveira (CV 4354). Do espaço externo também vieram ofertas de mudanças, com valores da civilização francesa, por ser a nação mais polida, a mais franca, a mais desinteressada e amiga da liberdade: o negociador ocultou-se com o nome de Camilo d’Erval, propondo um plano mirabolante de trazer mercenários franceses em 1841 ou 1842, pois o documento não está datado (CV 4307). É interessante a introdução do referido documento, pela análise da situação da República Rio-grandense que se empenhava em buscar sua independência e liberdade. Conforme o documento, há três anos a República declinava, com as finanças em triste estado, sem crédito, com Exército menor, com recursos de cavalos e de objetos cada vez mais difíceis de conseguir e com a província se despovoando. Só o comércio de Montevidéu 47 enriquecia. O tempo era aliado do Brasil, que iria cada vez mais reduzindo o território da República Rio-grandense. O Brasil não podia conceder a independência porque outras províncias brasileiras também tentariam se desmembrar do Império. As propostas de Camilo d’Erval são capciosas: pretendia engajar 200 artilheiros e 1.800 fuzileiros franceses que já lutaram em Argel. O governo francês facilitaria a formação destes corpos e também forneceria armas e munição, tudo dentro do maior sigilo porque a França não pretendia entrar em guerra com o Brasil. O plano de ataque era singelo: os franceses tomariam Rio Grande, São José do Norte e Porto Alegre, enquanto as tropas de Bento Gonçalves da Silva desviariam o Exército imperial para a zona da Campanha. Depois a cavalaria rio-grandense e as tropas francesas invadiriam Santa Catarina, proclamando novamente uma república. Em troca, o negociador Camilo seria o comandante das tropas francesas e o encarregado de plenos poderes para negociações. Por cinco anos os navios franceses não pagariam taxas de alfândega e por 15 anos a França seria mais favorecida e por último, queria a fabulosa quantia de 42.000 patacões, paga antecipadamente, querendo ainda um prazo satisfatório para o restante. Os soldados seriam mais tarde transformados em industriosos colonos. Como não podia dar garantias, convidava o filho do presidente Bento Gonçalves da Silva para acompanhá-lo ao Rio de Janeiro, onde obteria passaporte para a França. O negociador comparava-se a La Fayette lutando com seus franceses na revolução de independência dos Estados Unidos, a Bento Gonçalves da Silva e a George Washington (CV 4307). O esperto negociador não dava nenhuma garantia, possivelmente sumiria no Rio de Janeiro, denunciando o filho do presidente republicano às autoridades imperiais. Seria mais fácil sair por Montevidéu, onde os 48 republicanos tinham livre trânsito. Na correspondência de Bento Gonçalves da Silva não há referências a esta ingênua proposta. Em janeiro de 1843 os emigrados correntinos e orientais foram reunidos em Inhandui sob a tutela de Jacinto Guedes da Luz. Os imperiais apoiavam os partidários de Manuel Oribe, que hostilizavam os republicanos rio-grandenses. Em abril de 1843, o ministro da Guerra da República Rio-grandense Luís José Ribeiro Barreto ordenava que os emigrados orientais com conduta irregular, em Bagé, deveriam ser chamados à ordem pelo chefe de polícia pois, embora o governo republicano prestasse benigna hospitalidade aos asilados estrangeiros não permitia que as leis fossem menosprezadas. O ten.cel. Manuel Lucas de Oliveira prestaria auxílio para expulsar do país àqueles que praticavam crimes (CV 2569). Em maio de 1843, o ministro Barreto ordenou ao ten.-cel. Manuel Lucas de Oliveira que comprasse os cavalos dos emigrados orientais, de que tanto carecia o Exército republicano (CV 2574). O governador e capitão-general da província de Corrientes, Rafael Atienza, reclamou contra o asilo dado às forças de Frutuoso Rivera, um anarquista e inimigo da federação Argentina, que se refugiou em Alegrete, junto ao seu compadre e amigo Bento Manuel Ribeiro. O protesto foi dirigido ao cel. João Antônio da Silva, comandante da fronteira República Riograndense, sediada em Alegrete (CV 2394). Os desertores imperiais também buscavam refúgio no território uruguaio. Em 28 de outubro de 1838, o capitão da Guarda Nacional Florisbelo Antônio de Ávila comunicou a João da Silva Tavares que o sargento Serafim conduzia 170 cavalos reiúnos do Uruguai e que também enviou um cabo para buscar os desertores (CV 2397 e CV 2398). Em 28.1.1841 o ministro da Fazenda Domingos José de Almeida enviou instruções ao comerciante lrineu Rieth de la Rocha para que procurasse 49 o gado de Caverá e não desprezasse o negócio de Tacuarembó, no Uruguai. Em Montevidéu deveria procurar o presidente Frutuoso Rivera para que este entregasse “o restante da importância da tropa embargada” (CV 1365). O governo rio-grandense preparou uma tropa de gado para abastecer os saladeiros e fazendas de criar no Uruguai, com remessa de rebanhos para Montevidéu e Paissandu, sob as ordens de João da Cunha Peçanha, parente do ministro Domingos José de Almeida. O ministro republicano, em 28.2.1841, rogou proteção ao presidente Frutuoso Rivera para que o gado pudesse passar por Tacuarembó, Quaraí e Santana do Livramento. O gado fora confiscado de fazendas de dissidentes (CV 1554). A República Rio-Grandense confiscou fazendas, gado e escravos dos imperiais, chamados de dissidentes, arrendando as propriedades a republicanos. O gado deveria ser levado a Joaquim Barcelos, cunhado do ministro Almeida, que aguardava o rebanho em Montevidéu. O dinheiro da venda dos animais e mais a importância tomada emprestada aos comerciantes de Montevidéu José Victorica e Joaquim Francisco Muñoz, estavam destinados à compra de panos próprios para fardamentos e ponches, baeta, algodão para camisas e ceroulas, brins para calças, belbutina para meias, retrós, linhas e botões. O ministro instruía que deveria ser dada ao seu cunhado Peçanha a comissão de 12% em todas as compras realizadas no comércio de Montevidéu (CV 1555). Como se vê, era uma grande negociata que envolvia o presidente Rivera e os cunhados do ministro Almeida com os comerciantes de Montevidéu, sem que houvesse pagamento de imposto à República Rio-Grandense. Quando o Estado Oriental do Uruguai pretendeu libertar os escravos, em março de 1841, o ministro Almeida mandou buscar seus escravos que estavam alugados a José Victorica, em Montevidéu (CV 1571 a 1573). 50 O ministro Almeida manteve transações comerciais com Montevidéu, que muitas vezes incluía material bélico. Em 15.3.1841, Almeida reclamou que ainda não lhe foram entregues mercadorias compradas em Montevidéu, em 1839: duas dúzias de meias de lã preta, quatro gravatas de seda, duas escovas de dentes, quatro potes de rapé, seis varas de renda fina, um par de meias de seda e um par de luvas de seda (CV 1581). Também o mercenário José Garibaldi acertou as contas com a República Rio-Grandense quando se retirou da luta e seguiu para Montevidéu, ganhando como indenização, por ter sido contratado como corsário, a tropa de mil cabeças de gado. Almeida avisa ao presidente Frutuoso Rivera que José Garibaldi seguiu com uma tropa para os saladeiros uruguaios (CV 1598). Frutuoso Rivera continuou remetendo gêneros em carretas até a fronteira com a República Rio-Grandense, durante o ano de 1841 (CV 1817 e 2011). Mas não era só gado que passava para o outro lado da fronteira, também desertores farroupilhas e imperiais buscavam abrigo em território uruguaio. Em 21.10.1841, Domingos José de Almeida solicitou ao presidente Frutuoso Rivera que remetesse 100 desertores da infantaria republicana que se refugiaram em Cerro Largo, conforme o artigo 4° da Convenção secreta celebrada em 5 de julho daquele ano. Durante a Revolução Farroupilha, 1835-45, os revolucionários riograndenses organizaram a República e realizaram tratados internacionais, com a República do Uruguai e com a província de Corrientes, da República Argentina. Em 21 de agosto de 1838, a República Rio-Grandense assinou o tratado de Canguê com Dom Frutuoso Rivera, reconhecendo-o como único presidente da República Oriental do Uruguai e este reconhecia a independência da República proclamada pelo general Antônio de Souza Neto, em 11 de setembro de 1836. No Tratado, Rivera se comprometia a expulsar 51 do Uruguai as tropas imperiais, entregando suas armas e munições aos riograndenses. Os entendimentos sobre as linhas demarcatórias de fronteira foram postergados para o futuro. Outro item importante é a concessão de anistia aos uruguaios que lutavam no exército rio-grandense e também aos rio-grandenses que estavam no exército oriental. A convenção nunca foi executada, pois a finalidade principal do Tratado era reconhecer a presidência de Frutuoso Rivera e aos rio-grandenses interessava o caminho livre até o porto de Montevidéu. O governo da República Rio-Grandense comprometiase também a entregar três mil cavalos em troca do auxílio de tropas militares que seriam enviadas ao caudilho oriental. Rivera fez jogo duplo, pois recebia dinheiro do Império do Brasil e fingia apoiar os republicanos rio-grandenses (Flores, 1996, p. 81-82). Em 28 de dezembro de 1841, o ministro Domingos José de Almeida, representando a República Rio-grandense, e José Luís de Bustamonte, representante do Uruguai, assinaram Tratado S. Frutuoso, formando uma aliança para invadir a província de Entre-Rios. A República Rio-Grandense forneceria um contingente de 500 homens de infantaria e 200 de cavalaria para depor o presidente de Entre-Rios, retornando ao território riograndense após a operação militar. Frutuoso Rivera deveria fornecer mil cavalos aos rio-grandenses. Rivera não enviou os cavalos e os rio-grandenses, desconfiando que o presidente uruguaio pretendia estabelecer o Quadrilátero, formado pelo Uruguai, Rio Grande do Sul, Corrientes e Entre-Rios, sonhado por José Artigas, não prepararam a tropa invasora. Desta maneira a Convenção de São Frutuoso nunca foi executada (Flores, 1996, p. 82). O ministro José Pinheiro de Ulhoa Cintra, em 1842, foi credenciado pela República Rio-Grandense como ministro plenipotenciário para celebrar tratados com as províncias de Entre-Rios, Santa Fé e com a República do Paraguai. 52 Em 29 de janeiro de 1842, José Pinheiro de Ulhoa Cintra, delegado da República Rio-Grandense, assinou com Manoel Leivas, representante do general Pedro Ferre, presidente de Corrientes que lutava contra o ditador Juan Manoel de Rosas, a Convenção de Corrientes, na qual tratavam de amizade de comércio. Estabeleceram também repressão a qualquer intromissão clandestina nas propriedades, garantindo bens e pessoas riograndenses, residentes em Corrientes. No Item 8° se comprometeram a manter perfeita neutralidade nas lutas políticas regionais. Combinaram também o desarmamento de grupos que invadissem ambos os territórios e que fossem contrários às causas que defendiam, comprometendo-se a estipularem uma aliança ofensiva e defensiva contra os governos perturbadores da paz e da tranqüilidade dos países contratantes. O governo de Corrientes se comprometia a empregar sua influência para que os governos de Entre-Rios e Santa Fé celebrassem igual convenção com os riograndenses e que tudo faria para que a República Rio-Grandense fosse reconhecida pelo governo argentino, em seguida ao triunfo contra o ditador Rosas, prestando os correntinos aos farroupilhas “todos os auxílios e elementos de guerra necessários para terminar a luta contra o Império do Brasil” (Flores, 1996, p. 83). Quando a Guerra Civil dos Farrapos já declinava, José Maria Vida, representante de Frutuoso Rivera, e Daniel Gomes de Freitas, delegado da República Rio-Grandense, assinaram, em 6 de março de 1844, uma convenção nas pontas do rio Quaraí, com a finalidade de terminar com “as dissensões desastrosas que afligiam ambos os países”. As operações militares deveriam se limitar às guerras de recurso e só em caso extremo se reuniriam às forças convenientes de ambos os exércitos. Os delegados cogitaram da necessidade de entrarem em entendimento com o governo de Corrientes no sentido de celebrarem uma convenção recíproca. Estipularam que a paz com o inimigo dos contratantes, isto é, o Império do 53 Brasil, não poderia ser feita sem o consentimento e aprovação de ambos os governos. O caudilho Frutuoso Rivera tentava ser o mediador da paz entre a República Rio-Grandense e o Império. No entanto, o barão de Caxias não aceitou a mediação de Rivera, tratando diretamente com os revolucionários os termos de concessão de anistia para pacificar a província (Flores, 1996, p. 84). Em nenhum de seus tratados a República Rio-Grandense cogitou em formar o sonhado quadrilátero de José Artigas, um novo país com os territórios do Uruguai, Rio Grande do Sul, realizaram-se apenas convenções de auxílio mútuo e de garantia para que o porto de Montevidéu continuasse a abastecer os rio-grandenses com armas, munições, roupas e alimentos. As relações do caudilho Dom Frutuoso Rivera com os revolucionários republicanos eram facilitadas pelo fato dele ter sido oficial do exército de Lecór, durante a ocupação de Montevidéu, e compadre do general Bento Manoel Ribeiro, que ora lutou ao lado dos republicanos, ora do lado dos imperiais. No imaginário popular firmou-se o ideal de pequena pátria, livre e independente. Ainda hoje há pessoas que lembram o separatismo do Rio Grande do Sul como uma forma de chamar a atenção política. O processo histórico marca profundamente a integração da região denominada fronteira, local de intercâmbio comercial e de refúgio aos perseguidos políticos. Fontes Documentos da Coleção Alfredo Varela (CV) do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. O Artilheiro, Jornal de Porto Alegre, coleção do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. 54 Referências DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão/PUCRS, 1990. FLORES, Moacyr. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996. SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: ERUS, 1987. 55 5 BRASIL E URUGUAI: A “FRONTEIRA VIVA” COMO ESTOPIM PARA A ECLOSÃO DA GUERRA DO PARAGUAI ______________________ Carla Ferrer ∗ Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS A principio, a defesa do território conquistado ao índio e ao espanhol invasor foi sua flama. Depois na grande Revolução condensaram-se todas as suas ânsias libertárias. Mais tarde, nos campos de Lomas Valentinas, em Humaitá e no Passo da Pátria, o gaúcho sopitou as suas dissensões com o Império do Brasil para servir à unidade nacional representada nas espadas de Caxias e Osório. JOSÉ SALGADO MARTINS Com o intuito de apontar os antecedentes da Guerra do Paraguai, apresentaremos neste artigo, uma breve discussão a respeito das relações fronteiriças entre o Brasil e o Uruguai e suas tensas relações diplomáticas, na segunda metade do século XIX. Ao longo do século XIX, as relações entre o Brasil e os Estados do Prata foram marcadas por profundos momentos de tensão, principalmente com o Estado Oriental do Uruguai, que se tornou o mais delicado e perigoso problema de nossa política externa 1 , naquele período. Portanto, a política internacional do Brasil, naquela época vigente, primava em ∗ Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS e membro efetivo do CIPEL, Círculo de Pesquisas Literárias. E-mali: [email protected] 1 LORETO, Aliatar. Capítulos de história militar do Brasil, os antecedentes da guerra contra o Paraguai. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana. 1953. p. 139. 56 manter a independência do Uruguai, bem como, manter sua fronteira sossegada e segura. Segundo André Lamas, agente diplomático uruguaio, todos os estadistas brasileiros tinham o interesse da pacificação do Estado Oriental 2 . Entretanto, esta suposta pacificação almejada pelo Império não se concretizou, devido as instabilidades enraizadas na “fronteira viva” 3 entre o Brasil e o Uruguai, cujas relações intrínsecas de cunho econômico e político envolviam a elite agrária do sul do Brasil 4 . Sendo assim, as relações fronteiriças entre o Rio Grande do Sul e o Estado Oriental do Uruguai tinham suas peculiaridades, devido a grande aproximação destes povos. Tal aproximação facilitava as relações políticas e econômicas dos grandes estancieiros sul-rio-grandenses, que do outro lado da fronteira, possuíam grandes propriedades, onde “mantinham campos de criação de engorda de gado. Desde o Chuy ao Cuareím, com cerca de 428 estâncias, que abrangiam a superfície de 1.728 léguas quadradas, o equivalente a 30% do território do Uruguai” 5 . Na segunda metade do século XIX, a população brasileira neste Estado Oriental, representava segundo Moniz Bandeira, cerca de 40 mil rio-grandenses, ou seja, o equivalente a 20% do total da população do Estado Oriental. Desta forma, podemos compreender as relações intrínsecas existentes entre os grandes proprietários de terras brasileiros e 2 Jornal do Comércio, 22 set. 1852. Segundo a tese de Backheuser, Fronteira viva, em essência, é uma região, através da qual, mais dia menos dia, surgem, ou se agravam conflitos internacionais, políticos, ou de ordem fiscal administrativa, ensejando demonstrações de força militar. 4 As relações na fronteira viva da Província sul-rio-grandense, sempre estiveram presentes, desde sua formação. Discorre do período da doação das Sesmarias, fato em que passaram a ser formadas grandes estâncias, nas quais estas lutavam para manter sua principal fonte econômica, o gado. Em certos momentos, estes, pastavam do lado do Rio Grande e em outros momentos, do lado dos campos gordos” da Cisplatina. Desta forma, a luta pelo gado e pelas pastagens ocorre desde a formação desta Província sul-rio-grandense. 5 BANDEIRA. L. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata – Argentina, Uruguai e Paraguai: da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. São Paulo; Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasilia, 1995. p. 114 3 57 os uruguaios, em relação aos aspectos políticos e econômicos, que envolviam o Estado Oriental. Podemos inferir, assim, que realmente existia uma “fronteira viva” entre estes dois países, coexistindo uma troca de relações e experiências sociais, políticas, econômicas e militares. Devido esta inter-relação proporcionada pelo convívio intenso na fronteira sul do País entre riograndenses e uruguaios, grande parte dos distúrbios políticos no Estado Oriental envolviam diretamente a elite sul-rio-grandense, possuidora de fortunas neste Estado supramencionado. Após analisarmos esta ligação fronteiriça, podemos compreender a participação dos rio-grandenses nos conflitos armados existentes no Uruguai, entre os Partidos Blanco e Colorado 6 , pois estes brasileiros necessitavam garantir a segurança de suas propriedades e interesses particulares, localizados naquele país. A posição do governo central brasileiro em relação a este envolvimento dos rio-grandenses na política uruguaia era negativa, pois o Império não apoiava a atitude militar de seus compatriotas em movimentos armados nos países do Prata. Dentro desta perspectiva, a política imperial pretendia manter a paz na região platina e não se envolver em problemas diplomáticos e militares contra países daquela região. Em 1863, ao explodir a revolução chefiada por Venâncio Flores, adepto ao Partido Colorado uruguaio, o governo brasileiro procurou manter sua política de neutralidade. Neste sentido, o império recomendou às autoridades do Rio Grande do Sul as devidas condutas, que deveriam ser acatadas pelos rio-grandenses, a fim de evitar comprometimentos da política imperial, perante ao Estado Oriental do Uruguai. 6 Segundo Alberto Zun Felde, o Partido Blanco era arraigado no meio rural e fiel à tradição hispânica, o qual encarava a defesa dos interesses americanos e orientais. O Partido Colorado localizava-se, principalmente, na cidade de Montevidéo e oferecia a imagem mais urbanizada. Desta forma, este Partido aceitava as correntes liberais européias e se identificava com os imigrantes. 58 Conforme o Relatório da Secretária de Estrangeiros de 1863, podemos entender estas condutas imperiais: Nenhuma proteção e auxílio devia prestar-se à causa da rebelião. As forças rebeldes que se asilassem na Província, deviam ser colocadas em uma posição inteiramente inofensiva. As autoridades que deslizassem de seus deveres, não guardando ou não fazendo respeitar a mais perfeita e absoluta neutralidade por parte do Império, deviam ser severamente punidas 7 . Como podemos observar era obrigação do Presidente da Província do Rio Grande do Sul procurar persuadir seus concidadãos a ignorar completamente à luta do outro lado da fronteira, para, segundo o Império, “pouparem a si e ao seu país perigos e dificuldades muito graves” 8 . Este mandato imperial ao Presidente de Província do Rio Grande do Sul era insensato, não havendo nenhuma condição de ser cumprido, todavia, o Rio de Janeiro ou “ignorava” a situação da fronteira, onde grandes estancieiros mantinham boa parte de sua economia, ou subestimava a ação guerreira que estes brasileiros do sul do País tinham em suas raízes. Enfim todo o cavalheirismo e melindre do Brasil em relação ao Estado Oriental não foram correspondidos, pois os brasileiros residentes no Uruguai, assim como, suas estâncias foram extremamente desrespeitadas pelo governo Blanco, no Uruguai. O partido Blanco passou a não cumprir os contratos internacionais, negando-se a renovar com o Brasil o tratado de Comércio e Navegação, passando assim, a instituir o imposto sobre as exportações de gado em pé para o Rio Grande do Sul. Desta forma, a política uruguaia entrou em confronto direto com os interesses dos estancieiros, os quais utilizavam escravos como peões, em suas propriedades, em ambos os lados da fronteira. Estes peões eram os responsáveis pelo “transporte” das reses 7 8 Relatório da Secretaria de Estrangeiros. 12 de novembro de 1863. DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria Americana, 1919. 59 criadas no Uruguai para as charqueadas no Brasil, que consumiam cerca de 75% destas reses vindas do Estado Oriental 9 . Ao governo imperial chegavam, também, diversas reclamações em relação às violências e arbitrariedades sofridas por brasileiros, residentes no Uruguai ou em linhas de fronteira com este Estado. Estas barbáries eram praticadas por particulares, autoridades civis e militares uruguaios, resultantes da agitação política e social. Devido a estas instabilidades ocorreram diversas atrocidades como: assassinatos, roubos de gado vacum e cavalar nas propriedades particulares dos rio-grandenses e ainda, o recrutamento forçado de peões brasileiros para o serviço militar uruguaio. Estes supramencionados acontecimentos estavam agitando a sociedade brasileira e fomentando as discussões parlamentares. Sendo assim, o Sr. Luís Alves Leite de Oliveira Bello e Felippe B. de Oliveira Nery, indignados com a situação sofrida pelos brasileiros nesta fronteira, expunham seus pensamentos em relação aos crimes, que ocorriam contra seus compatriotas e suas respectivas impunidades, os quais eram corriqueiros. O Sr. Nery em um de seus discursos, exige justiça: Abusos dessa ordem, meus Srs., a intervenção indébita desses agentes, a perturbação que eles têm levado ao seio de muitas famílias, a incerteza que fazem pairar sobre grande número de interesses brasileiros, necessitam de uma repressão enérgica 10 . Foram realizados diversos pedidos em relação a condutas enérgicas contra o Uruguai, pois a situação agravava-se e tornava-se mais tensa naquela região. A opinião pública rio-grandense estava excitada e desejosa por uma ação do governo, que não se manifestava e levava a situação da fronteira com o Estado uruguaio em “Banho-Maria”. 9 BANDEIRA, L. Moniz. Op. cit, 1995. p. 166-167. BELLO, Luís Alves Leite de Oliveira e NERY, Felipe B. de Oliveira. Sessão de 09.11.1859. In: Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. 10 60 A presença do farroupilha General Antônio de Souza Neto, na Corte mudou esta situação aos olhos do Império. O General Neto foi ao Rio de Janeiro, com o intuito de falar em nome de quarenta mil brasileiros, que estavam sendo perseguidos pelos uruguaios e pedir justiça às impunidades, as quais estavam afetando a vida de seus compatriotas, que viviam no Estado Oriental. Contudo, a presença de um General farroupilha, no Rio de Janeiro, causou grande impacto, pois o governo central passou a temer que os estancieiros rio-grandenses afeiçoados aos Colorados e sentindo-se desamparados pelo Império pudessem tomar a iniciativa de resolver a situação supramencionada através da força, sem o consentimento do governo 11 Central , e deste modo, reavivar os sentimentos separatistas, que eram lembranças, ainda, muito presentes no cotidiano dos rio-grandenses. Segundo Fernando Luiz Osório, “A fronteira do Rio Grande, não é só fronteira da província, é fronteira do Império. A tranqüilidade e a ordem na província, importam a ordem, a tranqüilidade da Nação” 12 . Tendo em vista, a delicada situação na fronteira rio-grandense, o Governo imperial resolveu enviar à República do Uruguai, uma missão especial, em 6 de maio de 1864, comandada pelo Conselheiro José Antônio Saraiva, que tinha por objetivo resolver diplomaticamente todas as irregularidades pertinentes, que ofendiam e prejudicavam os brasileiros, “sem embargo da urgência das circunstâncias e ainda do estado de excitação do espírito público brasileiro, o governo imperial preferia tentar um último apelo aos meios amigáveis, na confiança de que surtiria efeito em ambos os 13 países” . Expedindo o seguinte conjunto de exigências a serem cumpridas, Governo de Atanásio Aguirre, do Partido Blanco: 11 DORATIOTO, Francisco, op. cit, 2002. p. 51 Fernando Luís Osório. Sessão de 24.03.1876. In: Anais da Assembléia Legislativa da Província do Rio Grande do Sul. Décima Sexta Legislatura, 2ª Sessão, 1876, p. 16. Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, códice AL4.004. 13 Aviso contendo as instruções da Missão Especial confiada em 1864 ao Conselheiro Saraiva. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v. 59, tomo I, 1896. 12 61 1º O devido castigo, senão a todos, ao menos daqueles dos criminosos reconhecidos que passeiam impunes, ocupando alguns deles postos no exército oriental, ou excedendo cargos civis do estado. 2° A imediata destituídos e responsabilizados os agentes de polícia, que têm abusado da autoridade, de que se acham revestidos. 3° A indenização contentemente a propriedade, que sob qualquer pretexto tenha sido extorquida aos brasileiros, pelas autoridades militares ou civis da república. 4° Que fossem postos em plena liberdade todos os brasileiros, que houveram sido constrangidos ao serviço das armas da República 14 . Entretanto, após a apresentação das exigências do Império ao Uruguai e seu não-comprometimento imediato, Saraiva apresentou no dia 6 de agosto de 1864, o Ultimatum, estipulando o prazo de seis dias, para o cumprimento de todas as referidas exigências brasileiras. O Conselheiro esclareceu que o não-cumprimento das exigências preestabelecidas acarretariam na imposição da força militar em território oriental, para se fazer cumprir todas as determinações exigidas pelo Imperador. Neste mesmo período, Aguirre procurando aliados contra o Império, busca aliança com o Paraguai, que o apoia politicamente e militarmente, o qual envia ao Brasil um Ultimatum, em 30 de agosto de 1864 contra a ocupação do território Uruguaio pelas forças militares brasileiras. O Brasil desprezou e subestimou a ofensiva diplomática e militar do Paraguai, pois no Brasil, os soldados paraguaios eram vistos com desprezo 15 , por serem considerados um “povo bárbaro”. Com o auxílio de tropas terrestres de Flores (do Partido Colorado, da República uruguaia), o Brasil interveio militarmente, tendo como principal objetivo: ataques bélicos às cidades de Salto, Paisandú e Cerro Largo. 14 DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria Americana, 1919. p. 30. DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra, nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 60. 15 62 A tomada de Paisandú foi praticamente o fim desta intervenção militar contra o Uruguai. O Estado Oriental perdeu a guerra e teve a cidade de Paisandú arrasada 16 pelo bombardeio marítimo (Figs. 1 e 2), realizado por Tamandaré e sob a infantaria brasileira de Venâncio Flores. Fig. 1. Paisandú depois do bombardeio. Ruínas do Forte. 16 CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta. 2000. p. 16 63 Fig. 2. Inspeção realizada após o ataque à Paisandú Gómez (à esquerda). 17 pelo chefe das forças de defesa, Leandro Após o ataque ao Uruguai, López, presidente do Paraguai, viu em suas mãos a possibilidade em declarar guerra ao Brasil. Desta forma, em 11 de novembro de 1864, o Governo de Assunção capturou o Navio Mercante Marquês de Olinda 18 , que levava o novo Presidente da Província de Mato Grosso, Coronel Carneiro de Campos e alguns oficiais. Este aprisionamento foi considerado pelos brasileiros como um ato traiçoeiro de “pirataria”. Isto posto, o Império pediu explicações ao Paraguai 17 CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta, 2000. p. 17. 18 Segundo Virgílio Corrêa Filho este navio brasileiro pertencia à Companhia de Navegação por Vapor do Alto Paraguai, esta companhia era subsidiada pelo Império para manter linha regular ligando Montevidéo a Cuiabá. 64 pelo seu ato traiçoeiro. Em resposta, o governo paraguaio enviou nota dizendo, que estava proibido a navegação de navios brasileiros no rio Paraguai. Solano López, considerando que já estava em Estado de Guerra contra o Império brasileiro, decidiu invadir, no dia 15 de novembro de 1864, a Província do Mato Grosso e posteriormente, invadiria a Província do Rio Grande do Sul. Então com esta invasão bélica ao Mato Grosso, o Brasil, realmente, entrou em Guerra contra o Paraguai 19 . Podemos constatar que ao investigarmos as questões explicitadas neste sucinto artigo, podemos compreender a importância das relações existentes na fronteira do Brasil com o Uruguai, o qual ocasionou o “desabrochar” da Guerra do Paraguai. Portanto, fica claro que este trabalho buscou analisar os antecedentes da Grande Guerra, travada na América Latina, no século XIX, e não aprofundar as problemáticas desta referida Guerra. Referências AVISO contendo as instruções da Missão Especial Confiada em 1864 ao Conselheiro Saraiva. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v. 59, tomo I, 1896. BANDEIRA, L. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata — Argentina, Uruguai e Paraguai: da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. São Paulo; Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 1995. BELLO, Luís Alves Leite de Oliveira; NERY, Felipe B. de Oliveira. Sessão de 09.11.1859. In: Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta, 2000. 19 DORATIOTO, Francisco, op. cit., 2002. p. 67. 65 DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria Americana, 1919. DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra, nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Jornal do Comércio, 22 set. 1852. LORETO, Aliatar. Capítulos de história militar do Brasil, os antecedentes da guerra contra o Paraguai. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1953. OSÓRIO, Fernando Luís. Sessão de 24.03.1876. In: Anais da Assembléia Legislativa da Província do Rio Grande do Sul. Décima Sexta Legislatura. 2ª Sessão, 1876, p. 16. Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, códice AL4.004. RELATÓRIO da Secretaria de Estrangeiros. 12 de novembro de 1863. ZUN FELDE, Alberto. Processo histórico del Uruguay. Montevideo: Biblioteca de Autores Uruguayos, 1967. 66 6 DUAS VISÕES DO RIO PARDO DA PRATA: EXPEDIÇÃO DE PERO LOPES DE SOUSA (1531) E EXPEDIÇÃO DE ALVAR NUNEZ CABEZA DE VACA (1541) __________________________ Harry Rodrigues Bellomo ∗ Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS 1 Expedição de Martin Afonso de Sousa e de Pero Lopes de Sousa Em dezembro de 1530, Pero Lopes de Sousa partiu em direção ao Brasil na expedição do seu irmão, Martin Afonso, com o objetivo de explorar e colonizar o Brasil. Durante o ano de 1531, explorou a costa brasileira, chegando ao rio da Prata em novembro. Martin Afonso resolveu retornar para o norte, enquanto Pero Lopes continuava a explorar o rio da Prata, chegando em dezembro de 1531 até a foz do rio Paraná. Após ajudar na fundação de São Vicente (1532), Pero Lopes voltou a Portugal com o galeão São Vicente e a nau Nossa Senhora das Candeias. No caminho apresou naus francesas e destruiu um fortim francês, enforcando os seus defensores. No final de 1532 ou janeiro de 1533, finalmente atracou em Fato (Sul de Portugal). Decidido a acelerar o povoamento do Brasil Dom João III criou, entre 1534 e 36, 14 capitanias hereditárias, cabendo a Pero Lopes a capitania de Santo Amaro, com 10 léguas de costa; a de Santana com 40 léguas, a última ∗ Mestre em História. Professor da PUCRS. 67 da costa brasileira; e a capitania de Itamaracá, entre Rio Grande e Pernambuco. Pero Lopes de Sousa não mais retornou ao Brasil, tendo morrido em um naufrágio na costa africana. Assim, as suas capitanias foram administradas por sua viúva, Isabel, e, mais tarde, pelos filhos e filha, Jeronima. Itamaraca foi, das três capitanias de Pero Lopes, a que mais prosperou graças a sua união com a economia açucareira de Pernambuco. Santo Amaro partilhou o destino de São Vicente, doada a Martin Afonso, e a de Santana ficou abandonada. 1.1 Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa Francisco Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, o maior historiador brasileiro do século XIX, foi o descobridor deste diário nos documentos da Biblioteca da Ajuda, quando tinha 20 anos de idade, a mesma de Pero Lopes. A primeira edição foi em 1839, e a segunda em 1847, sendo a terceira feita pelo Instituto Histórico em 1861. O texto apresentado é de edição de 1979, pela Editora Parma. Transcrição do Diário de Navegação “Sabado 23 do mes de novembro de 1531 estando o sol em 11 graos e 35 meudos de sagitario, e a lua 27 graos de tauro, parti do Rio dos Bengoais, que jaz aloeste do cabo de Santa Maria 11 leguas, e levava hum bargantim com 30 hômes tudo bem em ordem de guerra: e fiz meu caminho ao longo da costa, que se corre aloeste. 2 leguas do dito rio, donde parti, ha hûa ilha pequena 1 toda de pedras, e della a terra firme ha hûa legua: derrador da ilha tem bom surgidouro de fundo de 5 braças de vasa molle. Indo assi pegado com a costa, a 1 Ilha dos Lobos (V.). 68 qual he toda limpa, per fundo de 5,6 braças, ao meo dia houve vista de hûa ilha ao mar 2 , que me demorava ao sulsudoeste; e della a terra ha 3 leguas: da banda de este tem hûa restinga de area comprida, que lança ao nordeste. Passando ávante da ilha descobri hum alto monte, ao qual puz nome — monte de Sam Pedro 3 — e morava-me aloeste e a quarta do noroeste. Este dia fui dormir ao pé do dito monte de Sam Pedro. Desde a dita ilha atraz até este monte, a costa he toda suja de pedra, e ruins baxos: a terra he toda rasa até este monte muito fermosa. Ao pé deste monte ha 2 portos; hum da banda d’aloeste, e outro da banda de leste: nam sam senam para navios pequenos. Domingo 24 do dito mês, ante manhãa, me fiz á vela com o vento nornordeste. Deste monte de Sam Pedro se começa a costa a loesnoroeste, indo assi no golfo de hûa enseada, que se faz grande como o dito monte de Sam Pedro, demora a leste e a quarta de sueste, fui dar em fundo de 2 braças e mea, hûa legua de terra 4 : e me acalmou o vento que levava: e me deu trovoada do Su, com muito vento; e fiz-me no bordo do monte de Sam Pedro, para me meter no porto onde estivera de noite. O vento rodou logo a sueste; e tornei-me a fazer na volta d’aloeste, para fazer meu caminho. Aqui comecei a achar agua doce, e muito pescado morto. Da ponta 5 desta enseada da banda d’aloeste lança hûa restinga ao mar hûa legua: o mais baxo della he braça e mea, e o mais alto 4 braças. Como pessei a dita restinga me acalmou o vento; e afuzilava muito a sudoeste e ao noroeste, que nesta costa sam sinaes certos de grandes temporaes: e com este receo me acheguei a terra, para ver se achava porto onde 2 Ilha das Flores (V.). Cerro de Montevidéo (V.). Foz do Rio Santa Luzia (V.). 5 Punta del Espinillo. 3 4 69 me metesse. Bem pegado com terra me tornou a ventar o vento nordeste, e fui ao longo da costa, a qual se corre a loesnoroestem per fundo de 4,5 braças d’arca limpa. Indo sempre hum tiro de bésta de terra tornou-me a acalmar o vento bem tarde, e os sinaes do temporal cresciam; determinei de varar o bargantim em terra até passar a noite; e mandei varar em hûa arca, a tirar o fato todo em terra; e fazer hum repairo de terra; e puzemos a artelheria em ordem. E eu fui com 10 homês pela terra ver se achava rasto de gente: nam achei nada; senam rasto de muitas alimarias, e muitas perdizes e codornizes, e outra muita caça. A terra he mais fermosa e aprasivel que eu já mais cuidei de ver: nam havia homem que se fartasse d’olhar os campos e a fermosura delles. Aqui achei hum rio grande; ao longo delle tudo aboredo o mais fermoso que nunca ví: e antes que chegasse ao mar hum tiro de bésta se sumia. E tomamos muita caça e tornamosnos ao bargantim. Ao pôr do sol veo hûa trovoada do noroeste, com tanta força de vento e pedra, que nam ravia homem, que se tivesse em pé: e de supito saltou ao sudoeste com muita chuva, relampados, e sempre cuidei de perder o bargantim, segundo o mar era grande. Toda esta noite corremos tanta fortuna, quanta hômes nunca passaram. A agua que choveo me molhou o mantimento todo, que mais nam prestou. Segunda-feira 25 do dito mês pela menhãa alimpou o tempo e veo sol, com que nos enxugamos. Daqui me quizera tornar, por nam termos mantimento; depois pareceo-me que nos podiamos manter com o mantimento, que na terra havia: e com o pescado o mais fermoso e saboroso, que nunca vi. A água já aqui era toda doce; mas o mar era tam grande que me nam podia parecer que era rio: na terra havia muitos veados e caça, que tomavamos, e ovos de emas, e emas pequeninas, que eram muito saborosas; na terra ha muito mel e 70 muito bom: e achavamos tanto que o nam queriamos: e ha cardos, que he mui bom mantimento, e que a gente folgava de comer. E com nos parecer a todos, que nos podiamos soster, determinei de ir ávante, e o vento era sueste, e o tempo estava bom, e de noite havia lua. Parti bem tarde; — duas de sol, com tençam de andar a noite toda; indo ao longo da costa, por fundo de 6 braças d’area limpa. Sendo 2 leguoas dond’e partira, saíram da terra e mim 4 almadias, com muita gente: como as vi puz-me á corda com o bargatim para esperar por dias: remavam-se tanto, que parecia que voavam. Foram logo comigo todos; traziam arcos e frechas e azagaias de pao tostado, e elles com muitos penachos todos pintados de mil cores: e chegaram logo sem mostrarem que havia medo: senam com muito prazer abraçando-nos a todos: a falta sua não entendiamos; nem era como a do Brasil; falavam do papo como mouros: as suas almadias eram de 10, 12 braças de comprimento e mea braça de largo: o pao dellas era cedro, mui bem lavradas: remavam-nas com hûas pás mui compridas; no cabo das pás penachos e borlas de penas; e remavam cada almadia 40 homês todos em pé: e por se vir a noite nam fui ás suas tendas, que pareciam em hûa praia defronte donde estava; e pareciam outras muitas almadias varadas em terra; e elles acenavam que fosse lá; que me dariam muita caça; e quando viram que nem queria ir, mandaram hûa almadia por pescado: e foi e veo em tamanha brevidade, que todos ficamos espantados: e deramnos muito pescado: e eu mandeilhes dar muitos cascaveis e christallinas e contas: ficaram tão contentes e mostravam tamanho prazer, que parecia que queriam saír fóra o seu siso: e assi me despedi delles. Quasi noite fez-seme o vente nornordeste por riba da terra: e com êlle fazia o caminho ao longo da costa, por fundo de 5,6 braças: como passou mea noite comecei a achar baxos de pedras, a 71 alargueime mais da terra, e tirei a moneta, e fui com pouca vela, com a sonda na mão. Terca-feira 26 de novembro pela manhãa me achei pegado com hûa ponta 6 , e fui para dobrar; e a costa voltava ao noroeste e tomaa do norte; e ventava tanto vento noroeste, que nos houvera de soçobrar. Mandei amainar a vela; e fui surgir na ponta da banda de leste, que abrigava do vento: e saí a terra a ver se podiamos tomar algûa caça. E de hûas grandes arbores, em que me fui pôr, para divisar a outra costa da banda do noroeste da ponta, houve vista de muitas ilhas 7 todas cheas d’arboredo, hûa legua da terra; e parecia cá que havia abrigo entre ellas. E assi me tornei para o bargantim com muita caça e mel. E á tarde acalmou o vento; e mandei meter os remos; e fui-me ás ilhas: corri-as todas; e nunca achei porto nem abrigo, em que me meter: na mais pequena achei repairo; mas do vento sueste era desabrigada. Aqui estive toda a noite fazendo pescaria. Quarta-feira 27 de novembro mandei concertar a padesada do bargantim, e pôr a artelharia em ordem, e irmos concertados para pelejar; porque na terra viamos muitos fumos, que he sinal e ajuntamento de gente. E ao meo dia parti destas ilhas, as quaes são sete, todas cheas de arboredo: as tres dellas sam grandes, e as quatro pequenas. Com o vento lesnordeste fazia o caminho ao longo da costa, a qual se corre ao noroeste e toma da quarta do norte. Duas 8 leguas das sete ilhas há um rio que traz muita agua: fui para entrar nelle; e a entrada era roim de muitos baxos; e passei por longo da costa per fundo de 7,8 braças; e a terra he toda chãa: quanto mais 6 A em quem se fundou a Colônia do Sacramento. (V.) A respeito ver Relação do Sítio da Nova Colônia do sacramento, de Silvestre Ferreira da Silva e Notícia e Justificação do Título e Boa Fé com que se Obrou a Colônia do Sacramento, trabalhos cujas primeiras edições datam de 1748 e 1681, respectivamente. Reedição fac-similar (Coleção da revista de História, v. LXVIII), com prefácio de Brasil Bandecchi. (P.B.B.) 7 llhas de San Gabriel (V.). 8 Rio San Juan(V.). 72 ávante ía tanto melhor me parecia: e á pustura do sol fui surgir a hûa ilha grande, redonda, toda chea d’arboredo, á qual puz o nome de — Santa Anna 9 —. Aqui estive toda a noite; onde matei muito pescado de muitas maneiras: nenhum era de maneira como o de Portugal: tomavamos peixes d’altura de hum homem, amarelos e outros pretos com pintas vermelhas, os mais saborosos do mundo. Quinta-feira 28 novembro saí e terra; nesta ilha achei muitas aves as mais fermosas, que nunca vi. Aqui vi falcões como os de Portugal. O vento saltou ao sul: puz-me da banda norte da Ilha: estive surto com muita tempestade, que se me desabrigára, achára de todo nos perderamos. Sesta-feira 29 de novembro pela menhão abonançou o tempo, e fui á ilha: mandei pôr fogo em três partes della; para ver se nos acudia gente: e nam vimos senam fumos, que me demoravam a oessudoeste e nam viamos terra: mandei subir dous homês sobre hûas arbores grandes, que estavam na ilha, para ver se viam terra onde nos faziam os fumos, e viram arboredo, cousa que parecia terra alagadiça. Sabado 30 de novembro á tarde me fiz á vela com o vento lesnordeste, e fui a hûas ilhas, que me demoravam ao nornoroeste. Desta ilha de Santa Anna ás sete ilhas ha 4 leguas; e corre-se com ellas leste-oeste, e á terra ha duas leguas 10 : e estas duas ilhas, a que puz nome de — Sant’André 11 —, por ser hoje o seu dia, ha duas leguas da dita ilha de Santa Anna; e estam da terra mea legua: a achei nellas hum bom repairo, onde estive a noite toda. 9 Ilha de Martin Garcia (V.). Orientação e distância mal calculadas: das ilhas de San Gabriel (7 ilhas de Pero Lopes) à de Martin Garcia (Santa Ana) a 26 milhas ou cerca de 7 léguas ao noroeste, anota Eugênio de Castro com sua indiscutível autoridade (P.B.B.) 11 Dos Hermanas (V.). 10 73 Domingo 1º de dezembro me fiz á vela pela manhãa, com o vento nordeste: e mandei governar a loessueste: fazia mui gram nevoa, que nam viamos nada, e fui assim até o meo dia pelo dito rumo; e indo por 5 braças de fundo fui de supito dar em 2 braças: e mais ávante dei em seco: — e mandei me por onde viera. Como alimpou a nevoa, me achei hûa legua de hûa terra mui baxa, chea d’arboredo e muitos baxos e vi estar hûa boca grande, que me demorava ao noroeste; e fui a demandar por fundo de 2 braças, e ás vezes dando em seco, até que dei em hum canal de sete braças, que ía dar na dita boca: e entrei para dentro: e achei hum rio 12 de mea legua de largo, e de hûa banda e d’outra tudo cheo de arboredo. A agua corria mui tesa para baxo: havia de fundo 10, 12 braças de lama molle. O rio faz a entrada leste-oeste: da banda do sul na boca delle ha hum esteiro pequeno de 6 braças de largo: e índo mais por o rio arriba, da banda do sul achei outro braço de outra mea legua de largo que ía ao sudoeste, e mais acima achei outro braço, que vinha do noroeste: trazia muita agua, e era quasi hûa legua de largo. Entam vi que tudo eram braços e ilhas, antre que andavamos. As ilhas todas sam cheas d’arboredo; dellas sam alagadiças. Segunda-feira 2 dias de dezembro, como foi menhãa, mandei remar pelo rio arriba: eram tantas as bocas dos rios, que nem sabia por onde ía: sernam ía pela agua arriba; e fez-se-me noite a par de 2 ilhas pequenas onde surgi. Estive a noite toda com muito vento noroeste. Quinta-feira 12 de dezembro á boca deste esteiro dos Carandins puz dous padrões de armas d’elrei nosso senhor, e tomei posse da terra para me tornar d’aqui: por que via que nam podia tomar pratica da gente da terra; e havia muito que era partido donde Martin Afonso estava: e fiquei de ír e vir em 20 dias: e deste esteiro ao rio dos 12 Boca do Paranaguazu (V.), em terra Argentina (P.B.B.). 74 Beguoais 13 , donde parti, me fazia 105 leguas. Aqui tomei altura do sil em 33 graos e 3 quartos. Esta terra dos Carandins he alta ao longo do rio; e no sartam he toda chãa, coberta de feno, que comque hum homem como 10 livras de pexe, em nas emas, e perdizes e cordonizes: he a mais fermosa terra e mais aprazivel, que pode ser. Eu trazia comigo alemães e italianos, e homês que foram á India e francezes, — todos eram espantados da fermosura desta terra: e andavamos todos pasmados que nos nam lembrava tornar. Aqui neste esteiro tomámos muito pescado de muitas maneiras: morre tanto neste rio e tam bom, que só com o pescado, sem oútra cousa, se podiam manter; ainda que hum home coma 10 livras de pexe, em nas acabando de comer, parece que nam comeu nada; e tornára a comer outras tantas. O ar deste rio he tam bom que nenhûa carne, nem pescado apodrace; e era na força do verão que matavamos veados, e trazíamos a carne 10, 12 dias sem sal, e nam fedia. A agua do rio he mui saborosa; pela menhãa he quente, e ao meo dia he muito fria; quanta o homem mais bebe, quanto melhor se acha. Nam se podem dizer nem escrever as cousas deste rio, e as bondades delle e da terra. Sesta-feira 13 de dezembro parti deste erteiro dos Carandins para me tornar por donde viera. Com o vento noroeste fazia o meu camiho á popa 14 , que ia tam teso, que cada hora, 3, 4 leguas. Sendo a par donde viera. Sendo a par das ilhas dos corvos 15 , d’antre hum arboredo ouvimos grandes brados, e fomos demandar onde bradavam: e saío a nós hum homem, á borda do rio, coberto com 13 Este rio é o atual Solis Grande, conforme Eugênio de Castro (P.B.B.). Varnhagen anota: “Note-se bem: Ao descer o rio ia à popa com vento N.O.: segue para S.E.:, o que não poderia suceder se tivesse subido o Paraná”. Eugênio de Castro corrige: “Ao descer o rio veio tocado com corrente e vento noroeste, pela popa; navegou pois, ao sueste, ao Paranaguazu, e não como quer Varnhagen” (P.B.B.). 15 Estas duas ilhas que no registro do dia 8, Pero Lopes e Sousa as denomina de llhas os Corvos, Eugênio de Castro admite serem as atuais Dourado, no Rio Paranaguazu (P.B.B.) 14 75 peles, com arco e frechas na mão; e fallou-nos 2 ou 3 palavras guaranís, e entenderam-as os linguas que levava; tornaram-lhe a falar na mesma lingua, nam entendeu; senam disse-nos que era beguoaa chanaa 16 e que se chamava ynhandú. E chegámos com o bargantim a terra, e logo vieram mais 3 homês e hûa molher, todos cobertos com pelles: a molher era mui fermosa; trazia os cabellos compridos e castanhos: tinha hûs ferretes que lhe tomavam as olheiras: elles traziam na cabeça hûs barretes das pelles das cabeças das onças, com os dentes e om tudo. Por acenos lhe entendemos que estava hum homem com outra geraçam, que chamavam chanás, e que sabia falar muitas linguas; e que o queria ír a chamar, e estava la diante pelo rio arriba; e que elles íriam e viriam em 6 dias. Entam lhes dei muitas cristalinas e contas e cascaveis, de que foram mui contentes, e a cada hum delles seu barrete vermelho; e á molher hûa camisa: e como lhes isto dei, foram a hûs juncais, e tiraram duas almadias pequenas, e trouxeram-me ao bargatim pescado e taçalhos de veado, 17 e hûa posperna d’ovelha ; mas nam ousavam de entrar dentro do bargantim, nem seguravam comnosco. E assi se foram, dizendo que haviam de vir dahia a 5 dias, e os esperassem nas ditas ilhas dos corvos. Aqui estive 6 dias esperando, nos quaes tomei multa caça e muito pescado, e muitos veados, tamanhos como bois, os quaes faziamos em taçalhos, para levar ás naos. Como vi que nam vinham, ao cabo de 6 dias me parti.” 16 17 Begoás e chanás eram nomes de tribos de índios (V.). Provavelmente de paca, anta ou capivara (V.). 76 Fig. 1. Rotas das Expedições de Martin Afonso de Sousa e de Pero Lopes de Sousa. 2 Narrativa de Alvar Nunes Cabeza de Vaca Nascido em 1492, ano da descoberta do novo mundo, Nunez Cabeza de Vaca, descendente de um camponês enobrecido em 1212, viveu empolgado pela visão de explorar e conquistar este estranho e fascinante mundo. 77 Em 1527 participou da expedição de Novaez que atravessou os EEUU da Flórida até o Novo México, e apenas quatro sobreviventes chegaram a Cidade do México. Em 1540 foi nomeado adelantado do rio da Prata. Em 1540 Cabeza de Vaca partiu de Cadiz para o rio da Prata. Em 1541 chegou a ilha de Santa Catarina, no Sul do Brasil. Dalí remou para Assunção começando sua política de pacificação dos índios. Quando tudo parecia em paz, partiu em busca do mítico rei branco da Serra de Prata. A expedição voltou dizimada e Cabeza de Vaca foi preso e destituído do governo. Julgado na Espanha foi condenado ao exílio e a pagar uma grande multa. A origem da sua desdita está na política de tolerância com os índios e sua recusa de usar a força e a escravização dos índios como método de conquista. Sua narrativa das expedições que participou são clássicos. Para nós, é de suma importância a parte em que conta sua viagem de Santa Catarina até Assunção, fazendo o caminho inverso ao do alemão Schimidel. Suas descrições da bacia do Prata e das tribos indígenas são fontes primordiais para o estudo desta região. A fixação nas riquezas da América do Sul e os mitos dos reinos de Prata e de ouro, aparecem com clareza, sendo uma fonte importante para vermos o imaginário do século XVI. A desilusão dos espanhóis, ao perceber que o reino da Prata era o Peru, lançou a bacia platina em um relativo abandono. 78 Transcrição da Narrativa de Cabeza de Vaca “Desembarque no Brasil Ao chegar na ilha de Santa Catarina 18 , o governador mandou desembarcar toda a gente que conseguiu levar e os vinte e seis cavalos que conseguiram sobreviver ao mar, dos quarenta e seis que saíram da Espanha. O governador procurou saber, dos índios naturais daquela terra 19 se porventura poderiam informar sobre o estado da gente espanhola que ia socorrer na província do rio da Prata. Deu a entender aos índios que seguia por mandado de Sua Majestade para prestar socorro e também tomou posse daquela terra. Durante todo o tempo em que esteve na ilha 20 , o governador dispensou muito bom tratamento aos nativos daquela ilha e de outras partes da costa do Brasil (vassalos de Sua Majestade) e obteve deles a informação de que, a quatorze léguas da ilha, num local chamado Biaza 21 , estavam dois frades franciscanos chamados frei Bernaldo de Armenta, natural de Córdoba, e frei Alonso Lebrón, natural da Grand Canária. Em poucos dias esses dois frades vieram até onde estava o governador, muito atemorizados porque os índios daquelas terras queriam matá-los. Isso porque os cristãos que lá estavam haviam queimado algumas casas de índios e estes já 18 Cabeza de Vaca aportou na baía norte da ilha de Santa Catarina, que chamou de baía de Ramos (N. do E.). 19 A ilha de Santa Catarina, bem como todo o resto do litoral sul do Brasil, de Cananéia ao norte do Rio Grande do Sul, era habitada pelos carijós, do grupo étnico tupi-guarani (N. do E.). 20 Durante o tempo em que permaneceu na ilha de Santa Catarina, Cabeza de Vaca acampou nas praias da baía norte. Logo em seguida, porém, transferiu-se para o local que os índios chamavam de Yurú-mirim (“passagem pequena"), no atual Estreito. Batizou o local com o nome de porto de Vera (N. do E.). 21 Biaza, lbiaça ou Viaça, atual Massiambu, no continente, ao sul da ilha de Santa Catarina. A lagoa de lmaruí era chamada também de lagoa de Biaza. 79 haviam matados dois cristãos. Informado sobre o ocorrido, o governador procurou pacificar aqueles índios e removeu os frades para aquela ilha, a fim de catequizar os índios que ali viviam. As condições da terra Daquele rio chamado Iguaçu, o governador seguiu adiante com sua gente e aos três dias do mês de dezembro chegaram a um outro rio que os índios chamam Tibagi, que era todo ladrilhado, com lajes grandes e tão bem formadas como se ali tivessem sido colocadas pelo homem 22 . Tivemos grande trabalho para atravessar aquele rio, pois tanto os cavalos como as pessoas resvalavam muito e, além disso, a correnteza era muito forte. A solução foi todos atravessarem abraçados. A duas léguas dali outros índios vieram receber o governador e sua gente, trazendo mais mantimentos, o que passou a ser uma constante, de modo que nunca faltava o que comer. Por isso, o governador dava muitos presentes aos índios, especialmente aos principais, dispensando-lhes um tratamento muito cordial. A notícia sobre esse tratamento corria por toda a parte, de modo que os índios vinham trazer o que possuíam e eram pagos por isso. Nesse mesmo dia, estando o governador próximo de um outro povoado de índios, cujo principal se chamava Tapapiraçu 23 , chegou um índio natural da costa do Brasil, que já havia se convertido ao cristianismo e recebido o nome de Miguel. Vinha da cidade de Ascensión, onde residiam os espanhóis que se ia salvar. O fato alegrou muito o governador, pois o mesmo pôde inteirar-se da 22 No curso superior do Tibagi, a oeste da atual cidade de Lagos, a oeste da atual cidade de Lagos, nas proximidades de Ponta Grossa (N. do E.). 23 Era o grande aldeamento chamado Abapany, por onde cruzava o caminho transcontinental “Peabiru” ou “Peá-byiu” (o “caminho cujo percurso se iniciou”), que unia a costa do Brasil meridional com os Andes (N. do E.). 80 situação daquela província e dos muitos perigos pelos quais haviam passado os espanhóis desde a morte de Juan de Ayolas. Depois de fazer o relato, por sua própria vontade, o índio quis retornar com o governador para guiá-lo até a cidade de Ascensión. A partir dali, o governador mandou dispensar e fazer retornar os índios que saíram em sua companhia da ilha de Santa Catarina, aos quais deu muitos presentes e agradecimentos pelos bons serviços que prestaram. Como a gente que levava consigo era muito inexperiente no trato com os índios, o governador determinou que não fizessem nenhum contato com os mesmos e não fossem às suas casas, pois a mínima coisa poderia ser uma ofensa para eles, colocando-os em estado de guerra. Assim, os contatos só deveriam ser feitos por aqueles que entendiam os índios, que faziam os negócios, comprando os mantimentos de que todos necessitavam e cuja distribuição era feita pelo próprio governador, sem cobrança alguma. Era impressionante ver o medo que aqueles índios tinham dos cavalos. Para que os cristãos a cavalo não os ameaçassem, eles logo procuravam dar-lhes galinha, mel e outras coisas de comer. Porém, para evitar a exploração, o governador procurava assentar o acampamento afastado dos povoados e, ao mesmo tempo, punia aqueles que fizessem qualquer agravo aos índios. Percebendo isso, os índios vinham muito seguros, trazendo suas mulheres e filhos, além de muitos mantimentos, só para verem os cristãos e os cavalos, que eram personagens estranhos por aquelas terras. Seguindo seu trajeto por aquelas terras, o governador e sua gente chegaram a um povoado dos guaranis, cujo senhor principal, chamado Pupebaje, saiu a caminho para recebê-los, muito alegre e trazendo mel, patos, galinhas, milho, farinha e outras coisas. Através do intérprete, o governador lhe agradeceu a acolhida, fez-lhe o 81 pagamento e ainda deu para o principal muitos presentes, entre eles tesouras e facas. Deixou os índios desse povoado tão alegres e contentes, que pulavam, dançavam e cantavam de prazer. Aos sete dias do mês de dezembro chegaram a um rio que os índios chamam Taquari 24 , com boa quantidade de água e uma boa correnteza, e em cuja ribeira está assentado um povoado de índios cujo principal se chama Abangobi. Todos os do povoado, inclusive as mulheres e as crianças, saíram pra receber a comitiva do governador, mostrando grande prazer com a sua chegada. Como os demais, trouxeram mantimentos e foram pagos por isso, indo aos outros povoados para contar o que se passava e mostrar o que haviam ganho. De modo que o governador já podia encontrar muito alegres e pacíficos todos os povos com os quais haveria de cruzar. Aos quatorze dias do mês de dezembro, encontraram um outro povoado guarani, onde o principal se chamava Tocangucir. Aí descansaram um dia para se recuperarem da fadiga, tendo os pilotos aproveitado para medir a localização. O caminho por onde seguiam era a oestenoroeste e quarto-noroeste, estando aquele lugar a vinte e quatro graus e meio, afastado um grau do trópico. Por todo caminho que se andou depois, viram-se muitas povoações, sendo terra muito alegre, de muitas campinas, muitas árvores, muitos rios e arroios de água muito cristalina, toda a terra muito própria para lavrar e criar. Trabalhos por que passou o governador Do povoado de Tugui o governador seguiu caminhando com sua gente até os dezenove dias do mês de dezembro sem encontrar nenhum outro povoado, passando grande trabalho para atravessar os muitos rios e más passagens que havia. Houve dias que tiveram de 24 Hoje, rio lvaí, que De Vaca transpôs acima do Salto de Ubá (N. do E.). 82 fazer até dezoito pontes para cruzar com os cavalos e mantimentos. Também tiveram de cruzar serras e montanhas cobertas com árvores muito fechadas, que não permitiam que se visse o céu. Era tão fechada a mata que sempre que iam vinte homens na frente para abrir o caminho. Finalmente, naquele dia 19, chegaram a um povoado de índios guaranis, que vieram recebê-los muito contentes, trazendo suas mulheres e filhos, além de muitos mantimentos, como galinha, batata, pato, mel, farinha de milho e farinha de pinheiro, que produzem em grande quantidade, porque há pinheiros tão grandes por ali que quatro homens com os braços estendidos não conseguem 25 abraçar um . São muito bons para a construção de carracas e de mastros de navios. As pinhas deles são enormes e a casca semelhante à da castanha. Os índios as colhem e fazem grande quantidade de farinha para a sua manutenção. Por aquelas terras há muitos porcos montanheses 26 e macacos que comem aqueles pinhões. Os macacos costumam subir nos pinheiros e derrubar tantas pinhas quanto conseguem, para depois descerem e comê-las junto ao solo. Muitas vezes acontece que os porcos montanheses ficam aguardando os macacos derrubar as pinhas para então irem comê-las afugentando os macacos. Assim, enquanto os porcos montanheses ficavam comendo, os gatos 27 ficavam dando gritos trepados nas árvores. Também há muitas frutas, de diversas qualidades, que dão duas vezes ao ano. O governador se deteve nesse povoado de Tugui durante o Natal, tanto em respeito à data como para que sua gente 25 Evidentemente trata-se da Araucária brasiliensis, o pinheiro brasileiro por excelência (N. do E.). São pecaris (Dicotyles labiatus) (N. do E.). 27 Muitas vezes os conquistadores chamavam macacos de gatos. O próprio Gonzalo de Oviedo os chama de “gatos macaquinhos” em sua monumental História General y Natural de las Índias (N. do E.). 26 83 descansasse 28 . Os espanhóis festejaram alegremente o Natal, pois os índios lhes traziam toda espécie de comida que conheciam. Como todos estavam sem se exercitar, a comida em excesso chegava a causar mal-estar em alguns. Aliás, sempre que comiam muito o governador procurava empreender longas caminhadas. Muitos reclamavam, achando que ele queria castigá-los, mas a experiência acabou comprovando que era a melhor coisa que podiam fazer para não caírem doentes. A fome volta a atacar Aos vinte e oito dias do mês de dezembro o governador e sua gente deixaram a localidade de Tugui, ficando os índios muito contentes. Caminharam por terra todo o dia sem encontrar povoação alguma, até que chegaram a um rio muito caudaloso e largo, com grandes correntes, tendo em sua margem muitas árvores, ciprestres e cedros 29 . Foram necessários quatro dias de gigante trabalho para atravessar aquele rio. Depois disso, passaram por cinco povoados de índios guaranis, onde foram recebidos da mesma forma que nas ocasiões anteriores, ou seja, os índios vieram com suas mulheres e filhos e trouxeram muitos mantimentos, sendo bem recompensados pelo governador. Como nos demais povoados, os índios semeiam mandioca, milho e batata, sendo que esta produzem de três tipos, branca, amarela e rosa. Criam patos e galinhas e extraem mel do oco das árvores. No dia 1° de janeiro do ano do Senhor de 1542, o governador partiu com sua gente daqueles povoados índios, embrenhando-se por 28 Esse povoado ficava nas nascentes do rio Cantu. A tropa de Cabeza de Vaca, após cruzar o Ivaí venceu com grandes dificuldades a escarpa do planalto paranaense pelo vale do rio Pedra Preta (N. do E.). 29 O alto Pequiri (N. do E) 84 montanhas e canaviais muito espessos, passando grande trabalho, porque até o dia 5 não encontraram povoado algum. Durante esse período também passaram muita fome. A única salvação eram os gusanos brancos e grandes, da grossura de um dedo, que tiravam do meio das canas e fritavam para comer. Consideravam aquilo uma comia muito boa. De um outro tipo de cana extraíam água, que também diziam ser muito boa. Nesse caminho, passaram por dois rios grandes e muito caudalosos. No dia 6 de janeiro, caminhando terra adentro sem achar povoado algum, vieram a dormir na ribeira de outro rio muito caudaloso 30 , de fortes correntes e de muitos canaviais em suas proximidades, de onde o pessoal tirava os gusanos para se alimentar. No outro dia, seguiram por terra muito boa, de boa água, de muita caça. Foram apanhados muitos porcos montanheses e veados, que foram repartidos entre todos. Graça a Deus, durante esse tempo não adoeceu nenhum cristão, e todos continuaram caminhando muito dispostos, com a esperança de logo chegarem à cidade de Ascensión. De 6 a 10 de janeiro foram cruzados muitos povoados de índios guaranis, sempre acontecendo o mesmo tratamento. O que passou a acontecer de diferente, no entanto, era que os padres Bernaldo de Armenta e Alonso Lebrón passaram a ir na frente para receber os mantimentos, fazendo com que, quando o governador chegava, os índios não tivessem mais nada para entregar-lhe, com o que ficavam muito frustrados. Diante das freqüêntes queixas que começaram acontecer, o governador os advertiu para que não fizessem mais isso, tampouco continuassem a carregar índios inúteis, conforme vinham fazendo. Apesar das advertências, eles continuaram com o mesmo procedimento e o governador só não os expulsou por causa do 30 O rio Cobre (N. do E.). 85 serviço que prestavam a Deus e a Sua Majestade. Mesmo assim, voltou a adverti-los, o que fez com que decidissem abandonar a comitiva e seguir por outro caminho, através de outros povoados. O governador, no entanto, mandou buscá-los de volta, o que foi a salvação dos mesmos, pois certamente não conseguiriam sobreviver sozinhos por onde haviam se metido. Chegada ao rio Iguaçu O governador e sua gente seguiram caminhando por entre os povoados de índios guaranis, sendo sempre muito bem recebidos. Toda essa gente anda desnuda, tanto homens como mulheres, e têm muito temor aos cavalos. Rogavam ao governador que dissesse aos cavalos que eles não iriam molestá-los e procuravam sempre trazer comida para os animais, para não serem maltratados por eles. Assim, seguindo por esses camihos, aos quatorze dias do mês de janeiro, 31 chegaram a um rio muito largo e caudaloso que se chamava Iguaçu . É um rio muito bom, de bastante pescado e de muitas árvores na ribeira. Ali também existia um outro povoado de guaranis, que igualmente dispensaram o mesmo tratamento cordial. Naquele local também existem muitos pinheiros. Esse rio Iguaçu é tão largo quanto o Guadalquivir e está situado a vinte e cinco graus. É muito povoado em toda sua ribeira, estando ali a gente mais rica de todas essas terras. São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores e pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados, antas, faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além da mandioca, milho e batata, figura também o amendoim. Também colhem muitas frutas e mel. 31 Dessa vez, os espanhóis atravessaram o rio Iguaçu próximo à foz do rio Cotegipe (N. do E.). 86 Estando nesses povoados, o governador decidiu escrever para os que estavam em Ascensión, para comunicar-lhes como, em nome de Sua Majestade, iria socorrê-los, e enviou a carta através de dois índios nativos daquelas terras. Nesse meio tempo, um dos cristãos que acompanhavam o governador, chamado Francisco Orejón, foi mordido por um cachorro e caiu doente. Também adoeceram outros quatorze espanhóis, fatigados pela longa caminhada. O governador os deixou aos cuidados dos índios de um povoado situado junto ao rio Piqueri, tendo dado muitos presentes aos nativos para que cuidassem bem deles até que se restabelecessem e depois os ajudassem a seguir adiante. Esse caminho por onde seguia o governador possui grandes campinas, excelentes rios e arroios, muitas árvores e muita sombra, sendo a terra mais fértil do mundo, estando pronta para semear a pastagem. É também terra de muita caça e própria para a colocação de engenhos de açúcar. Toda a sua gente é muito amiga e com muito pouco trabalho poderão ser trazidos para a nossa santa fé católica. Chegada à cidade de Ascensión Tendo tomado conhecimento da morte de Juan de Ayolas 32 , de outros massacres que os índios haviam realizado contra os espanhóis em Ascensión e do despovoamento do porto de Buenos Aires — para onde mandara suas naus que estavam na ilha de Santa Catarina com 140 homens —, o governador pôde perceber a necessidade em que se encontrava aquela gente que ia socorrer. Assim, apressou sua 32 Juan de Ayolas (1493-1538) era o substituto do Adiantado Pedro de Mendoza. Quando Cabeza de Vaca foi enviado ao rio da Prata, deveria submeter-se ao comando de Ayolas, caso este estivesse vivo. Só com a morte de Ayolas, De Vaca poderia assumir o cargo de Adiantado. Ayolas, no entanto, já estava morto dois anos antes de Cabeza de Vaca partir da Europa, sem que ninguém soubesse com certeza (N. do E.). 87 caminhada e, à medida que avançava, era cada vez maior a acolhida que recebia por parte dos índios guaranis, pois corria de boca em boca o bom tratamento que a todos o governador dispensava e as muitas dádivas que a todos concedia. Era comum, portanto, os índios irem à frente abrindo caminho e, à medida que a comitiva se aproximava de Ascensión, era comum virem até o governador índios que falavam a nossa língua castelhana, dizendo que estava chegando em boa hora. Quanto mais perto chegava tanto maior era a recepção, com mulheres e crianças se colocando em fila para oferecer vinho de milho, pão, pescado, batata, galinha, mel, veado e muitas outras coisas, que repartiam graciosamente e, depois, em sinal de paz e amor, levantavam as mãos para o céu. Caminhando dessa maneira (segundo é dito) foi Nosso Senhor servido de que às nove horas da manhã de um sábado, aos onze dias do mês de março do ano de 1542 33 , o governador e sua gente chegassem à cidade de Ascensión que está assentada na ribeira do rio Paraguai, a vinte e cinco graus da banda sul. Quando chegaram nas cercanias da cidade, os capitães e outras pessoas já saíram para recebê-los, demonstrando uma alegria indescritível e dizendo que jamais acreditaram que pudessem ser socorridos, pois não se tinha qualquer notícia de outro caminho que não fosse aquele através do porto de Buenos Aires. Como o haviam despovoado, não lhes restava esperança alguma de receberem ajuda. Sabendo disso, os índios haviam se acometido de grande ousadia e atrevimento para atacá-los e matá-los, pois viram também que se passara muito tempo sem que ninguém chegasse à província. De sua parte, o governador também ficou muito alegre em poder ajudá-los, tendo-lhes comunicado que 33 Tendo saído da ilha de Santa Catarina em 18 de outubro de 1541. Cabeza de Vaca levou, portanto, cinco meses para chegar a Assunção (N. do E.). 88 chegava ali por mandato de Sua Majestade e logo apresentou ante Domingo de Irala, tenente e governador daquela província, a provisão que trazia, mostrando-a também aos outros oficiais: Alonso de Cabrera, inspetor; Felipe de Cáceres, contador, natural de Madri; Pedro Dorantes, feitor, natural de Béjar; e ante outros capitães e gente que ali residiam. Em vista disso, deram obediência ao governador como capitão-geral da província por mandato de Sua Majestade, entregando-lhe as varas da justiça, que, em nome de Sua Majestade, ele distribuiu novamente a outras pessoas, para que administrassem a justiça civil e criminal naquela província. Chegada dos doentes que ficaram no rio Piqueri Trinta dias após a chegada do governador à cidade de Ascensión, chegaram as balsas com os enfermos, que vieram do rio Paraná. Apesar de doentes e fatigados, todos chegaram, com exceção de um que foi morto por um tigre. Contaram que durante muito tempo foram seguidos e atacados pelos índios que vivem na margem daquele rio. Estes os seguiram rio abaixo em suas canoas, fazendo grande gritaria e lançando suas flechas. Durante quatorze dias foram seguidos por até duzentas canoas que não lhes davam sossego, ferindo levemente cerca de vinte espanhóis, o que não impediu que seguissem sua viagem rio abaixo. Como se não bastasse o ataque dos índios, o rio, com suas correnteza forte e redemoinhos, também era outro desafio a ser enfrentado. Não fosse a habilidade dos pilotos, sua sorte teria sido outra, pois ou naufragariam ou seriam alcançados pelos índios. Sofreram assim essa pressão por quatorze dias consecutivos, até que chegaram ao local onde morava o índio Francisco, que os amparou, levando-os para uma ilha próxima de seu próprio povo. Ali puderam amenizar a grande fome que vinham sentindo, bem como tratar dos 89 ferimentos e descansar um pouco, pois os índios que os vinham se guindo desistiram de atacá-los, retornando aos seus povoados. Nesse meio tempo chegaram os dois bergantins que haviam saído de Ascensión para apanhar os feridos. O governador manda repovoar Buenos Aires Com todo o cuidado, o governador mandou preparar dois bergantins, carregados de mantimentos e outras coisas necessárias, para serem enviados a Buenos Aires. Reuniu também gente experiente na navegação pelo rio Paraná, para que socorressem os 140 espanhóis que ele havia enviado desde a ilha de Santa Catarina e que, por certo, iriam passar grande necessidade em vista das informações que recebera de que o porto de Buenos Aires estava despovoado. Mandou que se tratasse logo de povoar novamente aquele porto, pois ele era de fundamental importância para toda aquela gente que residiam em Ascensión. Ali deveriam ser feitos os bergantins para subirem as 350 léguas rio acima, trazendo as pessoas e artigos que chegassem pelas naus vindas da Espanha. Os dois bergantins partiram aos dezesseis dias do mês de abril daquele dito ano e em seguida o governador mandou construir outros dois para serem enviados posteriormente. Aos capitães que enviou nos dois primeiros bergantins, ordenou que procurassem dar um bom tratamento aos índios do rio Paraná, buscando atraí-los para a paz e para a obediência a Sua Majestade. Pediu-lhes que relacionassem tudo que ocorresse para que depois fosse relatado a Sua Majestade. Para melhor servir a Deus e a Sua Majestade, o governador mandou chamar alguns sacerdotes que residiam em Ascensión e outros que trazia consigo, tendo reunido também os capitães e toda a gente que iria viajar em mandado que lessem certos capítulos de uma carta a 90 Sua Majestade que falam sobre o tratamento que deve ser dispensado aos índios. Pediu aos sacerdotes que tivessem especial cuidado para que os índios não fossem maltratados e que lhe avisassem sobre tudo que ocorresse ao contrário do que fora determinado. Avisou-lhes que proveria todo o necessário para tão santa obra, pois queria que fossem ministrados os sacramentos nas igrejas e mosteiros. Assim, eles foram também providos de vinho e de farinha, e dos ornamentos para os atos litúrgicos. Índios matam e comem seus inimigos Logo que chegou à cidade de Ascensión, o governador mandou juntar todos os índios vassalos de Sua Majestade e, em presença dos clérigos, explicou-lhes que Sua Majestade o enviara para demonstrarlhes como deveriam vir ao encontro dos conhecimentos cristãos, através da doutrina e do ensinamento dos religiosos que ali estavam. Que, se procedessem dessa maneira, sendo bons vassalos e fiéis seguidores de Deus e da Igreja católica, seriam muito bem recompensados. Ao mesmo tempo, advertiu-os de que não poderiam mais comer carne humana, pelo grave pecado e ofensa que isso representava contra Deus. E, para estimulá-los, repartiu muitos presentes, como camisas, bonés e outras coisas mais, o que os deixou muito contentes. Essa nação dos guaranis fala uma linguagem que é entendida por todas as outras castas da província 34 e comem carne humana de todas as outras nações que têm por inimigas. Quando capturam um inimigo na guerra, trazem-no para seu povoado e fazem com ele grandes festas e regozijos, dançando e cantando, o que dura até que ele esteja gordo, no ponto de ser abatido. Porém, enquanto está 34 A língua guarani era, por isso, chamada de “língua geral” (N. do E.). 91 cativo, dão a ele tudo o que quer comer lhe entregam suas próprias mulheres ou filhas para que faça com elas os seus prazeres. São essas mesmas mulheres que se encarregam de tratá-lo e de ornamentá-lo com muitas plumas e muitos colares que fazem de ossos e de pedras brancas. Quando está gordo, as festividades são ainda maiores. Os índios se reúnern e adereçam três meninos de seis ou sete anos de idade e colocam-lhes nas mãos umas machadinhas de cobre. Chamam então um índio que é tido como o mais valente entre eles, colocam-lhe uma espada de madeira nas mãos, que chamam de macana, e o conduzem até uma praça onde o fazem dançar durante uma hora. Terminada a dança, dirige-se para o prisioneiro e começa a golpeá-lo pelos ombros, segurando o pau com as duas mãos. Depois bate-lhe pela espinha e em seguida dá seis golpes na cabeça, o que ainda não é suficiente para derrubá-lo, pois é impressionante a resistência que eles possuem, especialmente na cabeça. Somente depois de muito bater com aquela espada, que é feita de uma madeira negra muito resistente, é que consegue derrubar o prisioneiro e inimigo. Aí então chegam os meninos com as machadinhas, e o maior deles, ou filho do principal, é o primeiro a golpeá-lo com a machadinha na cabeça até fazer correr o sangue. Em seguida, os outros também começam a golpear e, enquanto estão batendo, os índios que estão em volta gritam e incentivam para que sejam valentes, para que tenham ânimo para enfrentar as guerras e para matar seus inimigos; que se recordem que aquele que ali está já matou sua gente. Quando terminam de matá-lo, aquele índio que o matou toma o seu nome, passando assim a chamar-se como sinal de valentia. Em seguida, as velhas pegam o corpo tombado, começam a despedaçá-lo e a cozinhá-lo em suas panelas. Depois repartem entre 92 si, sendo considerado algo muito bom de comer, e voltam às suas danças e cantos por mais alguns dias, como forma de regozijo 35 .” Referências CABEZA DE VACA. Naufrágios e comentários. Porto Alegre: L&PM, 1999. MENDES Jr. et al. Brasil História: colônia. São Paulo: Brasiliense,1977. PRADO Jr. Evolução política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1942. S. CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. SOUSA, Pero Lopes. Diário de navegação. Cadernos de História. São Paulo: Parma, 1979. VIANA, Helio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1972. 35 Hans Staden, aventureiro alemão que foi durante alguns anos prisioneiro dos tupiniquins, em Ubatuba, São Paulo, descreve o ritual antropofágico de maneira muito semelhante (N. do E.). 93 7 JESUÍTA GAÚCHO SE DOUTORA EM BUENOS AIRES __________________ Luiz Osvaldo Leite ∗ Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS O intercâmbio entre jesuítas argentinos e brasileiros do Sul não foi, ao longo dos tempos, freqüente. Em quase duzentos anos, desde 1814, data da restauração da Ordem (supressa em 1773) por Pio VII, os contatos foram raros. Mas, alguns brasileiros estudaram Teologia em Buenos Aires e alguns argentinos fizeram a última etapa de sua formação em Pareci Novo, RS, tal como Agato Pucheta, Alexandre del Corro, Atanásio Sierra, Hector Grandinetti e Otmar Wiedmann. E os Padres Carlos Teschauer e Arnaldo Bruxel pesquisaram história nos arquivos platinos. Ora, nesse trabalho, queremos registrar um fato raro: o doutoramento do Pe. Henrique Antônio Steffen, SJ, na Argentina. Tratou-se do primeiro Doutor em Filosofia nascido no Rio Grande do Sul. Pe. Steffen foi destinado a Roma para doutorar-se em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde permaneceu em 1939 e 1940, residindo no Colégio Pio Brasileiro. A situação romana, como, aliás, de toda Europa, com a II Guerra Mundial se tornara dramática, com dificuldade, inclusive, para a alimentação. Pe. Steffen, que aprontara tese sob a orientação do Pe. Naber, SJ, sentiu que não poderia defendê-la na Cidade Eterna. O boletim da Província Sul-Brasileira da Companhia de Jesus, Pela ∗ Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Pesquisador do Pensamento Sul-rio-grandense. Av. Ganzo, 385/706, CEP 90150-071, Porto Alegre, RS, Brasil. 94 Província, em sua edição de julho-agosto de 1940, página 02, noticia laconicamente: “Do Rio de Janeiro veio a notícia que o Pe. Steffen embarcou em Gênova, no vapor Almirante Alexandrino do Lloyd Brasileiro”. Assim, no Pio Brasileiro só restavam 26 alunos. Em outubro do mesmo ano, Pela Província, página 02, registra: “Pe. Steffen tendo feito seu retiro na Casa da Gávea e os últimos votos em Nova Friburgo, RJ, gentilmente recebido e festejado pelos membros daquela comunidade, encontrou-se com o R. Pe. Provincial, Pe. Walter Hofer, SJ, em Florianópolis, e continuou viagem para São Leopoldo, onde se prepara para uma cadeira de Filosofia”. Mas, um problema continuava no ar: como ficava a situação acadêmica do Pe. Steffen? Com tese pronta em Roma, quando e onde defenderia seu trabalho? Depois de reflexões e contatos, ficou decidido que Pe. Steffen defenderia sua tese na Faculdade São Miguel de Buenos Aires, Argentina. O boletim Pela Província, em maio de 1941, página 04, detalha o acontecimento: “O Pe. Antônio Steffen viajou de vapor, em um dia, até Pelotas, em outro carro-motor até Montevidéu e de lá até Buenos Aires de ônibus e vapor. Embora chegasse sempre a desoras, foi recebido com muita caridade pelos nossos Padres da Província irmã. No dia 31 de março chegou ao Colégio Máximo em São Miguel, sendo o dia 05 de abril escolhido para a defesa da tese. O tema, combinado há mais de ano, com o Pe. Naber professor da Gregoriana, é o seguinte: “Die Erkenntnissicherung bei Nicolai Hartmann”. Este filósofo é professor da Universidade de Berlim e foi o autor acatólico que mais se afastou do idealismo kantiano e mais se aproximou do realismo neo-escolástico. Fora do original alemão, o doutorando elaborou ampla edição latina e, a pedido do R. Pe. Reitor Pita, fará outra portuguesa que será traduzida ao castelhano e publicada pela Faculdade de São Miguel. Deram parecer sobre a tese o R. Pe. Henrique Pita e o R. Pe. Ismael Quiles. Fizeram parte da banca examinadora na ocasião da defesa da tese, fora os 95 dois citados, os Padres João Bussolini, Antônio Ennis e Tomaz Mahon. Esteve presente todo o corpo docente e discente do Colégio Máximo. O resultado “magna cum laude” alegra a província não menos que ao Pe. Steffen. Voltou na sexta-feira santa e já leciona “Introductio in Philosophiam”. Os textos alemão e latino da tese ainda não foram publicados, permanecendo inéditos. Mas a versão castelhana está publicada na revista argentina Ciencia y Fe. Pe. Steffen é citado como destaque neo-escolástico da Faculdade São Miguel em obra de Luis Farre, onde equivocadamente é apresentado como pensador estrangeiro. Mas quem foi Pe. Henrique Antônio Steffen, SJ? É o que tentaremos responder, logo a seguir. Os dados, aqui registrados, foram extraídos dos Catálogos das Províncias Jesuítas, das folhas noticiosas Pela Província e Informativo da Província Sul-Brasileira e, dos Necrológios publicados. Formação Religiosa e Acadêmica Pe. Steffen nasceu aos 27.01.1906, em São Benedito, Tupandi, RS. Faleceu em São Leopoldo, aos 05.05.1993. Ingressou na Companhia de Jesus aos 02.03.1923, no Colégio São José, de Pareci Novo, RS. Durante dois anos, fez seu Noviciado, tendo como mestre de noviços o Pe. Leonardo Arntzen, SJ (1879-1965), destacado jesuíta, provincial do sul do Brasil por duas vezes: de 1931 a 1940 e de 1946 a 1952. Foram colegas de Pe. Steffen o Pe. Balduíno Rambo, SJ (19051961), cientista e catedrático fundador da Faculdade de Filosofia da Universidade de Porto Alegre, mais tarde URGS e UFRGS; Pe. Bertoldo Braun, SJ (1901-1964), destacado educador e diretor do Colégio Catarinense de Florianópolis; o brilhante e discutido Huberto Rohden (1893-1981), autor de extensa obra filosófica e teológica, ainda hoje difundida, que ingressou na 96 Ordem já sacerdote. Os primeiros votos perpétuos de Pe. Steffen foram pronunciados em março de 1925. Em 1925 e 1926, Pe. Steffen completou Curso de Retórica e Humanidades no mesmo Colégio São José, ocasião em que conseguiu aprofundar seus estudos de Grego, Latim, Alemão, Português e História. Seu grande mestre, nesta fase, foi o Pe. Henrique Lanz, SJ (1870-1942), exímio conhecedor das humanidades greco-romanas. De 1927 a 1929, cursou Filosofia no Seminário Central, de São Leopoldo, RS. Foram seus professores principais — leitores como eram denominados — da Filosofia Neo-Escolástica o Pe. Leonardo Mueller, SJ (1884-1945), Pe. João Rick, SJ (1869-1946) e o Pe. Eduardo Gierster, SJ (1870-1940). Em disciplinas complementares ouviu preleções do Pe. Luis Angerpointner, SJ (1887-1966) em História da Filosofia, do Pe. Jacó Racke, SJ (1884-1968) em Questões Conexas de Filosofia com Física, Química e Matemática e, do Pe. Júlio Poether, SJ (1869-1939) em Questões Conexas de Filosofia com Biologia e Fisiologia. O curso de Teologia desenvolveu-se de 1934 a 1937 no Seminário Central de São Leopoldo, RS. Figura eminente do curso foi o Pe. José Mors, SJ (1887-1960), responsável pelas disciplinas Teologia Fundamental e Teologia Dogmática. Pe. Mors é autor de memorável obra, em oito volumes, cuja primeira edição sob o título Institutiones Theologiae Dogmaticae (6 volumes) e Institutiones Theologiae Fundamentalis (2 volumes) foi publicada pela Editora Vozes de Petrópolis, RJ, de 1937 a 1943, e cuja segunda edição sob o título Theologia Fundamentalis (2 volumes) e Theologia Dogmatica (6 volumes) foi publicada pela Editorial Guadalupe de Buenos Aires, de 1950 a 1955. Teve como colaborador o Pe. Godofredo Kessler, SJ (1899-1967), brilhante, mas socrático professor, que não nos deixou obra escrita, uma vez que destruía todos os seus apontamentos no final de seus cursos. Também lecionaram no curso o Pe. João Baptista Reus, SJ (1868-1947), autor do livro 97 Curso de Liturgia (Vozes, 1939): Liturgia; Pe. Cândido Santini, SJ (18991977), autor de Summula luris Publici Ecclesiastici (Seminário Central de São Leopoldo, 1948, 4ª edição): Teologia Moral e Direito Canônico; Pe. Henrique Liese, SJ (1861-1941): Exegese do Velho e do Novo Testamento; Pe. Eduardo Gierster, SJ: Teologia Fundamental. Em 1938, Pe. Steffen completou sua formação jesuítica com a chamada Terceira Provação, no seu conhecido Pareci Novo. Seu Instrutor foi o suíço Pe. Ludovico Zuber, SJ (1878-1961). Foram seus colegas, nesta etapa, Pe. Francisco Bragança, SJ (1907-1993), fundador e primeiro reitor da hoje UNICAP, de Recife; Pe. Roberto Sabóia de Medeiros, SJ (1905-1955), apóstolo da ação social e fundador da FEl, de São Paulo; Pe. Felix de Almeida, SJ (1908-2002); Pe. Afonso Rodrigues, SJ (1904-2002); Pe. Afonso Hansen, SJ (1906-1984) e Pe. Balduíno Rambo, SJ. Em 1939 e 1940 fez biênio de Filosofia como acima referíamos. Atividade Docente De 1930 a 1933, Pe. Steffen lecionou Religião, Português, Latim e, principalmente, Inglês no Colégio Anchieta, de Porto Alegre, RS. O Anchieta vivia um dos seus mais significativos momentos. Pe. Steffen conviveu com mestres destacados, entre os quais cabe destacar: o Pe. Werner von und zur Mühlen, SJ (1874-1939), professor de Filosofia e apóstolo da inteligência gaúcha; Pe. Henrique Koehler, SJ (1869-1947), latinista exímio e autor de conhecidos dicionários latinos editados pela Livraria do Globo; Pe. Luís Gonzaga Jaeger, SJ (1889-1963), membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e autor de Os Três Mártires Ro-Grandenses; Pe. Maximiliano Krause, SJ (1869-1952), professor de Física e Química; Pe. Adalberto Heeb, SJ (1861-1941), editor de obras didáticas para o ensino do Inglês como Made Easy e English Primer; Pe. Leonardo Fritzen, SJ (18851965), professor de Português e responsável pela famosa polêmica com Erico 98 Verissimo; Pe. Lourenço Schneider, SJ (1876-1960), professor de Latim e Matemática; Pe. Pio Buck, SJ (1883-1972), cientista e naturalista; Pe. Max Schneller, SJ (1883-1939); Pe. Jorge Sedelmayer, SJ (1876-1949) e Pe. Carlos Souza Gomes, SJ (1879-1936), o inesquecível Tio Quincas. Foi seu Reitor o Pe. Henrique Book, SJ (1872-1946), eminente figura de educador, profundo conhecedor da legislação de ensino e convicto humanista, autor do ensaio Latim, Base do Ensino Secundário, publicado no Relatório do Colégio Anchieta de 1944. Mas a precípua atividade do Pe. Steffen foi o magistério superior de Filosofia, exercido ininterruptamente por 28 anos, de 1941-1969, em São Leopoldo, no Seminário Central, na Faculdade de Filosofia do Colégio Máximo Cristo Rei e nas Faculdades de São Leopoldo, hoje UNISINOS, onde lecionou Introdução à Filosofia, Lógica Formal e Dialética, Crítica (Teoria do Conhecimento), Ontologia, História da Filosofia, Textos de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino. Nestes anos foi colega de eminentes professores e pensadores como Pe. Ernesto Rueppel. SJ (1902-1993), Pe. Pedro Zahnen, SJ (1897-1952), Pe. João Nepomuceno Haas, SJ (1912-1993), Pe. UrbanoThiesen, SJ (19091970), Pe. Mathias Schmitz, SJ (1916-1975), Pe. Jacó Racke, SJ (18841968), Pe. Luis Mueller, SJ (1894-1987), Pe. Antônio Loebmann, SJ (18991980), Pe. Otmar Mörschächer, SJ (1909-1998), Pe. Pedro Calderan Beltrão, SJ (1923-1992), Pe. José Soder, SJ (1920-1998), Pe. Edmundo Dreher (1909-2002), Pe. Arthur Bohnen, SJ (1917-2003), Pe. Walter Hofer, SJ (18971961), Pe. Godofredo Schmider, SJ (1906-1971), Pe. Odilon Jaeger, SJ (1922-1980), Pe. José Hauser, SJ (1920-2004), Pe. João Ruff, SJ (1915), Pe. João Oscar Nedel, SJ (1921), Pe. L. B. Puntel, SJ (1935), Harry Schwengber (1915) e Carlos Roberto Cirne Lima (1931). Pe. Steffen viveu a evolução do Ensino Superior em São Leopoldo. Foi aluno e professor do Seminário Central. Construído o Colégio Cristo Rei 99 (1942) lá residiu e lecionou. Vivenciou a criação do curso oficial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Cristo Rei (1953), da qual se tornou professor fundador, e a sua abertura para alunos leigos, isto é, não-eclesiásticos (1968). Contrariado, assistiu a transferência dos estudantes filósofos jesuítas da Faculdade Cristo Rei para a Faculdade Nossa Senhora Medianeira, de Nova Friburgo, RJ (1965 e 1966). Em 1969, presenciou a concretização do sonho do fundador do Ensino Superior oficial de São Leopoldo, Pe. Urbano Thiesen, SJ: a criação da Universidade, hoje denominada UNISINOS. Domínio Lingüístico Pe. Steffen dominava várias línguas: Hebraico, Grego, Latim, Alemão, Inglês, Francês, Italiano, Espanhol e Português. Depois do Vaticano II, ao surgir a possibilidade de se rezar a Liturgia das Horas em língua diferente do Latim, pediu aos superiores a faculdade de poder rezar os Salmos em Hebraico. “Sei muitos de cor nessa língua, vendo e sentindo que a melhor tradução nunca deixa de ser apenas tradução”, escreveu ele. Até o fim da vida conservou consigo diversas edições bíblicas em Hebraico. Suas aulas, nas faculdades eclesiásticas onde lecionou eram ministradas em perfeito Latim. Ao deixar o magistério, destacou-se em traduções, tanto de línguas estrangeiras para o Português, como deste para outros idiomas. Traduziu obras de Filosofia, Teologia, Biologia, Botânica, História, Artes e Ascética. Merecem destaque: Do Alemão para o Português: − J. B. Lotz. Ontico-ontológico: a tensão fundamental da Filosofia, particularmente hoje. Estudos, abr./jun. 1957. − J. B. Lotz. O existencialismo à luz da Encíclica Humani Generis, − Hans Pfeil. Introdução à Filosofia. Editora Presença. 100 − Constantino Koser. Origens e espírito primitivo da Ordem Franciscana. Vozes. − Jörg Splett. O homem na sua liberdade. Editora Loyola. − Paul Erbrich. Biologia molecular e evolução. Polígrafo da UNISINOS. − Karl Hermann Schelkle. Introdução ao Novo Testamento. Editora Loyola. − Karl Hermann Schelkle. Teologia do Novo Testamento. 1. A criação. Editora Loyola. − Karl Hermann Schelkle. Teologia do Novo Testamento. 2. Deus estava em Cristo. Editora Loyola. − Wolfgang Kayser. Das Groteske. Editora Perspectiva. − Pe. Reus. Diário. Notícias para os nossos Amigos e Livro da Família. − Heinrich Wöfflin. Renascença e Barroco. Editora Perspectiva. Do Italiano para o Português: − Projeto das novas Constituições das Irmãs Missionárias de S. Carlos Borromeo. Edição Geral Especial. − Dois artigos sobre as Missões das revistas Popoli e Missioni. Do Latim para o Português: − Martius. Descrição de plantas. − José De Vries. Ontologla. São Leopoldo. Do Inglês para o Alemão: − Descrição de plantas. Do Português para o Alemão: − Pater Reus, SJ. Einer neuer grosser Halfer. Verlag S. Grignionhaus. Alötting. − Material para a Associação Comercial de São Leopoldo. 101 − Trabalhos sobre oligoquetos. Do Português para o Inglês: − Material para a Associação Comercial de São Leopoldo. − Trabalhos sobre oligoquetos. Além das traduções acima referidas Pe. Steffen fez adaptações didáticas de obras, merecendo referência as do Latim para o próprio Latim: − J. B. Lotz. Theses ex Ontologia. Seminário Central, São Leopoldo, 1941 (mimeografada). − J. De Vries. Ontologia. São Leopoldo, s.d. (mimeografada). − J. De Vries. Crittica: in compendium redacta. São Leopoldo, 1951 (mimeografada). Trabalhos publicados − O antiintelectualismo de Bérgson. Anuário do Seminário Central e Colégio Cristo Rei, São Leopoldo, 1941. − Inteligência e vontade. Revista Estudos, Porto Alegre, n. 15 (1943). − O princípio de causalidade é analítico ou não? Revista O Seminário, São Leopoldo, n. 20 (1945). − El problema de la certeza de conocimiento en Nicolás Hartmann. Revista Ciencia y Fe, Buenos Aires, n. 2(1945). − No limiar da crítica. Revista O Seminário, São Leopoldo, n. 21(1946). − Logica formalis. Canoas: Ed. La Salle, 1949 (em Latim). − Demonstração e caráter lógico dos princípios de causalidade. Revista Organon, Porto Alegre, n. 1(1956). − Kierkegaard e a religião. Revista Estudos, Porto Alegre. jan./mar. (1958). 102 8 ITÁLIA SOLTA A GARGANTA _________________ Décio Andriotti ∗ O gosto pela ópera, que dinamizou liricamente o Rio Grande do Sul, nada tem a ver com as colônias italianas e alemãs. Até pelo contrário. Porto Alegre e a metade sul do Estado é que plantaram na alma de boa parte da população gaúcha — do século XIX e primeiras décadas do XX — a paixão pela ópera, principalmente a italiana. Antes mesmo da implantação das colônias italianas. A grande contribuição musical dos imigrantes foi feita por outras vias. Apesar do excelente desenvolvimento socioeconômico das nossas regiões alemãs e italianas, elas não tiveram concomitantemente a sensibilidade de construir teatros específicos. A igreja era prioridade quase absoluta. Enquanto isso a metade sul luso-espanhola além das igrejas erguia teatros que tinham a ópera como principal escopo. Companhia lírica havia que até dedicava espetáculos no teatro em benefício da construção da igreja local, como foi o caso de Bagé. Dezenas desses teatros nasciam fácil do chão gaúcho luso-espanhol, como já advertimos citando-os no primeiro volume da 1 série Integração . Focalizaremos agora com detalhes importantes para este tema — e não abordados antes — o que significaram os italianos (da Itália!) na integração lírica Argentina-Brasil-Uruguai, particularizando o Rio Grande do Sul. A população da nossa região luso-espanhola fazia intercâmbio musical significativo com os países platinas e europeus. Importava ∗ Professor e historiador. Pesquisa a história da música erudita no Rio Grande do Sul. Praça Mal. Deodoro, 170/103. CEP 90010-300, Porto Alegre, RS, Brasil. 1 ANDRIOTTI, Décio. A ópera na integração. In: CLEMENTE, Elvo (Org.). Integração: artes, letras e história. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 19-48 103 instrumentos de tal modo que rara era a família de classe média que não possuísse algum, principalmente o piano. Avé-Lallemant assim relatou sobre São Gabriel de 1858 “chamou-me a atenção ouvir piano em não sei quantos lugares” 2 . E Hörnmeyer em 1850 escrevia que dentre os profissionais liberais mais bem pagos no Rio Grande do Sul estavam professores de desenho, canto e piano 3 . Existiam até professores itinerantes — quando não daqui — que vinham do Uruguai e da Argentina. Freqüentemente filhos iam a Montevidéu e Buenos Aires (bem mais que para a Europa) para aprendizagem ou aperfeiçoamento. Fundamentado numa feliz conjunção econômica e cultural, criouse um contexto musical que seguiu em gosto o rastro operístico traçado perto de nós pelos países do Prata. A nossa maior influência nascia dali e não do centro do País. O Prata, por sua vez, era alimentado por cantores, músicos e dançarinos que vinham do Velho Mundo; da Itália na maior parte. Geralmente organizavam-se em grupos (empresas) chamadas quase sempre de Companhia Lírica Italiana ou, pomposamente de Grande Companhia Lírica Italiana. Os melhores vinham já organizados da Itália; e as óperas cantadas invariavelmente em língua italiana, mesmo as alemãs e francesas como as de Wagner, Bizet ou Gounod, incluindo as operetas de Strauss, Lehár, Offenbach, etc. Por isso que o primeiro Wagner encenado no Rio Grande do Sul (Lohengrin, 1928) foi cantado em italiano tendo, no elenco, famosos como Carlo Tagliablue. Aliás, Carmen, só a conhecíamos em italiano. Pablo Komlos, com a OSPA, foi quem nos deu a primeira Carmen inteira em francês, o mesmo ocorrendo nos primeiros Wagner em alemão (Tanhäuser e Lohengrin). 2 AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). São Paulo: ltatiaia, 1980. p. 326. 3 HÖRNMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850. Porto Alegre: EDUNI-SUL, 1986. p. 100. 104 Vieram contudo para a América do Sul algumas raras companhias líricas francesas e alemãs cantando tudo em francês e alemão, respectivamente, mas sem receber o mesmo agrado do público em geral. Houve uma inglesa que só cantava em inglês, mesmo as óperas italianas: The barber of Seville (Rossini), The daughter of the regiment (Donizetti), ... Aliás foi uma temeridade desde a saída da Inglaterra em 1915 quando o navio escapou por pouco de ser afundado por um submarino alemão que o perseguia. Depois de apenas duas récitas no Teatro Coliseo de Buenos Aires, a companhia foi suspensa por falta de público. Os cantores ficaram em tal miserabilidade que artistas que estavam se apresentando no Colón, entre 4 eles Galli-Curci, deram concerto em benefício dos desafortunados . Casos semelhantes ocorreram com companhias italianas tanto na Argentina como no Brasil e no Uruguai, embora por outros motivos. Na integração também se contabilizam fracassos. Mas o sacrifício, o entusiasmo e o valor humano dessa gente se irmanaram para fundamentar nesses países, algo que permanece em parte até hoje. Repetindo, veio da Itália o maior número de grupos detentores da melhor qualidade. O incremento dessa migração ocorreu na segunda metade do século XIX coincidindo (e em conseqüência) na construção de teatros nos principais centros dos três países citados. O apogeu situa-se entre 1890 e 1930 porque os teatros, que já faziam realizações independentes das companhias líricas, passaram cada vez mais a organizar suas próprias temporadas, assumindo a escolha do repertório e partindo para contratações individualizadas através dos empresários de cada artista. Tanto nas representações líricas quanto nos recitais e concertos sinfônicos. Tudo acelerado pela facilidade dos meios de transportes e das comunicações. 4 DILLON, Cesar A. e SALA, Juan A. El teatro musical en Buenos Aires II. Buenos Aires: Ediciones de Arte Gaglianone,1999. Dillon e Sala fizeram e editaram pesquisas aprofundadas da ópera em Buenos Aires. Edições indispensáveis ao cultor do género. 105 A integração advém de outra forma: adaptando-se à realidade. Coproduções e tráfico de informações sobre cantores, músicos, diretores, cenógrafos. etc., até aprimoram certo intercâmbio. Foi o que viabilizou, por exemplo, montagens no Centro de Cultura Musical da PUCRS de Porto Alegre e no Teatro da OSPA. Ultimamente porém, o Teatro do SESI promoveu duas co-produções significativas: Turandot de Puccini (1997) e A Flauta Mágica de Mozart(1998). O melhor exemplo de co-produção foi Turandot porque teve orquestra da OSPA, maestro de Porto Alegre, coro da Argentina, coro do Uruguai, coro de Porto Alegre (UFRGS), direção cênica de uma irlandesa radicada na Itália, vestuário do Teatro Colón de Buenos Aires e, no naipe principal de cantores, cinco uruguaios, dois argentinos, um chileno e dois brasileiros. Turandot — que nunca fora encenada em Porto Alegre — chegou aqui através de um dos mais completos exemplos de produção integrada do Cone Sul. Nem mesmo A Flauta Mágica do Teatro do SESI, talvez a mais bela e criativa apresentação lírica da nossa cidade nas últimas décadas e com elenco e encenação internacionais teve, como integração a que nos referimos, a abrangência daquela Turandot. *** Retornemos ao passado. Das companhias líricas italianas, das quais saímos beneficiados direta ou indiretamente, somos devedores de créditos não só aos grupos organizados mas particularmente aos empresários organizadores. Na sua maioria eram italianos natos com experiência de reunir cantores e músicos já no Velho Continente. E o principal dentre eles, o maior nome indiscutivelmente, foi Walter Mocchi (1870-1955). Trouxe ou contratou para a América do Sul cantores extraordinários. Citaremos apenas alguns: Galli-Curci, Muzio, Dalia Rizza, Elvira De Hidalgo, Giacomucci, Emma Carelli 106 (sua primeira esposa 5 ), Rosa Raisa, Toti dal Monte, Bidu Sayão (sua segunda esposa 6 ), Storchio, a gaúcha Zola Amaro, Agostinelli, Besanzoni, etc., Caruso, Gigli, Schipa, Lázaro, Fleta, Lauri-Volpi, de Muro, Tedeschi, Pertile, De Lucca, Tita Ruffo, Stracciari, Berardi, Danise, Dentale, o brasileiro Mário Pinheiro, Segura Tallien, Damiani, Nazareno De Angelis, Carlo Galeffi, Apollo Granforte, etc., maestros como Gino Marinuzzi, Felix Weingartner, Arturo Padovani, Pietro Mascagni, Teófilo De Angelis, Edoardo Vitale, o brasileiro Alberto Nepomuceno, etc., dançarinas corno Ana Pavlova, Maria Oleneva, ... 7 etc., etc., etc. , (Incrível! Mas quem foi este cara?) O entusiasmo, o tino, o dinamismo, o conhecimento das expectativas do público, o senso para perceber valores emergentes, a coragem para investir na arregimentação dos melhores artistas para conseguir formar sempre a melhor companhia lírica fizeram dele o maior expoente empresarial da ópera em todos os tempos. O Rio Grande do Sul deve-lhe gratidão; entre outros benefícios, projetou profissionalmente a pelotense Zola Amaro e oportunizou a estréia mundial da ópera O Rei Galaor do porto-alegrense Araújo Viana, em 29.09.1922 sob a direção de Francisco Braga no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Importante seguir a trajetória dele até chegar ao cume. Antes de empresário foi socialista radical. Aos trinta anos era proprietário e redator-mor de um dos principais jornais do socialismo italiano, L’Avanguarda Socialista, que tinha posição mais à esquerda da esquerda. Lutou e conseguiu levar os trabalhadores de Milão para uma greve geral em setembro de 1904. Durante cinco dias paralisou a cidade. Pode-se imaginar as antipatias que carreou 5 Emma Carelli (1877-1928) casou com Mocchi em 1898. Muito jovem já cantava Desdemona no Scala com Tamagno ou Bohème com Caruso e Chaliapin. Organizou com o marido turnês pela América do Sul. Admirada por Toscanini, Mascagni e Leoncavallo. Morreu num acidente de automóvel. 6 Bidu Sayão (1902-1999) era 32 anos mais moça. Separou-se dele em 1947 e casou com o barítono Giuseppe Danise (1883-1963). Ambos muito favorecidos por Walter Mocchi. 7 Tentou levar Vicente Celestino de 19 anos para Milão; com tudo pago para que tivesse a melhor formação. Percebeu que o garoto possuía muito para tomar-se um grande barítono ou tenor dramático. Vicente Celestino não aceitou a oferta. 107 para si e para a esposa porque Emma Carelli, embora não posicionada como o marido, era abertamente simpatizante da classe operária. Embora primadona reconhecida do Scala, passando pelas ruas de Milão ouvia com freqüência ci ritroveremo al lírico (nos encontramos na ópera). Clara ameaça de vaias 8 . No ano seguinte ele até poderia chegar ao legislativo porque fora indicado por sete colégios eleitorais. Passados esses anos de vivência política, Walter Mocchi, foi se convertendo cada vez mais num empresário lírico, evidentemente influenciado pela carreira da esposa. Pensava e falava bastante sobre Brasil e Argentina. Antevisão de que Itália, Argentina e Brasil acabariam sendo seus países irmanados através da ópera. O primeiro grande passo foi o de ser empresário do Teatro Adriano. Em seguida tornou-se nada menos que o arrendatário do Teatro Costanzi (Teatro dell’Opera) de Roma, fazendo de Emma Carelli a Diretora do Teatro. O Teatro Costanzi transfigurou-se e durante os anos seguintes revelou-se o grande rival do Teatro alla Scala. Rival mas não adversário porque Mocchi conseguiu que os dois teatros tivessem um intercâmbio tal que se homogeneizasse pelo alto a qualidade dos espetáculos. Assim que Toscanini, Serafin, Vitale, De Angelis, Pietro Mascagni e Richard Strauss foram maestros agenciados também por ele, além de ajudar a projetar jovens como Vittorio Gui. Não esquecendo totalmente o passado socialista criou os primeiros sindicatos de agentes teatrais, Sin, Stia e La Teatral, enfrentando deboches da imprensa 9 . A partir de então, Mocchi e Carelli fizeram do Costanzi o grande distribuidor lírico para Argentina, Brasil e Uruguai. Com as inaugurações do 8 CARELLI, Augusto. Emma Carelli: trent’anni di vita del teatro lírico. Roma: Casa Libraria Editrice, 1932. 9 Gazzeta dei Teatri de Milão (10.05.1923) criticava dizendo que era o “esordio” de um novo gênero. 108 novo Colón (1908) e do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1909), a perspectiva multiplicou-se geometricamente. E a Empresa La Teatral de Mocchi foi a primeira a se apresentar com temporada de ópera no Municipal (de 20.07 a 08.08.910) 10 . Eis o seu manifesto: Congreguemos todos esses teatros sul-americanos em um ‘trust’, chefiados por uma só associação tendo por base o teatro italiano, para que se possa organizar temporadas operísticas de primeira grandeza. Será fácil recolher a fina flor da arte lírica italiana porque a perspectiva de um trabalho estável, duradouro e bem remunerado, atrairá para nós um grande número de artistas. Do lado empresarial a expansão da idéia não deixará de crescer e sendo assim ficam anuladas todas as concorrências na América 11 . A única idéia com conotação negativa para os dias de hoje seria a de “trust”. Não o era para a época e nem para o socialismo que sempre admitiu-a como controle estatal. Mocchi originariamente um nacionalista, mutou para ítalo-platino-brasileiro e até casou mais tarde com a brasileira Bidu Sayão. Importante que como empresário nem falava de lucros nesse manifesto mas preocupa-se com a boa remuneração dos artistas. Por outro lado fica bem clara a intenção de conseguir o máximo de qualidade para os espetáculos dos teatros sul-americanos, anulando também a concorrência das muitas companhias líricas mal organizadas, em constantes lutas prejudiciais entre elas, com pouca qualidade e que, com o nome de Companhia Lírica Italiana, prejudicavam a imagem tradicional da cultura peninsular. 10 Com elencos sempre renovados voltará a se apresentar várias vezes até 1926. Semelhante ocorrendo com o Colón e o Coliseo de Buenos Aires. Com isso o Coliseo elevou-se ao mais alto nível de sua história. 11 CARELLI, 1932 109 Fez um contrato com o duque Uberto Visconti di Modrone 12 , presidente da sociedade mantenedora e diretiva do Scala para que esse teatro participasse com o Costanzi e assim ripetere al Brasile e in Argentina quanto di più sontuoso Scala e Costanzi avevan rivelato nelle loro grandi stagioni italiane (repetir no Brasil e na Argentina o quanto de mais belo e de mais majestoso Scala e Costanzi tinham mostrado nas suas grandes temporadas italianas) 13 . Isto foi feito superando as expectativas pelo que se observa lendo os jornais, revistas e outras publicações da época. Acontece que, ao passar das temporadas, Mocchi foi derrubando fronteiras políticas e organizando grupos numa ampla integração internacional, para maior receptividade de brasileiros, argentinos e uruguaios. Recebeu criticas e novamente da Gazzetta dei Teatri de Milão comentando a formação do próximo grupo que viria para cá: “O elenco de artistas compõe-se de vinte e nove participantes: sete alemães, cinco franceses, cinco argentinos, dois espanhóis e dez italianos. Fechando a conta: dezenove estrangeiros e dez dos nossos. E a respeito dos maestros: dois italianos e um alemão” (o alemão era “Riccardo Strauss”). Mocchi tinha um bom relacionamento com os elencos e com a imprensa. Mas ao mesmo tempo era exigente e político com os cantores. Sabia perfeitamente que um mesmo cantor na mesma ópera se uma noite cantava bem na outra poderia ser diferente. Necessitava de alternâncias para rotação. Em 1915 levou no grupo quatro tenores de primeira linha para o Colón: Caruso, Lázaro, De Muro e Tedeschi 14 . Caruso era tradicionalmente um Radamés incomparável e parecia insubstituível. Aconteceu que justamente numa Aida ele esteve mal e a crítica não perdoou. Aida seria 12 Tio do cineasta Luchino Visconti. O pai de Luchino, Giuseppe, também pertenceu à sociedade fundada pelo avô Guido, juntamente com Arrigo Boito e Arturo Toscanini. Ver La Scala Racconta de Giuseppe Barigazzi. Milão: BUR, 1991. 13 CARELLI, 1932 14 Alfredo Tedeschi (Alfio Tedesco) cantou mais vezes no Metropolitan (N. York) do que Caruso, Gigli, Lázaro, Del Monaco, Schipa, Björling, Corelli ou Kraus. Ver Annals of the Metropolitan Opera. New York: The Metropolitan Opera Guild, Inc., 1989. 110 repetida em seguida, no domingo. Mocchi substituiu Caruso por De Muro. De Muro soube pelos jornais de manhã que seria ele quem cantaria Aida. Correu para falar com Mocchi e encontrou-o com Caruso. Cumprimentou Caruso “como estás?”. Caruso: “não leste os jornais?” De Muro virou-se então para Mocchi: “que jogo é este?” Mocchi: “jogo? Esta é a tua sorte. Se cantares como em Roma, terás tudo a ganhar 15 . Foi um sucesso de De Muro, mas Caruso voltou em outra noite e aí público e crítica viram e ouviram novamente aquele gênio consagrado. Todo este relato tem como finalidade mostrar a autoridade e a compreensão de um empresário especial que sabia substituir no momento oportuno. Como um grande técnico de futebol o faz ao substituir corretamente a estrela que não está bem. Preservar o patrimônio humano e sem desintegrar o grupo. *** 15 DEFRAIA, Antonino. Bernardo de Muro. Bolonha: Bongiovanni Editore, 1995. 111 Fig. 1. O esbelto Theatro Carlos Gomes de Uruguaiana. Infelizmente sacrificado em sinistros. 112 Fig. 2. O Theatro Sete de Abril de Pelotas já nos anos quarenta. Possivelmente seja o mais antigo do Brasil em funcionamento contínuo. A data da inauguração (1834) está no alto, à esquerda. Ali se apresentou a Companhia Galli-Curci-Lázaro em 1915. 113 Fig. 3. Walter Mocchi (1870-1955). Nenhum outro empresário conseguiu tanto na história da ópera. Foi o grande integrador lírico da América do Sul. Projetou a pelotense Zola Amaro e oportunizou a estréia mundial da ópera. O Rei Galaor do porto-alegrense Araújo Viana. Fig. 4. Tito Schipa (1888-1965). Walter Mocchi foi seu principal empresário. Esteve algumas vezes no Rio Grande do Sul cantando em teatros e cinemas. Ele e Gigli patrocinaram os mais famosos falsetes do século. 114 Fig. 5. Bidu Sayão (1902-1999) em Gilda no Rigoletto. Segunda esposa de Walter Mocchi e contratada por ele. Cantou em várias cidades gaúchas, inclusive São Gabriel. Memorável atuação na temporada lírica do Centenário Farroupilha 1935) no Theatro São Pedro. Fig. 6. Amelita Galli-Curci (1882-1963) A mais bela voz de soprano lírico-ligeiro com coloratura, do século XX. Os Estados Unidos da América a conheceram e se extasiaram. Mas só depois de Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande e Bagé. 115 Fig. 7. Hipólito Lázaro (1887-1974). Tenor de excepcional registro e belíssimo timbre. Foi o predileto de Mascagni, e Puccini chegou a considerá-lo o melhor tenor da época. Fig. 8. Pôster do Coliseu Bagéense sobre as apresentações em Bagé (1915). 116 Terminada a temporada no Colón, Walter Mocchi levou suas estrelas com algumas modificações para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro 16 . Foram dadas 17 récitas de 3 a 19 de setembro. Passaram para São Paulo e lá, após encerrada a temporada, dissolveu-se o grupo conforme o previsto pela agenda empresarial. Amelita Galli-Curci e Hipólito Lázaro formaram então uma outra companhia, Galli-Curci-Lázaro, conservando a maioria dos cantores e o maestro Ricardo Dellera. Estréia no Teatro São Pedro do Rio de Janeiro em 06.10.1915 com Sonambula de Bellini. Já pela qualidade já pelos preços populares o sucesso das apresentações foi tanto que resolveram repetir em São Paulo. Vitoriosos resultados. Tiveram então a feliz idéia da vinda ao Rio Grande do Sul para grande gáudio dos pampas, embora naquele momento os pampas não pudessem ponderar ainda o quão significativo era esse porvir. Mesmo com as modificações (pequenas) feitas por Walter Mocchi, do Colón ao Municipal do Rio e as feitas por GaIli-Curci-Lázaro do Municipal ao São Pedro do Rio e dali ao São Pedro de Porto Alegre, o resultado desembarcado em Porto Alegre trazia nitidamente — embora em grau um pouco menor — o padrão Walter Mocchi. Vejamos os dois quadros: 16 Integrou-se ao grupo o tenor gaúcho de Livramento José Martins Pavão com formação européia. Mas Caruso só cantaria no Municipal em 1917, levado por Mocchi. 117 Dos 16 componentes básicos (porque certos co-primários eram contratados nas próprias cidades onde se apresentavam) que vieram a Porto Alegre, sete eram estrelas de Mocchi no Colón e cinco (também dele) no Municipal. Apenas quatro eram de Galli-Curci-Lázaro. Aristide Anceschi já era conhecido em Buenos Aires desde 1902. Não foi contratado para o Colón em 1915 porque possivelmente já tinha compromisso. Em junho e julho, por exemplo, cantava no Coliseo pela Cia. Caracciolo-Gubellini. Maria Viscardi, nascida na Umbria e perto de Roma, tinha elogiável registro de lírico spinto. Destacou-se em Aida, Tosca, Cavalleria, Gioconda e outros assemelhados. Contracenou com Anceschi ou Pinheiro várias vezes fora do Brasil. No ano de sua morte (1966) até saiu em Roma a obra biográfica Maria Viscardi, una vita 118 per il canto 17 . Recém terminara um contrato quando GaIli-Curci chamou-a daqui para cantar Tosca e Cavalleria. Mario Pinheiro ainda jovem tornou-se o maior expoente dos baixos brasileiros (provavelmente fosse um baixobarítono). Apareceria elogiado em atuações na Itália. Criou o papel de O Rei Galaor no Rio em 1922. Aida Poggetti, porto-alegrense, foi aluna do maestro Mário La Mura quando ele morava aqui e trazia companhias líricas. No ano anterior estreara no Theatro São Pedro, na ópera La Bohème, cantando na presença do Presidente do Estado Borges de Medeiros. Galli-Curci convidoua para fazer Musetta e saiu-se bem. Sua contratação foi também um gesto de interação da companhia com a Cidade. *** Fica evidente que tal companhia, a mais qualificada que passou por aqui, foi subproduto do dinamismo e das exigências qualitativas de Walter Mocchi. Embarcou no porto de Santos vindo no navio Itapuca expressamente fretado para esse fim. A Federação e Correio do Povo de Porto Alegre, Echo do Sul de Rio Grande e Diário Popular de Pelotas demonstravam ufana expectativa. Não escondiam o orgulho de que um tenor gaúcho pertencia à companhia. “Ouviremos nos Pagliacci o tenor brasileiro José Martins, riograndense, que há tempos viveu em nosso meio estudando medicina e cujos estudos abandonou para dedicar-se ao canto. Depois de um curso de quatro anos no conservatório, debutou em Milão com a referida ópera: tendo já cantado nos teatros municipais do Rio e São Paulo, recebendo consagração unânime da imprensa, conforme já publicamos. As localidades acham-se desde já à venda em a Livraria Americana...” 18 Homenagens, recepções calorosas, festejos, elogios, muitos elogios após cada performance. No dia 18, Amelita Galli-Curi completou 33 anos; até 17 DILLON, César A. e SALA, Juan. El teatro musical en Buenos Aires I. Buenos Aires: Ediciones de Arte Caglianone, 1997. 18 A Federação, 04.11.1915, p. 3. 119 jóias recebeu entre os presentes dados por fãs entusiasmados. Antes porém, no dia 8, foi recebida juntamente com o esposo por Pinheiro Machado, então vice-presidente do Estado. No dia seguinte foi a vez do Presidente Borges de Medeiros recepcioná-los no Palácio Piratini. Parece que naquela época, ópera e governo estavam mais integrados. A seqüência dos espetáculos em novembro foi assim: Rigoletto (6), Bohème (7), Lucia (8), Barbeiro (10), reprise de Bohème (11), Traviata (13), Os Puritanos (14), Tosca (16), Cavalheria e Palhaços (17), Sonambula (19). Eduardo Hirtz, proprietário e programador do Cine-Teatro Apoio, convidou a companhia para mais três espetáculos a preços populares, já que a lotação — que se esgotou era mais que o dobro da do Theatro São Pedro. No sábado (20) foi Tosca. No domingo (21) à tarde, Rigoletto (com a dupla Galli-CurciLázaro) e, à noite, Cavalheiria e Palhaços, finalizando com Galli-Curci cantando a Ária da Loucura da Lucia, levando aquele povaréu “à loucura”. Muitas cadeiras extras tiveram que ser colocadas para esses espetáculos. Nos jornais saiu depois uma certa notícia curta, seca e significativa. “A cia. lírica que há pouco trabalhou no São Pedro, obteve em 12 récitas 50:055$000. Nos 3 espetáculos que realizou no Apollo a receita foi de 13:600$000, perfazendo o total de 66:355$000, ou seja, 4:423$000 por espetáculo”. Tempos transparentes! *** Pelo navio Javary foram para Pelotas. Parte do grupo hospedou-se no Hotel Aliança. Eram esperados ansiosamente e repetiu-se boa parcela do ocorrido em Porto Alegre: homenagens, recepções, carinhos, festejos, etc. Quatro foram as apresentações por assinatura 19 : Lucia, La Bohème, Rigoletto e Traviata; realizadas no Teatro Sete de Abril que possuía camarotes, cadeiras de platéia, balcões, galeria numerada e galeria sem 19 O Diário Popular de Pelotas noticiara diferentes programações de óperas durante os dias que antecederam a estréia. Significa que houve demora para optarem. 120 número (o tradicional “ poleiro”). A intenção inicial era que depois de Pelotas a companhia voltaria para o Rio. Razões desconhecidas mudaram a idéia anterior; para alegrias maiores nossas. Com isso foram dadas duas apresentações em Rio Grande e três em Bagé. No dia seguinte da Traviata de Pelotas o grupo foi de trem para Rio Grande e apresentou Traviata numa noite e Rigoletto na outra. Ambas no Polytheama que tinha melhores condições do que o Sete de Setembro 20 . Coincidentemente o Polytheama apresentara recentemente o filme mudo A Dama das Camélias de Giuseppe De Liguoro com Francesca Bertini e Gustavo Serena. A orquestra do teatro tocava Traviata durante toda a sessão. É de estranhar os constantes deslocamentos que na época faziam as companhias líricas, empregando pouco tempo para arrumar e desarrumar. Na época o público pouco se importava com cenários corretos ou guarda-roupa valioso e muito menos com idéias de marcação cênica. O que facilitava ainda mais deslocamentos e arrumações. As vozes é que faziam a alegria e o entusiasmo do ouvinte e também que os cantores ficassem quase todo o tempo com a cara virada para ele. Tal comportamento era comum na maioria dos teatros do mundo de então. De Rio Grande a companhia, também de trem, foi para Bagé. A imprensa local descreveu a festiva chegada dos artistas na estação. Por muito povo soltando vivas foram conduzidos aos alojamentos. Na praça, GalliCurci deu amostra do que faria no Coliseu Bagéense (seria algum trecho da Lucia ou do Rigoletto?). No dia primeiro de dezembro foi Traviata com Giacomucci e Lázaro. No dia 2, Lucia com Galli-Curci e Tedeschi. Na última récita (3), Rigoletto cantado por Galli-Curci e Hipólito Lázaro. Esta récita foi em benefício da Cruz Vermelha Italiana e com pensamento na distante Itália sangrando pela guerra. 20 O Echo do Sul de Rio Grande só confirmou a vinda no próprio dia da estréia porque nada estava decidido. A companhia pensava voltar para o Rio, após Pelotas. 121 Numa avaliação comparativa hoje as apresentações em Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande e Bagé estariam assim: Plácido Domingo e Angela Gheorghiou numa noite, em outra José Cura e Edita Gruberova, na seguinte Cura e Gheorghiou e noutra Domingo e Gruberova. Dormíamos de olhos abertos ou parece que a tradição insiste em sonhar esses fatos reais como se fossem lendas? *** Para este trabalho contribuiu principalmente parte das pesquisas feitas pessoalmente e in loco nos acervos do Teatro alla Scala de Milão, do Teatro Costanzi (Teatro dell’Opera) de Roma, do Teatro Colón de Buenos Aires, do Teatro Municipal de Santiago, do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, da Biblioteca Nacional de Madri, da Biblioteca de Florença (documentação sobre o Teatro Verdi), da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, da Biblioteca Rio-Grandense da cidade de Rio Grande, da Biblioteca Municipal de Pelotas, da Biblioteca Pública de Porto Alegre, do Museu Don Diogo de Souza de Bagé, do Museu Hipólito da Costa de Porto Alegre, do jornal Correio do Povo de Porto Alegre e da Memória RBS de Porto Alegre. In memoriam dos criadores e descritos em: • Palco, Salão e Picadeiro (Editora Globo, 1956) • O Teatro São Pedro na vida cultural do Rio Grande do Sul (DACSEC/RS, 1975). 122 9 O PANORAMA CELESTE DA BANDEIRA DO BRASIL ___________________ Geraldo Rodolfo Hoffmann ∗ ∗ Doutor em História Natural, Livre Docente em Geologia. Ex-Docente de Geologia e Paleontologia na PUCRS e UNISINOS. Av. General Barreto Viana, 599, CEP 91330-630, Porto Alegre, RS, Brasil. 123 O Panorama Celeste da Bandeira do Brasil: um posicionamento temático Os eventos sul-americanos, sejam quais forem suas naturezas, transcorrem sobre um substrato físico que é o próprio complexo geológico continental (vide Hoffmann, G. R., Origem e evolução da América do Sul. in: Integração 2002, Coleção Conesul 3). Mas acima dos habitantes deste continente descortina-se, à noite, um outro mundo peculiar: o exuberante panorama celeste austral. E justamente este panorama é representado, em parte, no campo circular da Bandeira Brasileira. Assim a presente abordagem entretece a configuração estelar e constelacional real com sua versão gráfica, tal como é efetivamente mostrada na Bandeira Nacional do Brasil. Bandeiras e sua diversidade Compondo as idéias, tanto convergentes como divergentes, dos conceitos constantes em dicionários e outras fontes, pode ser obtido um consenso que, em termos gerais, seria o seguinte: bandeira é uma peça de tecido (atualmente costuma ser empregado poliéster), geralmente retangular, de uma ou mais cores, podendo portar emblemas, símbolos ou legendas. Tal peça, que é presa à parte superior de uma haste de modo que possa desenrolar-se e flutuar, serve de emblema ou distintivo de uma nação, corporação, sociedade, partido ou congregação. O termo lábaro, embora freqüentemente empregado como sinônimo de bandeira, designa efetivamente, e numa conotação histórica restrita, o estandarte dos exércitos romanos (LABARUM era o estandarte imperial). A palavra flâmula, um diminutivo de flama e portanto com a conotação de pequena chama, designa genericamente bandeiras de formato 124 triangular, sobretudo pequenas. Costuma ser definida como urna bandeirola longa e estreita, terminada em bico ou farpada. Na presente abordagem, contudo, o enfoque é direcionado às bandeiras de nações, com a devida ênfase à Bandeira Brasileira. Em termos mundiais estariam em cogitação tanto as bandeiras de nações atuais como algumas de nações mais antigas que sofreram desmembramentos com movimentos de independência. Usualmente suas formas são retangulares, com as mais variadas proporções das duas medidas fundamentais. Neste caso, considerando a bandeira hasteada, a medida horizontal representa o comprimento e a medida vertical sua largura. Só raramente, como nos casos específicos da Suíça e do Vaticano, as bandeiras são quadradas. Também igualmente raras são as bandeiras recortadas, como no caso da Groenlândia (retangular com uma reentrância triangular na extremidade livre) e do Nepal (a dupla flama). No que diz respeito às cores, a bandeira pode mostrar um campo monocromático sem qualquer adorno, como por exemplo a de Fujaira, ou com eventuais figuras incorporadas. O mesmo é válido para bandeiras com campos pluricromáticos. Portanto as bandeiras podem apresentar campos de uma ou mais cores sem ornamentações, ou com tais campos constituindo substratos para outros elementos. No caso de ocorrerem duas ou mais cores, as zonas cromáticas podem ser separadas por linhas retas, curvas, sinuosas ou denteadas, gerando campos secundários circulares, quadrados, retangulares, triangulares ou de outros formatos; e isto nas mais variadas combinações. Na Bandeira Brasileira, a título de exemplificação, ocorrem três configurações geométricas concêntricas: a interna circular, a intermediária losangular e a externa retangular; de colorações respectivamente azul, amarela e verde. Embora o verde e o amarelo do retângulo e do losango, já 125 constantes no desenho original de Jean Baptiste Debret para a primeira Bandeira (concretizada logo após a Independência) tenham a conotação tradicional “das matas e do ouro”, como riquezas naturais do Brasil, sua origem remonta à permanência das cores das casas de “Lorena” (a família Habsburgo de Dona Leopoldina) e “Bragança” (Dom Pedro). Convém lembrar que de 1640 a 1683 estava em uso a Bandeira do Principado do Brasil, portando a grande esfera armilar da coroa portuguesa. Esta esfera armilar foi rein corporada à Bandeira Imperial do Brasil no período de 1822 a 1889. Posteriormente, com a consolidação da República, as armas imperiais, conservando a Cruz de Cristo e a esfera armilar com as estrelas representativas das províncias, deram lugar ao atual círculo da Bandeira. Embora nas bandeiras portadoras de estrelas a ocorrência destas seja predominantemente unitária, sendo poucos os casos de duas ou mais, o limite está praticamente em uma dezena. Assim muitas bandeiras (mais de duas dezenas) apresentam, em sua ornamentação, uma estrela de cinco pontas: Camarões, Chile, Coréia do Norte, Cuba, Gana, Guiné-Bissau, Ilhas Marianas do Norte, Libéria, Porto Rico, Senegal, Somália e Togo, bem como as repúblicas Árabe do lemen, Benin, Centro-Africana, lemen do Sul, Djibouti, Timor Oriental e Vietnã: em especial. Estrelas de cinco pontas com bordos marginados são constatadas na bandeira da Iugoslávia (duas concêntricas) e do Marrocos (com barras trançadas). Já a bandeira de Israel, ostentando a estrela de Davi com suas seis pontas, foge aos padrões usuais. Algo similar ocorre na bandeira de Burundi com suas três estrelas de seis pontas. Igualmente raros são os casos de estrelas com sete (Jordânia) ou mais pontas. Mas também não podem ser ignoradas as estrelas multirradiadas por excelência, já com uma nítida conotação solar (Argentina, China Nacionalista, Formosa (Taiwan), llhas Marshall, Nauru, Uruguai). 126 Nas bandeiras do Panamá, da República Democrática de São Tomé e Príncipe, e da Síria, ocorrem duas estrelas, enquanto nas do Iraque e da Micronésia constam, respectivamente, três e quatro estrelas. Nas bandeiras de Honduras, Novas Hébridas e Ilhas Salomão estão presentes cinco estrelas. Na de Niue e na da República Popular da China também ocorrem cinco estrelas, sendo uma grande e quatro pequenas. A bandeira das Antilhas Holandesas possui seis estrelas, enquanto as da Venezuela e de Grenada contam com sete cada uma. As bandeiras de Tuválu e Dominica ostentam nove e dez estrelas respectivamente. Em termos de bandeiras nacionais atuais não ocorrem casos de oito estrelas. Contudo uma curiosidade, que merece menção, é a da bandeira do Alasca (um dos estados norte-americanos). Nela constam oito estrelas que serão comentadas, comparativamente com a brasileira, no final do tópico O Céu Austral. Enquanto na maioria dos casos tais estrelas sejam os únicos elementos presentes, sobre um fundo usualmente homogêneo, por vezes estão conjugadas com outras figuras, tais como um arco lunar (crescente ou minguante), uma foice e um martelo ou tantas outras. Assim algumas variantes combinam estrelas com a Lua ou o Sol. Uma estrela acompanhada pela Lua constitui um par constatável em bandeiras como as da Argélia, da Mauritânia, do Paquistão, de Umn AlQaiwain, da Turquia e da Tunísia. Já a Lua acompanhada por quatro estrelas pode ser vista na bandeira da República de Comores, e por cinco estrelas na de Cingapura. A bandeira das llhas Maldivas só apresenta a Lua, ao passo que a da Malásia mostra a Lua e o Sol. Malavi e Antígua incluem, nas suas bandeiras, meio Sol cada uma. No caso do Nepal ocorre o Sol e um conjunto Lua-Sol. Em certas bandeiras as estrelas são acompanhadas por outros elementos, usualmente simbólicos. Uma estrela com uma foice ornamenta a 127 bandeira da República Popular do Congo, enquanto uma estrela acompanhada pelo conjunto da foice e do martelo consta das bandeiras da Ucrânia, da Bielorrússia e da extinta U.R.S.S. Na bandeira das Filipinas ocorrem três estrelas juntamente com uma “roseta”. Embora a temática fundamental desta abordagem seja a presença de estrelas nas bandeiras, é apropriado ressaltar outros tipos de inclusões ornamentais, responsáveis pelo aumento da complexidade nos desenhos das bandeiras. Dentro desta diversidade podem ser encontradas lanças, chaves, brasões, escudos, letras e inclusive mensagens em forma de textos. Até estilizações exóticas das mais diversas, como as três pernas radiadas (na realidade coxas e pernas em ângulos) da Ilha de Man. Finalmente temos os casos de animais típicos (“normais”), estilizados e míticos. No primeiro caso predominam as águias, embora possam ocorrer outras aves, além de leões e elefantes. Na categoria de animais estilizados temos as típicas águias duplas e as águias de duas cabeças e, no âmbito mítico, os dragões. Também vegetais, ou partes dos mesmos, são representados em bandeiras (folhas, ramos, palmeiras e árvores tradicionais). Como exemplos podem ser citadas as águias das bandeiras equatoriana, espanhola e mexicana, bem como o quetzal (uma das mais belas aves centro-americanas) na bandeira da Guatemala. A bandeira da Albânia mostra uma águia bicéfala, acompanhada por uma estrela. Em termos de mamíferos podem ser considerados os elefantes da antiga bandeira do Laos e o Leão da Etiópia. Na bandeira do Butão está um dragão. No âmbito botânico devem ser ressaltados o cedro da bandeira do Líbano e a folha de bôrdo da bandeira canadense. Um primeiro passo para representações constelacionais pode ser constatado nas bandeiras da Samoa ocidental e de Papua — Nova Guiné, ambas ostentando o Cruzeiro do Sul clássico, isto é, com suas cinco estrelas 128 fundamentais. A da Nova Zelândia, contudo, só apresenta as quatro mais luminosas. A bandeira da Austrália também mostra o Cruzeiro do Sul (quatro estrelas com sete pontas e a Intrometida com cinco) além de uma estrela adicional de sete pontas; embora na transição histórica da evolução desta bandeira tenha havido estrelas com oito pontas. Grande número de estrelas, acima de uma dezena, ocorre somente em quatro bandeiras: na da Birmânia, na das Ilhas Cook, na dos Estados Unidos da América do Norte e na do Brasil. Nos dois primeiros casos as bandeiras apresentam anéis constituídos por estrelas de cinco pontas: 14 no caso da Birmânia (Burma) e 15 no das llhas Cook. As outras duas ultrapassam bastante aqueles números (27 estrelas no caso do Brasil e 50 no dos Estados Unidos). Uma peculiaridade, no caso da bandeira da Birmânia, é que a versão mais antiga dispunha de um curioso desenho com apenas seis estrelas de cinco pontas, sendo uma central grande e cinco pequenas posicionadas entre as pontas da maior. As estrelas da bandeira norte-americana (a clássica Stars & Stripes Flag) estão perfiladas em alinhamentos geométricos lineares, segundo uma rede regular formada por cinco linhas de seis estrelas entremeadas por quatro linhas de cinco estrelas. Todas elas são de cinco pontas e de mesmo tamanho, independendo portanto de qualquer representação constelacional; constituindo assim um simples simbolismo numérico dos estados. Convém ressaltar que nesta bandeira atual as estrelas são brancas e estão concentradas num espaço retangular azul que ocupa uma posição esquerda superior. O restante do campo da bandeira é ocupado pelas faixas horizontais (listas) brancas e vermelhas alternadas. Na bandeira original (a primeira) havia as mesmas 13 faixas, que foram conservadas, e apenas 13 estrelas dispostas na forma de um anel (representando os estados originais). Posteriormente, com o aumento do número de estados, só foram alteradas a quantidade das estrelas e a sua disposição. 129 A Bandeira constelacionada A única bandeira detentora da representação de uma “paisagem celeste” é a brasileira, fato que, naturalmente, já determina a maior complexidade do seu desenho. Mas o que ela efetivamente mostra em seu campo estelar, o círculo que representa a configuração estilizada de uma esfera armilar? A representação é sobretudo simbólica, constituindo uma espécie de “licença poética gráfica” e não um mapa celeste com seu devido rigor científico. Como o campo estelar em questão está superimposto ao resto da Bandeira, é requerido um esclarecimento da associação. O delineamento básico da Bandeira obedece a um padrão geométrico modular (vide Prancha I), definido pela legislação brasileira, sendo o campo fundamental um retângulo modulado em 20 x 14. Portanto o módulo referencial (arbitrário) é empregado para definir um comprimento de 20 M (M por módulo) e uma largura de 14 M. O desdobramento deste campo fundamental, mediante duas medianas perpendiculares, define quatro retângulos menores e iguais que favorecem a seqüência do traçado. Pontos marcados num afastamento de 1,7 M das margens, sobre os extremos de cada mediana, permitem o traçado do campo losangular. Finalmente é traçada uma circunferência com raio 3,5 M, centrada no cruzamento das medianas. Tal linha (a circunferência) delimita o círculo da Bandeira. O bálteo, a faixa oblíqüa que representa uma fração da Eclíptica sobre o círculo, é obtido com o traçado de dois arcos paralelos, de raios 8 M e 8,5 M. Estes arcos são centrados num ponto situado na margem inferior da bandeira, num afastamento de 2 M à esquerda da mediana vertical. A palavra bálteo, embora esteja em desuso, corresponde à primitiva designação de faixa branca da Bandeira, pois cinge o círculo à semelhança da cinta do boldriê, isto é, uma correia a tiracolo (do latim balteurn: cinta, cinturão ou talabarte). Eclíptica, o plano orbital terrestre, também designa a 130 linha gerada pela projeção celeste do perímetro deste mesmo plano. Como o plano orbital da Lua possui uma inclinação de cinco graus e oito minutos de arco, em relação ao plano da órbita da Terra, a posição do nosso planeta irmão (denominado satélite por tradição) pode alcançar tal amplitude angular de ambos os lados da linha da eclíptica. Estes limites, ao norte e ao sul da linha, definem a faixa da eclíptica. Como sobre ela estão posicionadas (embora parcialmente) cada uma das 12 constelações conhecidas como zodiacais, também é conhecida como faixa do Zodíaco. Enfim são delineadas as estrelas, sobre uma grade quadriculada inscrita no círculo. A grade em questão tem malhas de um décimo do raio do referido círculo. As estrelas (sempre brancas e de cinco pontas) obedecem igualmente a uma construção modular, sendo empregadas cinco categorias dimensionais representando estrelas de primeira a quinta grandezas, inscritas em círculos de módulos 0,30 M, 0,25 M, 0,20 M, 0,14 M e 0,10 M. Também as letras da citação ORDEM E PROGRESSO (advinda do positivismo de Augusto Comte) seguem padrões modulares: 0,33 M de altura por 0,30 M de largura para as letras das duas palavras e 0,30 M de altura por 0,25 M de largura para a conjunção E. Dentre tais letras, oficialmente de cor verde, o P está posicionado sobre a mediana vertical. O Céu Austral Os panoramas celestes (estelares e constelacionais) devem ser analisados sob dois aspectos fundamentais, ambos do ponto de vista de um observador posicionado no Sul do Brasil e latitudes adjacentes. Um dos aspectos é invariável e o outro variável. A invariabilidade é determinada pela localização geográfica, isto é, estrelas posicionadas entre 60°N e o Pólo Norte Celeste (boreais extremas) nunca serão vistas por um observador no Rio Grande do Sul; estarão sempre abaixo do seu horizonte. 131 No segundo aspecto estão enquadradas as estrelas posicionadas entre a declinação boreal de 600 (correspondente à latitude 60°N) e o Pólo Celeste Sul. A observação delas implica numa variabilidade parcial. Estrelas entre 60°S e o Pólo Celeste Sul (austrais extremas) estarão acima do horizonte durante toda a observação noturna, em qualquer época do ano. Já as demais (entre as declinações 60°S e 60°N) estarão em parte acima e em parte abaixo do horizonte. Quais delas serão visíveis dependerá do horário de observação e da época do ano em que a mesma for efetuada. O mais importante, diante destas circunstâncias, é que o observador voltado para o Sul pode ver, olhando também para cima (o zênite), para a esquerda (Leste) e para a direita (Oeste) — e inclusive forçando a cabeça um pouco além destas orientações — as estrelas austrais por excelência (aquelas posicionadas entre o Equador e o Pólo Celeste Sul). As principais constelações que podem ser vistas por um observador diretamente voltado para o Sul, estão representadas na Prancha II. Virando-se em seguida para o Norte, e tendo agora o Leste à direita e o Oeste à esquerda, poderá ver as demais estrelas até o limite latitudinal da declinação celeste 60°N. Dentro desse âmbito, que na realidade abrange a maior parte da assim chamada esfera celeste, está a maioria das constelações mais notáveis, incluindo as 12 zodiacais. Destas últimas sobressaem particularmente oito: Áries, Touro, Gêmeos, Leão, Virgem, Escorpião, Sagitário e Capricórnio. As constelações de Câncer, Libra, Aquário e Peixes, cujas estrelas são menos chamativas, despertam menos a atenção do observador. Algumas dentre as não-zodiacais, posicionadas ao sul da faixa do Zodíaco, são sobremodo atraentes, dada a grande luminosidade de suas principais estrelas. No caso podem ser ressaltadas constelações como o Cruzeiro do Sul, o Centauro, o Lobo, o Triângulo Austral, o Pavão, o Grou, a 132 Fênix, o caçador Órion, o Peixe Austral, o Cão Maior, o Cão Menor, o Corvo, a Lebre e, naturalmente, o complexo da nau dos argonautas (Argo) com seus três componentes principais: a Quilha, a Vela e a Popa. Três constelações imensas (pois ocupam uma grande extensão no céu), a Hidra, a Baleia e o Rio Erídano, são medianamente notáveis: com exceção da última, cuja foz é simbolizada pela brilhante estrela Achernar. Curiosamente esta estrela está posicionada tão meridionalmente quanto o próprio Cruzeiro do Sul. Na Hidra igualmente sobressai uma estrela bastante luminosa: Alphard, também citada como Alfard. Dentre as boreais visíveis também podem ser referidas algumas belíssimas constelações, tais como o Cisne, a Águia, a Lira, o Boiadeiro (Boieiro), o Cocheiro, a Coroa Boreal e o par Pégaso-Andrômeda; secundados por Hércules e Perseu. A famosa e bela constelação da Ursa Maior, contudo, só é parcialmente visível das latitudes gaúchas. Convém ressaltar que nenhuma das constelações boreais posicionadas ao norte da faixa zodiacal (e portanto nenhuma das estrelas que as integram) participam da amostragem estelar da Bandeira Brasileira. Também convém esclarecer que apenas uma das estrelas de nossa Bandeira é boreal: Procyon do Cão Menor. Ela está ao norte do Equador, mas ainda assim ao sul da Eclíptica (metade da linha da Eclíptica fica ao norte e a outra metade ao sul do Equador). Na definição do panorama celeste representado na Bandeira Brasileira participam estrelas de nove constelações, sendo duas delas (Virgem e Escorpião) zodiacais. Da constelação de Virgem só é considerada uma estrela, sua alfa conhecida pelo nome de Spica. De parte do Escorpião temos a presença de oito estrelas. Dentre as não-zodiacais, tanto a constelação do Cruzeiro do Sul como a do Cão Maior contribuem com cinco estrelas cada uma. O Triângulo Austral participa com suas três estrelas fundamentais e a Hidra (mais 133 precisamente Hidra Fêmea) com duas. Do Cão Menor só consta sua alfa, a estrela Procyon. Da “super-constelação” Argo, a nau dos argonautas, apenas está inscrita na bandeira a Alfa da Quilha, de nome Canopus. Curiosamente a Sigma do Oitante é uma das estrelas menos luminosas desta constelação de difícil identificação. A importância desta estrela é sobretudo simbólica. Conhecida como Estrela Polar Sul (em contrapartida a Polaris que é a Estrela Polar do Hemisfério Norte), ela simboliza o Distrito Federal. Cinco das bandeiras inicialmente referidas (Bandeiras e sua diversidade) mostram, cada uma, uma constelação. Nas da Austrália, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné e Samoa trata-se do Cruzeiro do Sul; na do Alasca da Ursa Maior. Mas a bandeira do Alasca possui oito estrelas, das quais apenas sete compõem a constelação da Ursa Maior. A oitava representa Polaris, a brilhante estrela polar boreal. Portanto duas bandeiras ostentam estrelas polares: a do estado norte-americano do Alasca (Polaris) e a brasileira (Sigma do Oitante). O Cruzeiro do Sul e sua translação O quadro constelacional, visível no céu noturno, varia com o horário e com a época do ano em que são feitas as observações. O Cruzeiro do Sul, por exemplo, é visível posicionado verticalmente, acima do horizonte Sul, no início da noite na transição de maio a junho. Tal posição também é constatada em março, mas por volta da meia-noite, e em janeiro antes de amanhecer. Se no primeiro caso (maio-junho) a observação do Cruzeiro do Sul for efetuada à meia-noite, ele estará “deitado” acima do horizonte Sul-Sudoeste. Pouco antes de amanhecer, estará fortemente inclinado (de “cabeça para baixo”) descendo junto ao horizonte. Contudo na mesma ocasião, na latitude da cidade do Rio de Janeiro que é adjacente ao Trópico de Capricórnio, o Cruzeiro do Sul já estará praticamente abaixo da linha do horizonte. Esta 134 referência é oportuna pois o Rio de Janeiro, na qualidade de antigo Distrito Federal, é a cidade referencial do quadro estelar da Bandeira (vide adiante, no tópico O Céu efetivo da Bandeira, as leis pertinentes). A representação geral da Prancha III mostra o Cruzeiro do Sul posicionado horizontalmente acima do horizonte Sul-Sudeste, no início da noite, nos primeiros dias de março. Por volta da meia-noite já ocupará um posicionamento vertical e estará deitado acima do horizonte Sul-Sudoeste antes do amanhecer. Este movimento translacional (que no presente exemplo ocorre em sentido horário para o observador) decorre do movimento de rotação da Terra para Leste (no caso em sentido anti-horário). Tal deslocamento do Cruzeiro do Sul, mostrado em detalhe na mesma prancha, é acompanhado pelas demais constelações pois a rotação terrestre (fenômeno real) sugere ao observador a idéia do giro de toda a abóbada celeste (movimento aparente conseqüente). É apropriado recordar que, convencionalmente, as estrelas de uma constelação são designadas mediante letras gregas minúsculas, em ordem decrescente de brilho (salvo exceções). No caso do Cruzeiro do Sul isto é válido para as cinco estrelas principais, quatro das quais ainda recebem denominações próprias, populares e consagradas. Assim a Alfa é também Acrux ou Estrela de Magalhães, a Beta é Mimosa e a Gama tem a designação de Rúbia. A menos brilhante das cinco (Epsilon), excêntrica em relação ao ponto de cruzamento dos braços que são desiguais e um pouco inclinados, é conhecida por Intrometida. O problema da especularidade A especularidade, também designada enantiomorfia, representa a condição da imagem de um corpo formada num espelho, constituindo assim o inverso da forma real. 135 Já a igualdade, geometricamente, indica que duas figuras seriam superponíveis. A distinção pode ser facilmente reconhecida se considerarmos as mãos como elementos de comparação. As duas mãos só seriam iguais se suas formas, igualmente orientadas (palmas voltadas para o mesmo lado), fossem superponíveis, o que não ocorre na realidade. A forma da mão esquerda corresponde à imagem da outra (a direita) formada num espelho. Por esta razão as duas mãos não são iguais, mas sim especulares (= simétricas = enantiomorfas). A Figura 1 da Prancha IV demonstra, comparativamente, as condições de igualdade e de simetria. As representações constelacionais e estelares da Bandeira são efetivadas em condição de especularidade. Assim o Cruzeiro do Sul, mostrado na Bandeira, representa o inverso (imagem simétrica) da constelação tal como é vista no céu. Consideremos, para tanto, o aspecto do Cruzeiro do Sul visto através do vidro de uma janela; vidro no qual suas estrelas fundamentais poderiam ser desenhadas. É importante lembrar que o brilho das estrelas, tais como as vemos, é relativo; dependendo dos brilhos reais e das distâncias. Assim como uma lâmpada muito luminosa parece fraca, se sua distância for grande, as estrelas também estão sujeitas ao mesmo efeito. A segunda estrela do Cruzeiro do Sul (Mimosa), na realidade muito mais luminosa do que a primeira (Acrux), parece um pouco menos brilhante para o observador por estar muito afastada. A segunda figura da Prancha IV mostra a relação entre as estrelas, com seus brilhos e afastamentos relativos efetivos, e a figura sugerida ao observador. Mas se olharmos o desenho das cinco estrelas fundamentais, feito no vidro da janela, pelo outro lado (de fora), teremos sua imagem invertida. É esta figura, em condição simétrica, que está representada na Bandeira. O 136 mesmo ocorre com as oito estrelas da constelação do Escorpião escolhidas para nela constarem. Para tanto a figura real da constelação é rebatida, gerando a imagem invertida que constitui sua representação simétrica (Prancha IV, Figura 3). O céu efetivo da Bandeira Em conformidade com a legislação brasileira o campo celeste mostrado na Bandeira corresponde aquele que seria visível no período matutino do dia quinze de novembro do ano de 1889, se naquele horário o céu estivesse escuro. Afinal isto representaria, convencionalmente, o céu na ocasião da proclamação. Desse campo celeste foram selecionadas 27 estrelas, ressaltadas diante da exclusão das demais. Originalmente havia 21 estrelas, mas o acréscimo posterior de outras seis totalizou as atuais 27. Para melhor compreensão da figuração atual convém serem lembradas as leis n° 5.700 de 01.09.1971 (editada no governo Médici), em seu parágrafo único do artigo terceiro, e nº 8.421 de 11.05.1992 (editada no governo Collor) que, no seu parágrafo primeiro do artigo terceiro, altera a anterior. Seus enunciados são, respectivamente: Na Bandeira Nacional está representado, em lavor artístico, um aspecto do céu do Rio de Janeiro, com a constelação do ‘Cruzeiro do Sul’ no meridiano, idealizado como visto por um observador situado na vertical que contém o zênite daquela cidade, numa esfera exterior à que se vê na Bandeira. As constelações que figuram na Bandeira Nacional correspondem ao aspecto do céu, na cidade do Rio de Janeiro, às oito horas e trinta minutos do dia 15 de novembro de 1889 137 (doze horas siderais) e devem ser consideradas como vistas por um observador situado fora da esfera celeste. É também esta última lei, no apêndice 1 do seu anexo n° 2, que define o total atual das 27 estrelas e a correspondência das mesmas aos estados da União. Justamente neste ponto devem ser ressaltadas as discrepâncias entre a representação estelar da Bandeira e a configuração real, tal como vista no céu ou num mapa celeste. A configuração mostrada na Bandeira foi efetivada com modificações da realidade, objetivando um enfoque mais estético do ponto de vista da composição gráfica. O primeiro passo da transformação foi uma inversão de imagem, em caráter especular. Portanto a representação estelar mostrada na Bandeira equivale à das esferas armilares dos antigos astrônomos e astrólogos. As constelações, e suas estrelas constituintes, são mostradas como se fossem projetadas na superfície do globo terrestre e observadas de fora. A seguir foi procedida uma estilização do conjunto de estrelas envolvendo, inclusive, duas alterações de posições estelares em relação à Eclíptica, simbolizada pelo bálteo da Bandeira. Trata-se de Spica, a Alfa da constelação de Virgem, e de uma das estrelas do Escorpião. Spica, que é austral relativamente à Eclíptica, passou a ocupar uma posição boreal. Com a estrela Beta (Akrab) do Escorpião ocorreu o inverso. Outras alterações, quando ocorrem, são de posicionamentos relativos das constelações e seus componentes. Examinando, comparativamente, a disposição espacial efetiva das 27 estrelas escolhidas com as do campo estelar definitivo da Bandeira (vide figuras correspondentes na Prancha V), podem ser facilmente constatadas as alterações mencionadas. 138 A estilização final, que visa concentrar as estrelas num espaço restrito corresponde, aproximadamente, a uma fotografia distorcida na periferia, obtida com uma câmara dotada de objetiva com sistema de lentes do tipo “Olho de Peixe”, focada no Cruzeiro do Sul. Também é oportuno salientar que os tradicionais globos celestes disponíveis no comércio (geralmente do mesmo porte dos globos terrestres e usados como eles principalmente para fins decorativos e eventualmente didáticos) mostram as constelações na condição em que constavam nas esferas armilares e nas clássicas esferas celestes, isto é, “vistas de fora”. Um dos exemplos mais antigos destas esferas celestes é a escultura do Atlas Farnésio, onde é mostrada sustentada pelo titã Atlas. Para maiores esclarecimentos sobre tais representações consulte os textos Resgatando a Uranogeoscopia e Uma Ave Celeste sobrevoa Porto Alegre (vide referências: Hoffmann, G. R.). E é justamente a representação plana de uma face de um globo celeste, embora estilizada, que encontramos no círculo da Bandeira. Não se trata, portanto, de um traçado incorreto, mas sim de uma representação clássica e consagrada. Só que, deve ser novamente lembrado, não serve de guia para a observação direta das constelações e estrelas no céu por consistir numa imagem invertida das mesmas. Nos casos já referidos das bandeiras da Austrália, da Nova Zelândia, de Papua-Nova Guiné, de Samoa e do Alasca as representações constelacionais são diretas, isto é, as figuras das constelações são mostradas tais como visíveis no céu. Portanto a Bandeira do Brasil não é única apenas por ter um quadro constelacional múltiplo, mas também pela representação estelar em caráter especular. 139 As Estrelas da Bandeira e os Estados Brasileiros A Lei n° 8.421, através do primeiro apêndice ao seu segundo anexo, relaciona os Estados simbolizados pelas estrelas da Bandeira. Assim o que antes era informal foi efetivamente formalizado. A Prancha VI mostra a correspondência oficial. Contudo uma das publicações destinadas ao melhor conhecimento das bandeiras históricas do Brasil, e também de seus Estados, Brasil: Hinos & Bandeiras Nacionais & Estaduais (vide referências: Rodrigues, Bellomo e outros), requer o doloroso dever de um comentário crítico. Embora muito elucidativa, sobretudo na abordagem dos “rituais” pertinentes à Bandeira, apresenta duas falhas bastante graves nas páginas 61 e 79. Uma é referir a estrela Sigma do Oitante (a constelação) como Sigma do Oriente e a outra é uma lamentável confusão na identificação de estrelas. Quase todas as estrelas da metade esquerda do círculo (inclusive a Delta e a Epsilon do Cruzeiro do Sul) estão trocadas. Somente duas (Canopus e a Beta do Cão Maior) não foram confundidas. Este fato traz à tona uma outra questão problemática. Conforme a redação inicial do artigo 39 da Lei n° 5.700 de 01.09.1971 são obrigatórios tanto o ensino do desenho e significado da Bandeira Nacional, como o ensino do Hino Nacional. Mas será que isto é realmente cumprido? Numa interpretação pessoal posso afirmar que sou pessimista. A temática da Bandeira envolve sobretudo dois campos de caráter técnico-científico: o desenho e a abordagem astronômica. A formação de professores aos quais compete (pela natureza das disciplinas) a propagação de conhecimentos relativos à Bandeira é de orientação humanística, o que gera um conflito óbvio. Geralmente incapazes de identificar no céu o Cão Maior, o Escorpião e o próprio Cruzeiro do Sul, as constelações mais destacadas da Bandeira, e manusear um compasso 140 para explicar o desenho da mesma, tendem a ignorar tais aspectos atendo-se aos tratamentos devidos à Bandeira. Nestas circunstâncias, possivelmente, o objetivo maior do tema aqui concluído é o de contribuir para a superação das dificuldades encontradas, por muitos, na interpretação da faceta astronômica da Bandeira do Brasil. Referências CRAMPTON, W. Bandeiras. Série Aventura Visual. São Paulo: Globo, 1990. DUNLOP, S. (Ed.). Atlas of the night sky. England: Newness Books, 1994. HOFFMANN, G. R. Terra e espaço: um aprendizado de astronomia. In: BAKOS, M. M.; CASTRO, I. B.; PIRES, L. A. (Orgs.). Origens do Ensino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 63-100. ___. Resgatando a uranogeoscopia. In: FLORES, H. A. H. (Org.). RS: século XX em retrospectiva. Porto Alegre: Ediplat, 2001. p. 165-202. ___. Uma ave celeste sobrevoa Porto Alegre. In: FLORES. H. A. H. (Org.). RS: história, cultura e Ciência. Porto Alegre: Evangraf, 2002. p. 11-40. ___. Origem e evolução da América do Sul. In: FLORES, H. A. H. (Org.). Integração 2002. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 9-31. PAUVELS, P. G. J. Atlas Geográfico Melhoramentos. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1954, 1980 e 1989 (ed. 12, 41 e 52). RODRIGUES, J. P. (Org.); BELLOMO, H. R. (Col.) et al. Brasil: Hinos & Bandeiras Nacionais & Estaduais. Porto Alegre: Magister. 2001. SIMIELLI, M. E. Geoatlas. São Paulo: Ática, 1988. The eyewitness Atlas of the World. London: Dorling Kindersley, 1990. Observações: I. Fontes primárias das leis e decretos pertinentes: Diário Oficial e republicações nos Anuários LEX. 141 II. Fonte adicional: Título FLAGS. In: Encyclopaedia Britannica. 142 143 144 145 146 147 10 SOCIEDADE OITOCENTISTA II ________________________ Hilda Agnes Hübner Flores ∗ Abordamos em volume anterior da coleção Integração, as “Mulheres e mujeres que construíram a história”, e em 2002 analisamos as ainda grotescas condições de vida dessas mulheres e do povo em geral que viveu na primeira metade do século XIX, fase que o historiador uruguaio José Pedro Barran denomina de “bárbara”, ainda carente de regramentos modeladores da sociedade organizada: higiene, medidas sanitárias, educação, recreação... O altíssimo índice de mortalidade levou o povo a banalizar a morte, encarando-a como algo corriqueiro, agente de entretenimento. A criança falecida era vista não como uma perda, mas como um anjinho que precede os pais ao paraíso e, em torno do minúsculo corpo, colocado no centro da sala, se bailava e se bebia, comemorando o evento. Esses “festejos da morte”, irregulares mas freqüentes, somados aos feriados religiosos e cívicos, atingiam a elevada soma de 80 feriados anuais no Uruguai — uma forma de driblar o enorme ócio gerado pela superabundância de gado, cuja carne alimentava todas as camadas da população. Bastavam três dias de trabalho semanal para se viver, até mesmo na camada pobre da população, receptora das sobras da abundância. A “barbárie” aos poucos foi absorvida pelo “disciplinamento”, no segundo meado oitocentista, quando a sociedade dos países do Mercosul se modernizou, por efeito de inventos científicos que transformaram para melhor as condições materiais e espirituais do povo: ferrovia, navegação a vapor, ∗ Historiadora. Presidente da Academia Literária Feminina do RS. Rua Aurélio Bitencourt, 219/401, CEP 90430-080, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mali: [email protected] 148 saneamento com instalação gradativa de redes de esgoto e pluvial... É a fase que enfocamos aqui. Renovação Com os avanços das ciências e as decorrentes mudanças de hábitos, a vida privada, até então impregnada de violência e assassinatos, desnudando sem pudor sentimentos primitivos, passou a um tom paulatinamente mais “civilizado”, face a novas regras tendentes a regular o viver em sociedade. A mudança foi um trabalho lento, de equipe. A Igreja teve papel importante. Em vez de padres adeptos de vida fácil, cuidando de enriquecer em vez de zelar pela salvação dos fiéis, surgem no Uruguai expoentes clericais com liderança positiva. Além dos curas nos confessionários e púlpitos, concorreram também os mestres nas escolas, os médicos nos consultórios, os pais de família investidos de autoridade perante mulher e filhos, o governo através da Polícia e os políticos no parlamento ou através da imprensa (Barran, 1991, p. 34). Regulamentando a morte Igreja e governo buscaram domínio sobre o ritual “bárbaro” da morte, visando coibir a exibição desbragada dos sentimentos. Os enterros não mais seriam no interior das igrejas, mas no cemitério ao lado, sendo que no Brasil havia separação entre pessoas livres e escravos. Anúncios fúnebres uruguaios passaram a estampar o emblema da cruz em lugar de imagens macabras. Em 1861 a Igreja de Montevidéu proibiu missas de corpo presente e a condução de cadáveres a descoberto; em 1886 foi vedada a venda de bebida alcoólica, a 2 de novembro, na frente dos cemitérios. Escolares não mais afluíam aos enterros de crianças, reduzindo a freqüente suspensão de 149 aulas e preservando-os do mau exemplo de atitudes liberais por parte da população adulta. A Igreja generalizou o uso da água benta, sem se dar conta do aspecto de falta de higiene que representa (Barran, 1991, p. 12, 13 e 49). Moral Para sanear os costumes, a Igreja antepôs o conceito de família estável à concepção de amor livre do período “bárbaro”. Reforçou-se o conceito de amor e respeito mútuo. Era conceito ideal de família, segundo o periódico montevideano Lucha Obrera, em 1884: Atraídos por um profundo e recíproco afeto, os dois seres se unem para passar toda a sua vida juntos (...) para elevar os filhos no seu amor (Barran, 1991, p. 30). O bispo Jacinto de Vera (1860-81) trabalhou em comunhão com a polícia pela implantação do “puritanismo” sexual, impondo com rigor a separação de sexo nos banhos de mar. À mulher católica cabia ser modesta no vestir, guardando o pudor no traje e gastando com parcimônia o dinheiro ganho pelo trabalho do marido (Barran, 1991, p. 12 e 25). A antiga “barbárie” passa a ser encarada como pecado e, como tal, precisava ser controlada. Crianças, jovens, mulheres e setores populares passam a ter “proteção” oficial, como a parte fraca da sociedade que encarnam (Barran, 1991, p. 26). Adultério A moral distinguia entre os sexos, com larga vantagem para o homem, detentor de mais liberalidade que a mulher, dentro da máxima pregada desde o séc. XVII pelo moralista luso, Pe. Antônio Vieira: Os pecados contra a castidade são igualmente graves perante Deus, para homens e mulheres, mas nas mulheres, ainda que veniais, tiram a honra e nos homens não, ainda que mortais (Flores, 1999, p. 1164; Vieira, 1951, v. 9, 150 p. 18-20). Dois séculos mais tarde, o deputado argentino Enrique Perod, preocupado em preservar o bom nome das famílias, continua reforçando o duplo aspecto da moral: a mulher com limites restritos ao lar, pois seus filhos, mesmo os ilegítimos, nascem sempre dentro do espaço doméstico, o que não acontece com os filhos ilegítimos do homem. Por isso, em 1880, Perod repete as palavras de Vieira: EI adultério de la mujer es más grave que el del hombre. En efecto, el deshonor de la mujer repercute en la familia (Barran, 1991, p. 72). O adultério feminino, principalmente o da mulher burguesa, encontrou dupla repressão: pelos valores morais do cristianismo e como forma de controlar e fortalecer as fortunas, sustentáculo da burguesia. Os Estados platinos, bem como o Brasil, criam toda uma legislação referente à herança, que excluía e discriminava os filhos ilegítimos. Isto deu sustentáculo a que durante séculos muito assassinato de esposa fosse cometido em nome da “legítima defesa da honra”, argumento machista acolhido pelos tribunais, que absolviam sistematicamente o marido assassino. Esse hábito continuou a vingar entre nós séc. XX adentro, até que a Constituição de 1988 modificasse oficialmente esse quadro no Brasil, dando iguais direitos a homens e mulheres perante o Código Penal. Confissão No século XIX sobreviviam resquícios dos tempos coloniais, quando a confissão teve o efeito de permitir à mulher, habitualmente reclusa, de sair do espaço doméstico para se dirigir à igreja. Por outro lado, a confissão tornavase momento de conflito de sentimentos adormecidos, notadamente quando el confessor con suas preguntas inquisitoriales sobre la matéria delicadísima de la sexualidad, alertaba, enardecía e pervertia a la esposa e hijas (Barran, 1991, p. 63). No Brasil se registraram algumas dezenas de casos de padres 151 pouco criteriosos nos confessionários, que acabaram caindo nas malhas da Inquisição que da Metrópole estendeu seus tentáculos à Colônia. Contra a “liberdade exagerada” da mulher zelava o bispo do Pará, D. Francisco Manuel de Melo: ... os contatos com o confessor, as idas à igreja ou a participação em festas devem ser dosadas pelo marido, investido de autoridade paratal (Algranti, 1993, p. 116). Recreação A polícia uruguaia combatia costumes “bárbaros” que insistiam em perdurar, como a longa duração e os excessos do carnaval, tradicional feriado nacional de festejos e desatinos populares. Em 1873 proibiu o jogo da água, que renasceu com intensidade nos anos 90, quando a população, inclusive mulheres, eram saudadas com baldes de água, bombas tremendas, ovos naturais e artificiais e tomates... O controle mais efetivo dos excessos carnavalescos foi processo moroso (Barran, 1991, p. 12 e 31). O baile era outra das poucas formas de recreação do século XIX. A presença do rapaz precisava ter o aval do chefe da casa, como candidato nato a genro que era. Nas danças houve avanços ousados, com polcas e valsas que permitiam escandalosa aproximação, o rapaz enlaçando ousadamente a cintura da moça. A bebida era vinho ou cachaça, pois ainda não havia refrigerantes. Positivismo No Rio Grande do Sul houve um grande reforço aos princípios moralistas da Igreja e também da maçonaria, com o positivismo comtiano. Júlio de Castilhos, seu propagador-mor, quando assumiu o governo do Estado em 1893, implantou a industrialização como meta de progresso, por 152 mãos masculinas. À mulher delegou a tarefa de guardiã da moral. Confinando-a ao espaço doméstico na condição de “rainha do lar”, devia cuidar do marido, educar os filhos homens para futuros soldados da pátria e mantenedores do lar, e as filhas, como continuadoras de sua obra doméstica, abrigadas das tentações que o mundo exterior oferece. O jornal Corimbo de Rio Grande, em junho de 1901 estampa o artigo “Original contrato de casamento” no qual o noivo Ferdinando Martino, de Bagé, RS, exigia que sua noiva assinasse unilateralmente um contrato que deveria regular a vida do casal. O art. 9° detalha as atribuições cotidianas da rainha do lar: Serei a primeira a erguer-me do leito ao despertar do dia, para aprontar o café, arrumar a casa, dar ordens à criada, observar o asseio da cozinha, dos pratos, panelas, xícaras, talheres; limpeza dos aposentos e do pátio, assim como determinar o preciso para o almoço e o jantar, e não consentirei que criadas levem trouxinhas para casa (Flores, 1994, p. 53). O jornal informa ainda sobre o malogro da noiva que se recusou a assinar o contrato. Estudo O Uruguai em 1877 tornou obrigatório o ensino primário, tirando das ruas e do ócio crianças de ambos os sexos (Barran, 1991, p. 12). No Rio Grande do Sul, quando Júlio de Castilhos propôs a meta de industrialização, a quota de 74% de analfabetismo não coadunava com o progresso a ser atingido. Era precisa alfabetizar. O salário tradicionalmente precário, afastou os homens do magistério, de sorte que coube à “rainha do lar” somar tarefas, cumprindo com os filhos alheios a mesma missão educadora que exercia com os seus, com a vantagem de trazer alguma remuneração para casa, fato bem aceito pelos abalizados chefes de família, mantenedores do lar. Estabeleceu-se correlação entre ensino e moral, orientação seguida pelos livros didáticos portenhos: “Da, oh Dios, a las fuentes água (...) Da la 153 salud al enfermo, pan al mísero mendigo (...) Haz que mis padres e hermanos (...) tengan salud y fortuna y estén contentos conmigo” (Barran, 1991, p. 47). O procedimento e as diversões das crianças eram controladas, valorizando-se a aplicação ao estudo. A Igreja abalizou esta medida. As Congregações religiosas, dedicadas ao magistério, aplicavam vastamente o ensino moralista. Alfabetizavam-se as meninas e se lhes ensinava prendas domésticas. Em Porto Alegre, as Escolas Técnicas Ernesto Dornelles e Darcy Vargas, ambas estaduais, adentraram século XX nesta modalidade de ensino. Às meninas uruguaias ensinava-se princípios de limpeza no arranjo da casa, da roupa e dos alimentos. Emma Catalá de Princivalle, em seu manual “Lições de Economia Doméstica”, prescreve a limpeza quinzenal da casa e da cozinha a cada semana, devendo-se sacudir, barrer, lavar, fregar y limpiar todo cuidadosamente, no dejando un solo objeto ni un solo rincón sin haber recebido la benéfica caricia de la escoba, el cepillo, el água, la lejía o el jabón (Barran, 1991, p. 48). As exceções Algumas raras mulheres entre nós tiveram acesso à cultura desde as primeiras décadas oitocentistas, como Ana de Barandas com seu aspecto reivindicativo, já citada em trabaIho anterior. Em 1869 iniciou em Porto Alegre a Escola Normal, atual Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha, preparando professorado. Sobressaiu na primeira turma a enjeitada Luciana de Abreu, professora bem-sucedida com uma centena de alunos em sua escola particular e que brilhou na tribuna da douta Sociedade Partenon Literário ao pregar a igual capacidade intelectual entre meninos e meninas, que necessitam apenas de iguais chances para se desenvolver. Apesar dessas vozes isoladas, o estudo das meninas continuava direcionado para as funções do lar, de esposa e mãe. Só ao final do século 154 XIX fala-se em capacitação profissional, caminho para a autodeterminação. O clamor parte de mulheres feministas, raras no começo, como a argentina Joana Manso (1819-1875), exilada da política de Urquiza, que levou sua experiência aos países do Conesul: no Uruguai fundou o Álbum de Señoritas, de reivindicação de direitos femininos; em Pelotas, RS, foi redatora do jornal A Imprensa e no Rio de Janeiro fundou o Jornal das Senhoras (1852-55), no qual defende a educação feminina como forma de emancipação do marasmo e subserviência em que jazia a mulher. Em Buenos Aires, para onde regressou já separada do marido e com duas filhas, em 1853, fundou um colégio para meninas e batalhou por bibliotecas escolares. Em 1864 fundou e redigiu o La Siempre Viva, jornal que lutou pela emancipação feminina, mérito que lhe deu ingresso na Sociedad Estímulo Literário. Sua luta prosseguiu nas páginas de La Flor del Aire (Auza, 1988, p. 17, 33, 64 e 196). Entre nós, a rio-pardense Ana Aurora do Amaral Lisboa (18601951), dramaturga, jornalista e política, reagiu à prisão dos irmãos, a mando de Castilhos no início da Revolução Federalista. Punida com remoção do colégio público onde ingressara por concurso, demitiu-se e abriu educandário particular para melhor defender direitos de liberdade, de ensino para meninas e a abolição da escravatura, que não coadunava com seus ideais de educadora. Defendeu também o direito de voto feminino e, coerente com a posição maragata que assumiu, exaltava em versos os chefes revolucionários de 1893. As irmãs Revocata de Mello (1853-1944) e Julieta de Mello Monteiro (1860-1928), poetisas e dramaturgas, mantiveram na cidade portuária de Rio Grande o jornal Corimbo, que espelhou os avanços e recuos da sociedade e da jornada evolutiva da mulher. Foram 60 anos de depoimentos (1883-1943) que pedem reedição a bem da memória cultural do Rio Grande do Sul e do país — tarefa afeta aos órgãos públicos, que a podem viabilizar através de incentivos fiscais. 155 Sufragistas A par das feministas surge, originário da Europa, e se intensifica, um novo aspecto reivindicatório: o clamor das sufragistas, que viram no direito de voto para escolha dos dirigentes do país uma maneira de alcançar o equacionamento das questões sociais básicas. Congressos sufragistas lutam por esta nova meta, com manifestações radicais, como sói acontecer em todo início de reivindicação. Enfrentando o conservadorismo masculino, reivindicam direito ao trabalho remunerado, fonte da verdadeira emancipação social. Em Montevidéu a reação foi forte. Em 1911 o conservadorismo masculino e o medo de mudanças produziu afirmações como esta: o sufragismo não interessa às mulheres daqui, porque vivem todas elas muito à vontade no seio de sua família, cuidando dos filhos e acariciando ilusões sobre o porvir. As que, em diferentes nações européias têm abraçado com frenesi o sufragismo, são em sua totalidade mulheres que suportam as terríveis conseqüências de uma péssima eleição conjugal e que não esperavam nada dos afetos de uma família, nem das delícias do amor (Barran, 1991, p. 30). No Brasil tiveram êxito com a aprovação do voto feminino, em 1932. Condições sanitárias A descoberta bacteriana na base das infecções, a pasteurização e a invenção da vacina datam de 1860-90, mas esses avanços científicos só se propagaram efetivamente a partir da II Guerra Mundial. Crianças continuavam morrendo às centenas e o aborto foi encontrado como forma “civilizada” para controle dos inúmeros nascimentos (Barran, 1991, p. 14). A Igreja não o endossou, porém, a prática se vulgarizou. 156 Igreja e médicos associavam o excesso sexual à tuberculose. O deputado médico uruguaio, Jacinto de Leon, sustentava em 1885 que os adolescentes que se entregam aos prazeres sexuais facilmente contraíam a tísica. O sexo extenua e os jovens necessitam de freqüentes tônicos, assim como as “senhoras delicadas” e os idosos debilitados, todos alvo fácil da tísica. O Nuevo Catecismo de Montevidéu, 1893, valorizou o casamento — civil e religioso, ambos indissolúveis — e combateu o “pecado desonesto”, que embota as faculdades intelectuais, mina a saúde física e antecipa a morte. A mulher, movida pelos sentimentos e frágil ante a paixão, continuava carecendo de vigilância permanente, quando menos para garantir a legitimidade da prole (Barran, 1991, p. 69-72). No Brasil o manual Saúde das creanças, do jesuíta Sebastião Kneipp, publicado em Porto Alegre, 1898, assevera rigorosa vigilância dos pais sobre os filhos adolescentes, controlando seus movimentos e suas saídas de casa. Más companhias induzem ao pecado, assim como a masturbação, que deixa o rapaz pálido e com olhar lânguido, andar indolente e movimentos efeminados, voz rouca e hálito fétido... Para evitar a tentação do pecado, o adolescente não deve andar de mãos nos bolsos nem escorregar no corrimão de escada. Dê-se-lhe ocupação constante, intercalando esforço intelectual com trabalho físico, de maneira que à noite cala exausto na cama e durma. Ao acordar, não deve permanecer na cama, porque induz a maus pensamentos. Higiene Kneipp, introdutor da “cura pela água”, atual SPA, Saúde per aquam, usual na Alemanha de nossos dias, direcionou seu manual à mulher, responsável pela aplicação da medicina caseira. Nele apregoa a necessidade diária de lavar cabeça, rosto e mãos e receita o banho sob três modalidades: 157 o de regador, do joelho para baixo; o banho de imersão “até o sovaco” e o de imersão total. O banho é sempre frio porque o calor efemina e enfraquece corpo e alma. A escritora uruguaia Emma Princivalle reforça em 1905 a necessidade de se superar os longos séculos em que se conviveu com odores inmorales y asqueantes exalados pela sujeira do corpo. Reforça a necessidade de asseio escrupuloso en la boca, Ia cabeça, las manos, los pies, el cuerpo todo. Aconselha o banho inteiro, em água pura, diário no verão e semanal no inverno Barran, 1991, p. 48). Ainda no raiar do século XX, pequenos anúncios no centenário jornal Correio do Povo de Porto Alegre, dão conta de doenças endêmicas por debelar: Rio, 21: O governo publicou decreto considerando sujo o porto de Buenos Aires e suspeitos os portos do Paraná e os argentinos do rio da Prata, por motivo da peste bubônica (23.4.1902). Em 6.9.1903, a Diretoria de Higiene informa o estado sanitário da quinzena anterior: 13 moléstias transmissíveis: 7 de tuberculose, 8 de difteria, 2 de septicemia e 1 de febre tifóide. Em Montevidéu a influenza grassava com intensidade, com cerca de 10 mil pessoas acometidas na Capital e 50 mil no território uruguaio, e no Rio de Janeiro grassava a varíola e recrudesciam os óbitos por peste bubônica (23.8.1903). Na imprensa eram comuns reclames de tônicos e fortificantes capazes de combater anemias e dar vigor ao corpo, para enfrentar o fantasma da tuberculose ou males como a pobreza do sangue, o raquitismo, constituições linfáticas débeis... Surgem cuidados com a beleza feminina, como cremes, ondulação de cabelo a vapor... Aqui como nos países do Prata, o corpo feminino modelo devia ser rechonchudo desde criança, corpo de respeitável matrona, pois, la falta de carne significa falta defuerzas (Barran, 1991, p. 51). 158 Na virada do séculos XIX e XX surgem nas residências opulentas as primeiras banheiras com torneira de água corrente, sem que se fizesse dela o devido uso, por desconhecimento e crendices, sendo voz corrente que o banho de imersão podia provocar esterilidade. Ilustração dessa época mostra a empregada esfregando as costas da mocinha em pé, do lado de fora da banheira, usada como mera bacia gigante! Contudo, apesar da onda de limpeza e higiene apregoadas, das melhorias sanitárias e dos inventos científicos de natureza vária, continuavam proliferando microorganismos e pragas de insetos como percevejos, bichosde-pé, piolhos e outros, mostrando que muito estava por fazer. Enfermidades como tuberculose, sífilis e gonorréia persistiram século XX afora, molestando e ceifando vidas. Ao ócio, jogo e sexualidade, opôs-se o trabalho (apresentado como virtude e não mais como desprazer), disciplina, pontualidade e higiene do corpo. A pobreza passou a ser vista como fruto da ociosidade do indivíduo e a esmola perdeu seu aspecto de obrigatoriedade religiosa. A Casa dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre é exemplo disso. Se antes padrinhos e madrinhas acorriam prestativos ao ato de batismo e endossavam o dever moral de auxiliar na criação do afilhado, ao final do século XIX essa obrigatoriedade tornou-se preceito vago e a Santa Casa teve de apelar para seus funcionários para batizar os menores abandonados, conforme evidenciou levantamento procedido nos Livros de Registro dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Mulher No início do período aqui enfocado, condenava-se o luxo e gastos fáceis, pois competia à mulher virtuosa ser econômica e ordeira, não esbanjando o dinheiro do marido. A uruguaia Adela Correge, em sua novela de 1885, Tula y Elena o sea el orgullo y la modéstia, considerava o luxo como 159 verdadeiro corruptor da sociedade. Economizar tostões em guloseimas ou adornos equivalia a juntar reais, pela poupança continuada, na visão de Monsenhor Mariano Soler, que em carta pastoral sobre o matrimônio, em 1890, afirma: A economia é a fonte da opulência, da verdadeira generosidade e da fortaleza da alma, enquanto o gasto fácil conduz ao servilismo e à baixeza (Barran, 1991, p. 43-44). Mas, ao final do século XIX, muito por conta do positivismo castilhista que implantou a alfabetização no Rio Grande do Sul por conta do magistério feminino, o trabalho remunerado tornara-se já tímida realidade. Excepcionalmente alguma mulher exercia profissão técnica, como a médica Maria Generoso Estrella, primeira médica formada no Brasil e que praticava ginecologia em seu Estado, o Rio Grande do Sul. A remuneração assegurava independência e autodeterminação à mulher, se comparado à total dependência de séculos anteriores. As duas guerras mundiais, no séc. XX trariam poderoso reforço neste sentido, impulsionando a mulher às fábricas para suprir a produção européia afetada pela guerra. Ao mesmo tempo, a partir da década de 1940, começam a surgir Faculdades freqüentadas por um número majoritário de mulheres, a maioria de feição humanista. O ingresso no campo técnico seguiria. Mas esta é nova fase, a da conquista da tecnologia. Referências ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. AUZA, Nestor Tomás. Periodismo y feminismo en la Argentina: 1830-1930. Buenos Aires: Emecê Editores, 1988. 160 BARRAN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1991. Tomo 1: La cultura bárbara: 1800-1860. Tomo 2: El disciplinamiento: 1860-1920. CORIMBO — Jornal feminino de Rio Grande, RS, jun. 1901. FLORES, Hilda A. Hübner. Presença literária. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1994. ___. Sermões de Pe. Vieira. In: Terceiro Centenário da morte do Pe. António Vieira. Braga, Portugal: Univ. Católica, 1999. VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões. Porto: Lello & Irmão, 1951. 15v. 161 11 ARQUITETURA E ESCULTURA BARROCA NO BRASIL E NO RIO GRANDE DO SUL ____________________ Thiago Nicolau de Araújo ∗ O contexto socioeconômico do Brasil colonial foi propício ao desenvolvimento do barroco, essencialmente ligado à religião católica. Além das igrejas, vemos diversas construções civis com as características do barroco 1 , mas as edificações religiosas constituem a maior parte das manifestações deste estilo artístico. O Brasil por ser uma colônia riquíssima na cultura e comércio do açúcar e pela mineração, deveria produzir um barroco rico em sua ornamentação, como vemos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na Bahia. Mas nem sempre a arte foi assim representada, pois houve regiões onde as condições socioeconômicas determinaram outros tipos de construções, com expressões artísticas mais modestas. Com isso percebemos dois pólos do barroco no Brasil, um rico e ornamentado e outro mais pobre e modesto. As regiões auríferas do Brasil provocaram a primeira corrida do ouro no mundo ocidental, seguida mais tarde pelos Estados Unidos e no Século XIX na África do Sul e Alasca. Esse ouro foi o primeiro grande fluxo que a Europa recebeu. Com isso surge espetaculares construções nos locais de extração aurífera, como Minas Gerais, que tornou-se o principal foco do barroco no Brasil. ∗ Licenciado e Bacharel em História pela PUCRS. Professor do Ensino Médio. Mestrando em História pela PUCRS. 1 Para aprofundar o assunto, ver: BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, s/d. 162 Mas como o das demais partes da América colonial, o ouro brasileiro foi de aluvião e por isso se esgotou com relativa rapidez. Esse ouro não acabou de repente, foi escasseando aos poucos e como conseqüência, se incrementavam as técnicas de extração que perduraram entre o século XVIII e XIX, até meados de 1820 2 . Com a vinda da família real para o Brasil em 1808, os recursos voltam-se para o Rio de Janeiro, capital na época. Com isso estabelece-se aos poucos a decadência econômica e social dos centros de mineração. Com a República, acentua-se essa situação, e o barroco perde sua condição socioeconômica de desenvolvimento. A Companhia de Jesus foi a primeira a empregar a arquitetura do barroco, lançando-se na luta pela catequese indígena. Seus membros estavam entre os primeiros a chegar no Brasil Colônia. Algumas de suas construções datam do Século XVII. Das obras de arte realizadas no início do século XVI, nada restou, porque Portugal só se preocupou realmente com o território descoberto na segunda metade do século, quando então se pensou seriamente numa organização central da colônia e só então começou a surgir um movimento cultural e artístico, sendo essencialmente introduzido pelas ordens religiosas. A Igreja utiliza o barroco a partir da contra-reforma, e, ao contrário do que os protestantes condenavam e aboliram, o lado católico exaltou. Os protestantes negavam a santidade da Virgem Maria e dos santos, e apresentavam simplicidade nos templos. Os católicos reagiram, reforçando o conceito da Imaculada Conceição e enalteceu o papel dos seus santos e mártires, além de promover a pompa nas cerimônias religiosas, com templos suntuosos, para exaltação de Deus e dos santos. Isso deu ao barroco um campo imenso e fértil, onde proliferou e dominou totalmente. Temos como exemplo a Basílica de São Pedro, em Roma. 2 PRADO JUNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins Editora, 1942. p. 168. 163 O Brasil colônia foi uma imagem refletida da metrópole (Portugal), apenas reproduzindo seus usos e costumes. Com a mesma religião controladora administrada pelas ordens religiosas, jesuítas, franciscanos e beneditinos usaram a arma da excomunhão para controlar a população e mesmo a coroa. A interferência era tanta que vemos referências testamentárias incluírem sempre “às justiças reais e eclesiásticas” 3 . Os membros das ordens eram constantemente removidos da metrópole para a colônia e vice-versa. Nestas ordens haviam professores de vários países, em geral muitos deles artistas ou bons artesãos. Desse modo, inseriram no Brasil as técnicas aprendidas na Europa. Os jesuítas tinham como principal preocupação a catequização, usando para isso o discurso, sermões e autos teatrais e neste contexto a construção de igrejas foi parte desta prática. Já a ordem beneditina produziu templos caracterizados pela monumentalidade e pela suntuosidade barrocas, além de esculpir as imagens no Brasil, sendo que a grande maioria vinha ainda da Europa. Os franciscanos tiveram suas manifestações artísticas restritas ao interior de seus conventos, que tinham como característica os frontispícos decorados, a cruz de pedra no adro, e usavam geralmente a pedra e cal, como por exemplo, o Convento de São Francisco, em São Paulo. No princípio, as construções foram provisórias e precárias, muitas feitas já com o propósito de serem reconstruídas por outra maior, como por exemplo, a Igreja matriz de N. Sra. da Conceição, em Viamão, RS. Usava-se a taipa de pilão e adobe, e nas construções em orla marítima, utilizava-se a pedra e a cal. Por isso, muitas edificações tiveram uma vida limitada, logo ruindo, verificando-se isso principalmente nas missões do RS. Com o esgotamento do ouro no Brasil, as construções barrocas acabaram, muito pela falta de condições financeiras para sustentar o 3 ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: psicologia e remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São Paulo: Melhoramentos/Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. p. 44. 164 esplendor das igrejas, mas também pela implantação do neoclássico, onde se retoma os atributos artísticos clássicos e renascentistas, além de não necessitar de grande ornamentação decorativa. Desse modo, muita coisa caiu em ruínas pelo abandono e muito mais foi destruído por conta do falso conceito contra o barroco na época. As exigências da urbanização e a valorização territorial das cidades contribuíram para o desaparecimento desse estilo, sendo que, o que restou, deve-se ao interior do pais, pois com o abandono da população que foi para cidade, muitas regiões não se desenvolveram, e assim todo acervo artístico acabou se autopreservando. O barroco colonial evidenciou-se primoroso nos trabalhos em canto (pedra lavrada) e talha (madeira esculpida). Decorava-se relativamente pouco o exterior nas partes relativas à fachada, padieiras (molduras que envolviam as janelas) e portadas. A arte colonial brasileira é essencialmente religiosa e a arquitetura é a sua maior manifestação, estando ligados a ela a talha, a pintura, a ourivesaria e a azulejaria. Os mais antigos materiais usados na construção de igrejas foram pedra, cal e taipa-de-pilão (argila amassada entre tábuas). Os retábulos tinham decorações enquadradas dentro de molduras simétricas, ainda com influências clássicas e renascentistas. As primeiras manifestações arquitetônicas começam durante o governo de Tomé de Souza, em 1549, e se estende até meados do século XVII. A primeira igreja construída em Salvador era recoberta com folhas de palmeira. Somente em 1561 surge a primeira igreja construída inteiramente de pedra e cal, a atual catedral de Salvador. A tradição arquitetônica brasileira está ligada à evolução da arquitetura portuguesa, sendo que as primeiras construções não são nada mais que uma extensão do modelo português. 165 Aos poucos, no entanto, foram surgindo diferenças entre o Reino e a Colônia, diferenciando no uso de materiais próprios, técnicas mais simples aprendidas com o contato com os índios, além de dificuldades locais que os arquitetos tinham que solucionar, dessa forma criando uma arquitetura luso-brasileira. Apenas no século XVIII aparece realmente uma arquitetura colonial brasileira, a chamada escola mineira, em especial, nas obras de um mestiço nascido em Vila Rica, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Esse mestre do barroco brasileiro consegue dominar a arte dos mestres toreutas, baianos e pernambucanos, renovando-as e apurando-as. Educado na arte da torêutica por seu pai e por outros mestres, tornou-se mais célebre que seus mestres. Como entalhador, enriqueceu os interiores e frontispícios de igrejas com numerosos trabalhos de talha, tanto em madeira como em pedra; como escultor, foi criador das decorações ornamentais das fachadas, o estatuário das três figuras centrais nos Passos do Santuário de Congonhas, que são obras de arte esculpidas em pedra sabão 4 . O último período da arquitetura colonial brasileira, o que se inicia na metade do século XVIII e começo do século XIX, demonstra um crescimento da escola mineira. Salvador, capital do Vice-Reino, tornou-se o centro de grandes edificações inspiradas nos modelos da Metrópole. A riqueza das minas de ouro descobertas pelos bandeirantes no fim do século XVII, fizeram de Ouro Preto um dos lugares mais ricos do mundo, produzindo no espaço de um século, uma série de monumentos que mostram toda a evolução da arquitetura colonial brasileira, mostrando um típico exemplo do barroco nacionalizado. O estilo barroco, prevalecente nas igrejas coloniais, pretendia induzir o crente a um êxtase celestial, como se o paraíso estivesse sendo 4 AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1971. p. 447. 166 recriado no interior do templo. Ao mesmo tempo, o fiel deveria sentir-se empolgado, extasiado, humilhado e oprimido diante daquela manifestação de poder e magnificência. Neste sentido, as igrejas eram pontos de convergência do povo e todos seus elementos tinham significância. O púlpito era importante, visto que o sermão se constituía num elemento de mobilização da opinião pública. Embora ainda muito rígidas na fachada, as primitivas igrejas já eram bem decoradas no interior. Dentro das igrejas, houve os espaços necessários para a imaginação do artista colonial, mesmo quando muito já vinha pronto de Portugal. Proliferaram azulejos, volutas e espirais. O decorativismo assumiu um caráter minucioso e requintado, fundindo-se arquitetura, escultura e pintura para oferecer um efeito global. A santuária 5 legou obras de inestimável valor para a cultura brasileira e a torêutica 6 teve grande importância na decoração e os nichos, lugar onde se colocavam as imagens sobre os altares, eram envolvidas pelos retábulos, molduras muitas vezes suntuosamente decoradas. A escultura no Brasil desenvolveu-se segundo o modelo português, tendo como característica mais original os interiores decorados com talha dourada e policromada, ocupando todos os espaços interiores das igrejas. A igreja dourada foi a maior inovação do barroco português, onde a talha dourada recobria toda igreja. Esses interiores irão influenciar as colônias na Índia e no Brasil. Os primeiros artistas são jesuítas ou beneditinos formados nos próprios conventos, ou artesãos educados pela ordem. Os primeiros centros de arte estão localizados perto da costa, em Pernambuco e Bahia, Rio de 5 Santuária é o conjunto de ornamentos que compõe a decoração de uma Igreja, incluindo imagens, pinturas, etc. 6 Torêutica significa a arte de gravar, cinzelar e esculpir em metais, marfim e madeira. 167 Janeiro e só mais tarde chega para o centro em São Paulo e por último no Rio Grande do Sul. As esculturas quando começaram a ser feitas no Brasil, assumiram um caráter realista, tornaram-se policromadas, com articulações e cabelos humanos. A função didático-pedagógica levou à exploração das expressões faciais e dos gestos, enfatizando-se a dor e morte e criando-se uma encenação densa e teatral, conforme a tendência barroca de valorizar ao máximo a retórica visual. Unindo as pessoas através de uma combinação de emoção e piedade, a estatuária barroca veio a ser um compromisso de fé, um instrumento de coesão social e, estimulando a devoção, teve uma função mais catequizadora do que estética 7 . Enfim, tudo convergia para fazer do catolicismo um espetáculo e uma encenação, incluindo procissões, música, novena e sermões. Nesse processo, cabia ao artista plástico fornecer o cenário adequado à cerimônia, reforçando a ideologia vigente com toda a carga de solenidade, magia e sedução. O barroco no Brasil sobreviveu por mais de 60 anos ao europeu, pois Aleijadinho continuou trabalhando neste estilo em suas geniais produções até o ano de sua morte, em 1814. Muitas igrejas só foram terminadas durante o início da República. Em conseqüência disso surge o termo barroco tardio. No Rio Grande do Sul o barroco em geral possui uma simplicidade na fachada e suntuosidade no seu interior. Isso se explica pelas dificuldades encontradas na obtenção de recursos para a ornamentação das fachadas e exteriores das igrejas, pois não se contava com recursos humanos e materiais, sobretudo a pedra. No entanto havia facilidades 7 LOPEZ, Luis Roberto. Cultura brasileira: das origens a 1808. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1988. p. 47. 168 para a decoração do interior, pela abundância de madeiras próprias para a talha e de ouro para a sua douração 8 . A pedra era escassa no interior da Colônia. além de ter seu transporte muito dificultado pela falta de condições estruturais (estradas, meios de transporte, etc.). Em Minas Gerais empregou-se a pedra sabão e o itacolomito, no fim do século XVIII, sendo estes tipos fáceis de esculpir e abundantes nesta região. Essa diferença de contraste entre o exterior e o interior das igrejas também tem outras explicações. Uma delas é a força que manteve a tradição da arquitetura românica em Portugal, com suas estruturas sólidas, sóbrias e maciças. Outra é a austeridade do exterior de nossas igrejas enquanto expressão de uma sociedade local mais rústica e menos refinada que suas semelhantes européias 9 . Durante o governo de D. José, surge no cenário político da Europa o marquês de Pombal, que exerce a função de Ministro do Estado do Reino. Em relação à colônia, Pombal declarou a liberdade dos índios e sua emancipação da tutoria jesuítica, levantando contra si os protestos da Companhia de Jesus, que passa a criticá-lo. Começa então uma luta entre o marquês e os padres, que o acusavam de ser contrário à religião cristã. Em 1773 Pombal consegue fechar a ordem. Esse anticlericalismo se reflete na colônia pela proibição da construção de seminários e conventos, sendo mais um fator para explicar a simplicidade das construções barrocas 10 . Por isso, salvo exceções, o aspecto externo das igrejas coloniais do Rio Grande do Sul é simples e sem enfeites decorativos, caracterizando o nosso barroco como pobre no exterior, e em contraste, rico no interior das igrejas. 8 ETZEL, Eduardo, op. cit., p. 45. LOPEZ, Luis Roberto, op, cit., p. 42. 10 FLORES, Moacyr, op. cit., p. 66. 9 169 Pela carência de recursos amplos, decorria largo espaço de tempo entre o início da obra e seu acabamento final, sendo que as condições econômicas de cada região sofriam alterações que levavam a acelerar ou retardar sua edificação. Como o Brasil sempre foi rico na madeira, o que faltou para o exterior sobrou para o interior, a partir das monumentais portas esculpidas. Vê-se no interior das igrejas a abundância de talha em cedro recamada de folhas de ouro, o que é característico do barroco brasileiro. Por essa dificuldade na obtenção de recursos destinados às construções, houve um largo espaço de tempo entre o início e o fim de uma obra, sendo que muitas vezes se iniciava com uma simples capela, que logo ruía ou se desgastava, sendo substituída por outras reconstruções, e a data de construção inicial acaba ficando como data da atual. Portanto a maioria das igrejas no RS iniciava suas construções no apogeu do barroco europeu, mas terminavam já no período neoclássico, dessa forma aplicando-se bem o termo barroco tardio. 170 Fig. 1 Igreja N. Sra. da Conceição – Porto Alegre, RS. Fig. 2. Porta de entrada. 171 Fig. 3. Escultura em madeira do teto e arco do cruzeiro. Fig. 4. Altar esculpido em madeira 172 Fig. 5. Igreja Matriz de Viamão, RS. Referências ALVIM, Sandra. Arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/IPHAN, 1999. v. II. AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos/Ed. da Universidade de São Paulo. 1971. 173 BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, [s.d.]. ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: psicologia e remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São Paulo: Melhoramentos/Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1993. GUIDO, Ângelo. Conceito do Barroco, In: Aspectos do Barroco I. Porto Alegre: Ed. da Universidade. [s.d.]. HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1994. LOPEZ, Luis Roberto. Cultura Brasileira: das origens a 1808. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1988. PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins, 1942. WÔLFLLIN, Heirich. Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália. São Paulo: Perspectiva, 1989. 174 12 AS COLÔNIAS DE NOVA FRIBURGO (RJ) E TORRES (RS): UM ESTUDO COMPARATIVO _______________________ Marcos Antonio Witt ∗ O presente texto tem como objeto de estudo a comparação entre as colônias de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e a de Torres, no Rio Grande do Sul 1 . Os referenciais que servem de base para esta análise são o artigo de Maria José Carneiro e as pesquisas que o autor vem desenvolvendo desde a sua graduação em História. Ambas as análises são complementadas pela historiografia da imigração alemã e por estudos específicos pertinentes ao tema. O texto de Carneiro faz uma varredura na história dos suíços e alemães instalados em Nova Friburgo a partir de 1818. De maneira sintética, pode-se dizer que a autora verifica a passagem dos descendentes destes indivíduos de “colonos” a “jardineiros da natureza”, como consta no título de seu artigo 2 . Embora a colônia alemã das Torres ainda não tenha atingido tal processo, ou seja, os lotes coloniais na sua maioria continuam com a sua função original — a produção de gêneros agrícolas —, o fracionamento das ∗ Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos — UNISINOS. São Leopoldo/RS. Av. Henrique Bier, 2307, São Leopoldo/RS, CEP 93135-000. E-mail: [email protected]. 1 As colônias de Nova Friburgo (RJ) e Torres (RS) foram instaladas a partir de 1818 e 1826, respectivamente. Ambas as colonizações integravam o projeto imperial de distribuir colônias estrangeiras em pontos estratégicos do litoral do Brasil com o objetivo de povoar o território, produzir alimentos e fornecer soldados para as tropas imperiais. Ver: LUNCKES, Mariseti Cristina Soares. Um velho projeto com novos rostos: uma colônia alemã para a Ponta das Torres. Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós Graduação em História, UNISINOS. São Leopoldo, 1998. 2 CARNEIRO, Maria José. Descendentes de suíços e alemães de Nova Friburgo: de “Colonos” a “Jardineiros da Natureza”. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). História de imigrantes e de imigração no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 44-65. 175 propriedades agrícolas e a conseqüente dispersão dos descendentes destes colonos são semelhanças encontradas nas duas colônias. Pesquisando os Registros Paroquias da Lei de Terras (1850) e os Livros de Tabelionato, foi possível constatar o que já se evidenciava em pesquisas e estudos anteriores: desde a sua instalação, os colonos começaram a vender, trocar e fracionar os seus lotes agrícolas. Além disso, com um alto índice demográfico, rapidamente as terras tornaram-se insuficientes para tantos filhos e para as gerações subseqüentes. Foi assim que, num primeiro momento, os descendentes dos colonos de São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas 3 espalharam-se pelo restante do Litoral Norte do Rio Grande do Sul (LNRS) e, também, pelos Campos de Cima da Serra (hoje São Francisco de Paula, Lagoa Vermelha, Bom Jesus, Vacaria...). Este mesmo fracionamento das propriedades agrícolas ocorreu em Nova Friburgo, também ocasionado pelo grande número de filhos de cada família, obrigando a busca por novos locais de moradia e de empregos alternativos, quase sempre externos ao núcleo colonial. Tão importantes quanto este são os outros motivos enumerados por Carneiro, os quais colaboraram para o quadro degenerativo da colônia: o número de imigrantes superior ao acordado, a topografia muito acidentada (região serrana), a deficiência das acomodações para os colonos, a fragilidade dos meios de comunicação com os centros urbanos e a ausência de uma administração eficaz por parte do governo imperial, fatos que permitiram, desde logo, as primeiras crises entre os colonos e as autoridades responsáveis pela distribuição das terras (Carneiro, 2000, p. 45). Realidade idêntica à que os colonos do LNRS viram-se confrontados. 3 A antiga Colônia Alemã das Torres foi dividida em dois núcleos: em São Pedro de Alcântara ficaram os católicos, e em Três Forquilhas, os evangélicos. Cabe ressaltar que os motivos de tal divisão foram o número excessivo de colonos remetidos à região e as cheias do rio Mampituba (o qual separa os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina), que obrigaram o Tenente Coronel Francisco de Paula Soares a buscar novas áreas para o assentamento dos colonos. Ver: RUSCHEL, Ruy Ruben. Por que foram os colonos separados por motivos religiosos? In: ELY, Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo. Porto Alegre: EST, 2000. p. 38-41 176 Os aspectos acima remetem ao questionamento principal que permeia este texto: até que ponto o fracionamento das propriedades agrícolas e a dispersão dos descendentes dos colonos contribuíram para uma ausência de identidade social e uma memória genealógica curta — nas palavras de Carneiro —, levando-se em conta que a “relação... do camponês com a terra era um elemento fundamental para a criação de espaços de sociabilidade que alimentam laços de solidariedade, definindo alianças e contribuindo para a elaboração de identidades sociais” (Carneiro, 2000, p. 47 e 49). O que Carneiro diz em relação a dois distritos de Nova Friburgo equivale para São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas: Tendo sua origem na primeira experiência oficial de colonização de população européia no Brasil, os moradores dos distritos de Lumiar e São Pedro da Serra guardam poucos registros dessa história, a tal ponto que tratá-los, hoje, como ‘descendentes de imigrantes’ é algo que soa um tanto distante e estranho a seus próprios ouvidos. Apesar da pele clara, dos olhos azuis, dos cabelos alourados e dos nomes de família, poucos são os que se reconhecem como diferentes dos demais brasileiros que compartilham com eles a ocupação desse território (Carneiro, 2000, p. 44). Vamos por parte. Em 1996, um grupo de pesquisadores, professores e outros interessados promoveu uma festa alusiva aos 170 Anos da Imigração Alemã no Vale do Três Forquilhas 4 . Pode-se afirmar, com certeza absoluta, que 95% das pessoas que assistiram às comemorações e participaram do domingo festivo eram “de fora” do núcleo colonial, isto é, descendentes vindos de outras cidades para rever a terra de origem, visitar parentes ou simplesmente fazer um passeio de fim de semana. A população colonial praticamente esquivou-se das festividades, uns entendendo a festa como um evento da Igreja Luterana (IECLB), pois foi usada a sede desta instituição 4 Este evento foi fruto de um trabalho de equipe, cuja organização esteve aos cuidados da historiadora Nilza Huyer Ely e dele resultou o livro ELY, Nilza Huyer & BARROSO, Véra Lucia Maciel (Orgs.). Imigração alemã: 170 anos. Vale do Três Forquilhas. Porto Alegre: EST, 1996. 177 tanto para o culto quanto para o almoço; uns achando que o evento estava sendo motivado por interesses político-partidários — e quem era contrário ao partido o qual estava no poder deixou de comparecer —; e outros que não captaram o sentido, o propósito daquela comemoração, ora porque não os tocou, ora porque os promotores pareciam estar intrometendo-se no seio da comunidade: eram “pessoas de fora”. Todavia há um aspecto importante no final da citação de Carneiro o qual vale ser destacado. Ao contrário dos descendentes de Nova Friburgo, muitos dos colonos do LNRS perderam o fenótipo apresentado pela autora: “pele clara, ... olhos azuis, ... cabelos alourados e ... nomes de família..”.. (Carneiro, 2000, p. 44). Sobre as características físicas, desde o início da colonização, os alemães viram-se confrontados com a população nacional que já ocupava os campos existentes entre a serra geral e o mar. Deste contato, originaram-se casamentos interétnicos e, quanto aos sobrenomes, com o passar dos anos, vários deles sofreram alterações na forma escrita, a tal ponto que existem, hoje, descendentes destes imigrantes desconhecedores da origem da sua família. É preciso considerar ainda a mobilidade espacial associada à instabilidade crônica das condições de produção agrícola (Carneiro, 2000, p. 44) do século XIX, sobretudo numa região que estava distante de mercados centrais como Porto Alegre ou Rio Grande. A mobilidade — leia-se o ir e vir dos colonos — deve ser entendida como uma busca de alternativas para a sobrevivência e não como um ato impensado ou a sujeição destes colonos aos seus caprichos e desejos. Zarth alerta para a situação do mercado agrícola do Rio Grande do Sul no século XIX, mostrando o fato de a situação de instabilidade e as dificuldades de comunicação e transporte serem comuns e tremendas em todo o território rio-grandense, o que emperrava o desenvolvimento econômico e cultural de diversas regiões, quer coloniais ou 178 não 5 . Percebe-se, deste modo, que o “discurso da lamentação” em razão das dificuldades de transporte e comércio é insuficiente para explicar o pouco desenvolvimento do LNRS em praticamente todas as suas áreas 6 . De acordo com a idéia de Carneiro sobre a mobilidade espacial associada ao quadro normalmente instável do comércio agrícola, os descendentes dos colonos de Nova Friburgo foram obrigados a buscar alternativas para o trabalho, a renda e a sustentação de suas famílias. Adotamos essa idéia como uma hipótese plausível para São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas, baseados numa breve pesquisa realizada com os descendentes que residem e trabalham atualmente em Canoas, Porto Alegre e São Leopoldo (cidades do RS) e Foz do Iguaçu (PR). As declarações dos entrevistados são unânimes: todos saíram para buscar emprego já que não havia terras para o plantio, quer pelo fracionamento das propriedades ou pela falta de dinheiro para adquirir um pedaço de chão. A partir da década de 1950, intensificou-se esse processo migratório em direção aos centros urbanos, de certa forma repetindo as atitudes dos primeiros colonos, quando, nos anos iniciais da colonização, alguns deles deixaram, trocaram, venderam ou fracionaram os seus lotes agrícolas. Isso gerou um certo distanciamento entre a célula-mãe — a colônia — e os que dela se retiraram, separação que acabou refletindo na manutenção da própria história da colonização daquele local, quer entre indivíduos ou mesmo entre famílias agora segregadas por dezenas ou centenas de quilômetros. 5 ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio Grande do Sul rural do século XIX. Tese (Doutorado) — Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994. 6 Em pesquisa anterior, tentei elucidar um pouco esta prática da “lamentação” e constatei que o fato do LNRS estar fora do eixo central da política e da economia rio-grandense do século XIX, pode ter despertado nos políticos litorâneos a artimanha da “lamentação” com o objetivo de receber, ao menos, as migalhas que caíam da mesa do poder provincial. Ver: WITT, Marcos Antonio. Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a participação de nacionais e de colonos alemães — 1840/1889. Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em História, UNISINOS, São Leopoldo, 2001. 179 Neste momento, deve-se ressaltar a divisão dos colonos de São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas em dois grupos: a grande maioria, a qual continuou ligada à agricultura, e uma minoria que se sobressaiu devido, principalmente, a sua inserção no mundo do comércio e da política. Os colonos e seus descendentes que se diferenciaram da maioria — os exponenciais — deram um salto quantitativo (econômico) e qualitativo (cultural) se comparado aos que deles dependiam tanto para conseguir mercadorias e produtos não existentes naquele local, quanto para solicitar um favor. Parte desta diferenciação social pode estar na origem profissional dos imigrantes, uma vez que não somente agricultores, mas também artesãos foram trazidos para o Brasil com o objetivo de dinamizarem o mercado artesanal/fabril. As mesmas considerações apresentadas por Carneiro para Nova Friburgo em relação à dicotomia agricultor/artesão são válidas para as colônias do Rio Grande do Sul (Carneiro, 2000, p. 46-47). Saliente-se que muitos destes exponenciais compraram e utilizaram mão-de-obra escrava em suas lavouras e no comércio, como os Voges, em Três Forquilhas, e os Raupp, em Torres, o que parece ser um sinal evidente da necessidade de inserirem-se no meio da liderança nacional onde estavam vivendo. Carneiro localiza esta mesma situação em Nova Friburgo, afirmando que: Nessa época, os descendentes dos primeiros imigrantes suíços e alemães já se diferenciavam em dois grupos. Os de maior sorte e de maior poder aquisitivo que conseguiram se estabelecer em terras menos acidentadas e mais férteis, principalmente nas regiões de Cantagalo e Macaé, desenvolveram uma agricultura comercial baseada em áreas mais extensas e, até, na utilização de mão-de-obra escrava. Os demais, que se instalaram em lotes menores e de pior qualidade, centraram a sua reprodução social na agricultura de alimentos voltada para o autoconsumo, com base no trabalho familiar e em baixos níveis técnicos, combinada à lavoura mercantil mais rentável: o café (Carneiro, 2000. p. 50). Cabe ressaltar o caráter específico destas duas colonizações — Nova Friburgo e Torres — se comparado ao desenvolvimento alcançado por São 180 Leopoldo, tão louvado na historiografia clássica da imigração alemã 7 . Sobre a Colônia Alemã das Torres, estudos recentes têm apontado para as suas especificidades, como o estabelecimento de rotas comerciais via tropeiros e a ligação deste espaço com os Campos de Cima da Serra e a província de Santa Catarina. Registre-se um outro desenvolvimento para o LNRS que foge ao enquadramento das teorias desenvolvimentista e germanista. Como São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas estavam impossibilitadas de agigantar o seu comércio com Porto Alegre ou Rio Grande (como fez São Leopoldo) e por “perderem” suas qualidades germânicas, afirmação que pode ser encontrada nos relatórios de presidentes da província 8 e na historiografia clássica da imigração alemã, autores e pesquisadores passaram a olhar para estes núcleos como uma espécie de mancha negra na história da Imigração alemã no RS. Passaram despercebidas para eles as especificidades da história e as contradições da dinâmica que estes grupos estabeleceram com os nacionais. Assim como em Nova Friburgo, a produção e o mercado instável dos gêneros agrícolas e o sistema de herança, o qual partilhava a terra entre todos os herdeiros, foram motivos para gerar dispersão entre os descendentes dos primeiros colonos e criar uma certa caducidade quanto à manutenção dos elos da história da imigração alemã no LNRS. Conforme Carneiro, a dispersão constante impediu a formação de núcleos sociais mais estáveis, o que, certamente, contribuiu para destruir as condições necessárias à reprodução e transmissão da memória sobre a cultura originária. Nesses 7 Por historiografia clássica da imigração entendemos aquela de louvação étnica, na qual as características de um grupo, neste caso os alemães, se sobrepõem aos demais componentes da sua história. É de fundamental importância para esta historiografia destacar os termos “civilizado” e “trabalhador”, dentre outros, e suprimir tudo aquilo que poderia denegrir a imagem dos imigrantes e seus descendentes. 8 Os relatórios encontram-se no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e refletem, entre outros temas, o posicionamento das autoridades sobre a colonização estrangeira no Rio Grande do Sul. A título de exemplo, ver: AHRS — Documentação dos Governantes — Relatórios e Falas dos Presidentes da Província — A7.03 — Relatório do Presidente da Província João Lins Vieira Cansansão de Sinimbú — outubro/1853 e A7.03 — Relatório do Presidente da Província Jeronymo Francisco Coelho — dezembro/1856 e A7.06 — Relatório do Conselheiro Joaquim Antão Fernandes Leão — 1859. 181 termos, é possível sugerir que a perda de referências espaciais e pessoais, principalmente da família, seja uma explicação para a ausência da construção e manutenção de uma identidade sustentada na origem étnica (Carneiro, 2000. p. 49, 55-56). Em síntese, buscou-se, através desta análise, comparar dois núcleos de imigração européia (Nova Friburgo, no RJ, e Colônia Alemã das Torres, no RS), verificando possíveis aspectos que tenham “barrado” a formação de uma etnicidade mais permanente e visível. Não se delineou um aprofundamento sobre os conceitos de grupos étnicos e etnicidade porque este exercício mereceria um acréscimo de páginas ou mesmo transformaria este texto em outro. Sem querer fazer uso da “futurologia”, a última reflexão: Se São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas transformarse-ão em sítios de lazer, ou se os colonos deixarão de ser “colonos” para assumirem a nova profissão de “jardineiros da natureza”, somente as futuras políticas sociais poderão responder 9 . Referências CARNEIRO, Maria José. Descendentes de suíços e alemães de Nova Friburgo: de “colonos” a “jardineiros da natureza”. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). História de imigrantes e de imigração no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 44-65. ELY, Nilza Huyer; BARROSO, Véra Lucia Maciel (Orgs.). Imigração alemã: 170 anos. Vale do Três Forquilhas. Porto Alegre: EST, 1996. 9 O fato de a antiga colônia de Três Forquilhas (hoje, os municípios de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas) ser cortada pela Rota do Sol; a proximidade dos vários núcleos coloniais do LNRS com a praia; e o lento mas gradual incremento do turismo nesta região são variáveis que suscitaram as indagações acima. 182 LUNCKES, Mariseti Cristina Soares. Um velho projeto com novos rostos: uma colônia alemã para a Ponta das Torres. Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em História, UNISINOS, São Leopoldo, 1998. RUSCHEL. Ruy Ruben. Por que foram os colonos separados por motivos religiosos? In.: ELY, Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo. Porto Alegre: EST. 2000. p. 38-41. WITT, Marcos Antonio. Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a participação de nacionais e de colonos alemães — 1840/1889. Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em História, UNISINOS, São Leopoldo, 2001. ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio Grande do Sul rural do século XIX. Tese (Doutorado) — Programa de PósGraduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994. 183 13 A INVERSÃO DA IMAGEM DA COLUNA PRESTES NA IMPRENSA: DE REVOLTOSOS PARA HERÓIS ________________________ Júlia Matos ∗ Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS “O heroísmo dos revoltosos abalou, realmente, o povo brasileiro e deu a medida do extremo a que chegara a paixão pela causa que defendiam.” NÉLSON WERNECK SODRÉ Por compreender que os meios de comunicação de massa, especialmente os jornais, possuem desde suas primeiras aparições na história um papel central na formação ideológica da sociedade, este artigo propõe uma análise sobre a utilização da imagem, construída pela imprensa, da Coluna Prestes, pelo O Jornal, veículo pertencente aos Diários e Associados, durante os primeiros meses de campanha eleitoral, ou seja de agosto a novembro de 1929 e janeiro/fevereiro de 1930. Pretendemos, desta forma, demonstrar como o O Jornal se posicionou ao lado da Aliança Liberal e quais artifícios jornalísticos utilizou para legitimar a campanha de seus candidatos à presidência da República, chegando até a antecipadamente propor uma revolução para garantir a posse de Getúlio Vargas e João Pessoa. Este artigo pretende apresentar uma breve análise de como a imprensa constrói ou desconstrói a imagem do fato, do evento. ∗ Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS e membro efetivo do Circulo de Pesquisas Literárias — CIPEL. 184 Para a melhor compreensão do leitor faremos agora uma breve contextualização. O movimento chamado Tenentismo que deu origem à Coluna Prestes marcou a história nacional como a soma de surtos revolucionários liderados por jovens militares: estes insatisfeitos com os rumos políticos da nação deram início a diversas revoltas no Rio de Janeiro e em outros estados, como protesto em defesa da dignidade ofendida, devido ao caso das Cartas Falsas 1 . O movimento marcado com o incidente chamado o 18 do Forte foi sufocado em 1922, pelo então presidente da República Epitácio Pessoa. No entanto, alguns dos militares revoltosos continuaram conspirando contra o governo. Em 1923, no Rio Grande do Sul, por causa da vitória eleitoral considerada fraudulenta de Borges de Medeiros, a oposição se levantou em armas com o apoio de diversos chefes militares que esperavam a intervenção federal. Um dos líderes da revolução era Assis Brasil que havia concorrido com Borges de Medeiros nas eleições do Estado. Assis Brasil apoiara Arthur Bernardes nas eleições presidenciais enquanto Medeiros apoiara Nilo Peçanha. Por isso, Assis Brasil e os revolucionários acreditavam que o governo Federal interviria a seu favor, o que não ocorreu. O Governo da República interveio, mas a favor de Borges de Medeiros e o movimento foi sufocado. Esta rebelião a primeiro momento de âmbito regional, contra o Governo de Borges de Medeiros, tornou-se nacional, devido ao posicionamento do Presidente da República, Arthur Bernardes, ao lado do Presidente do Estado Borges de Medeiros. Os militares não haviam esquecido ainda o caso das Cartas Falsas e assim, rapidamente os ânimos entre os militares revoltosos se exaltaram novamente. Eclodiu então em 5 de julho de 1924, em São Paulo, mais uma rebelião para depor o Presidente da República Arthur Bernardes. Diversas 1 Episódio que marcou o governo de Arthur Bernardes, as cartas falsas consideradas de sua autoria, ofendiam o Mal. Hermes da Fonseca e somente muito depois do início das revoltas foram desmentidas, o que não arrefeçou os conflitos. 185 unidades militares aderiram à rebelião e os revoltosos gaúchos levantaramse, sob o comando do Capitão Luís Carlos Prestes, e reiniciaram o levante armado. Posteriormente, em dezembro de 1924, o grupo militar rio-grandense liderado por Prestes uniu-se aos paulistas em Foz de Iguaçu, pois, esta cidade era propícia para a fuga ao exílio, por estabelecer fronteira entre três países, Brasil, Paraguai e Argentina. No entanto, Prestes e seu grupo optaram pela continuidade da luta armada, criando assim a Coluna Prestes. Prestes acreditava que era preciso “... organizar uma coluna que fosse dotada de capacidade de deslocamento rápido e que percorresse o interior do país, entrando por Mato Grosso e rumando para São Paulo quando adesões significativas ou novas condições o permitissem” 2 . Os homens que participaram da Coluna ao lado de seu líder Luís Carlos Prestes, partindo do Rio Grande do Sul, fizeram das fronteiras, com Uruguai e Argentina, muitas vezes sua liberdade. O movimento tenentista e a Coluna Prestes declaradamente lutavam por maior participação no Governo, voto secreto e o fim das oligarquias. Sua bandeira foi muito bem explorada pelos opositores do governo de Arthur Bernardes. Segundo Boris Fausto “Durante os anos vinte, tornou-se, para todas as camadas intermediárias e populares da sociedade, o grande depositário das esperanças de uma alteração da ordem vigente” 3 . Mas, como os ideais dos revoltosos da Coluna Prestes podiam ser conhecidos se esta não fazia campanha? Pelo que sabemos um de seus objetivos era depor o governo e para isso precisava de estratégias de guerra e não de campanha para disseminar seus ideais. Em 1925, Assis Chateaubriand opositor declarado do governo de Arthur Bernardes, insistindo nas reportagens, enviou seu primo Rafael Correa de Oliveira para seguir a Coluna Prestes. “... pela primeira vez o público lê na 2 WERNEK, Nelson Sodré. O Tenentismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p. 32. FAUSTO, Boris. Sociedade e Instituições. In: História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977. Tomo III, v. 2, p. 409. 3 186 grande imprensa algo que até então só aparecia em panfletos políticos: entrevistas em que os chefes rebeldes descrevem suas refregas contra as forças regulares do governo federal” 4 . Seu jornal colocado há muito em campanha contra o Presidente Bernardes investiu na imagem romântica e aventuresca da Coluna Prestes, sempre exaltando os feitos do Capitão Gaúcho, “... sabendo que a divulgação dos movimentos da Coluna era mais uma maneira de azucrinar o presidente da República (...) 5 . O Jornal já era um veículo de imprensa de grande sucesso em 1925, contava com uma venda de 40 mil exemplares dia e “... certamente começava a cair no gosto da população” 6 . A imprensa oficial se esforçava por comparar as atividades da Coluna Prestes às do bandido cangaceiro Lampião, o que muito indignava Chateaubriand. Em artigo, publicado na capa do O Jornal, Chateaubriand revidou as acusações da imprensa oficial: O ministro da Justiça, que tanto se preocupa em censurar, não devia permitir a ignomínia dessa comparação. Lampião é bandido, um salteador vulgar, um miseráel que assassina para roubar, um degenerado que se fez cangaceiro a fim de dilapidar os bens e tirar a vida de seus semelhantes. O capitão Prestes é um revolucionário, e, enquanto não for julgado por um juiz civil ou um concelho de guerra, faz parte do Exército brasileiro. O raid do capitão Prestes valerá pela tenacidade e pelo arrojo do soldado-menino de 26 anos, bravo, ardente, pugnaz, como decerto o Brasil não tinha visto nada comparável 7 . Através desta citação vemos a imagem de Prestes que O Jornal fazia questão de divulgar e defender. A campanha em prol da imagem heróica dos revoltosos da Coluna Prestes, liderada pelo O Jornal ganhou novos adeptos em fins de 1925, como os jornais A Noite e o Correio da Manhã. Estes, unidos 4 MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p 150. 5 MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 150. 6 Ibidem. p. 151. 7 CHATEAUBRIAND, Assis. In:_____O Jornal, 1925. p. 01. 187 lançaram uma subscrição pública destinada a coletar dinheiro dos leitores para ajudar os rebeldes. A importância em dinheiro levantada foi entregue a Prestes por Oswaldo Chateaubriand, Irmão de Assis. A entrega do dinheiro e a quantia arrecadada foram amplamente divulgadas pela imprensa, como forma de demonstração do apoio popular à causa revolucionária, “... porque foi uma manifestação inequívoca de que o povo brasileiro aplaudia a campanha que empreenderâmos na defesa de suas liberdades mais caras” 8 . Chateaubriand insistia em promover Prestes e defender com entusiasmo a anistia dos revoltosos da Coluna. A Coluna passou então a gozar de uma imagem positiva, inversa a imagem de guerrilheiros pilhadores divulgada pela imprensa oficial. A positividade da imagem da Coluna para com a população era tanta que o O Jornal, veículo que apoiava declaradamente a campanha da Aliança Liberal, continuou exaltando em inúmeros artigos, reportagens e entrevistas a ação da Coluna Prestes, realizando uma associação desta aos candidatos à presidência da República, Getúlio Vargas e João Pessoa em fins de 1929. Mesmo com os revoltosos da Coluna Prestes exilados na Bolívia desde 1927, durante a campanha eleitoral de Getúlio Vargas o O Jornal entrevistou Luís Carlos. Esta entrevista, visto sua importância para o momento político eleitoral, ganhou destaque na primeira página do jornal, como podemos ver na manchete do dia 16.09.1929 (Fig. 1). A frase destacada nesta manchete deu margem para a possibilidade de apoio dos revolucionários a campanha oposicionista de Getúlio Vargas. 8 Anotação do diário do historiador oficial que acompanhou toda a trajetória da Coluna, Lourenço Moreira Lima. 188 Fig. 1. Entrevista com Prestes ganha manchete no O Jornal em 16.09.1929. (Fonte: Arquivo Museu Hlpólito José da Costa) Devida a imensa popularidade dos revolucionários e sua imagem nacionalista criada pela própria imprensa, o tema da anistia se tornou muito popular e explorado durante a campanha getulista. Neste período uma forte campanha em prol da anistia aos exilados políticos foi lançada pelo O Jornal (Fig. 2). Podemos observar isto através da freqüência de artigos e reportagens que tratavam do assunto. Fig. 2. Campanha em prol da anistia aos exilados políticos tomou força pelo O Jornal. (Fonte: Arquivo Museu Hipólito José da Costa) Neste artigo de 16 de agosto, assinado por Assis Chateaubriand, o assunto é tratado com ironia. Chatô fez elogios irônicos ao então Presidente Sr. Washington Luís e satirizou dizendo anistiá-lo todas as manhãs ao acordar ou sempre ao saber de mais algum de seus “atos descabidos”. Por isso, mesmo sem o apoio de Prestes, O Jornal não deixou de fazer associações dos revolucionários aos candidatos à Presidência, 189 exaltando assim suas posturas nacionalistas. A anistia aos exilados, principalmente aos participantes das revoltas tenentistas, foi o tema da campanha aliancista, é o que podemos ver no discurso veiculado pelo O Jornal, com destaque de página inteira, no dia 07.09.1929 (Fig. 3). Outro fato importante para compreendermos o alcance da campanha, empenhada pelo dono do O Jornal, de exaltação nacionalista da imagem dos revoltosos da Coluna Prestes, é o número de Jornais adquiridos por Chateaubriand durante os anos de 1924 e 1930. Durante estes anos Assis Chateaubriand adquiriu cinco jornais e duas revistas, todos colocados a serviço da campanha aliancista. A compra dos jornais Diário de Notícias do Rio Grande do Sul, Diário da Noite do Rio de Janeiro e o Estado de Minas de Minas Gerais, ocorreu durante a campanha eleitoral com o auxílio, inclusive financeiro, da Aliança Liberal. 190 Fig. 3. Discurso aliancista ganha destaque de página inteira no O Jornal de 07.09.1929. (Fonte: Arquivo Museu Hipólito José da Costa). Como sabemos o Brasil diante de sua imensidade territorial sempre teve dificuldades de integração cultural entre seus estados, no entanto, vemos que a rede de jornais criada na segunda metade dos anos 20 por Chateaubriand atuou como disseminadora dos ideais revolucionários. Desta forma, vemos a importância da imprensa na construção romantizada da 191 imagem da Coluna Prestes e do Movimento Tenentista, que tem perpassado a história até hoje. Entendemos que esta primeira atuação do Diários e Associados na divulgação e defesa dos ideais revolucionários da Coluna Prestes, de certa forma, prepararam os ânimos brasileiros para a posterior Revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas no poder. Isto porque defendia pontos que foram assimilados nas propostas de governo da Aliança Liberal. Os líderes da Coluna não apoiaram a Revolução de 1930, como já não haviam apoiado a campanha de Vargas, por defenderem ideais para a nação e oporem-se a intervenção partidária na causa, o que não invalidou sua ação como precursora e divulgadora dos ideais de anistia, voto secreto e reforma política. Entretanto, sua imagem nacionalista construída pela O Jornal, foi muito explorada durante a campanha eleitoral, com inúmeras associações entre os “heróis nacionalistas gaúchos” da Coluna Prestes e os candidatos à presidência da República, homens de “... coragem e da bravura dos seus conterrâneos (...)” e depois que “têm demonstrado as qualidades que se exigem aos homens de ação realizadora” 9 . Desta forma, vemos que “A palavra carrega a prática social da sociedade, enfeixa os valores de um determinado momento histórico” 10 . As reportagens e entrevistas veiculadas pelo O Jornal elucidam um momento histórico e nos auxiliam a compreender como se deu a construção da imagem de um evento histórico. Entendemos com estes textos que “Os sistemas de valores não são construções particulares de um indivíduo; são, antes, o resultado de todo um contexto socio-histórico que determina as condições de produção do discurso 11 . Sendo assim, o O Jornal e sua obra são frutos de seu tempo e devem ser analisados como tal. 9 Coluna “A Successão Presidencial” de 07 de agosto de 1929, p. 01. CINTRA, Ana Maria. Para entender as linguagens documentárias. 2. ed. São Paulo, Polis, 2002, p. 11. 11 Idem 10 192 Fontes Arquivo Museu Hipólito José da Costa. O Jornal, ago./dez. 1925. O Jornal, ago/dez. 1929. O Jornal, jan/fev. 1930. Referências CINTRA, Ana Maria. Para entender as linguagens documentárias. 2. ed. São Paulo: Polis, 2002. FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930. In: FAUSTO, Boris; MOTA, Carlos G. (Orgs). 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Quanto à questão dos irmãos maristas franceses no período de propagação da germanidade nas colônias de origem teuta, aqui no Estado, esta quando trabalhada é posta de forma superficial. Segundo o autor Riolando Azzi, “falta ainda um estudo mais profundo que analise as vinculações do clero católico com a germanidade”. Esta frase nos fez perceber que o desenvolvimento da pesquisa era válido, na medida em que analisamos os reflexos da germanidade nas escolas coloniais e como a Congregação Marista, de origem francesa, conseguiu realizar o seu projeto educacional nos redutos teutos durante as primeiras décadas do século XX. A Congregação Marista surgiu na França após a Revolução Francesa, onde foi percebida a necessidade de oferecer à Juventude francesa, das zonas rurais, um ensino voltado para a formação religiosa, ∗ Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 194 intelectual e esportiva de seus alunos. Estas características fizeram com que as escolas, fundadas por Marcelino Champagnat, se destacassem e se espalhassem pelo interior da França. Durante o século XIX e início do século XX, a Congregação e as demais Ordens religiosas, que estavam envolvidas em atividades educacionais, sofreram com a inserção das idéias iluministas, que visavam a gradual laicização das escolas francesas. A Congregação, em especial, sofreu o maior golpe em 1903, com a instalação da Lei de Combes 1 , nesta foi decretado o fechamento de 400 escolas maristas e o exílio dos irmãos. A partir de então, a Congregação Marista espalhou-se por diversas partes do mundo. Já a vinda da Congregação para o Rio Grande do Sul, está relacionada à exigência das colônias teutas de instalarem escolas em suas comunidades mais afastadas. Os padres jesuítas, que eram os detentores do poder educacional desde a segunda metade do século XIX, sentiram a necessidade de pedir auxílio aos irmãos maristas franceses, já que estes eram conhecidos por atenderem as comunidades rurais, no interior da França. A instalação da Congregação aqui no Rio Grande do Sul, provocou um acelerado processo expansionista da mesma, devido à nova pedagogia de ensino integral aplicada pelos irmãos e devido à precariedade do ensino gaúcho, principalmente nas regiões coloniais mais afastadas 2 . Após o sucesso obtido pelos maristas, no início do século XX, os primeiros empecilhos propiciados causados pelas diferenças culturais com as comunidades teutas começaram a surgir, em especial no período de 1910-1922. Esta delimitação temporal foi definida a partir das situações de conflito 1 O criador da Lei de Combes foi Émile Combes (1835-1921), antigo seminarista e político francés, fazia parte do governo anticlerical de Léon Bourgeois e depois fez parte do mandato de René Waldeck-Rousseau, como Primeiro Ministro do Interior e da Religião. A lei de Combes foi instaurada em 1903 onde as Associações religiosas precisavam da autorização legal do Estado para funcionar. 2 Para saber mais sobre o histórico da Congregação Marista no Rio Grande do Sul, recomendamos a leitura dos estudos de Ir. Eugênio Damião, Ir. Nadir Bonini Rodrigues e de Riolando Azzi. A referência completa encontra-se na bibliografia. 195 existentes entre os irmãos maristas e as comissões escolares que controlavam o desenvolvimento da educação nas colônias de origem teutocatólicas. A questão de preservação da identidade germânica está intimamente ligada ao exarcebado patriotismo implantado pela monarquia Hohenzollern, após a Guerra Franco-Prussiana (1871). Neste período a monarquia assumiu o controle das escolas, promovendo a construção do espírito alemão e a concepção de uma Alemanha suprema, superior a tudo que jamais existiria, ou seja, uma nação divina. Sobre a construção deste espírito alemão através da educação, H.G. Wells apresenta os deveres do professor durante a dinastia Hohenzollern: O mestre, o professor que não ensinasse e pregasse, com oportunidade e fora de oportunidade, a superioridade racial, moral, intelectual e física dos germanos sobre todos os outros povos, a sua extraordinária devoção à guerra e à sua dinastia e o seu inevitável destino à direção do mundo sob a égide dessa dinastia, era homem marcado, fadado ao desastre e a obscuridade (Wells, 1939, p. 306). Durante este período, o ensino de história na Alemanha, se transformou numa grande manipulação forjada pelos interesses do governo Hohenzollern. Quanto às demais nações, estas eram vistas como incapazes ou decadentes; e os prussianos seriam os condutores e os regeneradores da humanidade (Wells, 1939, p. 306). Sabemos que muitos imigrantes teutos vieram para o sul do Brasil com esse sentimento patriótico exarcebado imbuído em sua bagagem cultural. Esta era uma característica, principalmente, dos teutos oriundos dos redutos urbanos, que devido ao contato com outras culturas (lusa, italiana, polonesa...) viam a sua integridade cultural germânica ameaçada. Aqui no sul, a difusão da germanidade foi orientada por intelectuais que possuíam acesso às escolas e à imprensa, sendo que através destes meios, lutavam pela preservação da identidade teuta através da língua alemã. 196 Com esta breve caracterização do espírito alemão e sua ligação direta com as escolas e o ensino, fizemos o seguinte questionamento: Sendo os maristas oriundos de uma congregação francesa, qual foi o impacto de sua atuação nas colônias alemãs, durante a difusão do germanismo no Rio Grande do Sul? A partir desta problemática percebemos que a vinculação existente entre a fé católica (jesuítas) e a germanidade impedia que se visse com bons olhos qualquer interferência de religiosos oriundos de outra nação para dentro de uma zona caracteristicamente alemã. Especialmente quando estes religiosos eram de origem francesa, devido às tensões históricas existentes entre França e a Alemanha. Tensões estas que estão relacionadas à situação de fronteiras que se agravaram no decorrer da Primeira e Segunda Guerra Mundial. Segundo Eugênio Damião, a questão da germanidade foi um dos principais motivos para que surgissem atritos entre os maristas e as comissões patrocinadoras escolares. Esta questão é ressaltada no Histórico da Província do Brasil Meridional: Decepcionou, de certo modo, aos homens de influência o fato dos Irmãos Maristas serem franceses, embora vindo da Lorena... Quando notaram que os religiosos ensinavam, no colégio, além do alemão e do português, ainda o francês, ficaram por assim dizer mais atentos à sua ação. De fato, os irmãos ensinaram o português desde o início, mesmo na escola paroquial, ainda que o programa não exigisse (Damião, 1950, p. 136). As divergências estavam relacionadas às matérias lecionadas, pois achavam que não estavam dando atenção suficiente à língua e à cultura germânica. Segundo Azzi, no ano de 1907 os irmãos maristas se propuseram a comprar o prédio do colégio de Bom Princípio, mas o jornal Deutsches Volksblatt lançou um apelo para que de maneira alguma o educandário de Bom Princípio fosse vendido aos irmãos, alegando que estes haviam 197 desvirtuado os objetivos fundamentais da germanidade traçados inicialmente para a escola complementar. Em 1918, os maristas foram afastados da direção da Escola de Bom Princípio, pois pretendiam dar feriados aos alunos em datas brasileiras, o que contrariava o desejo da Comissão Paroquial. Após esta decisão e depois de outros atritos ocorridos em escolas alemãs e os religiosos maristas, estes resolveram sair do reduto cultural dos imigrantes alemães, partindo para atender as solicitações dos colonos italianos. Acreditamos que a defesa da germanidade e a reação frente à pedagogia francesa aplicada pelos irmãos estavam associadas à perda do monopólio cultural e educacional dos jesuítas. De forma que estes se utilizaram os princípios de preservação da integridade cultural alemã para que a expansão educacional marista fosse freada nas comunidades de origem teuta. Considerando o fato de que a pesquisa atinge duas etnias distintas — a alemã com os teuto-brasileiros e os jesuítas e a francesa com os irmãos maristas — utilizamos o estudo de Norbert Elias para entendermos que as auto-imagens nacionais representadas através de conceitos como “Civilização” e “Kultur” assumem formas distintas. Por mais divergentes que seja a auto-imagem dos alemães, que falam com orgulho de sua “Kultur”, e a de franceses, que se envaidecem com a sua “civilização”; todos consideram esta a maneira como o mundo dos homens como um todo, quer ser visto e julgado (Elias, 1996, p. 25). Deste modo compreendemos que o imigrante alemão, aqui no Rio Grande do Sul, aplicou a manutenção do “Kultur” através de suas escolas, sociedades e pela preservação de seu idioma materno. Quanto à chegada dos irmãos maristas nas escolas teutas, que tiveram toda a sua base pedagógica francesa, o termo “Civilização” pode ser encontrado na idéia de expansão, ou seja, de levar o conhecimento a todos e de fazer com que seus 198 alunos estudassem além do idioma alemão, o português e também o francês. Este espírito de “civilizar” francês foi um dos fatores que propiciaram o rápido avanço que a Congregação Marista teve pelo mundo após a sua saída da França com a chamada “Lei de Combes” no ano de 1903. Como mencionamos anteriormente, a nossa hipótese de que a manutenção da identidade cultural teuta tenha sido utilizada pelos padres jesuítas como uma forma de deter o avanço educacional marista nos núcleos de origem alemã está calcada na teoria de dominação simbólica, onde por meio do imaginário coletivo o imigrante pode ser atingido. Segundo Baczko, em seu texto “Imaginação Social” (1985, p. 332), qualquer coletividade produz um sistema simbólico que compreende os imaginários sociais, e que para a garantia desta difusão é necessário controlar instrumentos relacionados à persuasão, pressão e inserção de valores e crenças. Assim a defesa pela integridade cultural teuta se difundiu através da imprensa (persuasão), da religião (pressão) e das escolas (inserção de valores e crenças), formando uma rede que através desta a construção do imaginário se dividiu e montou seus próprios objetivos (preservação da integridade cultural). Para Baczko, a construção desta coletividade: ...designa sua identidade, elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais, é produzido, em especial, uma representação global e totalizante da sociedade como uma ‘ordem’ em que cada elemento encontro o seu ‘lugar’, a sua identidade e a sua razão de ser (Baczko, 1985, p. 309). Com a definição de que os jesuítas tenham controlado a expansão educacional marista a partir do imaginário coletivo e de que sua propagação esteve diretamente ligada a redes de controle coletivo como: Imprensa, Igreja e Escola. Consideramos de suma importância destacar a participação destes elementos na manutenção do “Kultur” e também na propagação do germanismo. 199 Esta atribuição a Ordem Jesuítica está relacionada a sua influência, na época, em todos os elementos da rede simbólica. Podemos citar como exemplo a sua participação na imprensa através do Deutsches Volksblatt e no Lehrerzeitung; na religião por serem os responsáveis pelas paróquias das comunidades teutas e por fim na escola por serem os responsáveis pela formação de escolas paroquiais nas colônias de origem alemã do Estado. Com todas estas informações, é possível que o leitor faça o seguinte questionamento: “Já que o ideal jesuíta era o de preservar a integridade cultural teuta às futuras gerações, por que então foi chamado o auxílio de uma congregação de outra etnia?” A resposta está ligada ao objetivo a um projeto maior, de maneira que a vinda da congregação não estava associada somente à falta de professores na região alemã, mas também estava ligada a um projeto católico que visava evitar a propagação de escolas leigas por um lado e de luteranas por outro. Esta breve caracterização é válida no sentido de entendermos o sentido no qual padres jesuítas alemães convidaram professores de uma congregação francesa para auxiliá-los no seu projeto educativo. De início as primeiras ações maristas nas escolas paroquiais teutas foram aprovadas pelos padres jesuítas, no entanto, com o passar das fundações maristas, os jesuítas deixaram de ver os irmãos como aliados e sim como concorrentes. Já que toda a estrutura educacional das comunidades teuto-católicas era supervisionada e administrada pelos jesuítas. Com a chegada dos maristas esta estrutura monopolista foi quebrada, o que gerou o desencadeamento de atritos entre jesuítas e maristas. É importante lembrarmos que estamos falando de duas instituições católicas que estão marcadas não só por suas diferenças estruturais como também por suas diferenças identitárias, onde uma preserva o “Kultur” (jesuítas alemães) e a outra leva a todos a sua civilização (maristas). 200 Para que possamos compreender estas divergências estruturais e identitárias selecionamos alguns pontos de discordância entre as duas instituições: • Os jesuítas alemães possuíam um projeto educativo baseado na manutenção da integridade cultural e identitária do teuto-brasileiro. Os maristas vieram para cá com o espírito universalista fazendo com que seus alunos expandissem seus conhecimentos através de uma pedagogia integral. • Os jesuítas alemães possuíam um sistema de ensino mais rígido, onde a relação entre professor e aluno era extremamente distante e a disciplina era bastante rigorosa. Os maristas trouxeram uma pedagogia mais flexível em relação aos jesuítas, considerando a relação do professor-aluno mais próxima e o sistema disciplinar era mais flexível, esta característica está associada à pedagogia de presença. • Os jesuítas utilizavam a cultura local para difundir os valores católicos. Os maristas utilizaram a pedagogia para a difusão destes mesmos valores. Sabemos que existem outras diferenças entre as duas instituições, no entanto, selecionamos apenas estas por terem sido as principais motivadoras das desavenças. Os confrontos muitas vezes podem ser marcados também pela igualdade de objetivos, como no caso dos jesuítas e maristas, ambos possuíam o espírito educacional expansionista e catequizador. O caso do Rio Grande do Sul é um bom exemplo deste ideal catequizador das instituições, onde estas buscam o controle educacional do território rio-grandense promovendo uma verdadeira disputa pelo espaço cultural do Estado. Para exemplificarmos a nossa afirmação selecionamos duas citações, uma apresentando a idéia dos jesuítas de não perderem o seu domínio 201 cultural na região teuta e outra que ressalta o projeto educacional expansionista marista: Para aliviar a nossa sociedade do peso do magistério, foram chamados os irmãos das escolas, denominados maristas. Principiaram esta tarefa e, 1° de janeiro de 1903. Os edifícios, contudo, os móveis da escola, assim como a administração e a direção permanecem em nossas mãos (Azzi, 1997, p. 256 apud Líber generallis residentiae S. Crucis. S.J., 1903). A citação apresenta claramente o intuito dos jesuítas de terem os irmãos apenas na docência da escola, não dando abertura para uma possível ascensão. Outro ponto observado se refere à necessidade de mostrar os maristas como subordinados ao domínio administrativo dos Jesuítas. Podemos associar a idéia de domínio e subordinação ao imaginário que cercava o teuto, no caso os jesuítas alemães, que ele representava um modelo de superioridade em relação às demais nações, principalmente em casos relativos aos franceses (maristas), já que suas rivalidades ocupam o campo histórico e cultural. A próxima citação está associada ao interesse da Congregação Marista de expandir o seu projeto educacional, esta foi um trecho extraído da carta enviada pelo Ir. Weibert ao Superior Geral Marista: Eu acabo de apresentar meus títulos franceses a fim de ser nomeado para a escola oficial (...). Eu me comprometi de apresentar em dos meus professores aos exames de dezembro de 1901 para a obtenção do diploma; se o bom Deus me der saúde e um pouco de tempo, eu mesmo me prepararei a estes exames cujo programa é muito pesado (é o diploma superior francês). Se como eu espero a coisa saia bem, será um precedente; e nós poderemos desta maneira ter muitos estabelecimentos no Estado do Rio Grande do Sul (Rodrigues, 2000, p. 59). O trecho final destaca a possibilidade e o desejo do Ir. Weibert de instalar uma Província Marista aqui no Rio Grande do Sul. Este projeto 202 educacional expansionista se relaciona com a definição do “Civilizar” para o francês, onde este se julga preparado para difundir o conhecimento a todas as partes do mundo, já que o mesmo se denomina civilizado. A idéia de “civilizar” está associada a um sentimento de superioridade em relação a uma outra nação menos “civilizada”. Este é mais um fator de igualdade entre os maristas, que difundem pelo mundo sua pedagogia humanista com base francesa e os jesuítas alemães que vieram para as terras do Rio Grande do Sul com um forte sentimento de superioridade adquirido principalmente no período de Bismarck na Alemanha. A contribuição dos irmãos nestas colônias foi indiscutível, já que os mesmos complementaram e aperfeiçoaram o trabalho já desenvolvido pelos padres jesuítas aqui no Rio Grande do Sul, mais especificamente nas colônias teutas. Mesmo com os desentendimentos com as comissões escolares, os irmãos maristas conseguiram implantar um sistema educacional tão eficaz que quanto mais se conheciam, mais solicitações eram recebidas, gerando um grande descontentamento por parte da Ordem Jesuítica, aqui implantada. Por fim, evidenciamos que as divergências entre os maristas franceses e os jesuítas alemães estão relacionadas aos termos “Kultur” e “Civilização”, onde o jesuíta utilizava a educação como um meio de preservar ao máximo a sua identidade cultural de seus educandos através do “Kultur”, já o marista utilizava a educação como um meio de expandir e de levar a todos a sua “Civilização”. Consideramos de suma importância ressaltar que esta mistura entre alemães e franceses no processo de formação das escolas nos núcleos teutos do Rio Grande do Sul trouxeram para as suas comunidades uma espécie de equilíbrio, já que o jesuíta fez com que a comunidade não perdesse por completo a sua identidade cultural e o marista mostrou para a mesma que é possível preservar esta identidade através do conhecimento de outras identidades culturais. 203 Referências ARENDT, Isabel Cristina; SILVA, Haike R. Kleber da. Representações do discurso teuto-católico e a construção de identidades. Porto Alegre: EST, 2000. 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