PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
Chanceler
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Norberto Francisco Rauch
Vice-Reitor
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Conselho Editorial
Antoninho Muza Naime
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Jussara Maria Rosa Mendes
Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva
Marília Gerhardt de Oliveira
Mirian Oliveira
Urbano Zilles (Presidente)
Diretor da EDIPUCRS
Antoninho Muza Naime
ELVO CLEMEMTE
ORGANIZADOR
Porto Alegre
2004
EDIPUCRS, 2004
Capa:
AGEXPPUCRS
Preparação dos originais:
Ir. Elvo Clemente
Revisão de normas:
Anaí Zubik Camargo de Souza
Revisão:
Elvo Clemente
Editoração:
Supernova
Impressão e acabamento:
EPECÊ
Coleção CONESUL – 4
Coordenação da Coleção:
Elvo Clemente
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
161
Integração: história, cultura e ciência: 2003 / Elvo
Clemente, Organizador. – Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004.
189 p. il. – (Coleção CONESUL; 4)
ISBN 85-7430-475-1
1. História – Cone Sul. 2. Cultura – Cone Sul.
3. Ciência – Cone Sul. 4. Integração Regional – Cone
Sul. I. Clemente, Elvo, Irmão. II. Série.
CDD 301.2098
980
Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BCPUCRS.
EDIPUCRS
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da Editora.
SUMÁRIO
___________________
1 Introdução − O tema e a força da integração
Elvo Clemente .................................................................................................... 7
2 Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués
Elvo Clemente .................................................................................................... 9
3 Ciudades Invisibles: su función narratológica
Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués.................................................... 15
4 República Rio-grandense e as fronteiras Platinas
Moacyr Flores................................................................................................... 41
5 Brasil e Uruguai: a “fronteira viva” como estopim
para a eclosão da Guerra do Paraguai
Carla Ferrer ...................................................................................................... 56
6 Duas Visões do Rio Pardo da Prata: Expedição de
Pero Lopes de Sousa (1531) e Expedição de Alvar
Nunez Cabeza de Vaca (1541)
Harry Rodrigues Bellomo ................................................................................. 67
7 Jesuíta Gaúcho se Doutora em Buenos Aires
Luiz Osvaldo Leite............................................................................................ 94
8 Itália Solta a Garganta
Décio Andriotti ................................................................................................ 103
9 O Panorama Celeste da Bandeira do Brasil
Geraldo Rodolfo Hoffmann ............................................................................ 123
10 Sociedade Oitocentista II
Hilda Agnes Hübner Flores ............................................................................ 148
11 Arquitetura e Escultura Barroca no Brasil e no Rio Grande do Sul
Thiago Nicolau de Araújo ............................................................................... 162
12 As Colônias de Nova Friburgo (RJ) e Torres (RS):
um estudo comparativo
Marcos Antonio Witt ....................................................................................... 175
13 A Inversão da Imagem da Coluna Prestes na Imprensa: de revoltosos para
heróis
Júlia Matos ..................................................................................................... 184
14 Conflitos e Identidades: a ação marista nos núcleos teutos do Rio Grande
do Sul
Kate Fabiani Rigo........................................................................................... 194
1
INTRODUÇÃO
___________________
Elvo Clemente
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
O tema e a força da integração
Os sócios do Círculo de Pesquisas Literárias (CIPEL) em seus
quarenta anos de investigações literárias, históricas, filosóficas e políticas
trazem para esta coletânea temas e ilustrações da realidade que se acentua
cada dia no Cone Sul da América, na região rio-pratense. É a vastidão das
águas que se encontra com a imensidão do pampa na contemplação dos
alcantilados contrafortes dos Andes. Aí vive um povo de nacionalidades
distintas, de línguas aparentemente diversas mas unido nos ideais do
progresso, nas conquistas da liberdade regida pelo decálogo do amor.
Procurou-se apresentar os textos de acordo com os temas afins:
• PETRONA DOMÍNGUEZ DE RODRÍGUEZ PASQUÉS – força e
exemplo de integração – Elvo Clemente;
• CIUDADES INVISIBLES: SU FUNCIÓN NARRATOLÓGICA – a ficção
representa a realidade – Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués;
• REPÚBLICA RIO-GRANDENSE E AS FRONTEIRAS PLATINAS –
espaço de conflitos e de colaboração – Moacyr Flores;
• BRASIL E URUGUAI: “A FRONTEIRA VIVA” COMO ESTOPIM
PARA A ECLOSÃO DA GUERRA DO PARAGUAI – fato doloroso de
sangue e heroísmo – Carla Ferrer;
7
• DUAS VISÕES DO RIO PARDO DA PRATA – EXPEDIÇÃO DE
PERO LOPES DE SOUSA (1531) E EXPEDIÇÃO DE ALVAR NUNES
CABEZA DE VACA (1541) – aproximações e fontes de discórdias –
Harry Rodrigues Bellomo;
• JESUÍTA GAÚCHO SE DOUTORA EM BUENOS AIRES – cultura
não tem fronteira, confraterniza – Luiz Osvaldo Leite;
• ITÁLIA SOLTA A GARGANTA – ópera e música unem as pátrias –
Décio Andriotti;
• PANORAMA CELESTE DA BANDEIRA DO BRASIL – o céu austral
é de paz e de harmonia nas alturas e entre os povos – Geraldo
Rodolfo Hoffmann;
• SOCIEDADE OITOCENTISTA II – a vida, o comportamento e
dificuldades da mulher nesse século – Hilda Agnes Hübner Flores;
• ARQUITETURA E ESCULTURA BARROCA NO BRASIL E NO RIO
GRANDE DO SUL – as construções revelam as idiossincrasias dos
povos – Thiago Nicolau Araújo;
• AS COLONIAS DE NOVA FRIBURGO (RJ) E TORRES (RS):
ESTUDO COMPARATIVO – as variações dos usos e costumes
ensinam – Marcos Antonio Witt;
• A INVERSÃO DA IMAGEM DA COLUNA PRESTES NA IMPRENSA:
DE REVOLTOSOS PARA HERÓIS – a mente humana e a opinião
pública são mutáveis – Júlia Matos;
• CONFLITOS E IDENTIDADE: A AÇÃO MARISTA NOS NÚCLEOS
TEUTOS DO RIO GRANDE DO SUL – a história dos educadores maristas
uniu povos diferentes marcando o Cone Sul – Kate Fabiani Rigo.
Nas diferenças ou semelhanças entre os capítulos percorre a força
misteriosa e eficiente da inteligência que une, que integra os povos e
as idades na civilização do Amor.
8
2
PETRONA DOMÍNGUEZ DE
RODRÍGUEZ PASQUÉS
– Força Integradora –
___________________
Elvo Clemente
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
Introdução
Quis a benevolência da estimada Diretora da Faculdade de Letras,
Dra. Regina Zilberman cometer-me a honrosa tarefa de saudar a Dra. Petrona
Domínguez de Rodríguez Pasqués na ocasião em que o Reitor, Prof. Ir.
Norberto Francisco Rauch, cumprindo a resolução do colendo Conselho
Universitário lhe outorga o título de Professor Honoris Causa.
A solenidade e adereços acadêmicos desta hora não tolhem a
manifestação de sentimentos e de caras reminiscências.
Corria o frio mês de julho de 1962, o saudoso Irmão Faustino João
convidou-me a acompanhá-lo a uma viagem à Argentina e ao Uruguai por
ocasião da celebração do Congresso de Pax Romana, em Montevidéu. Em
Buenos Aires em rápida permanência de três dias tivemos o convite da família
Domínguez. Encontramos as três irmãs Clarita, Cristina e Petrona (Mignon)
recentemente diplomada em Letras. Nunca mais esquecemos o encontro e a
amabilidade das três irmãs.
Em nossas palavras apresentaremos os seguintes aspectos da
homenageada desta tarde: a aluna de Letras; a professora e pesquisadora; a
escritora; a integradora do Cone Sul.
9
Estudante exemplar
Nos idos de 1960 a Universidade de Buenos Aires florescia com bons
programas de estudos, com excelente corpo docente e brilhante alunado.
A jovem Mignon, que adotava este nome desde os artigos e crônicas
publicados em La Prensa, desde os 15 anos. Lembramos os professores que
marcaram época na Argentina e alhures: Angel Battistessa, exímio crítico
literário; Raul Castagnino, o mestre da Teoria da Literatura; Enrique Anderson
Imbert, o contista e o mestre da historiografia e da crítica, Amado Alonso, da
Real Academia, iniciador da Estilística.
A estudante Mignon encontrava o que seus sonhos procuravam, cada
lição dos mestres era mais luz para seu caminho de professora de Letras. A
conclusão do curso teve Diploma de Honor. Após o casamento com o jovem
colega de atividades na Ação Católica, Rafael Rodríguez Pasqués, a
estudante continuou a estudar conquistando, em 1966 o Máster of Science of
Language na Georgetown University, Washington, com a dissertação:
Morfologia y sintaxis del
adverbio
enmente, na
língua castelhana.
Continuando nos Estados Unidos, graças aos Cursos de Rafael e de bolsas
renovadas, empreendeu o doutoramento, na The Catholic University of
América, na Capital americana. Defendeu a tese – El discurso indirecto libre
en la novela argentina. O título de Doutora en Lenguas Romances y Literatura
(PhD) lhe sorria triunfante em 1968. O grande mestre que lhe acompanhara
os passos era o saudoso Dr. Hastfedt, da Estilística.
Os estudos e investigações lingüístico-literárias continuaram em pósdoutorados realizados: em seminário de Narratología del discurso pela Prof.
Dra. Elsa Dehemin de Galle, na Université Libre de Bruxelles, em 1988.
A Teoria da recepção foi-lhe ministrada no Romanisches Seminar der
Universität Heildelberg, Alemanha em 1972 e 1974 com os mestres Gadamer
e Jauss. Estudante soube manter-se atualizada nas teorias da literatura, nos
métodos e na historiografia: estudante de vida inteira, pesquisadora em todas
10
as horas e em todos os ambientes, onde pudesse encontrar mais luzes, mais
saber da arte e da ciência da literatura.
Professora e pesquisadora
Durante o curso universitário praticava sua vocação de professora na
escola secundária, ensinando Língua Espanhola e Literatura hispano-americana.
Ao realizar seu doutoramento em Washington foi professora
assistente na Georgetown University de 1966-1970.
Em 1972 era professora visitante da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul. Por seis anos lecionou no Curso de Pós-Graduação de
Letras: Teoria da Literatura; Literatura hispano-americana: crítica literária
estilística; crítica genética e estudo especial sobre Jorge Luís Borges. Nos
cursos regulares e nos especiais de janeiro e julho a doutora Petrona
lecionava a grande número de professores de universidades brasileiras
federais e particulares do Norte, Nordeste e Centro-oeste e do Rio Grande do
Sul. Os seus ensinamentos caíram em terra boa e frutificaram pelo Brasil a
fora. Quantos recordam a professora Petrona em suas aulas e na orientação
de dissertações e teses! A vida e o florescimento do Programa de PósGraduação de Letras muito devem às aulas, ao entusiasmo e à visão
humanista e cristã da doutora Petrona. De 1981 a 1996 foi professora
associada de Literatura Brasileira e Portuguesa na UBA. Já alcançara o título
de professora titular por concurso na UBA. Em 1971 consagrou-se professora
titular de História da Cultura na Universidad Tecnologica Nacional. Exerceu as
funções de Diretor de área de lntegración Cultural na mesma Universidade.
Deu sua brilhante contribuição na Universidad del Salvador e na
Universidad Nacional de La Pampa. Manteve a cátedra na UBA, até sua
aposentadoria em 1996, como professora titular de Seminarios de
lnvestigación em Teoría Literária y Literatura Iberoamericana.
11
Atualmente mantém-se como professora titular de Ingeniería y
Sociedad na Universidad Tecnologica Nacional, UTN. O que faz Mignon no
reino da Tecnologia? É professora de humanismo entre os colegas e alunos
que aspiram algo mais acima dos sucessos da Tecnologia. É o espírito novo
da provecta professora que sabe que os valores do espírito e da eternidade
se sobrelevam aos milagres e misteres da tecnologia.
A escritora
O uso da pena e da máquina de escrever estiveram presentes desde
cedo na família Domínguez – o pai dirigia EI Mundo, jornalista robusto e de
grandes horizontes, a filha Mignon ensaiara desde cedo as manhas da
crônica literária, do conto e dos comentários críticos. Lamentável é a ausência
do álbum de crônicas daqueles tempos...
Em 1995 lançava o livro El pacará de los tucos de la pátria vieja,
Buenos Aires: Colombo, 1955.
Em 1958, apareciam 16 Cuentos Argentinos que comemoram,
hoje, 17ª edição.
Em 1968 recebia o Premio da Sociedad de Escritoras Católicas pelo
livro Tucma; diálogos con Las tierras del Norte.
EI discurso indirecto libre en la novela Argentina, tese do
doutoramento, era publicado pelo editorial da PUCRS, em 1975.
Com excelente estudo introdutório e comentários críticos de Petrona,
publicava-se em 1980, a Antologia de Cuentos fantásticos hispanoamericanos.
Há numerosos capítulos seus em livros coletivos tais como Borges,
em 1991; Estádios de Narratología, 1991; Cartas desconocicias de Julio
Cortazar, 1992 e 2ª ed. 1994; Historia, ficción y metaficción en Ia novela
latinoamericana contemporanea, em 1996; La función narrativa y sus nuevas
dimensiones, Centro de Estúdios Narratológicos, 2001; Nuevas tendências y
perspectivas contemporaneas en la narrativa, em 2001. Numerosos são os
12
artigos seus em revistas argentinas e de outros países como o Brasil,
Espanha, Estados Unidos, França e Portugal. Mignon é escritora, ensaísta e
beletrista nos contos e crônicas.
Força integradora
A professora doutora Petrona por suas atividades de escritora, de
professora e de pesquisadora tornou-se há meio século uma força integradora
de culturas e de povos pelo culto e cultivo das Letras. A integração realiza-se
pela presença em cursos, em congressos e em seminários. Em sua força
juvenil passou dez anos em Washington realizando cursos e ministrando
aulas sobre temas latino-americanos. Durante 50 horas, na Universidade de
Salamanca assistiu e colaborou no curso extraordinário “La Literatura
Iberoamericana en el 2000, Balance y Perspectivas”. Ainda no mesmo ano,
ministrou o curso de especialização em “Medios de Comunicación Social y
Valores”, no Centro de Investigaciones de Ética Social. Tudo encaminha
integração de pessoas, de atividades para o bem das pessoas e da
sociedade. A sua ação integradora é manifesta em sua colaboração decisiva
nos Cursos ministrados durante um lustro no Programa de Pós-Graduação de
Letras nesta Universidade.
Outra manifestação de sua força integradora são as associações e
instituições que a tem como sócia: Asociación Internacional de Hispanistas,
membro de número do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana;
membro da Associação Internacional de Lusitanistas: membro da Sociedad
Argentina de Escritores e do Pen Club Argentino; membro da Modern
Language Association.
A sua força integradora tem seu ápice no Centro de Estúdios de
Narratologia, de Buenos, de que é a fundadora, a presidente e alma das
reuniões e dos simpósios bienais. Fato exemplar foi a I Jornada Internacional
de Narratologia realizada nesta Universidade em 2001 junto com os
Seminários de Crítica Literária.
13
Professora Petrona em sua abertura ao estudo e à investigação
literários por suas conferências em congressos na Argentina, na França, nos
Estados Unidos da América, no Brasil, revela-se como força de aproximação
de culturas e de pessoas que se transformam em energia propulsora de união
e de confraternização entre pessoas de línguas e povos diferentes. Tudo se
une, se irmaniza pelas Letras, na exposição e discussão do fato literário.
Recordando o velho e sempre novo Cícero direi: Mignon Domínguez é a
mensageira que traz a novidade perene das Letras que humanizam sempre mais
o peregrino por estes caminhos tateantes de nossa civilização até encontrar o
conforto aos pés do Mestre que integrou, reuniu a família humana no seu abraço
do alto do Gólgota e que mostrou nova vida em sua Ressurreição, verdadeira
evocação das Letras que unem no tempo e na eternidade.
A vida e a obra da Professora Doutora Petrona Domínguez de
Rodríguez Pasqués estão a nos apontar o caminho de aproximação e de
fraternidade a começar no Cone Sul e abraçar todos os povos no milagre da
verdadeira arte de Amar.
14
3
CIUDADES INVISIBLES:
SU FUNCIÓN NARRATOLÓGICA
____________________
Petrona D. de Rodríguez Pasqués
Universidad Tecnológica Nacional – Argentina
La crítica holandesa Elrud Ibsch ha señalado que en literatura la
ciudad, que no está hecha ni con ladrillos ni con piedras sino con palabras,
tiene tres funciones: Ia primera una función documental: una ciudad
geográficamente identificable es un elemento factual, el efecto de lo real
evocando ciertas expectativas en el lector. La segunda función es la
narratológica que tiene en literatura un elemento estructural que contribuye a
la articulación de acontecimientos en el texto. En tercer término la ciudad en
literatura tiene una función modelizadora: por concentración en ciertos
aspectos semánticos – mientras se descuidan otros – la representación de
una específica ciudad constituye un “modelo”, un esquema cognitivo de la
1
difusa realidad urbana . Demás está decir que la interdependencia y la
interacción entre las funciones documental, narratológica y modelizante se
dan en primer plano dentro de la literatura.
Antes de entrar en nuestro tema conviene partir de Aristóteles quien
al hablar de la polis y el régimen ideal de la ciudad en la Política creía que el
N.A. Los números de las páginas de texto se consignan entre paréntesis. Las traducciones del
português, inglés y francés que figuran en las citas son nuestras.
1
Cfr. Erud lbsch. “The representation of the city in modernist and postmodernist literature”,
CÂNONES & CONTEXTOS, 5 ABRALIC. Anais... Brasil: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
1997. v. I, p. 177.
15
ser humano era por naturaleza, no tanto un animal “político” sino en realidad
cívico o ciudadano (zoon politikón) o sea miembro de una ciudad 2 .
Convengamos en que este ciudadano no tiene que ser entendido
necesariamente en términos de participación política sino en términos de
alguien que pertenece a una ciudad.
Vivimos por naturaleza en una ciudad y así Rafael Gutiérrez Girardot
recuerda que “toda literatura es urbana” 3 .
Italo Calvino en su libro Las ciudades invisibles (1972) propone una
suerte de reescritura entre alegórica y poética del Libro de Ias maravillas de
Marco Polo. El autor veneciano se esforzó por hacer creíbles sus afirmaciones
acerca de las maravillas vistas en su viaje por Asia 4 . Pero esos relatos no
convencieron a sus contemporáneos debido a las circunstancias en que se
escribieron: el Libro de Ias maravillas fue dictado por Marco Polo en la cárcel a
Rusticello de Pisa, autor de libros de caballería del ciclo del rey Arturo.
Calvino logra en Las ciudades invisibles una estrategia narrativa
borgesiana: finge que su libro fue escrito por un autor de otra época.
Marco Polo es el narrador y el venerable Kublai su oyente. Las
historias tienen una o dos páginas. Son historias breves a la manera de
Borges o de Kafka en las que Calvino recupera un relato antiguo para un
texto de ficción contemporánea.
2
Aristóteles. Política (VIl. 5, 1277). 2. ed. Trad. Julián Marías. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales,1970. p. 120.
3
R. Guitiérrez Girardot. “La transformación de la literatura por la ciuad”. La ville et la littérature.
Marche Romane, Liège XLIII, 1993. p. 1-4, p. 121-131. El autor comienza su ensayo con estas
palabras “Es el principio eran las ciudades. Con ellas nace el intelectual en el Occidente
medieval” escribió Jacques Le Goff. Y agrega Rodríguez Girardot “Toda literatura es urbana, y al
menos según eI concepto secular de literatura no hay una literatura catupesina Como literatura
urbana se considera la que tiene a la ciudad como tema central” (121)
4
Marco Polo. Libro de las maravillas. Madrid: Anaya, 1983. Paul Pelliot y C. Moule publicaron en
1938 la primera edición completa reconstituida. Véase Víctor Chlovski Le voyage de Marco Polo.
Paris: Payot, 1993.
16
Estas ciudades de Marco Polo nunca existieron ni pueden existir y
sin embargo la mayoría de los lectores – según Harold Bloom 5 – iría
allí si fuese posible.
Las ciudades de Calvino aparecen en once grupos dispersos: Las
ciudades y la memoria, Las ciudades y el deseo, Las ciudades y los signos,
Las ciudades y los cambios, Las ciudades tenues, Las ciudades y los ojos,
Las ciudades y el nombre, Las ciudades y los muertos, Las ciudades
continuas, Las ciudades y el cielo, para concluir con las ciudades ocultas.
“Aunque uno puede marearse teniéndolas a todas en la mente, no ayuda
nada decir que cada una de esas ciudades es en realidad el mismo lugar” 6 .
Todas las ciudades invisibles tienen nombre de mujer pero esto no
significa que todas las mujeres sean una.
Kublai Kan escucha los relatos de Marco Polo sobre remotas
ciudades. Cada ciudad invisible se presenta como un fragmento que
desarrolla una variable de la ciudad única “que todos llevamos dentro”
dice Calvino.
Fernando Ainsa en excelente ensayo 7 señala la obra de Calvino
como “un apasionante catálogo de variantes caleidoscópicas. “En las
ciudades que dan forma a los deseos o en aquéllas en que “los deseos o bien
logran borrar la ciudad o son borrados por elIa, se dan las tenues diferencias
entre ciudades felices e infelices” (Zenobia) 8 .
En cuanto al libro de Marco Polo, pertenece a esa categoría de textos
que al decir de Calvino “se esconden en los pliegues de la memoria
mimetizándose con el inconciente colectivo o individual y nos Ilegan trayendo
5
Harold Bloom. How to read and why. New York: Scribner, 2000. p. 62.
Harold Bloom. Ibidem.
7
Fernando Ainsa. “Los sueños de Borges y Calvino revisitados por Marco Polo”. Cuadernos
Hispanoamericanos, n. 553/554, p. 105-119, jul/ago. 1996.
8
Idem, p.113.
6
17
impresa la huella de las lecturas que han precedido a la nuestra y tras de sí la
huella que han dejado en la cultura o en las culturas que han atravesado” 9 .
Pero Fernando Ainsa hace esta observación: “A diferencia de Marco
Polo que trató de convencer a sus contemporáneos de la veracidad de su
relato sobre las maravillas vistas y oídas en el curso de su viaje por Asia.
Calvino prefiere recuperar en el relato del veneciano “la invención” imaginativa
a la que la descripción de ciudades exóticas invita, es decir, la condición de
crónica increíbIe...” 10 .
El Libro de las maravillas (1938) tuvo un destino aciago porque su
autor quedó vinculado con fantasías y fábulas. No obstante el libro de Marco
Polo constituye el núcleo generador y además representa un arquetipo
narrativo como es el del topos del viaje en función del horizonte cultural
contemporáneo. Pero la función narratológica implícita en la continuidad del
viaje en el Libro de las maravillas es sustituida en Calvino por un curso
discontinuo generado por un procedimiento combinatorio la “contrainte” es el
nuevo itinerario propuesto por Calvino en el espacio del texto.
Según el crítico Andrea Martines la imagen en forma de red
reproduce el orden combinatorio de la obra 11 .
Así la ciudad denominada Zora es como una red en cuyas casillas
cada uno puede disponer las cosas que quiere recordar. Zora, ciudad que
quien Ia ha visto una vez no puede olvidarla más.
Ottavia (Ciudades tenues, p. 87) es una ciudad telaraña suspendida
en el abismo: “Hay un precipicio entre dos montañas abruptas; Ia ciudad está
en el vacío atada a las dos crestas con cuerdas, cadenas y pasarelas”.
En Las ciudades y los cambios, Ersilia, se rehace continuamente; los
habitantes tienden hilos para establecer las relaciones, hilos blancos o negros
9
Italo Calvino. Por qué leer los clásicos. Barcelona: Tusquets, 1992. p. 17
Fernando Ainsa, idem, p. 106.
Veáse la tesis doctoral de Andrea Martínes La Ietteratura combinatoria, Roma: Universita degli
Studi di Roma, 1997. El autor realiza un excelente análisis de Las ciudades invisibles.
10
11
18
o grises según indiquen parentesco, autoridad o intercambio. Cuando los hilos
son muchos y no se pueden pasar, los habitantes se van, después de haber
desmontado sus casas y vuelven a edificar a Ersilia en otra parte (p. 88).
Pero sobre todas Smeraldina (Las ciudades y los cambios) la ciudad
acuática, responde a Ia estructura de red, “una red de canales y una red de
calles se superponen y se entrecruzan” (p. 100).
A la imagen reticular Calvino inserta en otras ciudades invisibles la
reelaboración combinatoria del topos del viaje con la búsqueda de la clave
interpretativa por deducción. Laudomia en Las ciudades y los muertos (p. 152)
tiene a su lado otra ciudad con los mismo nombres de sus habitantes: es la
ciudad de los muertos. Pero a su vez comprende una tercera Laudomia que
es la de los no nacidos y para sentirse segura la Laudomia viviente necesita
buscar en la Laudomia de los muertos la explicación de si misma.
La Laudomia de los recién nacidos no trasmite seguridad, sino sólo
zozobra a los habitantes, como la de los muertos.
Como otro recurso narratológico además de la estructura reticular
y del “topos” del viaje y la búsqueda de las claves interpretativas del
imperio por deducción. Calvino reitera diversos modelos miméticos del
procedimiento combinatorio.
Las relaciones entre los habitantes de Cloe (p. 63) son sólo
hipotéticas, imaginadas combinatoriamente casi como los habitantes de
Eutropia. En Cloe, gran ciudad, “las personas que pasan por las calles no
se conocen”. Pero nadie saluda a nadie, las miradas se cruzan un
segundo y después huyen, buscan otras miradas, no se detienen (Las
ciudades y los cambios).
En cambio en Valdrada (p. 65) perteneciente a la clasificación Las
ciudades y los ojos los antiguos la construyeron a orillas de un lago con casas
todas de galerías una sobre otra y calles altas que asoman al agua sus
19
balaustradas. Así el viajero ve al llegar dos ciudades: una directa sobre el lato
y otra de reflejo, invertida.
Llegamos al fin a Las ciudades ocultas y una de ellas es Berenice (p.
172) “la ciudad injusta” que tiene una ciudad justa dentro de ella y “en la
semilla de la ciudad de los justos está oculta a su vez una simiente maligna: la
certeza y el orgullo de estar en lo justo — y al estarlo más que tantos otros
que se dicen justos — fermentan en rencores, rivalidades, despechos y el
natural deseo de desquite sobre los injustos, se tiñe de manía de ocupar su
sitio haciendo lo mismo que ellos”. O sea otra ciudad injusta va excavando su
sitio. Berenice es entonces una secuencia de ciudades justas e injustas pero
“todas las Berenices futuras están ya presentes en este instante, envueltas
una dentro de la otra, estrechas, apretadas inextricables”.
Marco Polo ha terminado. No hay entonces más ciudades invisibles.
Sólo queda un diálogo final entre Kublai Kan, el emperador, y Marco Polo. El
Gran Kan tiene un Atlas con ciudades visitadas con el pensamiento pero
todavía no descubiertas o fundadas: la Nueva Atlántida, Utopía, la Ciudad del
Sol, Icaria, Armonía.
Kublai Kan pregunta a Marco Polo: “Tú que exploras en torno y ves
los signos sabrás decirme hacia cuál de estos futuros nos impulsan los
vientos propicios”. Marco Polo responde que para esos puertos no sabría
trazar la ruta en el mapa ni fijar la fecha de llegada (p. 174).
La ciudad a la cual tiende su viaje es discontinua en el espacio y en el
tiempo. Entonces el Gran Kan repasa en su atlas las ciudades de pesadillas y
de maldición: Enoch, Babilonia, Yahoo... Desesperado declara su nihilismo:
La corriente lleva al infierno de los vivos, pero Calvino coloca las últimas
palabras en boca de Marco Polo para encender la esperanza en el lector: “El
infierno de los vivos no es algo que será; es aquel que existe ya aquí, el
infierno que habitamos todos los días que formamos estando juntos. Hay dos
maneras de no sufrirlo: hay que aceptarlo y volverse parte de él hasta no verlo
20
más”. Pero hay un mejor camino — y aquí reconocemos la sabiduría de Ítalo
Calvino — “buscar y saber reconocer quién y qué en medio del infierno no es
infierno y entonces hacerlo durar y darle espacio” (p. 175).
Calvino nos aconseja cómo vigilar, captar y reconocer la posibilldad
de lo bueno, ayudar a que permanezca, darle espacio en nuestra vida.
Santiago Kovadloff sostiene que hay “una paradoja resultante del
hecho de que la literatura brasileña es entendida independientemente de la
hispano-americana y ésta a su vez enfocada como un corpus indiferenciado y
uniforme por acción de la lengua española sin que se tenga en cuenta que la
ficción brasileña está más cerca de la argentina que de la boliviana. Brasil no
encontró todavía — agrega el crítico — en América Latina los lectores
hispanoamericanos que precisa porque éstos no encontraron los recursos que
favorezcan su comprensión de la literatura brasileña como una dimensión
más de su identidad” 12 .
Kovadloff emitió este juicio hace ya algunos años. En cierto aspecto
— salvo excepciones — su visión se mantiene, pero creemos que en las dos
literaturas perdura su acento y su mensaje propios.
Si cada ciudad invisible se presenta como un fragmento que
desarrolla una variable de la ciudad única que “todos llevamos dentro”
examinemos de cerca, algunos ejemplos en la narrativa argentina
y en la brasileña.
Calvino en Las ciudades invisibles (1974) fue influido notoriamente
por Borges. Ahora para hablar de Borges partimos de la creación de Calvino,
del acierto de sumergirse en las ciudades invisibies, imagen que nunca
concretó Borges, pero a Ia que recurrió con singular maestría.
12
Santiago Kovadloff. “La literatura brasileña en el exterior”, Brasil Cultura, año V, n. 46, dic.
1980. (Sector Cultural de la Embajada del Brasil en Buenos Aires).
21
Buenos Aires está en Borges y Borges está consustanciado con
Buenos Aires. Veamos ante todo un punto de convergencia con Calvino, o
mejor vayamos al intertexto de Calvino.
Borges, en una página de Otras inquisiciones (1960) titulada “El
sueño de Coleridge” ya había abordado un episodio en la vida del poeta y La
génesis del fragmento lírico Kublai Khan que fue soñado por Coleridge en
1797. Este escribió que había tomado un sedante y se sumergió en un sueño
después de una lectura que refería la edificación de un palacio por Kublai
Khan, el emperador famoso por los relatos de Marco Polo. En el sueño de
Coleridge aquel texto previamente leído fue cobrando forma y se multiplicó a
punto de que el sofiador pudo ver una serie de imágenes visuales y de
palabras que las explicaban. Cuando se despertó tuvo la certidumbre de
haber compuesto o recibido un poema de 300 versos. Lo recordaba fielmente
y así transcribió el fragmento Kublai Khan.
Coleridge soñó el poema en el siglo XVIII pero en el siglo XIII Kublai
Khan erigió un palacio según un plano que había visto en un sueño.
La ciudad de Buenos Aires asoma en Borges desde los albores del
siglo XX; puede remontarse a época anterior por la mención de los mayores o
el testimonio escrito de otros; puede asumir nombres o lugares geográficos
diferentes: siempre será Buenos Aires. Su primer libro Fervor de Buenos Aires
(1923) se abre con estos versos que señalan el dualismo: visible-invisible:
Las calles de Buenos Aires
ya son mi entraña.
No las ávidas calles
incómodas de turba y de ajetreo
sino las calles desganadas del barrio
casi invisibles de habituales,
enternecidas de penumbra y de ocaso...
(Calles de Buenos Aires)
22
“Fundación mítica de Buenos Aires” auna las dos ciudades: la Buenos
Aires visible y la invisible. Imagina una fundación que saltea el tiempo y el
espacio avalada por el adjetivo “mítica”.
Prendieron unos ranchos trémulos en la costa
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en mi barrio: Palermo.
Una manzana entera pero en mitá del campo
expuesta a Ias auroras y lluvias y suestadas,
La manzana pareja que persiste en mi barrio
Guatemala, Serrano, Paraguay, Gurruchaga.
(Cuaderno San Martín, 1929)
El poeta vislumbra la fundación de la ciudad de Buenos Aires y la
ubica en la manzana de un barrio con almacén rosado, un organito y una
cigarrería sahumada como una rosa. Allí alienta una ciudad visible pero a la
vez invisible porque es trascendente:
A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires
La juzgo tan eterna como el agua y el aire.
Hasta ahora hemos espigado en sus primeras manifestaciones
poéticas. Examinemos brevemente sus cuentos.
Borges recorre en ellos los barrios con pinceladas realistas. En “La
muerte y la brújula” (Ficciones, 1956) Borges revela en el prólogo a la
Colección que la ciudad de su cuento es Buenos Aires: “Pese a los nombre
alemanes o escandinavos ocurre en un Buenos Aires de sueños: la
torcida rue de Toulon es el Paseo de Julio; Triste Le Roy, el hotel donde
23
Herbert Ashe recibió y tal vez no leyó el tomo 11 de una enciclopedia
ilusoria” (Ficciones, p. 115).
En “El jardín de senderos que se bifurcan” (Ficciones) no obstante su
corte policial hay un elemento fascinante en el escamoteo de una ciudad que
en la mente del espía del Imperio Alemán sólo se revela al final. Así todo el
relato se construye sobre el enigma de una ciudad invisible.
“Fundar Iiterariamente una ciudad puede ser también construir la idea
de la misma: algunas urbes son la idea que de ellas ha construido la
literatura”. Tales expresiones pertenecen a José Carlos Rovira 13 . Rovira se
pregunta si narrativamente no es “El jardín de los senderos que se bifurcan” el
primer texto en que Borges funda una ciudad en la literatura... porque el
jardín, siendo sobre todo esa “red creciente de tiempos divergentes,
convergentes y paralelos que se cruzan, es también la fundación de una
ciudad que se llama Albert para indicar a los alemanes que la bombardeen”.
El diario del protagonista-espía Yu Tsun nos cuenta que no ha encontrado
mejor forma de hacerlo que asesinar el sinólogo llamado Stephen Abert.
Todos los cuentos de Borges exigen mucha sabiduría y lecturas.
“Un cuento está metido dentro de otro y el mismo esquema se repite
o se invierte” 14 .
La mente poderosa de Borges ha fundado un canto único a la belleza
de la vida argentina que él ha descubierto en las casas, los patios y las calles
de Buenos Aires. La conciencia de su originalidad no le ha permitido ser un
escritor popular.
El cuento “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” ha inquietado a la crítica por su
complejidad. En el Prólogo a Ficciones su autor confiesa que es “un desvarío
laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros... Mejor procedimiento
13
José Carlos Rovira. “Borges, Calvino y la fundación literaria de ciudades”, Borges, Calvino, Ia
literatura. Madrid: Fundamentos, 1986, v. lI, p. 89.
Enrique Anderson Imbert. Historia de Ia literatura hispanoamericana. México: Fondo de Cultura
Económica, 1966, 5. ed. v. II, p. 286.
14
24
es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen”. Pero él ha
preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios y entre ellos menciona
a “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”.
Jaime Alazraki considera el cuento como una “alquimia” que consiste
en mostrarnos nuestra realidad transfigurada en un sueño, en una
fantasmagoría más del espíritu que nada o muy poco tiene que ver con este
mundo real que se propone penetrar 15 .
“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” presenta un mundo fantástico que a su
vez incluye un segundo mundo fantástico y éste contiene un tercero. Está
estructurado al modo de las “muñecas rusas” o “cajas chinas”.
Este recurso aparece en varios cuentos de Borges: recordemos El
Aleph. “El jardín de senderos que se bifurcan”, “Las ruínas circulares”. La
estructura interna, el andamiaje consiste en tres dimensiones de fantasía que
Echavarría Ferrari llama tres parámetros de referentes lingüísticos 16 .
Si hay entre los cuentos de Borges uno que puede aproximarse más
a los que aparecen en Las ciudades invisibles de Calvino indudablemente es
éste. Pero difiere notablemente en su extensión y en su complejidad aunque
se asemeja en la estructura circular.
“Borges nos ha hecho creer en un mundo imaginario urdido por
hombres, capaz de invadir un mundo real y hacerlo desaparecer”
17
.
Estructuralmente tanto Las ciudades invisibles como Tlön responden
a las mismas motivaciones, según José Luis de la Fuente. “En Tlön por la
sinuosidad del tiempo y el abigarrado pormenor de datos. También del espejo
15
J. AIazraki “Tlön y Asterion: anverso y reverso de una epistemología”. Nueva narrativa
hispanoamericana, org. J. Laforgue, v. I, sept. 1971.
Arturo Echavarría Ferrari. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Creación de un lenguaje y crítica del
lenguaje”. Revista Iberoamericana, n. 100/101, p. 401, jul.-dic. 1977.
17
Idem, 412. La prirnera dimensión de la fantasía reside en la literatura de Uqbar que es de
carácter fantástico. La segunda dimensión es una región imaginaria de un país imaginario: Tlön,
la tercera es una Enciclopedia que se llamará Orbis Tertius.
16
25
como metáfora estructural sobre la que se construye el texto pues ambas
realidades responden a una peculiar visión del mundo” 18 ..
En su libro Seis propuestas para el próximo milenio (1985) Calvino
otorga a Borges tres de las cualidades válidas para el siglo XXI. Rapidez,
exactitud, y multiplicidad. Saúl Yurkievich en “El cristal y la llama” ha
declarado que Calvino al caracterizar a Borges se autocaracteriza y agrega:
“Borges va a contracorriente de nuestra época... La literatura contemporánea
persigue en lenguaje locuaz la suma magmática de la existencia... Borges
encarna la revancha del orden mental contra el caos del mundo” 19 .
En esa prosa condensada la ciudad es el más complejo de los
laberintos construidos por el hombre.
Si hablamos de la ciudad no podemos dejar a un escritor argentino
que desde París habló siempre de Buenos aires. Su obra Rayuela (1963)
obedeció a un impulso de realizar una obra que tuviera “el gesto amplio de la
novela (en oposición al cuento) pero que rompiera con Ias convenciones del
lenguaje y del género...” 20 .
Hay allí un continuo desdoblamiento entre dos mundos: el de aça y el
de allá; entre dos ciudades: París y Buenos Aires, expresiones de la situación
de exiliado en un ámbito diferente.
El protagonista se mueve entre los dos espacios urbanos pero desde
el ángulo narratológico se observa que “los movimientos superficiales de los
personajes de una ciudad a otra, son en realidad la cara visible de un
verdadero sistema de desplazamientos en cuyo origen se encuentra el ritmo
como generador” 21 .
18
José Luis de Ia Fuente. “Las ciudades invisibles de Tlön”. Borges, Calvino, Ia literatura, op. cit.,
vol. 2, p. 117.
19
Saúl Yurkievich. “El cristal y la Ilama”. Borges, Calvino, la literatura. Op. cit., v. 1, p. 37.
20
Ana María Barrenechea. “Génesis y circunstancias”. Julio Cortázar, Rayuela. (Ed. crítica),
Madrid: Archivos, 1991, p. 552.
21
Gerardo Goloboff. Julio Cortázar. La biografia. Buenos Aires: Seix Barral, 1998, p. 140.
26
La novela se abre con una pregunta: “Encontraría a la Maga? Y así se
descorre el telón de París:
“Tantas veces me había bastado asomarme, viniendo por la rue de
Seine, al arco que da al Quai de Conti, y apenas la luz de ceniza y olivo que
flota sobre el río, me dejaba distinguir las formas, ya su silueta delgada se
inscribía en el Pont des Arts ...” “Pero ella no estaría ahora en el puente. Su
fina cara de traslúcida piel se asomaría a viejos portales en el ghetto del
Marais, quizá estuviera charlando con una vendedora de papas fritas o
comiendo una salchicha caliente en el boulevard de Sebastopol.” Todo lo
denominado “Del lado de allá” es un recorrido y descripción de París. En
cambio “Del lado de acá” está enfocado desde los diálogos, los fragmentos de
tango y el mate elementos todos, junto con el nombre de algunas calles y de
algún barrio que dan el clima del ambiente porteño.
La idea y el título de 62, Modelo para armar (1968) provienen del
capítulo 62 de Rayuela. Cortázar explicó posteriormente que los
personajes están motivado por fuerzas ocultas más bien que por las
usuales fuerzas psicológicas 22 .
Tiempo y espacio están constantemente violados. La perspectiva
narrativa cambia con frecuencia y los motivos se ven dificultados por la
presencia de paredros y eI dominio de la ciudad. La palabra “paredros” se
refiere según Cortázar al doble de una divinidad egipcia y está usada en
la novela para indicar otro personaje con el cual el personaje narrador
siente afinidad.
“Del mismo modo la ciudad no es un lugar fijo o un lugar real; existe
en la mente de los personajes como un sueño de centro urbano que todos
ellos han visitado una u otra vez y a la cual muchos retornan; aunque como
en las ciudades reales Londres, París, Viena, en la ciudad invisible ellos
22
Omar Prego Gadea. Julio Cortázar Ia fascinación de las palabras. Buenos Aires: Alfaguara,
1997.
27
tienen dificultad de encontrarse unos con otros”. La ciudad invisible de
Cortázar que nos muestra 62, Modelo para armar (1968), es el producto de un
sueño en él cual él fue en busca de algo o de alguien 23 .
Dentro del texto de la novela aparece un poema titulado “La
ciudad” señal de la ansiedad lírica de Cortázar. No es un trabajo poético
independiente sino que está inserto en la masa de una novela y es el
poema de la novela.
“Entro de noche a mi ciudad, yo bajo a mi ciudad donde me
esperan o me eluden, donde tengo que huir de alguna
abominable cita, de lo que ya no tiene nombre, una cita con
dedos, con pedazos de carne en un armario, con una ducha
que no encuentro, en mi ciudad hay duchas, hay un canal que
corta por el medio mi ciudad y navíos enorme sin mástiles,
pasan en un silencio intolerable hacia un destino que conozco
pero que olvido al regresar, hacia un destino que niega mi
ciudad donde nadie se embarca, donde se está para quedarse
aunque los barcos pasen y desde el liso puente alguno esté
24
mirando mi ciudad .
Antes de entrar a Ia consideración de las ciudades brasileñas y su
condición de invisibles recordemos unos conceptos de Calvino: “Cada pessoa
tem en mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade
sem figuras e sem forma preenchida pelas cidades particulares” (Zoe, p. 44).
Los escritores brasileños han recorrido a lo largo de su literatura una
serie de variables en el abordaje de sus ciudades que van de la continuidad
a la discontinuidad.
Las estrategias constructivas del imaginario literario logran un
aprovechamiento fecundo de recursos lingüísticos y además una renovación
de las tradiciones.
23
24
Véase Terry J. Peavler. Julio Cortázar. Boston: Twayne Publishers, 1990, p. 108.
Julio Cortázar 62, Modelo para armar. 2. ed. Buenos Aires: Sudamericana Planeta, 1968, p. 32.
28
Sólo la aplicación de las tres funciones señaladas al principio:
documental, narratológica y modelizante en la obra del inigualable Machado
de Assis sería ejemplo suficiente.
El poeta Augusto dos Anjos (1884-1914) esbozó en sus poemas
fragmentos de una ciudad que bien podríamos aproximar a alguna de “Las
ciudades y los muertos” de Calvino. No es precisamente Rio de Janeiro sino
una ciudad anónima donde se encuentran calles y puentes, reflejos de
inmundicia y miseria, Augusto dos Anjos “expone públicamente lo que la
ciudad escondió u olvidó haciendo diseminar por los aires parisienses de la
ciudad carioca los efluvios miasmáticos de la descomposición” (Maciel,
1997) 25 . La ciudad negra está representada como un cuerpo enfermo y a
veces como un cuerpo muerto. La influencia de Baudelaire es innegable.
En esa “ciudad negra todo se deshace y se desmorona al punto de
apartarse del mundo:
“Súbito surge como un catafalco
Uma cidade ao mapamundi estranha”
(Insônia)
Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensao da rua preta
todo o destino negro do planeta”
(Noite do visionario)
Hay dos ciudades en Gabriela Clavo y Canela, de Jorge Amado
(1912-2001), la Ilhéus geográfica plena de ritmo y color. La otra: la invisible,
que ubicamos en “las ciudades y los cambios” de Calvino. Así Ilhéus se
compone de dos medias ciudades: una, la de calma provinciana; la otra en
ebullición. La primera, como sucede en las pequeñas ciudades del interior del
25
María Esther Maciel. “Metrópole/Necrópole A cidade alegórica de Augusto dos Anjos.
Perspectivas literarias desde el fin del siglo. Buenos Aires, UBA, Sección Literaturas en Lenguas
Extranjeras, 1997, p. 164-167.
29
Brasil sumergidas en un tiempo detenido para siempre y en una rutina espesa
que tan bien escribió Massaud Moisés 26 . Hay que recordar que la novela trae
como subtítulo Crónica de una ciudad del interior. El núcleo de Ia obra, es la
del idilio amoroso de la mulata.
Gabriela y el árabe Nacib; pero sin duda esos amores cobran
importancia en la realidad social del Ilhéus. De allí la extensión panorámica
hecha de la historia y de la vida de la pequera ciudad en la que se mueven los
dos personajes. La protagonista oculta es la ciudad tenue de Ilhéus. Desde
las primeras páginas el asesinato de dos amantes “consiguió que la ciudad
olvidara los restantes asuntos” (p. 9). “Ilhéus se transformaba” (p. 10): nuevas
casas se levantaban para Ias familias, lujosos moblajes serían encargados
directamente a Río; llegarían pianos de cola para aristocratizar las salas... el
progreso en fin (p. 15).
El mismo Jorge Amado afirma la importancia del amor de Gabriela y
Nacib para la ciudad. En la segunda parte de la novela se afirma el valor de
Ilhéus con las continuas digresiones, estructuración y desestructuración de
escenas y diálogos; el novelista se evade de la intriga central y vuelve con
maestría a encontrarse en ese escenario único que es la ciudad de Ilhéus:
visible sin discusión pero invisible en el mensaje social para un mundo en
crisis. Jorge Amado funda literariamente la ciudad de Ilhéus. Lo visible en elIa
es un reflejo de lo invisible.
Una de las primeras obras de Erico Veríssimo (1905-1975) fue la
breve novela titulada Sonata, un verdadero poema en prosa, admirable por su
concisión donde se puede apreciar el problema relativo a la temporalidad,
idea que preocupó siempre al renombrado escritor 27 .
26
Massaud Moisés. A criação literária. 7ª ed. São Paulo: Melhoramento, Ed. de la Universidad de
São Paulo, 1975, p. 210.
27
Erico Verissimo. “Sonata”. O Ataque. Rio de Janeiro: Globo, 1959 (Coleção Catavento, 1).
30
En Sonata el protagonista es un músico solitario a quien Ia gente de
la pensión donde vive mira “con extrañeza y alarma”. El relato asume la forma
de un fragmento autobiográfico, escrito en primera persona.
Este profesor de piano, tímido y solitario, un día de abril deambula por
las calles de la ciudad; se mueve como sonámbulo, con la impresión de que el
otoño es un ópalo en el cual está encerrada la ciudad con su gente, sus
casas, calles y monumentos, tal como aparecen los barcos dentro de una
botella, esos que construyen los presidiarios.
En su deambular concibe la idea de componer una sonata y
ensimismado con los acordes de la misma se salva de ser atropellado por un
ómnibus gracias al auxilio de un transeunte. Aturdido, se refugia en la
Biblioteca y en su indecisión pide un diario de 1912 por ser ese el año de su
nacimiento. Desde allí, en plena irrealidad, el tiempo se detiene. Un aviso del
viejo diario solicita un profesor de piano para una joven y el protagonista se
dirige a la rúa de Salgueiro n° 25 − calle que por supuesto ha cambiado de
nombre en la realidad. Por los detalles el lector advierte que se trata de Porto
Alegre en las primeras décadas del siglo pasado.
Las imágenes opalescentes envuelven las escenas de esa ciudad
antigua. Todo el relato está en consonancia con la composición de la
Sonata en Re Menor, paralela a las lecciones que el profesor imparte a
una joven delicada.
Hay dos ciudades en esta obrita de Erico Veríssimo: una, la real; otra,
la invisible, representada dentro de un ópalo. La mirada recorre sus calles
como si fueran las notas de una Sonata. Calvino la hubiera ubicado en su
libro, clasificada en eI rubro de “ciudad oculta”.
El punto más alto de la fama de Erico Verissimo fue alcanzado por su
trilogía O tempo e o vento, 1961. Dividida en tres partes y a su vez — a
manera de rizoma — ampliada en capítulos con el personaje central, la obra
31
se proyecta como Ia saga de una familia y de una ciudad de Rio Grande do
Sul desde sus orígenes a mediados del siglo XVIII hasta el siglo XX.
Podría pensarse que existen semejanzas entre O tempo e o vento y
Antares. Ambas novelas enfocan momentos brasileños muy parecidos,
presentan representantes de la oligarquía rural ambiciosos de mantener el
poder, además de ofrecer la saga familiar de quienes poblaron Rio Grande do
Sul 28 . Pero aunque Erico descubre en las dos obras la corrupción y la
injusticia la trilogía termina en 1945, en tanto que incidente en Antares avanza
en la situación de Ia ciudad hasta 1970.
La novela tiene dos partes; en toda la acción está el conflicto de dos
familias por el poder. En Antares hay una ascensión continua de autoritarismo
que va desde el caudilismo hasta un régimen de opresión y de tortura.
En la segunda parte se desenvuelve la acción principal de la
trama: la fuerza opuesta a ese estado de cosas, que no está del lado de la
vida sino de la muerte implicados en ésta Ia desaparición de las
posibilidades de transformación de la sociedad. Incidentes en Antares,
según María da Glória Bordini potencializa su efecto chocante y su
esfuerzo crítico al establishment brasileño: pone la muerte a enseñar a la
vida pero la muestra como inocua pues los vivos no cambian. Si la vida es
movimiento, devenir, conciencia en expansión Antares, el microcosmos de
Brasil, no remite a nada sino a inmovilidad, estancamiento y ceguera:
29
muerte en vida de las élites y ei pueblo” .
Queda sólo el acto de denuncia, reverberando en la plaza. Hay una
nota del autor al abrirse la novela, que está aclarando la inclusión de la ciudad
de Antares en la galería de las “ciudades invisibles”. “Neste romance — dice
Erico — as personagens e localidades imaginárias aparecen disfarçadas. Sob
28
Cfr. Márcia I, de Lima e Silva. “O processo criativo em Incidente em Antares: uma análise
genética.” Perspectivas literarias desde el fin del Siglo. Buenos Aires: UBA, Sección de Literatura
en Lenguas Extranjeras, 1997. p. 231-234.
29
María da Glória Bordini, prefacio a la 2ª edición de Incidente em Antares, São Paulo: Globo,
2002. p. 12-13.
32
nomes ficticios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade
existen ou existiram são designados pelos seus nomes verdadeiros”.
La ciudad de Antares es el centro del dramático “Incidente” del 13 de
diciembre de 1963: la huelga de los sepultureros (coveiros). Éstos se niegan a
enterrar a los muertos ese día y estos insepultos vuelven a la vida y pasan a
intimar con amigos y parientes y a descubrir la podredumbre moral de
Antares. Erico Veríssimo reaiza en esta novela-río de más de 400 páginas un
desafío a la corrupción y a la hipocresía. Antares es como Eusapia de “Las
ciudades y los muertos”. Para que ei salto de ia vida a la muerte sea menos
brusco - declara Calvino — los habitantes han construido una copia idéntica
de su ciudad bajo tierra. “Dicen que en las dos ciudades gemelas no hay ya
30
modo de saber cuáles son los vivos y cuáles los muertos” .
Las dificultades de la vida urbana se mostraron desde el siglo XIX en
la literatura brasileña. Ejemplo de ello en el siglo XX fueron, entre otros, Lima
Barreto, Fernando Sabino y Dalton Trevisan, en la generación de posguerra.
Pero nadie se compara con la aspereza y la acidez satírica de Rubem
Fonseca (1925). Las cincuenta y tantas historias de Fonseca demuestran, de
acuerdo con Malcolm Silverman 31 “notable coherencia y se conjugan en un
vacío asociado a la vida urbana moderna”.
Las inter-relaciones están sintetizadas por Fábio Lucas: “Junta los
diversos segmentos dramáticos, los contrapone en conflictos, explora las
contradicciones. Casi nunca se resuelven en una función catártica sino que
producen una sensación de vacío y náusea” 32 .
Rubem Fonseca satiriza, se diría con placer, los abusos de la
burguesía. En “Paseo nocturno” retrata a los ricos como locos y pinta su
consumismo con negras tintas. El protagonista es un asesino que no teme
30
Las ciudades invisibles, op. cit., p. 122
Véase Malcolm Silverman. Moderna Ficção Brasileira 2. Trad. João G. Linke. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1981. p. 263
32
Fábio Lucas. Fronteiras imaginárias. Rio de Janeiro: Cátedra, 1971. p. 116
31
33
atropellar con su auto a los peatones. La hipocresía social está en el fondo de
la ciudad carioca y está evidente en todos sus cuentos calcados en los
abusos de la burguesía. Río de Janeiro aparece en su literatura como la
ciudad oculta que él revela si piedad por medio de un lenguaje a veces
macabro, otras brutal, y frecuentemente deshumanizado. Wilson Martins llegó
a considerarlo un renovador del cuento brasileño “en la totalidad de su
universo propio” 33 . EI universo es el que encierra la alienación del hombre de
la ciudad en la hipótesis de Fonseca.
En estos breves ejemplos sobre escritores brasileños la figura de
Clarice Llspector (1920-1977) representa un emblema pues ia presencia de la
ciudad de Río de Janeiro en sus múltiples aspectos, aparte de ser frecuente
en sus novelas y cuentos, domina en esta obra con claros trazos. De su
abundante producción seleccionamos A cidade sittiada (1949), obra que
mereció del crítico y escritor Assis Brasil vazios estudios.
Assis Brasil ha señalado una particularidad renovadora en la
narrativa de Clarice: concibe sus trabajos de dentro para afuera o mejor a
partir del personaje 34 .
De ese modo el mundo narrativo se encuentra conducido por el
personaje y así desaparece el narrador omnisciente. Y lo que más nos
interesa, Assis Brasil considera A cidade sittiada como libro de la escritora
mejor realizado.
En esta tercera novela presenta en Lucrécia Neves — la protagonista
— el reverso de sus dos heroínas anteriores Joana y Virginia. Como muy
acertadamente apunta Olga de Sá “el universo ficcional de Clarice es en ese
texto “una ciudad sitiada” 35 porque el personaje es mirado a la distancia y el
lenguaje adquiere un tono crítico. Esta novela de espacio determinado
33
Wilson Martins. “A escada da glória”. O Estado de São Pauto, 19-3-1976
Luiz Antonio de Assis Brasil. Clarice Lispector: ensaio. Rio de Janeiro: Organização Simões,
1969. p. 23.
35
Olga de Sá. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis, ed. Vozes, en coedición con PUC-São
Paulo, 1933. p. 244
34
34
transcurre en São Geraldo por los años veinte. La transformación de barrio en
ciudad mata todos los símbolos e imágenes y con ellos los presagios y las
señales. Los caballos y la moza provinciana son todavía los últimos vestigios
de São Geraldo, que en breve cambiará de nombre 36 .
Hay un paralelismo entre el destino del barrio São Geraldo (RJ) y el
de la protagonista Lucrecia. “Tanto ella como el caballo representaban los
constructores que iniciaron la futura metrópolis; ambos podían servir de armas
para su escudo. La última función de La joven en su época era una función
arcaica que renace cada vez que se forma una villa. No se podría saber qué
reinado representaba ella Junto a la nueva colônia...” 37 . Hay una suerte de
parodia de visión, la incapacidad de ver constituyen el “estado de sitio” de São
Geraldo y el de la propia Lucrecia.
Curiosa la observación de Clarice en relación a la perspectiva, pues
Lucrecia ve las cosas como un caballo, separadas, porque éste tiene un ojo
de un lado y de otro de Ia cara. Y de allí la imagen de la protagonista como
emblema de la ciudad, como emblema del espíritu suburbano, de la
incapacidad de ver y la imposibilidad de tener una voz... “La realidad de
Lucrecia se disloca... a partir de la marcación espacial alegórica como bien
observó Benedito Nunes. Se trata del suburbio de São Geraldo en los años
20, del cual se procura un centro, un punto que parece estar siempre más allá
de él, metáfora de la realidad de Lucrecia... que se disloca para afuera de São
Geraldo y que al final parte en busca de su propio ser (o su retrato, guardado
por la madre)...
38
La ciudad sittiada fue publicada en 1949. Las ciudades invisibles en
1972. Evidentemente puede haber un parentesco entre las dos obras. Ambas
tienen una forma estética autónoma. Ambas convergen en una experiencia
36
Op. cit., p. 245.
Veáse A cidade sitiada. 1. ed. Rio de Janeiro: A. Noite, 1949, Rio de Janeiro: Ed. Alfaro, p. 22.
38
Véase Olga de Sã, op. cit., p. 62.
37
35
estructural curiosa. En ambas hay una respuesta a una indagación vital: “es
una vuelta a los orígenes, una meditación sobre la condición del hombre” 39 .
La función narratológica se cumple en el paralelismo: ciudad-Lucrecia.
Conclusión
En el universo infinito de la literatura siempre se abren nuevos
caminos. A veces — como es nuestro caso — la meta propuesta no deja de
ser un “Jardín de senderos que se bifurcan” en medio de “ciudades invisibles”.
Algunos senderos han quedado sin explorar en esta conferencia: son
las ciudades que imaginaron excelsos escritores no sólo de la rica literatura
brasileña, sino especialmente de la Argentina ya que sólo presenté a dos.
Quedaron atrás Eduardo Mallea con La ciudad junto al río inmóvil, el gran
Leopoldo Marechal y su Adán de Buenos Ayres. Ernesto Sábato y El túnel,
Manuel Mújica Láinez con Misteriosa Buenos Aires, Ricardo Piglia y La ciudad
ausente y el último libro de Juan José Sebreli Buenos Aires, vida cotidiana y
alienación con su visión actual Buenos Aires, ciudad en crisis (2003).
He procurado explicar para mí misma y para ustedes, ese misterio de
las ciudades invisibles y la hondura del pensamiento de su autor.
Es notable cómo es misterio lo devela el propio Calvino quien en su
libro póstumo Seis propuestas para el próximo milenio (1985) deja esta suerte
de testamento: “Mi fe en el futuro de Ia literatura consiste en saber que hay
cosas que sólo la literatura con sus medios específicos puede dar”.
Referencias
39
Cfr. también Nádia Battella GotIib, “Um fio de voz: história de Clarice”. Clarice Lispector. A
paixão segundo GH. (Ed. crítica, coord. Benedito Nunes). Florianópolis: Ed. da UFSC, 1988, p.
167-168.
36
AINSA, Fernando. “Los sueños de Borges y Calvino revisitados por Marco
PoIo”. Cuadernos Hispanoamericanos, n. 553/554, p. 105-119,jul./ago. 1996.
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Buenos Aires, noviembre de 2003.
40
4
REPÚBLICA RIO-GRANDENSE E AS
FRONTEIRAS PLATINAS
_____________________
Moacyr Flores ∗
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS
No imaginário sul-rio-grandense, durante a Guerra Civil dos Farrapos,
1835-45, a linha de fronteira não constituía uma barreira ou sinal de ruptura
entre dois povos, descendentes de portugueses ou descendentes de
espanhóis. Casamentos, revoluções e contrabando uniram as famílias em
ambos os lados da fronteira, mesclando idiomas, costumes e tradições. Não
poderia ser diferente com a República Rio-grandense, que perdeu o porto de
Rio Grande e necessitava um porto de entrada e saída não só de gêneros
alimentícios, mas também de armas e munições. Desde o início da formação
do Rio Grande do Sul, era mais fácil ir a Montevidéu em busca de
mercadorias, tratamento médico e de novidades, do que viajar até o distante
Rio de Janeiro. As relações da República Rio-Grandense com o espaço
externo platino realizaram-se principalmente em nível de proteção aos
exilados políticos e de comércio de gado em troca de armas e munições.
As fronteiras do Império do Brasil com a República da Argentina e com
a República Oriental do Uruguai, continuaram sendo as mesmas da República
Rio-grandense com os dois Estados platinos. Em nenhum momento os
republicanos rio-grandenses discutiram a questão de limites com o Uruguai,
pois estavam preocupados em ampliar seu domínio no território brasileiro.
∗
Professor Doutor de História do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. E-mail:
[email protected]
41
Desde o início do século XIX surgiu uma malha de trilhas de carretas
e de tropas de mulas que partiam de São Borja, Alegrete, São Gabriel,
Encruzilhada, através da fronteira com Santana do Livramento, Bagé,
Jaguarão e Chuí, confluindo para Montevidéu.
Inicialmente os farroupilhas rio-grandenses conseguiram armas e
munições quando invadiram Porto Alegre e encontraram o Trem de Guerra
(Arsenal) intacto, apesar das ordens do presidente da província Antônio
Rodrigues Fernandes Braga de destruir o material bélico. Outras fontes de
aprovisionamento foram os barcos norte-americano e hamburguês que
aguardavam no porto a invasão de Porto Alegre, no dia 21 de setembro de
1835, para entregarem armas e munições aos rebeldes, que foram
encomendadas na Europa.
A República Oriental do Uruguai fornecia à República Rio-Grandense
homens, cavalos e armamento. Em agosto de 1836, a brigada do general
Antônio de Souza Neto foi reforçada com 130 homens vindos do outro lado da
fronteira, trazendo 800 cavalos gordos (CV 203) 1 .
Na mesma ocasião, Paulino da Fontoura passou o rio Uruguai com
mais de 300 entrerrianos e correntinos com ordem de reuni-los na força do
general Neto (CV 203).
O jornal O Artilheiro, de Porto Alegre, noticiou que os farroupilhas
recebiam armamento de Santa Catarina, contando com a conivência do
presidente catarinense Machado de Oliveira. Com o gado pilhado nas
estâncias dos legalistas, os rebeldes compravam material bélico na República
Oriental do Uruguai (O Artilheiro, 22.7.1837, p. 1).
Durante o governo de Frutuoso Rivera, em 1838, o porto de
Montevidéu conservou-se livre aos farrapos. O governo uruguaio permitia
inclusive a venda de tropas de gado e de couro, bem como o emprego de
1
CV significa Coleção Varela do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e a numeração
corresponde ao documento da referida coleção.
42
escravos de proprietários rio-grandenses nos saladeros nas proximidades de
Montevidéu. Em 25 de maio de 1838, o capitão Luís Schuz comprou, para a
República Rio-Grandense, 11 mil libras de pólvora, cornetas de música para a
tropa, engajando um médico francês e um oficial estrangeiro de artilharia. O
capitão Schuz esperou durante oito dias pela carta topográfica da barra do
Rio Grande, que não foi remetida de Buenos Aires. Só restou ao capitão
Schuz subir o rio Uruguai de barco até o Passo de Santana, atual cidade de
Uruguaiana, onde era esperado por carretas carregadas de couro para o
pagamento dos artigos comprados ao capitão do barco (CV 2827).
O comércio envolvia também o ministro da Guerra. Em 17 de junho
de 1838, o ministro republicano José da Silva Brandão ordenou ao cel. João
Antônio da Silveira que arrebanhasse couros do Estado e mesmo de
particulares, levando-os para o Passo de Santana, providenciando o
transporte e proteção da pólvora. O chefe de polícia de Alegrete deveria
auxiliar o cel. João Antônio (CV 2836).
Havia ao longo do rio Uruguai três pontos de entrada no Rio Grande
do Sul: os Passos de Santana, Itaqui e São Borja. Referindo ao passo de São
Borja, Nicolau Dreys escreveu:
Para essa parte que se dirigem todas as pessoas que querem
embarcar-se nesse rio ou atravessá-lo a fim de passarem para o
país de Entre Rios ou dali seguirem para o Paraguai (Dreys,
1990, p. 72).
Em abril de 1839, o vice-presidente da República Riograndense, José
Mariano de Matos, foi enviado a Montevidéu para comprar espadas e
clavinas, remetidas em carretas acompanhadas pelo ten. Pedro Alves. O cel.
João Antônio da Silveira enviou para a República do Uruguai jornais com a
notícia sobre o movimento republicano de Lajes, para convencer as
autoridades e comerciantes de Montevidéu que a República Rio-Grandense
estava aumentando seu espaço territorial (CV 2932).
43
Devido à situação de guerra, nem sempre os comerciantes de
Montevidéu entregavam a mercadoria que fora encomendada, trocando-a por
outra. O cel. João Antônio da Silveira requisitou 100 espadas e 50 clavinas
para a cavalaria republicana, só então descobriu que vieram de Montevidéu
armas de infantaria e 50 espadas, remetidas em uma carreta. O ministro
da Guerra avisou ao cel. Silveira que havia lanças para suprir a falta de
clavinas (CV 2938).
Mas não eram só os comerciantes que não cumpriam os acordos
comerciais. O vice-presidente da República Rio Grandense, José Mariano de
Matos, teve que ir a Montevidéu, em janeiro de 1839, a fim de embargar a
tropa de gado destinada ao comerciante Antônio Casas, para entregá-la ao
português Costa Guimarães, procurador do legalista marechal Sebastião
Barreto Pereira Pinto. A tropa chegou sem formalidades, parecendo tropa de
gado roubada, sem que as autoridades uruguaias a embargassem. Mariano
de Matos informou que havia um clamor geral do comércio de Montevidéu
contra o governo da República Rio-grandense por falta de comprimento de
seus tratos em negócios.
Em 6.3.1839 Dom Frutuoso Rivera estabeleceu um acordo por escrito
com D. Antônio Casas, com o aval do vice-presidente José Mariano de Matos,
para que o comerciante entregasse em 15 de abril do mesmo ano, mil
novilhos de quatro anos, na fronteira com a República do Uruguai, pelo preço
de quatro pesos e dois reales por cabeça (CV 298).
A República devia 1.000 pesos ao comerciante Gaspar Russo, que
tentou negociar o título com o legalista Pedro Gonçalves Chaves, mas o gen.
Frutuoso Rivera meteu-se no negócio e entregou o título a José Mariano de
Matos. Relata ainda que o argentino Marins, com contrato de 60 mil pesos
com os republicanos, levou gêneros no valor de 17.500 pesos, mas teve de
retornar depois de dois meses, com prejuízo de dois mil pesos. Mariano de
Matos advertiu na carta que:
44
Seria melhor que não entrassem para o Trem tantos gêneros de luxo
e nos limitássemos aos indispensáveis ao Exército (CV 2922).
Os líderes da República estavam aproveitando os negócios do Estado
para abastecerem suas residências. No mesmo momento, os monarquistas
cel. Medeiros, José Rodrigues, Olivério Ortiz, cel. Bonifácio Izás Canderón,
Felipe Néri e o ten. cel. Pereira encontravam-se em Montevidéu com dinheiro
para realizarem negócios políticos com o presidente Frutuoso Rivera. Mariano
de Matos denuncia que a conduta do presidente Rivera era bastante
equívoca, alimentando a um e outro partido, mas a quem atraiçoaria,
republicanos ou imperiais? Mariano de Matos refere-se que uma coisa é
certa: o presidente uruguaio adorava ouro (CV 2922).
Na luta com os republicanos, os imperiais também buscavam
recursos no espaço exterior. O ofício do cel. Bonifácio Izás Calderón ao
presidente provincial Antônio Elzeário de Miranda e Brito, em 26 de junho de
1939, dá uma idéia das relações dúbias de Frutuoso Rivera, que ao mesmo
tempo tratava com os republicanos e imperiais em busca de vantagens.
Durante nove meses o cel. Calderón esteve na República do Uruguai
refazendo a cavalhada, recolhendo desertores, comprando armas, e só em 7
de março de 1839 atravessou o rio Uruguai na altura do arroio Mocoretán,
onde encontrou o governador da província de Corrientes, que lhe franqueou
todos os tipos de auxílio (CV 2922).
Calderón entrou na província do Rio Grande do Sul pelo passo de
Santana do Uruguai, seguiu para Etaqui e São Borja, sempre reunindo
emigrados. Enviou partidas sob o comando de Chara, Catalã e Bugreiro, que
foram batidas pelos rebeldes no passo de Santa Maria do Uruguai, a 20 de
abril de 1839. Os legalistas se precipitaram para atravessar o rio Uruguai,
abandonando armas, cavalos e vestuários nas mãos dos rebeldes que
perseguiram os imperiais na outra margem. Os imperiais foram salvos com a
aproximação do major João André de Almeida, que protegeu os fugitivos até
45
repassarem no passo de São Borja. Calderón fez grandes despesas para
suprir os refugiados de cavalos, lombilhos, caronas, cinchas, estribos, xergas,
freios, fumo, sabão, erva-mate, baeta para ponchos e chiripás, algodão para
camisas e ceroulas. Entregou também algum dinheiro aos refugiados.
Restava agora armar a tropa, para isto Calderón atravessou o rio
Uruguai, indo a uma ferraria no Povo de La Cruz, onde comprou ferro e
tesouras de tosquiar para fazer ponta de lanças. Mas o governo entrerriano
mandou uma tropa desarmar os soldados imperiais, obrigando Calderón a
abandonar a ferraria e comprar facas para fixar nas pontas das lanças.
Patrulhas farrapas vigiavam o rio Uruguai, impedindo a passagem dos
soldados imperiais para o território rio-grandense. Enquanto esteve no Povo
de La Cruz, Calderón foi auxiliado por vários emigrados brasileiros, com
dinheiro, cavalos e roupas. O civil Belisário dos Santos Loureiro atravessou a
tropa legalista por um vau no rio Uruguai, junto ao rio Butuí, numa região
cerrada por mato, sendo necessário abrir uma picada para escapar da
perseguição de tropa farrapa comandada por José Ribeiro (CV 3112).
Por esse ofício nota-se que existiam brasileiros legalistas emigrados no
Povo de La Cruz e em Itapua, no Paraguai, que auxiliavam e serviam de
intermediários com as autoridades locais. Os comerciantes de Itapua fizeram
subscrição para a compra de lanças e gado de munício para mais de 50
extraviados da tropa do major João Guilherme Catalán, mas a falta de
suprimentos obrigou-os a procurar se reunir com Calderón que também estava
passando necessidades e sem cavalhada. Buscando cavalos para invernar e
tentando comprar armas, Calderón atravessou o Quaraí e acampou no rincão de
Sopas, pedindo auxílio ao encarregado dos Negócios do Império, em
Montevidéu. Com o auxílio recebido, Calderón seguiu para a vila de S. Frutuoso,
onde reuniu emigrados e amigos, comprou 200 espadas e 200 pistolas, negócio
intermediado pelo dúbio presidente Frutuoso Rivera (CV 3108).
46
Fazendo jogo duplo, Frutuoso Rivera consentiu que as forças de
Calderón permanecessem em S. Frutuoso, no território uruguaio. Os
legalistas encontraram dificuldades para comprar cavalos e mulas por causa
da luta que os uruguaios sustentavam com a província argentina de EntreRios. Os comerciantes só aceitavam dinheiro à vista. Em junho de 1839,
Calderón distribuiu a seus soldados 100 clavinas, 100 espadas, 100 boldriés
de sola, 100 cananas de sola, tudo novo, e 200 cavalos reiúnos gordos que
recebeu de Frutuoso Rivera. Conseguiu ainda mais 200 lanças que cidadãos
legalistas emigrados mandaram fazer e deram gratuitamente, exceto os cabos
e bandeirolas. Calderón encontrou alguns desertores do Exército imperial e
como não podia prendê-los em território estrangeiro, tratou de incorporá-los à
tropa (CV 3111).
Na exploração das informações fragmentadas sobre as relações com
o espaço externo da República Rio-grandense, encontrei a entrada, em 21 de
fevereiro de 1842, de um tenente, um alferes e três soldados com trinta e
tantos cavalos vindos da República do Uruguai, entrando pelo Pai Passo,
prontos para prestar serviço à República Rio-grandense, que foram
imediatamente incorporados às tropas de João Antônio da Silveira (CV 4354).
Do espaço externo também vieram ofertas de mudanças, com valores
da civilização francesa, por ser a nação mais polida, a mais franca, a mais
desinteressada e amiga da liberdade: o negociador ocultou-se com o nome de
Camilo d’Erval, propondo um plano mirabolante de trazer mercenários
franceses em 1841 ou 1842, pois o documento não está datado (CV 4307).
É interessante a introdução do referido documento, pela análise da
situação da República Rio-grandense que se empenhava em buscar sua
independência e liberdade. Conforme o documento, há três anos a República
declinava, com as finanças em triste estado, sem crédito, com Exército
menor, com recursos de cavalos e de objetos cada vez mais difíceis de
conseguir e com a província se despovoando. Só o comércio de Montevidéu
47
enriquecia. O tempo era aliado do Brasil, que iria cada vez mais reduzindo o
território da República Rio-grandense. O Brasil não podia conceder a
independência porque outras províncias brasileiras também tentariam se
desmembrar do Império.
As propostas de Camilo d’Erval são capciosas: pretendia engajar 200
artilheiros e 1.800 fuzileiros franceses que já lutaram em Argel. O governo
francês facilitaria a formação destes corpos e também forneceria armas e
munição, tudo dentro do maior sigilo porque a França não pretendia entrar em
guerra com o Brasil. O plano de ataque era singelo: os franceses tomariam
Rio Grande, São José do Norte e Porto Alegre, enquanto as tropas de Bento
Gonçalves da Silva desviariam o Exército imperial para a zona da Campanha.
Depois a cavalaria rio-grandense e as tropas francesas invadiriam Santa
Catarina, proclamando novamente uma república.
Em troca, o negociador Camilo seria o comandante das tropas
francesas e o encarregado de plenos poderes para negociações. Por cinco
anos os navios franceses não pagariam taxas de alfândega e por 15 anos a
França seria mais favorecida e por último, queria a fabulosa quantia de
42.000 patacões, paga antecipadamente, querendo ainda um prazo
satisfatório para o restante. Os soldados seriam mais tarde transformados em
industriosos colonos.
Como não podia dar garantias, convidava o filho do presidente Bento
Gonçalves da Silva para acompanhá-lo ao Rio de Janeiro, onde obteria
passaporte para a França. O negociador comparava-se a La Fayette lutando
com seus franceses na revolução de independência dos Estados Unidos, a
Bento Gonçalves da Silva e a George Washington (CV 4307).
O esperto negociador não dava nenhuma garantia, possivelmente
sumiria no Rio de Janeiro, denunciando o filho do presidente republicano às
autoridades imperiais. Seria mais fácil sair por Montevidéu, onde os
48
republicanos tinham livre trânsito. Na correspondência de Bento Gonçalves da
Silva não há referências a esta ingênua proposta.
Em janeiro de 1843 os emigrados correntinos e orientais foram
reunidos em Inhandui sob a tutela de Jacinto Guedes da Luz. Os imperiais
apoiavam os partidários de Manuel Oribe, que hostilizavam os republicanos
rio-grandenses.
Em abril de 1843, o ministro da Guerra da República Rio-grandense
Luís José Ribeiro Barreto ordenava que os emigrados orientais com conduta
irregular, em Bagé, deveriam ser chamados à ordem pelo chefe de polícia
pois, embora o governo republicano prestasse benigna hospitalidade aos
asilados estrangeiros não permitia que as leis fossem menosprezadas. O ten.cel. Manuel Lucas de Oliveira prestaria auxílio para expulsar do país àqueles
que praticavam crimes (CV 2569).
Em maio de 1843, o ministro Barreto ordenou ao ten.-cel. Manuel
Lucas de Oliveira que comprasse os cavalos dos emigrados orientais, de que
tanto carecia o Exército republicano (CV 2574).
O governador e capitão-general da província de Corrientes, Rafael
Atienza, reclamou contra o asilo dado às forças de Frutuoso Rivera, um
anarquista e inimigo da federação Argentina, que se refugiou em Alegrete,
junto ao seu compadre e amigo Bento Manuel Ribeiro. O protesto foi dirigido
ao cel. João Antônio da Silva, comandante da fronteira República
Riograndense, sediada em Alegrete (CV 2394).
Os desertores imperiais também buscavam refúgio no território
uruguaio. Em 28 de outubro de 1838, o capitão da Guarda Nacional Florisbelo
Antônio de Ávila comunicou a João da Silva Tavares que o sargento Serafim
conduzia 170 cavalos reiúnos do Uruguai e que também enviou um cabo para
buscar os desertores (CV 2397 e CV 2398).
Em 28.1.1841 o ministro da Fazenda Domingos José de Almeida
enviou instruções ao comerciante lrineu Rieth de la Rocha para que procurasse
49
o gado de Caverá e não desprezasse o negócio de Tacuarembó, no Uruguai.
Em Montevidéu deveria procurar o presidente Frutuoso Rivera para que este
entregasse “o restante da importância da tropa embargada” (CV 1365).
O governo rio-grandense preparou uma tropa de gado para abastecer
os saladeiros e fazendas de criar no Uruguai, com remessa de rebanhos para
Montevidéu e Paissandu, sob as ordens de João da Cunha Peçanha, parente
do ministro Domingos José de Almeida. O ministro republicano, em
28.2.1841, rogou proteção ao presidente Frutuoso Rivera para que o gado
pudesse passar por Tacuarembó, Quaraí e Santana do Livramento. O gado
fora confiscado de fazendas de dissidentes (CV 1554).
A República Rio-Grandense confiscou fazendas, gado e escravos dos
imperiais, chamados de dissidentes, arrendando as propriedades a
republicanos. O gado deveria ser levado a Joaquim Barcelos, cunhado do
ministro Almeida, que aguardava o rebanho em Montevidéu. O dinheiro da
venda dos animais e mais a importância tomada emprestada aos
comerciantes de Montevidéu José Victorica e Joaquim Francisco Muñoz,
estavam destinados à compra de panos próprios para fardamentos e
ponches, baeta, algodão para camisas e ceroulas, brins para calças, belbutina
para meias, retrós, linhas e botões. O ministro instruía que deveria ser dada
ao seu cunhado Peçanha a comissão de 12% em todas as compras
realizadas no comércio de Montevidéu (CV 1555).
Como se vê, era uma grande negociata que envolvia o presidente
Rivera e os cunhados do ministro Almeida com os comerciantes
de Montevidéu, sem que houvesse pagamento de imposto à República
Rio-Grandense.
Quando o Estado Oriental do Uruguai pretendeu libertar os escravos,
em março de 1841, o ministro Almeida mandou buscar seus escravos que
estavam alugados a José Victorica, em Montevidéu (CV 1571 a 1573).
50
O ministro Almeida manteve transações comerciais com Montevidéu,
que muitas vezes incluía material bélico. Em 15.3.1841, Almeida reclamou
que ainda não lhe foram entregues mercadorias compradas em Montevidéu,
em 1839: duas dúzias de meias de lã preta, quatro gravatas de seda, duas
escovas de dentes, quatro potes de rapé, seis varas de renda fina, um par de
meias de seda e um par de luvas de seda (CV 1581).
Também o mercenário José Garibaldi acertou as contas com a
República Rio-Grandense quando se retirou da luta e seguiu para
Montevidéu, ganhando como indenização, por ter sido contratado como
corsário, a tropa de mil cabeças de gado. Almeida avisa ao presidente
Frutuoso Rivera que José Garibaldi seguiu com uma tropa para os saladeiros
uruguaios (CV 1598).
Frutuoso Rivera continuou remetendo gêneros em carretas até a
fronteira com a República Rio-Grandense, durante o ano de 1841 (CV
1817 e 2011).
Mas não era só gado que passava para o outro lado da fronteira,
também desertores farroupilhas e imperiais buscavam abrigo em território
uruguaio. Em 21.10.1841, Domingos José de Almeida solicitou ao presidente
Frutuoso Rivera que remetesse 100 desertores da infantaria republicana que
se refugiaram em Cerro Largo, conforme o artigo 4° da Convenção secreta
celebrada em 5 de julho daquele ano.
Durante a Revolução Farroupilha, 1835-45, os revolucionários riograndenses organizaram a República e realizaram tratados internacionais, com a
República do Uruguai e com a província de Corrientes, da República Argentina.
Em 21 de agosto de 1838, a República Rio-Grandense assinou o
tratado de Canguê com Dom Frutuoso Rivera, reconhecendo-o como único
presidente da República Oriental do Uruguai e este reconhecia a
independência da República proclamada pelo general Antônio de Souza Neto,
em 11 de setembro de 1836. No Tratado, Rivera se comprometia a expulsar
51
do Uruguai as tropas imperiais, entregando suas armas e munições aos riograndenses. Os entendimentos sobre as linhas demarcatórias de fronteira
foram postergados para o futuro. Outro item importante é a concessão de
anistia aos uruguaios que lutavam no exército rio-grandense e também aos
rio-grandenses que estavam no exército oriental. A convenção nunca foi
executada, pois a finalidade principal do Tratado era reconhecer a presidência
de Frutuoso Rivera e aos rio-grandenses interessava o caminho livre até o
porto de Montevidéu. O governo da República Rio-Grandense comprometiase também a entregar três mil cavalos em troca do auxílio de tropas militares
que seriam enviadas ao caudilho oriental. Rivera fez jogo duplo, pois recebia
dinheiro do Império do Brasil e fingia apoiar os republicanos rio-grandenses
(Flores, 1996, p. 81-82).
Em 28 de dezembro de 1841, o ministro Domingos José de Almeida,
representando a República Rio-grandense, e José Luís de Bustamonte,
representante do Uruguai, assinaram Tratado S. Frutuoso, formando uma
aliança para invadir a província de Entre-Rios. A República Rio-Grandense
forneceria um contingente de 500 homens de infantaria e 200 de cavalaria
para depor o presidente de Entre-Rios, retornando ao território riograndense após a operação militar. Frutuoso Rivera deveria fornecer mil
cavalos aos rio-grandenses.
Rivera não enviou os cavalos e os rio-grandenses, desconfiando que
o presidente uruguaio pretendia estabelecer o Quadrilátero, formado pelo
Uruguai, Rio Grande do Sul, Corrientes e Entre-Rios, sonhado por José
Artigas, não prepararam a tropa invasora. Desta maneira a Convenção de
São Frutuoso nunca foi executada (Flores, 1996, p. 82).
O ministro José Pinheiro de Ulhoa Cintra, em 1842, foi
credenciado pela República Rio-Grandense como ministro plenipotenciário
para celebrar tratados com as províncias de Entre-Rios, Santa Fé e com a
República do Paraguai.
52
Em 29 de janeiro de 1842, José Pinheiro de Ulhoa Cintra, delegado
da República Rio-Grandense, assinou com Manoel Leivas, representante do
general Pedro Ferre, presidente de Corrientes que lutava contra o ditador
Juan Manoel de Rosas, a Convenção de Corrientes, na qual tratavam de
amizade de comércio. Estabeleceram também repressão a qualquer
intromissão clandestina nas propriedades, garantindo bens e pessoas riograndenses, residentes em Corrientes. No Item 8° se comprometeram a
manter perfeita neutralidade nas lutas políticas regionais. Combinaram
também o desarmamento de grupos que invadissem ambos os territórios e
que fossem contrários às causas que defendiam, comprometendo-se a
estipularem uma aliança ofensiva e
defensiva
contra os governos
perturbadores da paz e da tranqüilidade dos países contratantes. O governo
de Corrientes se comprometia a empregar sua influência para que os
governos de Entre-Rios e Santa Fé celebrassem igual convenção com os riograndenses e que tudo faria para que a República Rio-Grandense fosse
reconhecida pelo governo argentino, em seguida ao triunfo contra o ditador
Rosas, prestando os correntinos aos farroupilhas “todos os auxílios e
elementos de guerra necessários para terminar a luta contra o Império do
Brasil” (Flores, 1996, p. 83).
Quando a Guerra Civil dos Farrapos já declinava, José Maria Vida,
representante de Frutuoso Rivera, e Daniel Gomes de Freitas, delegado
da República Rio-Grandense, assinaram, em 6 de março de 1844, uma
convenção nas pontas do rio Quaraí, com a finalidade de terminar com “as
dissensões desastrosas que afligiam ambos os países”. As operações
militares deveriam se limitar às guerras de recurso e só em caso extremo
se reuniriam às forças convenientes de ambos os exércitos. Os delegados
cogitaram da necessidade de entrarem em entendimento com o governo
de Corrientes no sentido de celebrarem uma convenção recíproca.
Estipularam que a paz com o inimigo dos contratantes, isto é, o Império do
53
Brasil, não poderia ser feita sem o consentimento e aprovação de ambos
os governos. O caudilho Frutuoso Rivera tentava ser o mediador da paz
entre a República Rio-Grandense e o Império. No entanto, o barão de
Caxias não aceitou a mediação de Rivera, tratando diretamente com os
revolucionários os termos de concessão de anistia para pacificar a
província (Flores, 1996, p. 84).
Em nenhum de seus tratados a República Rio-Grandense cogitou
em formar o sonhado quadrilátero de José Artigas, um novo país com os
territórios do Uruguai, Rio Grande do Sul, realizaram-se apenas
convenções de auxílio mútuo e de garantia para que o porto de
Montevidéu continuasse a abastecer os rio-grandenses com armas,
munições, roupas e alimentos.
As relações do caudilho Dom Frutuoso Rivera com os revolucionários
republicanos eram facilitadas pelo fato dele ter sido oficial do exército de
Lecór, durante a ocupação de Montevidéu, e compadre do general Bento
Manoel Ribeiro, que ora lutou ao lado dos republicanos, ora do lado dos
imperiais. No imaginário popular firmou-se o ideal de pequena pátria, livre e
independente. Ainda hoje há pessoas que lembram o separatismo do Rio
Grande do Sul como uma forma de chamar a atenção política.
O processo histórico marca profundamente a integração da região
denominada fronteira, local de intercâmbio comercial e de refúgio aos
perseguidos políticos.
Fontes
Documentos da Coleção Alfredo Varela (CV) do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul.
O Artilheiro, Jornal de Porto Alegre, coleção do Museu de Comunicação
Social Hipólito José da Costa.
54
Referências
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro
do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão/PUCRS, 1990.
FLORES, Moacyr. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1996.
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
ERUS, 1987.
55
5
BRASIL E URUGUAI:
A “FRONTEIRA VIVA” COMO
ESTOPIM PARA A ECLOSÃO DA
GUERRA DO PARAGUAI
______________________
Carla Ferrer ∗
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS
A principio, a defesa do território conquistado ao índio e ao
espanhol invasor foi sua flama. Depois na grande Revolução
condensaram-se todas as suas ânsias libertárias. Mais tarde, nos
campos de Lomas Valentinas, em Humaitá e no Passo da Pátria,
o gaúcho sopitou as suas dissensões com o Império do Brasil
para servir à unidade nacional representada nas espadas de
Caxias e Osório.
JOSÉ SALGADO MARTINS
Com o intuito de apontar os antecedentes da Guerra do Paraguai,
apresentaremos neste artigo, uma breve discussão a respeito das relações
fronteiriças entre o Brasil e o Uruguai e suas tensas relações diplomáticas, na
segunda metade do século XIX.
Ao longo do século XIX, as relações entre o Brasil e os Estados do
Prata foram marcadas por profundos momentos de tensão, principalmente
com o Estado Oriental do Uruguai, que se tornou o mais delicado e
perigoso problema de nossa política externa 1 , naquele período. Portanto,
a política internacional do Brasil, naquela época vigente, primava em
∗
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS e membro efetivo do CIPEL, Círculo
de Pesquisas Literárias. E-mali: [email protected]
1
LORETO, Aliatar. Capítulos de história militar do Brasil, os antecedentes da guerra contra o
Paraguai. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana. 1953. p. 139.
56
manter a independência do Uruguai, bem como, manter sua fronteira
sossegada e segura.
Segundo André Lamas, agente diplomático uruguaio, todos os
estadistas brasileiros tinham o interesse da pacificação do Estado Oriental 2 .
Entretanto, esta suposta pacificação almejada pelo Império não se
concretizou, devido as instabilidades enraizadas na “fronteira viva” 3 entre o
Brasil e o Uruguai, cujas relações intrínsecas de cunho econômico e político
envolviam a elite agrária do sul do Brasil 4 .
Sendo assim, as relações fronteiriças entre o Rio Grande do Sul e o
Estado Oriental do Uruguai tinham suas peculiaridades, devido a grande
aproximação destes povos. Tal aproximação facilitava as relações políticas e
econômicas dos grandes estancieiros sul-rio-grandenses, que do outro lado
da fronteira, possuíam grandes propriedades, onde “mantinham campos de
criação de engorda de gado. Desde o Chuy ao Cuareím, com cerca de 428
estâncias, que abrangiam a superfície de 1.728 léguas quadradas, o
equivalente a 30% do território do Uruguai” 5 .
Na segunda metade do século XIX, a população brasileira neste
Estado Oriental, representava segundo Moniz Bandeira, cerca de 40 mil
rio-grandenses, ou seja, o equivalente a 20% do total da população do
Estado Oriental. Desta forma, podemos compreender as relações
intrínsecas existentes entre os grandes proprietários de terras brasileiros e
2
Jornal do Comércio, 22 set. 1852.
Segundo a tese de Backheuser, Fronteira viva, em essência, é uma região, através da qual,
mais dia menos dia, surgem, ou se agravam conflitos internacionais, políticos, ou de ordem fiscal
administrativa, ensejando demonstrações de força militar.
4
As relações na fronteira viva da Província sul-rio-grandense, sempre estiveram presentes,
desde sua formação. Discorre do período da doação das Sesmarias, fato em que passaram a ser
formadas grandes estâncias, nas quais estas lutavam para manter sua principal fonte econômica,
o gado. Em certos momentos, estes, pastavam do lado do Rio Grande e em outros momentos, do
lado dos campos gordos” da Cisplatina. Desta forma, a luta pelo gado e pelas pastagens ocorre
desde a formação desta Província sul-rio-grandense.
5
BANDEIRA. L. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata
– Argentina, Uruguai e Paraguai: da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. São Paulo;
Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasilia, 1995. p. 114
3
57
os uruguaios, em relação aos aspectos políticos e econômicos, que
envolviam o Estado Oriental.
Podemos inferir, assim, que realmente existia uma “fronteira viva”
entre estes dois países, coexistindo uma troca de relações e experiências
sociais,
políticas,
econômicas
e
militares.
Devido
esta
inter-relação
proporcionada pelo convívio intenso na fronteira sul do País entre riograndenses e uruguaios, grande parte dos distúrbios políticos no Estado
Oriental envolviam diretamente a elite sul-rio-grandense, possuidora de
fortunas neste Estado supramencionado.
Após analisarmos esta ligação fronteiriça, podemos compreender a
participação dos rio-grandenses nos conflitos armados existentes no Uruguai,
entre os Partidos Blanco e Colorado 6 , pois estes brasileiros necessitavam
garantir a segurança de suas propriedades e interesses particulares,
localizados naquele país.
A posição do governo central brasileiro em relação a este
envolvimento dos rio-grandenses na política uruguaia era negativa, pois o
Império não apoiava a atitude militar de seus compatriotas em movimentos
armados nos países do Prata. Dentro desta perspectiva, a política imperial
pretendia manter a paz na região platina e não se envolver em problemas
diplomáticos e militares contra países daquela região.
Em 1863, ao explodir a revolução chefiada por Venâncio Flores,
adepto ao Partido Colorado uruguaio, o governo brasileiro procurou manter
sua política de neutralidade. Neste sentido, o império recomendou às
autoridades do Rio Grande do Sul as devidas condutas, que deveriam ser
acatadas pelos rio-grandenses, a fim de evitar comprometimentos da política
imperial, perante ao Estado Oriental do Uruguai.
6
Segundo Alberto Zun Felde, o Partido Blanco era arraigado no meio rural e fiel à tradição
hispânica, o qual encarava a defesa dos interesses americanos e orientais. O Partido Colorado
localizava-se, principalmente, na cidade de Montevidéo e oferecia a imagem mais urbanizada.
Desta forma, este Partido aceitava as correntes liberais européias e se identificava com os
imigrantes.
58
Conforme o Relatório da Secretária de Estrangeiros de 1863,
podemos entender estas condutas imperiais:
Nenhuma proteção e auxílio devia prestar-se à causa da rebelião. As
forças rebeldes que se asilassem na Província, deviam ser colocadas
em uma posição inteiramente inofensiva. As autoridades que
deslizassem de seus deveres, não guardando ou não fazendo
respeitar a mais perfeita e absoluta neutralidade por parte do Império,
deviam ser severamente punidas 7 .
Como podemos observar era obrigação do Presidente da Província
do Rio Grande do Sul procurar persuadir seus concidadãos a ignorar
completamente à luta do outro lado da fronteira, para, segundo o Império,
“pouparem a si e ao seu país perigos e dificuldades muito graves” 8 .
Este mandato imperial ao Presidente de Província do Rio Grande
do Sul era insensato, não havendo nenhuma condição de ser cumprido,
todavia, o Rio de Janeiro ou “ignorava” a situação da fronteira, onde
grandes estancieiros mantinham boa parte de sua economia, ou
subestimava a ação guerreira que estes brasileiros do sul do País tinham
em suas raízes. Enfim todo o cavalheirismo e melindre do Brasil em
relação ao Estado Oriental não foram correspondidos, pois os brasileiros
residentes no Uruguai, assim como, suas estâncias foram extremamente
desrespeitadas pelo governo Blanco, no Uruguai.
O partido Blanco passou a não cumprir os contratos internacionais,
negando-se a renovar com o Brasil o tratado de Comércio e Navegação,
passando assim, a instituir o imposto sobre as exportações de gado em pé
para o Rio Grande do Sul. Desta forma, a política uruguaia entrou em
confronto direto com os interesses dos estancieiros, os quais utilizavam
escravos como peões, em suas propriedades, em ambos os lados da
fronteira. Estes peões eram os responsáveis pelo “transporte” das reses
7
8
Relatório da Secretaria de Estrangeiros. 12 de novembro de 1863.
DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria Americana, 1919.
59
criadas no Uruguai para as charqueadas no Brasil, que consumiam cerca de
75% destas reses vindas do Estado Oriental 9 .
Ao governo imperial chegavam, também, diversas reclamações em
relação às violências e arbitrariedades sofridas por brasileiros, residentes no
Uruguai ou em linhas de fronteira com este Estado. Estas barbáries eram
praticadas por particulares, autoridades civis e militares uruguaios, resultantes
da agitação política e social. Devido a estas instabilidades ocorreram diversas
atrocidades como: assassinatos, roubos de gado vacum e cavalar nas
propriedades particulares dos rio-grandenses e ainda, o recrutamento forçado
de peões brasileiros para o serviço militar uruguaio.
Estes
supramencionados
acontecimentos
estavam
agitando
a
sociedade brasileira e fomentando as discussões parlamentares. Sendo
assim, o Sr. Luís Alves Leite de Oliveira Bello e Felippe B. de Oliveira Nery,
indignados com a situação sofrida pelos brasileiros nesta fronteira, expunham
seus pensamentos em relação aos crimes, que ocorriam contra seus
compatriotas e suas respectivas impunidades, os quais eram corriqueiros. O
Sr. Nery em um de seus discursos, exige justiça:
Abusos dessa ordem, meus Srs., a intervenção indébita desses
agentes, a perturbação que eles têm levado ao seio de muitas
famílias, a incerteza que fazem pairar sobre grande número de
interesses brasileiros, necessitam de uma repressão enérgica 10 .
Foram realizados diversos pedidos em relação a condutas enérgicas
contra o Uruguai, pois a situação agravava-se e tornava-se mais tensa
naquela região. A opinião pública rio-grandense estava excitada e desejosa
por uma ação do governo, que não se manifestava e levava a situação da
fronteira com o Estado uruguaio em “Banho-Maria”.
9
BANDEIRA, L. Moniz. Op. cit, 1995. p. 166-167.
BELLO, Luís Alves Leite de Oliveira e NERY, Felipe B. de Oliveira. Sessão de 09.11.1859. In:
Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
10
60
A presença do farroupilha General Antônio de Souza Neto, na Corte
mudou esta situação aos olhos do Império. O General Neto foi ao Rio de
Janeiro, com o intuito de falar em nome de quarenta mil brasileiros, que
estavam sendo perseguidos pelos uruguaios e pedir justiça às impunidades,
as quais estavam afetando a vida de seus compatriotas, que viviam no Estado
Oriental. Contudo, a presença de um General farroupilha, no Rio de Janeiro,
causou grande impacto, pois o governo central passou a temer que os
estancieiros
rio-grandenses
afeiçoados
aos Colorados
e
sentindo-se
desamparados pelo Império pudessem tomar a iniciativa de resolver a
situação supramencionada através da força, sem o consentimento do governo
11
Central , e deste modo, reavivar os sentimentos separatistas, que eram
lembranças, ainda, muito presentes no cotidiano dos rio-grandenses.
Segundo Fernando Luiz Osório, “A fronteira do Rio Grande, não é só
fronteira da província, é fronteira do Império. A tranqüilidade e a ordem na
província, importam a ordem, a tranqüilidade da Nação” 12 .
Tendo em vista, a delicada situação na fronteira rio-grandense, o
Governo imperial resolveu enviar à República do Uruguai, uma missão
especial, em 6 de maio de 1864, comandada pelo Conselheiro José Antônio
Saraiva, que tinha por objetivo resolver diplomaticamente todas as
irregularidades pertinentes, que ofendiam e prejudicavam os brasileiros, “sem
embargo da urgência das circunstâncias e ainda do estado de excitação do
espírito público brasileiro, o governo imperial preferia tentar um último apelo
aos meios amigáveis, na confiança de que surtiria efeito em ambos os
13
países” . Expedindo o seguinte conjunto de exigências a serem cumpridas,
Governo de Atanásio Aguirre, do Partido Blanco:
11
DORATIOTO, Francisco, op. cit, 2002. p. 51
Fernando Luís Osório. Sessão de 24.03.1876. In: Anais da Assembléia Legislativa da Província
do Rio Grande do Sul. Décima Sexta Legislatura, 2ª Sessão, 1876, p. 16. Acervo do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul, códice AL4.004.
13
Aviso contendo as instruções da Missão Especial confiada em 1864 ao Conselheiro Saraiva. In:
Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v. 59, tomo I, 1896.
12
61
1º O devido castigo, senão a todos, ao menos daqueles dos
criminosos reconhecidos que passeiam impunes, ocupando alguns
deles postos no exército oriental, ou excedendo cargos civis do
estado.
2° A imediata destituídos e responsabilizados os agentes de polícia,
que têm abusado da autoridade, de que se acham revestidos.
3° A indenização contentemente a propriedade, que sob qualquer
pretexto tenha sido extorquida aos brasileiros, pelas autoridades
militares ou civis da república.
4° Que fossem postos em plena liberdade todos os brasileiros, que
houveram sido constrangidos ao serviço das armas da República 14 .
Entretanto, após a apresentação das exigências do Império ao
Uruguai e seu não-comprometimento imediato, Saraiva apresentou no dia 6
de agosto de 1864, o Ultimatum, estipulando o prazo de seis dias, para o
cumprimento de todas as referidas exigências brasileiras. O Conselheiro
esclareceu
que
o
não-cumprimento
das
exigências
preestabelecidas
acarretariam na imposição da força militar em território oriental, para se fazer
cumprir todas as determinações exigidas pelo Imperador.
Neste mesmo período, Aguirre procurando aliados contra o Império,
busca aliança com o Paraguai, que o apoia politicamente e militarmente, o
qual envia ao Brasil um Ultimatum, em 30 de agosto de 1864 contra a
ocupação do território Uruguaio pelas forças militares brasileiras. O Brasil
desprezou e subestimou a ofensiva diplomática e militar do Paraguai, pois no
Brasil, os soldados paraguaios eram vistos com desprezo
15
, por serem
considerados um “povo bárbaro”.
Com o auxílio de tropas terrestres de Flores (do Partido Colorado, da
República uruguaia), o Brasil interveio militarmente, tendo como principal
objetivo: ataques bélicos às cidades de Salto, Paisandú e Cerro Largo.
14
DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria Americana, 1919. p. 30.
DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra, nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 60.
15
62
A tomada de Paisandú foi praticamente o fim desta intervenção militar
contra o Uruguai. O Estado Oriental perdeu a guerra e teve a cidade de
Paisandú arrasada 16 pelo bombardeio marítimo (Figs. 1 e 2), realizado por
Tamandaré e sob a infantaria brasileira de Venâncio Flores.
Fig. 1. Paisandú depois do bombardeio. Ruínas do Forte.
16
CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres de la Guerra del
Paraguay. Buenos Aires: Planeta. 2000. p. 16
63
Fig. 2. Inspeção realizada após o ataque à Paisandú
Gómez (à esquerda).
17
pelo chefe das forças de defesa, Leandro
Após o ataque ao Uruguai, López, presidente do Paraguai, viu em
suas mãos a possibilidade em declarar guerra ao Brasil. Desta forma, em 11
de novembro de 1864, o Governo de Assunção capturou o Navio Mercante
Marquês de Olinda 18 , que levava o novo Presidente da Província de Mato
Grosso, Coronel Carneiro de Campos e alguns oficiais.
Este aprisionamento foi considerado pelos brasileiros como um ato
traiçoeiro de “pirataria”. Isto posto, o Império pediu explicações ao Paraguai
17
CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres de la Guerra del
Paraguay. Buenos Aires: Planeta, 2000. p. 17.
18
Segundo Virgílio Corrêa Filho este navio brasileiro pertencia à Companhia de Navegação por
Vapor do Alto Paraguai, esta companhia era subsidiada pelo Império para manter linha regular
ligando Montevidéo a Cuiabá.
64
pelo seu ato traiçoeiro. Em resposta, o governo paraguaio enviou nota
dizendo, que estava proibido a navegação de navios brasileiros no rio
Paraguai. Solano López, considerando que já estava em Estado de Guerra
contra o Império brasileiro, decidiu invadir, no dia 15 de novembro de 1864, a
Província do Mato Grosso e posteriormente, invadiria a Província do Rio
Grande do Sul. Então com esta invasão bélica ao Mato Grosso, o Brasil,
realmente, entrou em Guerra contra o Paraguai 19 .
Podemos constatar que ao investigarmos as questões explicitadas
neste sucinto artigo, podemos compreender a importância das relações
existentes na fronteira do Brasil com o Uruguai, o qual ocasionou o
“desabrochar” da Guerra do Paraguai. Portanto, fica claro que este
trabalho buscou analisar os antecedentes da Grande Guerra, travada na
América Latina, no século XIX, e não aprofundar as problemáticas desta
referida Guerra.
Referências
AVISO contendo as instruções da Missão Especial Confiada em 1864 ao
Conselheiro Saraiva. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v.
59, tomo I, 1896.
BANDEIRA, L. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados
na Bacia do Prata — Argentina, Uruguai e Paraguai: da colonização à Guerra
da Tríplice Aliança. São Paulo; Brasília, DF: Editora da Universidade de
Brasília, 1995.
BELLO, Luís Alves Leite de Oliveira; NERY, Felipe B. de Oliveira. Sessão de
09.11.1859. In: Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres
de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta, 2000.
19
DORATIOTO, Francisco, op. cit., 2002. p. 67.
65
DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria
Americana, 1919.
DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra, nova história da Guerra do Paraguai.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Jornal do Comércio, 22 set. 1852.
LORETO, Aliatar. Capítulos de história militar do Brasil, os antecedentes
da guerra contra o Paraguai. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Americana, 1953.
OSÓRIO, Fernando Luís. Sessão de 24.03.1876. In: Anais da Assembléia
Legislativa da Província do Rio Grande do Sul. Décima Sexta Legislatura. 2ª
Sessão, 1876, p. 16. Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul,
códice AL4.004.
RELATÓRIO da Secretaria de Estrangeiros. 12 de novembro de 1863.
ZUN FELDE, Alberto. Processo histórico del Uruguay. Montevideo: Biblioteca
de Autores Uruguayos, 1967.
66
6
DUAS VISÕES DO RIO PARDO DA PRATA:
EXPEDIÇÃO DE PERO LOPES DE SOUSA (1531)
E EXPEDIÇÃO DE ALVAR NUNEZ
CABEZA DE VACA (1541)
__________________________
Harry Rodrigues Bellomo ∗
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS
1 Expedição de Martin Afonso de Sousa e de Pero Lopes de Sousa
Em dezembro de 1530, Pero Lopes de Sousa partiu em direção ao
Brasil na expedição do seu irmão, Martin Afonso, com o objetivo de explorar e
colonizar o Brasil.
Durante o ano de 1531, explorou a costa brasileira, chegando ao rio
da Prata em novembro.
Martin Afonso resolveu retornar para o norte, enquanto Pero Lopes
continuava a explorar o rio da Prata, chegando em dezembro de 1531 até a
foz do rio Paraná.
Após ajudar na fundação de São Vicente (1532), Pero Lopes voltou a
Portugal com o galeão São Vicente e a nau Nossa Senhora das Candeias.
No caminho apresou naus francesas e destruiu um fortim francês,
enforcando os seus defensores.
No final de 1532 ou janeiro de 1533, finalmente atracou em Fato
(Sul de Portugal).
Decidido a acelerar o povoamento do Brasil Dom João III criou, entre
1534 e 36, 14 capitanias hereditárias, cabendo a Pero Lopes a capitania de
Santo Amaro, com 10 léguas de costa; a de Santana com 40 léguas, a última
∗
Mestre em História. Professor da PUCRS.
67
da costa brasileira; e a capitania de Itamaracá, entre Rio Grande e
Pernambuco. Pero Lopes de Sousa não mais retornou ao Brasil, tendo
morrido em um naufrágio na costa africana.
Assim, as suas capitanias foram administradas por sua viúva, Isabel,
e, mais tarde, pelos filhos e filha, Jeronima.
Itamaraca foi, das três capitanias de Pero Lopes, a que mais
prosperou graças a sua união com a economia açucareira de Pernambuco.
Santo Amaro partilhou o destino de São Vicente, doada a Martin
Afonso, e a de Santana ficou abandonada.
1.1 Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa
Francisco Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, o maior historiador
brasileiro do século XIX, foi o descobridor deste diário nos documentos da
Biblioteca da Ajuda, quando tinha 20 anos de idade, a mesma de Pero Lopes.
A primeira edição foi em 1839, e a segunda em 1847, sendo a
terceira feita pelo Instituto Histórico em 1861. O texto apresentado é de
edição de 1979, pela Editora Parma.
Transcrição do Diário de Navegação
“Sabado 23 do mes de novembro de 1531 estando o sol em 11 graos
e 35 meudos de sagitario, e a lua 27 graos de tauro, parti do Rio dos
Bengoais, que jaz aloeste do cabo de Santa Maria 11 leguas, e levava
hum bargantim com 30 hômes tudo bem em ordem de guerra: e fiz
meu caminho ao longo da costa, que se corre aloeste. 2 leguas do
dito rio, donde parti, ha hûa ilha pequena 1 toda de pedras, e della a
terra firme ha hûa legua: derrador da ilha tem bom surgidouro de
fundo de 5 braças de vasa molle. Indo assi pegado com a costa, a
1
Ilha dos Lobos (V.).
68
qual he toda limpa, per fundo de 5,6 braças, ao meo dia houve vista
de hûa ilha ao mar 2 , que me demorava ao sulsudoeste; e della a
terra ha 3 leguas: da banda de este tem hûa restinga de area
comprida, que lança ao nordeste. Passando ávante da ilha descobri
hum alto monte, ao qual puz nome — monte de Sam Pedro 3 — e
morava-me aloeste e a quarta do noroeste. Este dia fui dormir ao pé
do dito monte de Sam Pedro. Desde a dita ilha atraz até este monte,
a costa he toda suja de pedra, e ruins baxos: a terra he toda rasa
até este monte muito fermosa. Ao pé deste monte ha 2 portos; hum
da banda d’aloeste, e outro da banda de leste: nam sam senam para
navios pequenos.
Domingo 24 do dito mês, ante manhãa, me fiz á vela com o vento
nornordeste. Deste monte de Sam Pedro se começa a costa a
loesnoroeste, indo assi no golfo de hûa enseada, que se faz grande
como o dito monte de Sam Pedro, demora a leste e a quarta de
sueste, fui dar em fundo de 2 braças e mea, hûa legua de terra 4 : e me
acalmou o vento que levava: e me deu trovoada do Su, com muito
vento; e fiz-me no bordo do monte de Sam Pedro, para me meter no
porto onde estivera de noite. O vento rodou logo a sueste; e tornei-me
a fazer na volta d’aloeste, para fazer meu caminho. Aqui comecei a
achar agua doce, e muito pescado morto. Da ponta 5 desta enseada
da banda d’aloeste lança hûa restinga ao mar hûa legua: o mais baxo
della he braça e mea, e o mais alto 4 braças. Como pessei a dita
restinga me acalmou o vento; e afuzilava muito a sudoeste e ao
noroeste, que nesta costa sam sinaes certos de grandes temporaes: e
com este receo me acheguei a terra, para ver se achava porto onde
2
Ilha das Flores (V.).
Cerro de Montevidéo (V.).
Foz do Rio Santa Luzia (V.).
5
Punta del Espinillo.
3
4
69
me metesse. Bem pegado com terra me tornou a ventar o vento
nordeste, e fui ao longo da costa, a qual se corre a loesnoroestem per
fundo de 4,5 braças d’arca limpa. Indo sempre hum tiro de bésta de
terra tornou-me a acalmar o vento bem tarde, e os sinaes do temporal
cresciam; determinei de varar o bargantim em terra até passar a noite;
e mandei varar em hûa arca, a tirar o fato todo em terra; e fazer hum
repairo de terra; e puzemos a artelheria em ordem. E eu fui com 10
homês pela terra ver se achava rasto de gente: nam achei nada;
senam rasto de muitas alimarias, e muitas perdizes e codornizes, e
outra muita caça. A terra he mais fermosa e aprasivel que eu já mais
cuidei de ver: nam havia homem que se fartasse d’olhar os campos e
a fermosura delles. Aqui achei hum rio grande; ao longo delle tudo
aboredo o mais fermoso que nunca ví: e antes que chegasse ao mar
hum tiro de bésta se sumia. E tomamos muita caça e tornamosnos ao
bargantim. Ao pôr do sol veo hûa trovoada do noroeste, com tanta
força de vento e pedra, que nam ravia homem, que se tivesse em pé:
e de supito saltou ao sudoeste com muita chuva, relampados, e
sempre cuidei de perder o bargantim, segundo o mar era grande.
Toda esta noite corremos tanta fortuna, quanta hômes nunca
passaram. A agua que choveo me molhou o mantimento todo, que
mais nam prestou.
Segunda-feira 25 do dito mês pela menhãa alimpou o tempo e veo
sol, com que nos enxugamos. Daqui me quizera tornar, por nam
termos mantimento; depois pareceo-me que nos podiamos manter
com o mantimento, que na terra havia: e com o pescado o mais
fermoso e saboroso, que nunca vi. A água já aqui era toda doce; mas
o mar era tam grande que me nam podia parecer que era rio: na terra
havia muitos veados e caça, que tomavamos, e ovos de emas, e
emas pequeninas, que eram muito saborosas; na terra ha muito mel e
70
muito bom: e achavamos tanto que o nam queriamos: e ha cardos,
que he mui bom mantimento, e que a gente folgava de comer. E com
nos parecer a todos, que nos podiamos soster, determinei de ir
ávante, e o vento era sueste, e o tempo estava bom, e de noite havia
lua. Parti bem tarde; — duas de sol, com tençam de andar a noite
toda; indo ao longo da costa, por fundo de 6 braças d’area limpa.
Sendo 2 leguoas dond’e partira, saíram da terra e mim 4 almadias,
com muita gente: como as vi puz-me á corda com o bargatim para
esperar por dias: remavam-se tanto, que parecia que voavam. Foram
logo comigo todos; traziam arcos e frechas e azagaias de pao
tostado, e elles com muitos penachos todos pintados de mil cores: e
chegaram logo sem mostrarem que havia medo: senam com muito
prazer abraçando-nos a todos: a falta sua não entendiamos; nem era
como a do Brasil; falavam do papo como mouros: as suas almadias
eram de 10, 12 braças de comprimento e mea braça de largo: o pao
dellas era cedro, mui bem lavradas: remavam-nas com hûas pás mui
compridas; no cabo das pás penachos e borlas de penas; e remavam
cada almadia 40 homês todos em pé: e por se vir a noite nam fui ás
suas tendas, que pareciam em hûa praia defronte donde estava; e
pareciam outras muitas almadias varadas em terra; e elles
acenavam que fosse lá; que me dariam muita caça; e quando viram
que nem queria ir, mandaram hûa almadia por pescado: e foi e veo
em tamanha brevidade, que todos ficamos espantados: e deramnos
muito pescado: e eu mandeilhes dar muitos cascaveis e christallinas
e contas: ficaram tão contentes e mostravam tamanho prazer, que
parecia que queriam saír fóra o seu siso: e assi me despedi delles.
Quasi noite fez-seme o vente nornordeste por riba da terra: e com
êlle fazia o caminho ao longo da costa, por fundo de 5,6 braças:
como passou mea noite comecei a achar baxos de pedras, a
71
alargueime mais da terra, e tirei a moneta, e fui com pouca vela,
com a sonda na mão.
Terca-feira 26 de novembro pela manhãa me achei pegado com hûa
ponta 6 , e fui para dobrar; e a costa voltava ao noroeste e tomaa do
norte; e ventava tanto vento noroeste, que nos houvera de soçobrar.
Mandei amainar a vela; e fui surgir na ponta da banda de leste, que
abrigava do vento: e saí a terra a ver se podiamos tomar algûa caça.
E de hûas grandes arbores, em que me fui pôr, para divisar a outra
costa da banda do noroeste da ponta, houve vista de muitas ilhas 7
todas cheas d’arboredo, hûa legua da terra; e parecia cá que havia
abrigo entre ellas. E assi me tornei para o bargantim com muita caça
e mel. E á tarde acalmou o vento; e mandei meter os remos; e fui-me
ás ilhas: corri-as todas; e nunca achei porto nem abrigo, em que me
meter: na mais pequena achei repairo; mas do vento sueste era
desabrigada. Aqui estive toda a noite fazendo pescaria.
Quarta-feira 27 de novembro mandei concertar a padesada do
bargantim, e pôr a artelharia em ordem, e irmos concertados para
pelejar; porque na terra viamos muitos fumos, que he sinal e
ajuntamento de gente. E ao meo dia parti destas ilhas, as quaes são
sete, todas cheas de arboredo: as tres dellas sam grandes, e as
quatro pequenas. Com o vento lesnordeste fazia o caminho ao longo
da costa, a qual se corre ao noroeste e toma da quarta do norte. Duas
8
leguas das sete ilhas há um rio que traz muita agua: fui para entrar
nelle; e a entrada era roim de muitos baxos; e passei por longo da
costa per fundo de 7,8 braças; e a terra he toda chãa: quanto mais
6
A em quem se fundou a Colônia do Sacramento. (V.) A respeito ver Relação do Sítio da Nova
Colônia do sacramento, de Silvestre Ferreira da Silva e Notícia e Justificação do Título e Boa Fé
com que se Obrou a Colônia do Sacramento, trabalhos cujas primeiras edições datam de 1748 e
1681, respectivamente. Reedição fac-similar (Coleção da revista de História, v. LXVIII), com
prefácio de Brasil Bandecchi. (P.B.B.)
7
llhas de San Gabriel (V.).
8
Rio San Juan(V.).
72
ávante ía tanto melhor me parecia: e á pustura do sol fui surgir a hûa
ilha grande, redonda, toda chea d’arboredo, á qual puz o nome de
— Santa Anna 9 —.
Aqui estive toda a noite; onde matei muito pescado de muitas
maneiras: nenhum era de maneira como o de Portugal: tomavamos
peixes d’altura de hum homem, amarelos e outros pretos com pintas
vermelhas, os mais saborosos do mundo.
Quinta-feira 28 novembro saí e terra; nesta ilha achei muitas aves
as mais fermosas, que nunca vi. Aqui vi falcões como os de
Portugal. O vento saltou ao sul: puz-me da banda norte da Ilha:
estive surto com muita tempestade, que se me desabrigára, achára
de todo nos perderamos.
Sesta-feira 29 de novembro pela menhão abonançou o tempo, e fui á
ilha: mandei pôr fogo em três partes della; para ver se nos acudia
gente: e nam vimos senam fumos, que me demoravam a oessudoeste
e nam viamos terra: mandei subir dous homês sobre hûas arbores
grandes, que estavam na ilha, para ver se viam terra onde nos faziam
os fumos, e viram arboredo, cousa que parecia terra alagadiça.
Sabado 30 de novembro á tarde me fiz á vela com o vento
lesnordeste, e fui a hûas ilhas, que me demoravam ao nornoroeste.
Desta ilha de Santa Anna ás sete ilhas ha 4 leguas; e corre-se com
ellas leste-oeste, e á terra ha duas leguas 10 : e estas duas ilhas, a que
puz nome de — Sant’André 11 —, por ser hoje o seu dia, ha duas
leguas da dita ilha de Santa Anna; e estam da terra mea legua: a
achei nellas hum bom repairo, onde estive a noite toda.
9
Ilha de Martin Garcia (V.).
Orientação e distância mal calculadas: das ilhas de San Gabriel (7 ilhas de Pero Lopes) à de
Martin Garcia (Santa Ana) a 26 milhas ou cerca de 7 léguas ao noroeste, anota Eugênio de
Castro com sua indiscutível autoridade (P.B.B.)
11
Dos Hermanas (V.).
10
73
Domingo 1º de dezembro me fiz á vela pela manhãa, com o vento
nordeste: e mandei governar a loessueste: fazia mui gram nevoa, que
nam viamos nada, e fui assim até o meo dia pelo dito rumo; e indo por
5 braças de fundo fui de supito dar em 2 braças: e mais ávante dei em
seco: — e mandei me por onde viera. Como alimpou a nevoa, me
achei hûa legua de hûa terra mui baxa, chea d’arboredo e muitos
baxos e vi estar hûa boca grande, que me demorava ao noroeste; e
fui a demandar por fundo de 2 braças, e ás vezes dando em seco, até
que dei em hum canal de sete braças, que ía dar na dita boca: e
entrei para dentro: e achei hum rio 12 de mea legua de largo, e de hûa
banda e d’outra tudo cheo de arboredo. A agua corria mui tesa para
baxo: havia de fundo 10, 12 braças de lama molle. O rio faz a entrada
leste-oeste: da banda do sul na boca delle ha hum esteiro pequeno de
6 braças de largo: e índo mais por o rio arriba, da banda do sul achei
outro braço de outra mea legua de largo que ía ao sudoeste, e mais
acima achei outro braço, que vinha do noroeste: trazia muita agua, e
era quasi hûa legua de largo. Entam vi que tudo eram braços e ilhas,
antre que andavamos. As ilhas todas sam cheas d’arboredo; dellas
sam alagadiças.
Segunda-feira 2 dias de dezembro, como foi menhãa, mandei remar
pelo rio arriba: eram tantas as bocas dos rios, que nem sabia por
onde ía: sernam ía pela agua arriba; e fez-se-me noite a par de 2 ilhas
pequenas onde surgi. Estive a noite toda com muito vento noroeste.
Quinta-feira 12 de dezembro á boca deste esteiro dos Carandins puz
dous padrões de armas d’elrei nosso senhor, e tomei posse da terra
para me tornar d’aqui: por que via que nam podia tomar pratica da
gente da terra; e havia muito que era partido donde Martin Afonso
estava: e fiquei de ír e vir em 20 dias: e deste esteiro ao rio dos
12
Boca do Paranaguazu (V.), em terra Argentina (P.B.B.).
74
Beguoais 13 , donde parti, me fazia 105 leguas. Aqui tomei altura do sil
em 33 graos e 3 quartos.
Esta terra dos Carandins he alta ao longo do rio; e no sartam he toda
chãa, coberta de feno, que comque hum homem como 10 livras de
pexe, em nas emas, e perdizes e cordonizes: he a mais fermosa terra
e mais aprazivel, que pode ser. Eu trazia comigo alemães e italianos,
e homês que foram á India e francezes, — todos eram espantados da
fermosura desta terra: e andavamos todos pasmados que nos nam
lembrava tornar. Aqui neste esteiro tomámos muito pescado de
muitas maneiras: morre tanto neste rio e tam bom, que só com o
pescado, sem oútra cousa, se podiam manter; ainda que hum home
coma 10 livras de pexe, em nas acabando de comer, parece que nam
comeu nada; e tornára a comer outras tantas. O ar deste rio he tam
bom que nenhûa carne, nem pescado apodrace; e era na força do
verão que matavamos veados, e trazíamos a carne 10, 12 dias sem
sal, e nam fedia. A agua do rio he mui saborosa; pela menhãa he
quente, e ao meo dia he muito fria; quanta o homem mais bebe,
quanto melhor se acha. Nam se podem dizer nem escrever as cousas
deste rio, e as bondades delle e da terra.
Sesta-feira 13 de dezembro parti deste erteiro dos Carandins para me
tornar por donde viera. Com o vento noroeste fazia o meu camiho á
popa 14 , que ia tam teso, que cada hora, 3, 4 leguas. Sendo a par
donde viera. Sendo a par das ilhas dos corvos 15 , d’antre hum
arboredo ouvimos grandes brados, e fomos demandar onde
bradavam: e saío a nós hum homem, á borda do rio, coberto com
13
Este rio é o atual Solis Grande, conforme Eugênio de Castro (P.B.B.).
Varnhagen anota: “Note-se bem: Ao descer o rio ia à popa com vento N.O.: segue para S.E.:, o
que não poderia suceder se tivesse subido o Paraná”. Eugênio de Castro corrige: “Ao descer o rio
veio tocado com corrente e vento noroeste, pela popa; navegou pois, ao sueste, ao Paranaguazu,
e não como quer Varnhagen” (P.B.B.).
15
Estas duas ilhas que no registro do dia 8, Pero Lopes e Sousa as denomina de llhas os Corvos,
Eugênio de Castro admite serem as atuais Dourado, no Rio Paranaguazu (P.B.B.)
14
75
peles, com arco e frechas na mão; e fallou-nos 2 ou 3 palavras
guaranís, e entenderam-as os linguas que levava; tornaram-lhe a falar
na mesma lingua, nam entendeu; senam disse-nos que era beguoaa
chanaa 16 e que se chamava ynhandú. E chegámos com o bargantim
a terra, e logo vieram mais 3 homês e hûa molher, todos cobertos
com pelles: a molher era mui fermosa; trazia os cabellos compridos e
castanhos: tinha hûs ferretes que lhe tomavam as olheiras: elles
traziam na cabeça hûs barretes das pelles das cabeças das onças,
com os dentes e om tudo. Por acenos lhe entendemos que estava
hum homem com outra geraçam, que chamavam chanás, e que sabia
falar muitas linguas; e que o queria ír a chamar, e estava la diante
pelo rio arriba; e que elles íriam e viriam em 6 dias. Entam lhes dei
muitas cristalinas e contas e cascaveis, de que foram mui contentes,
e a cada hum delles seu barrete vermelho; e á molher hûa camisa: e
como lhes isto dei, foram a hûs juncais, e tiraram duas almadias
pequenas, e trouxeram-me ao bargatim pescado e taçalhos de veado,
17
e hûa posperna d’ovelha ; mas nam ousavam de entrar dentro do
bargantim, nem seguravam comnosco. E assi se foram, dizendo que
haviam de vir dahia a 5 dias, e os esperassem nas ditas ilhas dos
corvos. Aqui estive 6 dias esperando, nos quaes tomei multa caça e
muito pescado, e muitos veados, tamanhos como bois, os quaes
faziamos em taçalhos, para levar ás naos. Como vi que nam vinham,
ao cabo de 6 dias me parti.”
16
17
Begoás e chanás eram nomes de tribos de índios (V.).
Provavelmente de paca, anta ou capivara (V.).
76
Fig. 1. Rotas das Expedições de Martin Afonso de Sousa e de Pero Lopes de Sousa.
2 Narrativa de Alvar Nunes Cabeza de Vaca
Nascido em 1492, ano da descoberta do novo mundo, Nunez Cabeza
de Vaca, descendente de um camponês enobrecido em 1212, viveu empolgado
pela visão de explorar e conquistar este estranho e fascinante mundo.
77
Em 1527 participou da expedição de Novaez que atravessou os
EEUU da Flórida até o Novo México, e apenas quatro sobreviventes
chegaram a Cidade do México.
Em 1540 foi nomeado adelantado do rio da Prata.
Em 1540 Cabeza de Vaca partiu de Cadiz para o rio da Prata.
Em 1541 chegou a ilha de Santa Catarina, no Sul do Brasil. Dalí
remou para Assunção começando sua política de pacificação dos índios.
Quando tudo parecia em paz, partiu em busca do mítico rei branco da Serra
de Prata. A expedição voltou dizimada e Cabeza de Vaca foi preso e
destituído do governo.
Julgado na Espanha foi condenado ao exílio e a pagar uma
grande multa.
A origem da sua desdita está na política de tolerância com os
índios e sua recusa de usar a força e a escravização dos índios como
método de conquista.
Sua narrativa das expedições que participou são clássicos. Para nós,
é de suma importância a parte em que conta sua viagem de Santa Catarina
até Assunção, fazendo o caminho inverso ao do alemão Schimidel.
Suas descrições da bacia do Prata e das tribos indígenas são fontes
primordiais para o estudo desta região.
A fixação nas riquezas da América do Sul e os mitos dos reinos de
Prata e de ouro, aparecem com clareza, sendo uma fonte importante para
vermos o imaginário do século XVI.
A desilusão dos espanhóis, ao perceber que o reino da Prata era o
Peru, lançou a bacia platina em um relativo abandono.
78
Transcrição da Narrativa de Cabeza de Vaca
“Desembarque no Brasil
Ao chegar na ilha de Santa Catarina 18 , o governador mandou
desembarcar toda a gente que conseguiu levar e os vinte e seis
cavalos que conseguiram sobreviver ao mar, dos quarenta e seis
que saíram da Espanha. O governador procurou saber, dos
índios naturais daquela terra 19 se porventura poderiam informar
sobre o estado da gente espanhola que ia socorrer na província
do rio da Prata. Deu a entender aos índios que seguia por
mandado de Sua Majestade para prestar socorro e também
tomou posse daquela terra. Durante todo o tempo em que esteve
na ilha 20 , o governador dispensou muito bom tratamento aos
nativos daquela ilha e de outras partes da costa do Brasil
(vassalos de Sua Majestade) e obteve deles a informação de que,
a quatorze léguas da ilha, num local chamado Biaza 21 , estavam
dois frades franciscanos chamados frei Bernaldo de Armenta,
natural de Córdoba, e frei Alonso Lebrón, natural da Grand
Canária. Em poucos dias esses dois frades vieram até onde
estava o governador, muito atemorizados porque os índios
daquelas terras queriam matá-los. Isso porque os cristãos que lá
estavam haviam queimado algumas casas de índios e estes já
18
Cabeza de Vaca aportou na baía norte da ilha de Santa Catarina, que chamou de baía de
Ramos (N. do E.).
19
A ilha de Santa Catarina, bem como todo o resto do litoral sul do Brasil, de Cananéia ao norte
do Rio Grande do Sul, era habitada pelos carijós, do grupo étnico tupi-guarani (N. do E.).
20
Durante o tempo em que permaneceu na ilha de Santa Catarina, Cabeza de Vaca acampou
nas praias da baía norte. Logo em seguida, porém, transferiu-se para o local que os índios
chamavam de Yurú-mirim (“passagem pequena"), no atual Estreito. Batizou o local com o nome
de porto de Vera (N. do E.).
21
Biaza, lbiaça ou Viaça, atual Massiambu, no continente, ao sul da ilha de Santa Catarina. A
lagoa de lmaruí era chamada também de lagoa de Biaza.
79
haviam matados dois cristãos. Informado sobre o ocorrido, o
governador procurou pacificar aqueles índios e removeu os frades
para aquela ilha, a fim de catequizar os índios que ali viviam.
As condições da terra
Daquele rio chamado Iguaçu, o governador seguiu adiante com sua
gente e aos três dias do mês de dezembro chegaram a um outro rio
que os índios chamam Tibagi, que era todo ladrilhado, com lajes
grandes e tão bem formadas como se ali tivessem sido colocadas
pelo homem 22 . Tivemos grande trabalho para atravessar aquele rio,
pois tanto os cavalos como as pessoas resvalavam muito e, além
disso, a correnteza era muito forte. A solução foi todos atravessarem
abraçados. A duas léguas dali outros índios vieram receber o
governador e sua gente, trazendo mais mantimentos, o que passou a
ser uma constante, de modo que nunca faltava o que comer. Por isso,
o governador dava muitos presentes aos índios, especialmente aos
principais, dispensando-lhes um tratamento muito cordial. A notícia
sobre esse tratamento corria por toda a parte, de modo que os índios
vinham trazer o que possuíam e eram pagos por isso.
Nesse mesmo dia, estando o governador próximo de um outro
povoado de índios, cujo principal se chamava Tapapiraçu 23 , chegou
um índio natural da costa do Brasil, que já havia se convertido ao
cristianismo e recebido o nome de Miguel. Vinha da cidade de
Ascensión, onde residiam os espanhóis que se ia salvar. O fato
alegrou muito o governador, pois o mesmo pôde inteirar-se da
22
No curso superior do Tibagi, a oeste da atual cidade de Lagos, a oeste da atual cidade de
Lagos, nas proximidades de Ponta Grossa (N. do E.).
23
Era o grande aldeamento chamado Abapany, por onde cruzava o caminho transcontinental
“Peabiru” ou “Peá-byiu” (o “caminho cujo percurso se iniciou”), que unia a costa do Brasil
meridional com os Andes (N. do E.).
80
situação daquela província e dos muitos perigos pelos quais haviam
passado os espanhóis desde a morte de Juan de Ayolas. Depois de
fazer o relato, por sua própria vontade, o índio quis retornar com o
governador para guiá-lo até a cidade de Ascensión. A partir dali, o
governador mandou dispensar e fazer retornar os índios que saíram
em sua companhia da ilha de Santa Catarina, aos quais deu muitos
presentes e agradecimentos pelos bons serviços que prestaram.
Como a gente que levava consigo era muito inexperiente no trato com
os índios, o governador determinou que não fizessem nenhum
contato com os mesmos e não fossem às suas casas, pois a mínima
coisa poderia ser uma ofensa para eles, colocando-os em estado de
guerra. Assim, os contatos só deveriam ser feitos por aqueles que
entendiam os índios, que faziam os negócios, comprando os
mantimentos de que todos necessitavam e cuja distribuição era feita
pelo próprio governador, sem cobrança alguma.
Era impressionante ver o medo que aqueles índios tinham dos
cavalos. Para que os cristãos a cavalo não os ameaçassem, eles logo
procuravam dar-lhes galinha, mel e outras coisas de comer. Porém,
para evitar a exploração, o governador procurava assentar o
acampamento afastado dos povoados e, ao mesmo tempo, punia
aqueles que fizessem qualquer agravo aos índios. Percebendo isso,
os índios vinham muito seguros, trazendo suas mulheres e filhos,
além de muitos mantimentos, só para verem os cristãos e os cavalos,
que eram personagens estranhos por aquelas terras.
Seguindo seu trajeto por aquelas terras, o governador e sua gente
chegaram a um povoado dos guaranis, cujo senhor principal,
chamado Pupebaje, saiu a caminho para recebê-los, muito alegre e
trazendo mel, patos, galinhas, milho, farinha e outras coisas. Através
do intérprete, o governador lhe agradeceu a acolhida, fez-lhe o
81
pagamento e ainda deu para o principal muitos presentes, entre eles
tesouras e facas. Deixou os índios desse povoado tão alegres e
contentes, que pulavam, dançavam e cantavam de prazer.
Aos sete dias do mês de dezembro chegaram a um rio que os índios
chamam Taquari 24 , com boa quantidade de água e uma boa
correnteza, e em cuja ribeira está assentado um povoado de índios
cujo principal se chama Abangobi. Todos os do povoado, inclusive as
mulheres e as crianças, saíram pra receber a comitiva do governador,
mostrando grande prazer com a sua chegada. Como os demais,
trouxeram mantimentos e foram pagos por isso, indo aos outros
povoados para contar o que se passava e mostrar o que haviam
ganho. De modo que o governador já podia encontrar muito alegres e
pacíficos todos os povos com os quais haveria de cruzar. Aos
quatorze dias do mês de dezembro, encontraram um outro povoado
guarani, onde o principal se chamava Tocangucir. Aí descansaram
um dia para se recuperarem da fadiga, tendo os pilotos aproveitado
para medir a localização. O caminho por onde seguiam era a oestenoroeste e quarto-noroeste, estando aquele lugar a vinte e quatro
graus e meio, afastado um grau do trópico. Por todo caminho que se
andou depois, viram-se muitas povoações, sendo terra muito alegre,
de muitas campinas, muitas árvores, muitos rios e arroios de água
muito cristalina, toda a terra muito própria para lavrar e criar.
Trabalhos por que passou o governador
Do povoado de Tugui o governador seguiu caminhando com sua
gente até os dezenove dias do mês de dezembro sem encontrar
nenhum outro povoado, passando grande trabalho para atravessar os
muitos rios e más passagens que havia. Houve dias que tiveram de
24
Hoje, rio lvaí, que De Vaca transpôs acima do Salto de Ubá (N. do E.).
82
fazer até dezoito pontes para cruzar com os cavalos e mantimentos.
Também tiveram de cruzar serras e montanhas cobertas com árvores
muito fechadas, que não permitiam que se visse o céu. Era tão
fechada a mata que sempre que iam vinte homens na frente para
abrir o caminho. Finalmente, naquele dia 19, chegaram a um povoado
de índios guaranis, que vieram recebê-los muito contentes, trazendo
suas mulheres e filhos, além de muitos mantimentos, como galinha,
batata, pato, mel, farinha de milho e farinha de pinheiro, que
produzem em grande quantidade, porque há pinheiros tão grandes
por ali que quatro homens com os braços estendidos não conseguem
25
abraçar um . São muito bons para a construção de carracas e de
mastros de navios. As pinhas deles são enormes e a casca
semelhante à da castanha. Os índios as colhem e fazem grande
quantidade de farinha para a sua manutenção. Por aquelas terras há
muitos porcos montanheses 26 e macacos que comem aqueles
pinhões. Os macacos costumam subir nos pinheiros e derrubar tantas
pinhas quanto conseguem, para depois descerem e comê-las junto ao
solo. Muitas vezes acontece que os porcos montanheses ficam
aguardando os macacos derrubar as pinhas para então irem comê-las
afugentando os macacos. Assim, enquanto os porcos montanheses
ficavam comendo, os gatos 27 ficavam dando gritos trepados nas
árvores. Também há muitas frutas, de diversas qualidades, que dão
duas vezes ao ano. O governador se deteve nesse povoado de Tugui
durante o Natal, tanto em respeito à data como para que sua gente
25
Evidentemente trata-se da Araucária brasiliensis, o pinheiro brasileiro por excelência (N. do E.).
São pecaris (Dicotyles labiatus) (N. do E.).
27
Muitas vezes os conquistadores chamavam macacos de gatos. O próprio Gonzalo de Oviedo
os chama de “gatos macaquinhos” em sua monumental História General y Natural de las Índias
(N. do E.).
26
83
descansasse 28 . Os espanhóis festejaram alegremente o Natal, pois
os índios lhes traziam toda espécie de comida que conheciam. Como
todos estavam sem se exercitar, a comida em excesso chegava a
causar mal-estar em alguns. Aliás, sempre que comiam muito o
governador procurava empreender longas caminhadas. Muitos
reclamavam, achando que ele queria castigá-los, mas a experiência
acabou comprovando que era a melhor coisa que podiam fazer para
não caírem doentes.
A fome volta a atacar
Aos vinte e oito dias do mês de dezembro o governador e sua gente
deixaram a localidade de Tugui, ficando os índios muito contentes.
Caminharam por terra todo o dia sem encontrar povoação alguma,
até que chegaram a um rio muito caudaloso e largo, com grandes
correntes, tendo em sua margem muitas árvores, ciprestres e
cedros 29 . Foram necessários quatro dias de gigante trabalho para
atravessar aquele rio. Depois disso, passaram por cinco povoados
de índios guaranis, onde foram recebidos da mesma forma que nas
ocasiões anteriores, ou seja, os índios vieram com suas mulheres e
filhos e trouxeram muitos mantimentos, sendo bem recompensados
pelo governador. Como nos demais povoados, os índios semeiam
mandioca, milho e batata, sendo que esta produzem de três tipos,
branca, amarela e rosa. Criam patos e galinhas e extraem mel do
oco das árvores.
No dia 1° de janeiro do ano do Senhor de 1542, o governador partiu
com sua gente daqueles povoados índios, embrenhando-se por
28
Esse povoado ficava nas nascentes do rio Cantu. A tropa de Cabeza de Vaca, após cruzar o
Ivaí venceu com grandes dificuldades a escarpa do planalto paranaense pelo vale do rio Pedra
Preta (N. do E.).
29
O alto Pequiri (N. do E)
84
montanhas e canaviais muito espessos, passando grande trabalho,
porque até o dia 5 não encontraram povoado algum. Durante esse
período também passaram muita fome. A única salvação eram os
gusanos brancos e grandes, da grossura de um dedo, que tiravam do
meio das canas e fritavam para comer. Consideravam aquilo uma
comia muito boa. De um outro tipo de cana extraíam água, que
também diziam ser muito boa. Nesse caminho, passaram por dois rios
grandes e muito caudalosos. No dia 6 de janeiro, caminhando terra
adentro sem achar povoado algum, vieram a dormir na ribeira de
outro rio muito caudaloso 30 , de fortes correntes e de muitos canaviais
em suas proximidades, de onde o pessoal tirava os gusanos para se
alimentar. No outro dia, seguiram por terra muito boa, de boa água,
de muita caça. Foram apanhados muitos porcos montanheses e
veados, que foram repartidos entre todos. Graça a Deus, durante
esse tempo não adoeceu nenhum cristão, e todos continuaram
caminhando muito dispostos, com a esperança de logo chegarem à
cidade de Ascensión.
De 6 a 10 de janeiro foram cruzados muitos povoados de índios
guaranis, sempre acontecendo o mesmo tratamento. O que passou a
acontecer de diferente, no entanto, era que os padres Bernaldo de
Armenta e Alonso Lebrón passaram a ir na frente para receber os
mantimentos, fazendo com que, quando o governador chegava, os
índios não tivessem mais nada para entregar-lhe, com o que ficavam
muito frustrados. Diante das freqüêntes queixas que começaram
acontecer, o governador os advertiu para que não fizessem mais isso,
tampouco continuassem a carregar índios inúteis, conforme vinham
fazendo. Apesar das advertências, eles continuaram com o mesmo
procedimento e o governador só não os expulsou por causa do
30
O rio Cobre (N. do E.).
85
serviço que prestavam a Deus e a Sua Majestade. Mesmo assim,
voltou a adverti-los, o que fez com que decidissem abandonar a
comitiva e seguir por outro caminho, através de outros povoados. O
governador, no entanto, mandou buscá-los de volta, o que foi a
salvação dos mesmos, pois certamente não conseguiriam sobreviver
sozinhos por onde haviam se metido.
Chegada ao rio Iguaçu
O governador e sua gente seguiram caminhando por entre os
povoados de índios guaranis, sendo sempre muito bem recebidos.
Toda essa gente anda desnuda, tanto homens como mulheres, e têm
muito temor aos cavalos. Rogavam ao governador que dissesse aos
cavalos que eles não iriam molestá-los e procuravam sempre trazer
comida para os animais, para não serem maltratados por eles. Assim,
seguindo por esses camihos, aos quatorze dias do mês de janeiro,
31
chegaram a um rio muito largo e caudaloso que se chamava Iguaçu .
É um rio muito bom, de bastante pescado e de muitas árvores na
ribeira. Ali também existia um outro povoado de guaranis, que
igualmente dispensaram o mesmo tratamento cordial. Naquele local
também existem muitos pinheiros. Esse rio Iguaçu é tão largo quanto
o Guadalquivir e está situado a vinte e cinco graus. É muito povoado
em toda sua ribeira, estando ali a gente mais rica de todas essas
terras. São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores e
pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados,
antas, faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além da
mandioca, milho e batata, figura também o amendoim. Também
colhem muitas frutas e mel.
31
Dessa vez, os espanhóis atravessaram o rio Iguaçu próximo à foz do rio Cotegipe (N. do E.).
86
Estando nesses povoados, o governador decidiu escrever para os
que estavam em Ascensión, para comunicar-lhes como, em nome
de Sua Majestade, iria socorrê-los, e enviou a carta através de dois
índios nativos daquelas terras. Nesse meio tempo, um dos cristãos
que acompanhavam o governador, chamado Francisco Orejón, foi
mordido por um cachorro e caiu doente. Também adoeceram outros
quatorze espanhóis, fatigados pela longa caminhada. O governador
os deixou aos cuidados dos índios de um povoado situado junto ao
rio Piqueri, tendo dado muitos presentes aos nativos para que
cuidassem bem deles até que se restabelecessem e depois os
ajudassem a seguir adiante. Esse caminho por onde seguia o
governador possui grandes campinas, excelentes rios e arroios,
muitas árvores e muita sombra, sendo a terra mais fértil do mundo,
estando pronta para semear a pastagem. É também terra de muita
caça e própria para a colocação de engenhos de açúcar. Toda a sua
gente é muito amiga e com muito pouco trabalho poderão ser
trazidos para a nossa santa fé católica.
Chegada à cidade de Ascensión
Tendo tomado conhecimento da morte de Juan de Ayolas 32 , de outros
massacres que os índios haviam realizado contra os espanhóis em
Ascensión e do despovoamento do porto de Buenos Aires — para
onde mandara suas naus que estavam na ilha de Santa Catarina com
140 homens —, o governador pôde perceber a necessidade em que
se encontrava aquela gente que ia socorrer. Assim, apressou sua
32
Juan de Ayolas (1493-1538) era o substituto do Adiantado Pedro de Mendoza. Quando Cabeza
de Vaca foi enviado ao rio da Prata, deveria submeter-se ao comando de Ayolas, caso este
estivesse vivo. Só com a morte de Ayolas, De Vaca poderia assumir o cargo de Adiantado.
Ayolas, no entanto, já estava morto dois anos antes de Cabeza de Vaca partir da Europa, sem
que ninguém soubesse com certeza (N. do E.).
87
caminhada e, à medida que avançava, era cada vez maior a acolhida
que recebia por parte dos índios guaranis, pois corria de boca em
boca o bom tratamento que a todos o governador dispensava e as
muitas dádivas que a todos concedia. Era comum, portanto, os índios
irem à frente abrindo caminho e, à medida que a comitiva se
aproximava de Ascensión, era comum virem até o governador índios
que falavam a nossa língua castelhana, dizendo que estava chegando
em boa hora. Quanto mais perto chegava tanto maior era a recepção,
com mulheres e crianças se colocando em fila para oferecer vinho de
milho, pão, pescado, batata, galinha, mel, veado e muitas outras
coisas, que repartiam graciosamente e, depois, em sinal de paz e
amor, levantavam as mãos para o céu.
Caminhando dessa maneira (segundo é dito) foi Nosso Senhor
servido de que às nove horas da manhã de um sábado, aos onze dias
do mês de março do ano de 1542 33 , o governador e sua gente
chegassem à cidade de Ascensión que está assentada na ribeira do
rio Paraguai, a vinte e cinco graus da banda sul. Quando chegaram
nas cercanias da cidade, os capitães e outras pessoas já saíram para
recebê-los, demonstrando uma alegria indescritível e dizendo que
jamais acreditaram que pudessem ser socorridos, pois não se tinha
qualquer notícia de outro caminho que não fosse aquele através do
porto de Buenos Aires. Como o haviam despovoado, não lhes restava
esperança alguma de receberem ajuda. Sabendo disso, os índios
haviam se acometido de grande ousadia e atrevimento para atacá-los
e matá-los, pois viram também que se passara muito tempo sem que
ninguém chegasse à província. De sua parte, o governador também
ficou muito alegre em poder ajudá-los, tendo-lhes comunicado que
33
Tendo saído da ilha de Santa Catarina em 18 de outubro de 1541. Cabeza de Vaca levou,
portanto, cinco meses para chegar a Assunção (N. do E.).
88
chegava ali por mandato de Sua Majestade e logo apresentou ante
Domingo de Irala, tenente e governador daquela província, a provisão
que trazia, mostrando-a também aos outros oficiais: Alonso de
Cabrera, inspetor; Felipe de Cáceres, contador, natural de Madri;
Pedro Dorantes, feitor, natural de Béjar; e ante outros capitães e
gente que ali residiam. Em vista disso, deram obediência ao
governador como capitão-geral da província por mandato de Sua
Majestade, entregando-lhe as varas da justiça, que, em nome de Sua
Majestade, ele distribuiu novamente a outras pessoas, para que
administrassem a justiça civil e criminal naquela província.
Chegada dos doentes que ficaram no rio Piqueri
Trinta dias após a chegada do governador à cidade de Ascensión,
chegaram as balsas com os enfermos, que vieram do rio Paraná.
Apesar de doentes e fatigados, todos chegaram, com exceção de um
que foi morto por um tigre. Contaram que durante muito tempo foram
seguidos e atacados pelos índios que vivem na margem daquele rio.
Estes os seguiram rio abaixo em suas canoas, fazendo grande gritaria
e lançando suas flechas. Durante quatorze dias foram seguidos por
até duzentas canoas que não lhes davam sossego, ferindo levemente
cerca de vinte espanhóis, o que não impediu que seguissem sua
viagem rio abaixo. Como se não bastasse o ataque dos índios, o rio,
com suas correnteza forte e redemoinhos, também era outro desafio a
ser enfrentado. Não fosse a habilidade dos pilotos, sua sorte teria sido
outra, pois ou naufragariam ou seriam alcançados pelos índios.
Sofreram assim essa pressão por quatorze dias consecutivos, até que
chegaram ao local onde morava o índio Francisco, que os amparou,
levando-os para uma ilha próxima de seu próprio povo. Ali puderam
amenizar a grande fome que vinham sentindo, bem como tratar dos
89
ferimentos e descansar um pouco, pois os índios que os vinham se
guindo desistiram de atacá-los, retornando aos seus povoados. Nesse
meio tempo chegaram os dois bergantins que haviam saído de
Ascensión para apanhar os feridos.
O governador manda repovoar Buenos Aires
Com todo o cuidado, o governador mandou preparar dois bergantins,
carregados de mantimentos e outras coisas necessárias, para serem
enviados a Buenos Aires. Reuniu também gente experiente na
navegação pelo rio Paraná, para que socorressem os 140 espanhóis
que ele havia enviado desde a ilha de Santa Catarina e que, por
certo, iriam passar grande necessidade em vista das informações que
recebera de que o porto de Buenos Aires estava despovoado.
Mandou que se tratasse logo de povoar novamente aquele porto, pois
ele era de fundamental importância para toda aquela gente que
residiam em Ascensión. Ali deveriam ser feitos os bergantins para
subirem as 350 léguas rio acima, trazendo as pessoas e artigos que
chegassem pelas naus vindas da Espanha.
Os dois bergantins partiram aos dezesseis dias do mês de abril
daquele dito ano e em seguida o governador mandou construir outros
dois para serem enviados posteriormente. Aos capitães que enviou
nos dois primeiros bergantins, ordenou que procurassem dar um bom
tratamento aos índios do rio Paraná, buscando atraí-los para a paz e
para a obediência a Sua Majestade. Pediu-lhes que relacionassem
tudo que ocorresse para que depois fosse relatado a Sua Majestade.
Para melhor servir a Deus e a Sua Majestade, o governador mandou
chamar alguns sacerdotes que residiam em Ascensión e outros que
trazia consigo, tendo reunido também os capitães e toda a gente que
iria viajar em mandado que lessem certos capítulos de uma carta a
90
Sua Majestade que falam sobre o tratamento que deve ser
dispensado aos índios. Pediu aos sacerdotes que tivessem especial
cuidado para que os índios não fossem maltratados e que lhe
avisassem sobre tudo que ocorresse ao contrário do que fora
determinado. Avisou-lhes que proveria todo o necessário para tão
santa obra, pois queria que fossem ministrados os sacramentos nas
igrejas e mosteiros. Assim, eles foram também providos de vinho e de
farinha, e dos ornamentos para os atos litúrgicos.
Índios matam e comem seus inimigos
Logo que chegou à cidade de Ascensión, o governador mandou juntar
todos os índios vassalos de Sua Majestade e, em presença dos
clérigos, explicou-lhes que Sua Majestade o enviara para demonstrarlhes como deveriam vir ao encontro dos conhecimentos cristãos,
através da doutrina e do ensinamento dos religiosos que ali estavam.
Que, se procedessem dessa maneira, sendo bons vassalos e fiéis
seguidores de Deus e da Igreja católica, seriam muito bem
recompensados. Ao mesmo tempo, advertiu-os de que não poderiam
mais comer carne humana, pelo grave pecado e ofensa que isso
representava contra Deus. E, para estimulá-los, repartiu muitos
presentes, como camisas, bonés e outras coisas mais, o que os
deixou muito contentes.
Essa nação dos guaranis fala uma linguagem que é entendida por
todas as outras castas da província 34 e comem carne humana de
todas as outras nações que têm por inimigas. Quando capturam um
inimigo na guerra, trazem-no para seu povoado e fazem com ele
grandes festas e regozijos, dançando e cantando, o que dura até que
ele esteja gordo, no ponto de ser abatido. Porém, enquanto está
34
A língua guarani era, por isso, chamada de “língua geral” (N. do E.).
91
cativo, dão a ele tudo o que quer comer lhe entregam suas próprias
mulheres ou filhas para que faça com elas os seus prazeres. São
essas mesmas mulheres que se encarregam de tratá-lo e de
ornamentá-lo com muitas plumas e muitos colares que fazem de
ossos e de pedras brancas. Quando está gordo, as festividades são
ainda maiores. Os índios se reúnern e adereçam três meninos de seis
ou sete anos de idade e colocam-lhes nas mãos umas machadinhas
de cobre. Chamam então um índio que é tido como o mais valente
entre eles, colocam-lhe uma espada de madeira nas mãos, que
chamam de macana, e o conduzem até uma praça onde o fazem
dançar durante uma hora. Terminada a dança, dirige-se para o
prisioneiro e começa a golpeá-lo pelos ombros, segurando o pau com
as duas mãos. Depois bate-lhe pela espinha e em seguida dá seis
golpes na cabeça, o que ainda não é suficiente para derrubá-lo, pois é
impressionante a resistência que eles possuem, especialmente na
cabeça. Somente depois de muito bater com aquela espada, que é
feita de uma madeira negra muito resistente, é que consegue
derrubar o prisioneiro e inimigo. Aí então chegam os meninos com as
machadinhas, e o maior deles, ou filho do principal, é o primeiro a
golpeá-lo com a machadinha na cabeça até fazer correr o sangue. Em
seguida, os outros também começam a golpear e, enquanto estão
batendo, os índios que estão em volta gritam e incentivam para que
sejam valentes, para que tenham ânimo para enfrentar as guerras e
para matar seus inimigos; que se recordem que aquele que ali está já
matou sua gente. Quando terminam de matá-lo, aquele índio que o
matou toma o seu nome, passando assim a chamar-se como sinal de
valentia. Em seguida, as velhas pegam o corpo tombado, começam a
despedaçá-lo e a cozinhá-lo em suas panelas. Depois repartem entre
92
si, sendo considerado algo muito bom de comer, e voltam às suas
danças e cantos por mais alguns dias, como forma de regozijo 35 .”
Referências
CABEZA DE VACA. Naufrágios e comentários. Porto Alegre: L&PM, 1999.
MENDES Jr. et al. Brasil História: colônia. São Paulo: Brasiliense,1977.
PRADO Jr. Evolução política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1942.
S. CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959.
SOUSA, Pero Lopes. Diário de navegação. Cadernos de História. São Paulo:
Parma, 1979.
VIANA, Helio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1972.
35
Hans Staden, aventureiro alemão que foi durante alguns anos prisioneiro dos tupiniquins, em
Ubatuba, São Paulo, descreve o ritual antropofágico de maneira muito semelhante (N. do E.).
93
7
JESUÍTA GAÚCHO SE DOUTORA
EM BUENOS AIRES
__________________
Luiz Osvaldo Leite ∗
Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS
O intercâmbio entre jesuítas argentinos e brasileiros do Sul não foi, ao
longo dos tempos, freqüente. Em quase duzentos anos, desde 1814, data da
restauração da Ordem (supressa em 1773) por Pio VII, os contatos foram
raros. Mas, alguns brasileiros estudaram Teologia em Buenos Aires e alguns
argentinos fizeram a última etapa de sua formação em Pareci Novo, RS, tal
como Agato Pucheta, Alexandre del Corro, Atanásio Sierra, Hector Grandinetti
e Otmar Wiedmann. E os Padres Carlos Teschauer e Arnaldo Bruxel
pesquisaram história nos arquivos platinos.
Ora, nesse trabalho, queremos registrar um fato raro: o doutoramento
do Pe. Henrique Antônio Steffen, SJ, na Argentina. Tratou-se do primeiro
Doutor em Filosofia nascido no Rio Grande do Sul.
Pe. Steffen foi destinado a Roma para doutorar-se em Filosofia na
Pontifícia Universidade Gregoriana, onde permaneceu em 1939 e 1940,
residindo no Colégio Pio Brasileiro. A situação romana, como, aliás, de toda
Europa, com a II Guerra Mundial se tornara dramática, com dificuldade,
inclusive, para a alimentação. Pe. Steffen, que aprontara tese sob a
orientação do Pe. Naber, SJ, sentiu que não poderia defendê-la na Cidade
Eterna. O boletim da Província Sul-Brasileira da Companhia de Jesus, Pela
∗
Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
Pesquisador do Pensamento Sul-rio-grandense. Av. Ganzo, 385/706, CEP 90150-071, Porto
Alegre, RS, Brasil.
94
Província, em sua edição de julho-agosto de 1940, página 02, noticia
laconicamente: “Do Rio de Janeiro veio a notícia que o Pe. Steffen embarcou
em Gênova, no vapor Almirante Alexandrino do Lloyd Brasileiro”. Assim, no
Pio Brasileiro só restavam 26 alunos. Em outubro do mesmo ano, Pela
Província, página 02, registra: “Pe. Steffen tendo feito seu retiro na Casa da
Gávea e os últimos votos em Nova Friburgo, RJ, gentilmente recebido e
festejado pelos membros daquela comunidade, encontrou-se com o R. Pe.
Provincial, Pe. Walter Hofer, SJ, em Florianópolis, e continuou viagem para
São Leopoldo, onde se prepara para uma cadeira de Filosofia”.
Mas, um problema continuava no ar: como ficava a situação
acadêmica do Pe. Steffen? Com tese pronta em Roma, quando e onde
defenderia seu trabalho?
Depois de reflexões e contatos, ficou decidido que Pe. Steffen
defenderia sua tese na Faculdade São Miguel de Buenos Aires, Argentina.
O boletim Pela Província, em maio de 1941, página 04, detalha o
acontecimento: “O Pe. Antônio Steffen viajou de vapor, em um dia, até
Pelotas, em outro carro-motor até Montevidéu e de lá até Buenos Aires de
ônibus e vapor. Embora chegasse sempre a desoras, foi recebido com muita
caridade pelos nossos Padres da Província irmã. No dia 31 de março chegou
ao Colégio Máximo em São Miguel, sendo o dia 05 de abril escolhido para a
defesa da tese. O tema, combinado há mais de ano, com o Pe. Naber
professor da Gregoriana, é o seguinte: “Die Erkenntnissicherung bei Nicolai
Hartmann”. Este filósofo é professor da Universidade de Berlim e foi o autor
acatólico que mais se afastou do idealismo kantiano e mais se aproximou do
realismo neo-escolástico. Fora do original alemão, o doutorando elaborou
ampla edição latina e, a pedido do R. Pe. Reitor Pita, fará outra portuguesa
que será traduzida ao castelhano e publicada pela Faculdade de São Miguel.
Deram parecer sobre a tese o R. Pe. Henrique Pita e o R. Pe. Ismael Quiles.
Fizeram parte da banca examinadora na ocasião da defesa da tese, fora os
95
dois citados, os Padres João Bussolini, Antônio Ennis e Tomaz Mahon.
Esteve presente todo o corpo docente e discente do Colégio Máximo. O
resultado “magna cum laude” alegra a província não menos que ao Pe.
Steffen. Voltou na sexta-feira santa e já leciona “Introductio in Philosophiam”.
Os textos alemão e latino da tese ainda não foram publicados,
permanecendo inéditos. Mas a versão castelhana está publicada na revista
argentina Ciencia y Fe.
Pe. Steffen é citado como destaque neo-escolástico da Faculdade
São Miguel em obra de Luis Farre, onde equivocadamente é apresentado
como pensador estrangeiro.
Mas quem foi Pe. Henrique Antônio Steffen, SJ? É o que tentaremos
responder, logo a seguir. Os dados, aqui registrados, foram extraídos dos
Catálogos das Províncias Jesuítas, das folhas noticiosas Pela Província e
Informativo da Província Sul-Brasileira e, dos Necrológios publicados.
Formação Religiosa e Acadêmica
Pe. Steffen nasceu aos 27.01.1906, em São Benedito, Tupandi, RS.
Faleceu em São Leopoldo, aos 05.05.1993.
Ingressou na Companhia de Jesus aos 02.03.1923, no Colégio São
José, de Pareci Novo, RS. Durante dois anos, fez seu Noviciado, tendo como
mestre de noviços o Pe. Leonardo Arntzen, SJ (1879-1965), destacado
jesuíta, provincial do sul do Brasil por duas vezes: de 1931 a 1940 e de 1946
a 1952. Foram colegas de Pe. Steffen o Pe. Balduíno Rambo, SJ (19051961), cientista e catedrático fundador da Faculdade de Filosofia da
Universidade de Porto Alegre, mais tarde URGS e UFRGS; Pe. Bertoldo
Braun, SJ (1901-1964), destacado educador e diretor do Colégio Catarinense
de Florianópolis; o brilhante e discutido Huberto Rohden (1893-1981), autor
de extensa obra filosófica e teológica, ainda hoje difundida, que ingressou na
96
Ordem já sacerdote. Os primeiros votos perpétuos de Pe. Steffen foram
pronunciados em março de 1925.
Em 1925 e 1926, Pe. Steffen completou Curso de Retórica e
Humanidades no mesmo Colégio São José, ocasião em que conseguiu
aprofundar seus estudos de Grego, Latim, Alemão, Português e História. Seu
grande mestre, nesta fase, foi o Pe. Henrique Lanz, SJ (1870-1942), exímio
conhecedor das humanidades greco-romanas.
De 1927 a 1929, cursou Filosofia no Seminário Central, de São
Leopoldo, RS. Foram seus professores principais — leitores como eram
denominados — da Filosofia Neo-Escolástica o Pe. Leonardo Mueller, SJ
(1884-1945), Pe. João Rick, SJ (1869-1946) e o Pe. Eduardo Gierster, SJ
(1870-1940). Em disciplinas complementares ouviu preleções do Pe. Luis
Angerpointner, SJ (1887-1966) em História da Filosofia, do Pe. Jacó Racke,
SJ (1884-1968) em Questões Conexas de Filosofia com Física, Química e
Matemática e, do Pe. Júlio Poether, SJ (1869-1939) em Questões Conexas
de Filosofia com Biologia e Fisiologia.
O curso de Teologia desenvolveu-se de 1934 a 1937 no Seminário
Central de São Leopoldo, RS. Figura eminente do curso foi o Pe. José Mors,
SJ (1887-1960), responsável pelas disciplinas Teologia Fundamental e
Teologia Dogmática. Pe. Mors é autor de memorável obra, em oito volumes,
cuja primeira edição sob o título Institutiones Theologiae Dogmaticae (6
volumes) e Institutiones Theologiae Fundamentalis (2 volumes) foi publicada
pela Editora Vozes de Petrópolis, RJ, de 1937 a 1943, e cuja segunda edição
sob o título Theologia Fundamentalis (2 volumes) e Theologia Dogmatica (6
volumes) foi publicada pela Editorial Guadalupe de Buenos Aires, de 1950 a
1955. Teve como colaborador o Pe. Godofredo Kessler, SJ (1899-1967),
brilhante, mas socrático professor, que não nos deixou obra escrita, uma vez
que destruía todos os seus apontamentos no final de seus cursos. Também
lecionaram no curso o Pe. João Baptista Reus, SJ (1868-1947), autor do livro
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Curso de Liturgia (Vozes, 1939): Liturgia; Pe. Cândido Santini, SJ (18991977), autor de Summula luris Publici Ecclesiastici (Seminário Central de São
Leopoldo, 1948, 4ª edição): Teologia Moral e Direito Canônico; Pe. Henrique
Liese, SJ (1861-1941): Exegese do Velho e do Novo Testamento; Pe.
Eduardo Gierster, SJ: Teologia Fundamental.
Em 1938, Pe. Steffen completou sua formação jesuítica com a
chamada Terceira Provação, no seu conhecido Pareci Novo. Seu Instrutor foi
o suíço Pe. Ludovico Zuber, SJ (1878-1961). Foram seus colegas, nesta
etapa, Pe. Francisco Bragança, SJ (1907-1993), fundador e primeiro reitor da
hoje UNICAP, de Recife; Pe. Roberto Sabóia de Medeiros, SJ (1905-1955),
apóstolo da ação social e fundador da FEl, de São Paulo; Pe. Felix de
Almeida, SJ (1908-2002); Pe. Afonso Rodrigues, SJ (1904-2002); Pe. Afonso
Hansen, SJ (1906-1984) e Pe. Balduíno Rambo, SJ.
Em 1939 e 1940 fez biênio de Filosofia como acima referíamos.
Atividade Docente
De 1930 a 1933, Pe. Steffen lecionou Religião, Português, Latim e,
principalmente, Inglês no Colégio Anchieta, de Porto Alegre, RS. O Anchieta
vivia um dos seus mais significativos momentos. Pe. Steffen conviveu com
mestres destacados, entre os quais cabe destacar: o Pe. Werner von und zur
Mühlen, SJ (1874-1939), professor de Filosofia e apóstolo da inteligência
gaúcha; Pe. Henrique Koehler, SJ (1869-1947), latinista exímio e autor de
conhecidos dicionários latinos editados pela Livraria do Globo; Pe. Luís
Gonzaga Jaeger, SJ (1889-1963), membro do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul e autor de Os Três Mártires Ro-Grandenses; Pe.
Maximiliano Krause, SJ (1869-1952), professor de Física e Química; Pe.
Adalberto Heeb, SJ (1861-1941), editor de obras didáticas para o ensino do
Inglês como Made Easy e English Primer; Pe. Leonardo Fritzen, SJ (18851965), professor de Português e responsável pela famosa polêmica com Erico
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Verissimo; Pe. Lourenço Schneider, SJ (1876-1960), professor de Latim e
Matemática; Pe. Pio Buck, SJ (1883-1972), cientista e naturalista; Pe. Max
Schneller, SJ (1883-1939); Pe. Jorge Sedelmayer, SJ (1876-1949) e Pe.
Carlos Souza Gomes, SJ (1879-1936), o inesquecível Tio Quincas. Foi seu
Reitor o Pe. Henrique Book, SJ (1872-1946), eminente figura de educador,
profundo conhecedor da legislação de ensino e convicto humanista, autor do
ensaio Latim, Base do Ensino Secundário, publicado no Relatório do Colégio
Anchieta de 1944.
Mas a precípua atividade do Pe. Steffen foi o magistério superior de
Filosofia, exercido ininterruptamente por 28 anos, de 1941-1969, em São
Leopoldo, no Seminário Central, na Faculdade de Filosofia do Colégio
Máximo Cristo Rei e nas Faculdades de São Leopoldo, hoje UNISINOS, onde
lecionou Introdução à Filosofia, Lógica Formal e Dialética, Crítica (Teoria do
Conhecimento), Ontologia, História da Filosofia, Textos de Aristóteles e de
Santo Tomás de Aquino.
Nestes anos foi colega de eminentes professores e pensadores como
Pe. Ernesto Rueppel. SJ (1902-1993), Pe. Pedro Zahnen, SJ (1897-1952),
Pe. João Nepomuceno Haas, SJ (1912-1993), Pe. UrbanoThiesen, SJ (19091970), Pe. Mathias Schmitz, SJ (1916-1975), Pe. Jacó Racke, SJ (18841968), Pe. Luis Mueller, SJ (1894-1987), Pe. Antônio Loebmann, SJ (18991980), Pe. Otmar Mörschächer, SJ (1909-1998), Pe. Pedro Calderan Beltrão,
SJ (1923-1992), Pe. José Soder, SJ (1920-1998), Pe. Edmundo Dreher
(1909-2002), Pe. Arthur Bohnen, SJ (1917-2003), Pe. Walter Hofer, SJ (18971961), Pe. Godofredo Schmider, SJ (1906-1971), Pe. Odilon Jaeger, SJ
(1922-1980), Pe. José Hauser, SJ (1920-2004), Pe. João Ruff, SJ (1915), Pe.
João Oscar Nedel, SJ (1921), Pe. L. B. Puntel, SJ (1935), Harry Schwengber
(1915) e Carlos Roberto Cirne Lima (1931).
Pe. Steffen viveu a evolução do Ensino Superior em São Leopoldo.
Foi aluno e professor do Seminário Central. Construído o Colégio Cristo Rei
99
(1942) lá residiu e lecionou. Vivenciou a criação do curso oficial da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras Cristo Rei (1953), da qual se tornou professor
fundador, e a sua abertura para alunos leigos, isto é, não-eclesiásticos (1968).
Contrariado, assistiu a transferência dos estudantes filósofos jesuítas da
Faculdade Cristo Rei para a Faculdade Nossa Senhora Medianeira, de Nova
Friburgo, RJ (1965 e 1966). Em 1969, presenciou a concretização do sonho
do fundador do Ensino Superior oficial de São Leopoldo, Pe. Urbano Thiesen,
SJ: a criação da Universidade, hoje denominada UNISINOS.
Domínio Lingüístico
Pe. Steffen dominava várias línguas: Hebraico, Grego, Latim, Alemão,
Inglês, Francês, Italiano, Espanhol e Português. Depois do Vaticano II, ao surgir
a possibilidade de se rezar a Liturgia das Horas em língua diferente do Latim,
pediu aos superiores a faculdade de poder rezar os Salmos em Hebraico. “Sei
muitos de cor nessa língua, vendo e sentindo que a melhor tradução nunca
deixa de ser apenas tradução”, escreveu ele. Até o fim da vida conservou
consigo diversas edições bíblicas em Hebraico. Suas aulas, nas faculdades
eclesiásticas onde lecionou eram ministradas em perfeito Latim.
Ao deixar o magistério, destacou-se em traduções, tanto de línguas
estrangeiras para o Português, como deste para outros idiomas. Traduziu
obras de Filosofia, Teologia, Biologia, Botânica, História, Artes e Ascética.
Merecem destaque:
Do Alemão para o Português:
− J. B. Lotz. Ontico-ontológico: a tensão fundamental da Filosofia,
particularmente hoje. Estudos, abr./jun. 1957.
− J. B. Lotz. O existencialismo à luz da Encíclica Humani Generis,
− Hans Pfeil. Introdução à Filosofia. Editora Presença.
100
− Constantino Koser. Origens e espírito primitivo da Ordem
Franciscana. Vozes.
− Jörg Splett. O homem na sua liberdade. Editora Loyola.
− Paul Erbrich. Biologia molecular e evolução. Polígrafo da UNISINOS.
− Karl Hermann Schelkle. Introdução ao Novo Testamento. Editora Loyola.
− Karl Hermann Schelkle. Teologia do Novo Testamento. 1. A criação.
Editora Loyola.
− Karl Hermann Schelkle. Teologia do Novo Testamento. 2. Deus
estava em Cristo. Editora Loyola.
− Wolfgang Kayser. Das Groteske. Editora Perspectiva.
− Pe. Reus. Diário. Notícias para os nossos Amigos e Livro da Família.
− Heinrich Wöfflin. Renascença e Barroco. Editora Perspectiva.
Do Italiano para o Português:
− Projeto das novas Constituições das Irmãs Missionárias de S.
Carlos Borromeo. Edição Geral Especial.
− Dois artigos sobre as Missões das revistas Popoli e Missioni.
Do Latim para o Português:
− Martius. Descrição de plantas.
− José De Vries. Ontologla. São Leopoldo.
Do Inglês para o Alemão:
− Descrição de plantas.
Do Português para o Alemão:
−
Pater
Reus,
SJ.
Einer
neuer
grosser
Halfer.
Verlag
S.
Grignionhaus. Alötting.
− Material para a Associação Comercial de São Leopoldo.
101
− Trabalhos sobre oligoquetos.
Do Português para o Inglês:
− Material para a Associação Comercial de São Leopoldo.
− Trabalhos sobre oligoquetos.
Além das traduções acima referidas Pe. Steffen fez adaptações didáticas
de obras, merecendo referência as do Latim para o próprio Latim:
− J. B. Lotz. Theses ex Ontologia. Seminário Central, São Leopoldo,
1941 (mimeografada).
− J. De Vries. Ontologia. São Leopoldo, s.d. (mimeografada).
− J. De Vries. Crittica: in compendium redacta. São Leopoldo, 1951
(mimeografada).
Trabalhos publicados
− O antiintelectualismo de Bérgson. Anuário do Seminário Central e
Colégio Cristo Rei, São Leopoldo, 1941.
− Inteligência e vontade. Revista Estudos, Porto Alegre, n. 15 (1943).
− O princípio de causalidade é analítico ou não? Revista O Seminário,
São Leopoldo, n. 20 (1945).
− El problema de la certeza de conocimiento en Nicolás Hartmann.
Revista Ciencia y Fe, Buenos Aires, n. 2(1945).
− No limiar da crítica. Revista O Seminário, São Leopoldo,
n. 21(1946).
− Logica formalis. Canoas: Ed. La Salle, 1949 (em Latim).
− Demonstração e caráter lógico dos princípios de causalidade.
Revista Organon, Porto Alegre, n. 1(1956).
− Kierkegaard e a religião. Revista Estudos, Porto Alegre.
jan./mar. (1958).
102
8
ITÁLIA SOLTA A GARGANTA
_________________
Décio Andriotti ∗
O gosto pela ópera, que dinamizou liricamente o Rio Grande do Sul,
nada tem a ver com as colônias italianas e alemãs. Até pelo contrário. Porto
Alegre e a metade sul do Estado é que plantaram na alma de boa parte da
população gaúcha — do século XIX e primeiras décadas do XX — a paixão
pela ópera, principalmente a italiana. Antes mesmo da implantação das
colônias italianas. A grande contribuição musical dos imigrantes foi feita por
outras vias. Apesar do excelente desenvolvimento socioeconômico das
nossas regiões alemãs e italianas, elas não tiveram concomitantemente a
sensibilidade de construir teatros específicos. A igreja era prioridade quase
absoluta. Enquanto isso a metade sul luso-espanhola além das igrejas erguia
teatros que tinham a ópera como principal escopo. Companhia lírica havia
que até dedicava espetáculos no teatro em benefício da construção da igreja
local, como foi o caso de Bagé. Dezenas desses teatros nasciam fácil do chão
gaúcho luso-espanhol, como já advertimos citando-os no primeiro volume da
1
série Integração .
Focalizaremos agora com detalhes importantes para este tema —
e não abordados antes — o que significaram os italianos (da Itália!) na
integração lírica Argentina-Brasil-Uruguai, particularizando o Rio Grande
do Sul. A população da nossa região luso-espanhola fazia intercâmbio
musical significativo com os países platinas e europeus. Importava
∗
Professor e historiador. Pesquisa a história da música erudita no Rio Grande do Sul. Praça Mal.
Deodoro, 170/103. CEP 90010-300, Porto Alegre, RS, Brasil.
1
ANDRIOTTI, Décio. A ópera na integração. In: CLEMENTE, Elvo (Org.). Integração: artes, letras
e história. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 19-48
103
instrumentos de tal modo que rara era a família de classe média que não
possuísse algum, principalmente o piano. Avé-Lallemant assim relatou
sobre São Gabriel de 1858 “chamou-me a atenção ouvir piano em não sei
quantos lugares” 2 . E Hörnmeyer em 1850 escrevia que dentre os
profissionais liberais mais bem pagos no Rio Grande do Sul estavam
professores de desenho, canto e piano 3 . Existiam até professores
itinerantes — quando não daqui — que vinham do Uruguai e da Argentina.
Freqüentemente filhos iam a Montevidéu e Buenos Aires (bem mais que
para a Europa) para aprendizagem ou aperfeiçoamento.
Fundamentado numa feliz conjunção econômica e cultural, criouse um contexto musical que seguiu em gosto o rastro operístico traçado
perto de nós pelos países do Prata. A nossa maior influência nascia dali e
não do centro do País. O Prata, por sua vez, era alimentado por cantores,
músicos e dançarinos que vinham do Velho Mundo; da Itália na maior
parte. Geralmente organizavam-se em grupos (empresas) chamadas
quase sempre de Companhia Lírica Italiana ou, pomposamente de Grande
Companhia Lírica Italiana. Os melhores vinham já organizados da Itália; e
as óperas cantadas invariavelmente em língua italiana, mesmo as alemãs
e francesas como as de Wagner, Bizet ou Gounod, incluindo as operetas
de Strauss, Lehár, Offenbach, etc.
Por isso que o primeiro Wagner encenado no Rio Grande do Sul
(Lohengrin, 1928) foi cantado em italiano tendo, no elenco, famosos como
Carlo Tagliablue. Aliás, Carmen, só a conhecíamos em italiano. Pablo
Komlos, com a OSPA, foi quem nos deu a primeira Carmen inteira
em francês, o mesmo ocorrendo nos primeiros Wagner em alemão
(Tanhäuser e Lohengrin).
2
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). São Paulo:
ltatiaia, 1980. p. 326.
3
HÖRNMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850. Porto Alegre: EDUNI-SUL, 1986. p. 100.
104
Vieram contudo para a América do Sul algumas raras companhias
líricas
francesas
e
alemãs
cantando
tudo
em
francês
e
alemão,
respectivamente, mas sem receber o mesmo agrado do público em geral.
Houve uma inglesa que só cantava em inglês, mesmo as óperas italianas:
The barber of Seville (Rossini), The daughter of the regiment (Donizetti), ...
Aliás foi uma temeridade desde a saída da Inglaterra em 1915 quando o navio
escapou por pouco de ser afundado por um submarino alemão que o
perseguia. Depois de apenas duas récitas no Teatro Coliseo de Buenos Aires,
a companhia foi suspensa por falta de público. Os cantores ficaram em tal
miserabilidade que artistas que estavam se apresentando no Colón, entre
4
eles Galli-Curci, deram concerto em benefício dos desafortunados .
Casos semelhantes ocorreram com companhias italianas tanto na
Argentina como no Brasil e no Uruguai, embora por outros motivos. Na
integração também se contabilizam fracassos. Mas o sacrifício, o entusiasmo
e o valor humano dessa gente se irmanaram para fundamentar nesses
países, algo que permanece em parte até hoje.
Repetindo, veio da Itália o maior número de grupos detentores da
melhor qualidade. O incremento dessa migração ocorreu na segunda metade
do século XIX coincidindo (e em conseqüência) na construção de teatros nos
principais centros dos três países citados. O apogeu situa-se entre 1890 e
1930 porque os teatros, que já faziam realizações independentes das
companhias líricas, passaram cada vez mais a organizar suas próprias
temporadas, assumindo a escolha do repertório e partindo para contratações
individualizadas através dos empresários de cada artista. Tanto nas
representações líricas quanto nos recitais e concertos sinfônicos. Tudo
acelerado pela facilidade dos meios de transportes e das comunicações.
4
DILLON, Cesar A. e SALA, Juan A. El teatro musical en Buenos Aires II. Buenos Aires:
Ediciones de Arte Gaglianone,1999. Dillon e Sala fizeram e editaram pesquisas aprofundadas da
ópera em Buenos Aires. Edições indispensáveis ao cultor do género.
105
A integração advém de outra forma: adaptando-se à realidade. Coproduções e tráfico de informações sobre cantores, músicos, diretores,
cenógrafos. etc., até aprimoram certo intercâmbio. Foi o que viabilizou, por
exemplo, montagens no Centro de Cultura Musical da PUCRS de Porto
Alegre e no Teatro da OSPA. Ultimamente porém, o Teatro do SESI
promoveu duas co-produções significativas: Turandot de Puccini (1997) e A
Flauta Mágica de Mozart(1998).
O melhor exemplo de co-produção foi Turandot porque teve orquestra
da OSPA, maestro de Porto Alegre, coro da Argentina, coro do Uruguai, coro
de Porto Alegre (UFRGS), direção cênica de uma irlandesa radicada na Itália,
vestuário do Teatro Colón de Buenos Aires e, no naipe principal de cantores,
cinco uruguaios, dois argentinos, um chileno e dois brasileiros. Turandot —
que nunca fora encenada em Porto Alegre — chegou aqui através de um dos
mais completos exemplos de produção integrada do Cone Sul. Nem mesmo A
Flauta Mágica do Teatro do SESI, talvez a mais bela e criativa apresentação
lírica da nossa cidade nas últimas décadas e com elenco e encenação
internacionais teve, como integração a que nos referimos, a abrangência
daquela Turandot.
***
Retornemos ao passado. Das companhias líricas italianas, das quais
saímos beneficiados direta ou indiretamente, somos devedores de créditos
não só aos grupos organizados mas particularmente aos empresários
organizadores. Na sua maioria eram italianos natos com experiência de reunir
cantores e músicos já no Velho Continente. E o principal dentre eles, o maior
nome indiscutivelmente, foi Walter Mocchi (1870-1955). Trouxe ou contratou
para a América do Sul cantores extraordinários. Citaremos apenas alguns:
Galli-Curci, Muzio, Dalia Rizza, Elvira De Hidalgo, Giacomucci, Emma Carelli
106
(sua primeira esposa 5 ), Rosa Raisa, Toti dal Monte, Bidu Sayão (sua segunda
esposa 6 ), Storchio, a gaúcha Zola Amaro, Agostinelli, Besanzoni, etc.,
Caruso, Gigli, Schipa, Lázaro, Fleta, Lauri-Volpi, de Muro, Tedeschi, Pertile,
De Lucca, Tita Ruffo, Stracciari, Berardi, Danise, Dentale, o brasileiro Mário
Pinheiro, Segura Tallien, Damiani, Nazareno De Angelis, Carlo Galeffi, Apollo
Granforte, etc., maestros como Gino Marinuzzi, Felix Weingartner, Arturo
Padovani, Pietro Mascagni, Teófilo De Angelis, Edoardo Vitale, o brasileiro
Alberto Nepomuceno, etc., dançarinas corno Ana Pavlova, Maria Oleneva, ...
7
etc., etc., etc. , (Incrível! Mas quem foi este cara?)
O entusiasmo, o tino, o dinamismo, o conhecimento das expectativas
do público, o senso para perceber valores emergentes, a coragem para
investir na arregimentação dos melhores artistas para conseguir formar
sempre a melhor companhia lírica fizeram dele o maior expoente empresarial
da ópera em todos os tempos. O Rio Grande do Sul deve-lhe gratidão; entre
outros benefícios, projetou profissionalmente a pelotense Zola Amaro e
oportunizou a estréia mundial da ópera O Rei Galaor do porto-alegrense
Araújo Viana, em 29.09.1922 sob a direção de Francisco Braga no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro.
Importante seguir a trajetória dele até chegar ao cume. Antes de
empresário foi socialista radical. Aos trinta anos era proprietário e redator-mor
de um dos principais jornais do socialismo italiano, L’Avanguarda Socialista,
que tinha posição mais à esquerda da esquerda. Lutou e conseguiu levar os
trabalhadores de Milão para uma greve geral em setembro de 1904. Durante
cinco dias paralisou a cidade. Pode-se imaginar as antipatias que carreou
5
Emma Carelli (1877-1928) casou com Mocchi em 1898. Muito jovem já cantava Desdemona no
Scala com Tamagno ou Bohème com Caruso e Chaliapin. Organizou com o marido turnês pela
América do Sul. Admirada por Toscanini, Mascagni e Leoncavallo. Morreu num acidente de
automóvel.
6
Bidu Sayão (1902-1999) era 32 anos mais moça. Separou-se dele em 1947 e casou com o
barítono Giuseppe Danise (1883-1963). Ambos muito favorecidos por Walter Mocchi.
7
Tentou levar Vicente Celestino de 19 anos para Milão; com tudo pago para que tivesse a melhor
formação. Percebeu que o garoto possuía muito para tomar-se um grande barítono ou tenor
dramático. Vicente Celestino não aceitou a oferta.
107
para si e para a esposa porque Emma Carelli, embora não posicionada como
o marido, era abertamente simpatizante da classe operária. Embora
primadona reconhecida do Scala, passando pelas ruas de Milão ouvia com
freqüência ci ritroveremo al lírico (nos encontramos na ópera). Clara ameaça
de vaias 8 . No ano seguinte ele até poderia chegar ao legislativo porque fora
indicado por sete colégios eleitorais.
Passados esses anos de vivência política, Walter Mocchi, foi se
convertendo cada vez mais num empresário lírico, evidentemente influenciado
pela carreira da esposa. Pensava e falava bastante sobre Brasil e Argentina.
Antevisão de que Itália, Argentina e Brasil acabariam sendo seus países
irmanados através da ópera. O primeiro grande passo foi o de ser empresário
do Teatro Adriano. Em seguida tornou-se nada menos que o arrendatário do
Teatro Costanzi (Teatro dell’Opera) de Roma, fazendo de Emma Carelli a
Diretora do Teatro.
O Teatro Costanzi transfigurou-se e durante os anos seguintes
revelou-se o grande rival do Teatro alla Scala. Rival mas não adversário
porque Mocchi conseguiu que os dois teatros tivessem um intercâmbio tal que
se homogeneizasse pelo alto a qualidade dos espetáculos. Assim que
Toscanini, Serafin, Vitale, De Angelis, Pietro Mascagni e Richard Strauss
foram maestros agenciados também por ele, além de ajudar a projetar jovens
como Vittorio Gui.
Não esquecendo totalmente o passado socialista criou os primeiros
sindicatos de agentes teatrais, Sin, Stia e La Teatral, enfrentando deboches
da imprensa 9 .
A partir de então, Mocchi e Carelli fizeram do Costanzi o grande
distribuidor lírico para Argentina, Brasil e Uruguai. Com as inaugurações do
8
CARELLI, Augusto. Emma Carelli: trent’anni di vita del teatro lírico. Roma: Casa Libraria
Editrice, 1932.
9
Gazzeta dei Teatri de Milão (10.05.1923) criticava dizendo que era o “esordio” de um novo
gênero.
108
novo Colón (1908) e do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1909), a
perspectiva multiplicou-se geometricamente. E a Empresa La Teatral de
Mocchi foi a primeira a se apresentar com temporada de ópera no Municipal
(de 20.07 a 08.08.910) 10 .
Eis o seu manifesto:
Congreguemos todos esses teatros sul-americanos em um
‘trust’, chefiados por uma só associação tendo por base o teatro
italiano, para que se possa organizar temporadas operísticas de
primeira grandeza. Será fácil recolher a fina flor da arte lírica
italiana porque a perspectiva de um trabalho estável, duradouro
e bem remunerado, atrairá para nós um grande número
de artistas. Do lado empresarial a expansão da idéia não
deixará de crescer e sendo assim ficam anuladas todas as
concorrências na América 11 .
A única idéia com conotação negativa para os dias de hoje seria a de
“trust”. Não o era para a época e nem para o socialismo que sempre admitiu-a
como controle estatal. Mocchi originariamente um nacionalista, mutou para
ítalo-platino-brasileiro e até casou mais tarde com a brasileira Bidu Sayão.
Importante que como empresário nem falava de lucros nesse manifesto mas
preocupa-se com a boa remuneração dos artistas. Por outro lado fica bem
clara a intenção de conseguir o máximo de qualidade para os espetáculos dos
teatros sul-americanos, anulando também a concorrência das muitas
companhias líricas mal organizadas, em constantes lutas prejudiciais entre
elas, com pouca qualidade e que, com o nome de Companhia Lírica Italiana,
prejudicavam a imagem tradicional da cultura peninsular.
10
Com elencos sempre renovados voltará a se apresentar várias vezes até 1926. Semelhante
ocorrendo com o Colón e o Coliseo de Buenos Aires. Com isso o Coliseo elevou-se ao mais alto
nível de sua história.
11
CARELLI, 1932
109
Fez um contrato com o duque Uberto Visconti di Modrone 12 ,
presidente da sociedade mantenedora e diretiva do Scala para que esse
teatro participasse com o Costanzi e assim ripetere al Brasile e in Argentina
quanto di più sontuoso Scala e Costanzi avevan rivelato nelle loro grandi
stagioni italiane (repetir no Brasil e na Argentina o quanto de mais belo e de
mais majestoso Scala e Costanzi tinham mostrado nas suas grandes
temporadas italianas) 13 .
Isto foi feito superando as expectativas pelo que se observa lendo os
jornais, revistas e outras publicações da época. Acontece que, ao passar das
temporadas, Mocchi foi derrubando fronteiras políticas e organizando grupos
numa ampla integração internacional, para maior receptividade de brasileiros,
argentinos e uruguaios. Recebeu criticas e novamente da Gazzetta dei Teatri
de Milão comentando a formação do próximo grupo que viria para cá: “O
elenco de artistas compõe-se de vinte e nove participantes: sete alemães,
cinco franceses, cinco argentinos, dois espanhóis e dez italianos. Fechando a
conta: dezenove estrangeiros e dez dos nossos. E a respeito dos maestros:
dois italianos e um alemão” (o alemão era “Riccardo Strauss”).
Mocchi tinha um bom relacionamento com os elencos e com a
imprensa. Mas ao mesmo tempo era exigente e político com os cantores.
Sabia perfeitamente que um mesmo cantor na mesma ópera se uma noite
cantava bem na outra poderia ser diferente. Necessitava de alternâncias para
rotação. Em 1915 levou no grupo quatro tenores de primeira linha para o
Colón: Caruso, Lázaro, De Muro e Tedeschi 14 . Caruso era tradicionalmente
um Radamés incomparável e parecia insubstituível. Aconteceu que
justamente numa Aida ele esteve mal e a crítica não perdoou. Aida seria
12
Tio do cineasta Luchino Visconti. O pai de Luchino, Giuseppe, também pertenceu à sociedade
fundada pelo avô Guido, juntamente com Arrigo Boito e Arturo Toscanini. Ver La Scala Racconta
de Giuseppe Barigazzi. Milão: BUR, 1991.
13
CARELLI, 1932
14
Alfredo Tedeschi (Alfio Tedesco) cantou mais vezes no Metropolitan (N. York) do que Caruso,
Gigli, Lázaro, Del Monaco, Schipa, Björling, Corelli ou Kraus. Ver Annals of the Metropolitan
Opera. New York: The Metropolitan Opera Guild, Inc., 1989.
110
repetida em seguida, no domingo. Mocchi substituiu Caruso por De Muro. De
Muro soube pelos jornais de manhã que seria ele quem cantaria Aida. Correu
para falar com Mocchi e encontrou-o com Caruso. Cumprimentou Caruso
“como estás?”. Caruso: “não leste os jornais?” De Muro virou-se então para
Mocchi: “que jogo é este?” Mocchi: “jogo? Esta é a tua sorte. Se cantares
como em Roma, terás tudo a ganhar 15 . Foi um sucesso de De Muro, mas
Caruso voltou em outra noite e aí público e crítica viram e ouviram novamente
aquele gênio consagrado.
Todo este relato tem como finalidade mostrar a autoridade e a
compreensão de um empresário especial que sabia substituir no momento
oportuno. Como um grande técnico de futebol o faz ao substituir corretamente
a estrela que não está bem. Preservar o patrimônio humano e sem
desintegrar o grupo.
***
15
DEFRAIA, Antonino. Bernardo de Muro. Bolonha: Bongiovanni Editore, 1995.
111
Fig. 1. O esbelto Theatro Carlos Gomes de Uruguaiana.
Infelizmente sacrificado em sinistros.
112
Fig. 2. O Theatro Sete de Abril de Pelotas já nos anos quarenta.
Possivelmente seja o mais antigo do Brasil em funcionamento contínuo.
A data da inauguração (1834) está no alto, à esquerda.
Ali se apresentou a Companhia Galli-Curci-Lázaro em 1915.
113
Fig. 3. Walter Mocchi
(1870-1955).
Nenhum outro
empresário conseguiu
tanto na história da
ópera. Foi o grande
integrador lírico da
América do Sul.
Projetou a pelotense
Zola Amaro e
oportunizou a estréia
mundial da ópera.
O Rei Galaor do
porto-alegrense
Araújo Viana.
Fig. 4. Tito Schipa
(1888-1965).
Walter Mocchi foi seu
principal empresário.
Esteve algumas vezes
no Rio Grande do Sul
cantando em teatros e
cinemas.
Ele e Gigli patrocinaram
os mais famosos
falsetes do século.
114
Fig. 5. Bidu Sayão
(1902-1999) em
Gilda no Rigoletto.
Segunda esposa de
Walter Mocchi
e contratada por ele.
Cantou em várias
cidades gaúchas,
inclusive São Gabriel.
Memorável atuação na
temporada lírica do
Centenário Farroupilha
1935) no Theatro
São Pedro.
Fig. 6. Amelita Galli-Curci
(1882-1963)
A mais bela voz de
soprano lírico-ligeiro
com coloratura,
do século XX.
Os Estados Unidos da
América a conheceram e se
extasiaram. Mas só depois
de Porto Alegre, Pelotas,
Rio Grande e Bagé.
115
Fig. 7. Hipólito Lázaro
(1887-1974).
Tenor de excepcional
registro e belíssimo
timbre. Foi o predileto
de Mascagni, e Puccini
chegou a considerá-lo
o melhor tenor
da época.
Fig. 8. Pôster do
Coliseu Bagéense sobre
as apresentações em
Bagé (1915).
116
Terminada a temporada no Colón, Walter Mocchi levou suas estrelas
com algumas modificações para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro 16 .
Foram dadas 17 récitas de 3 a 19 de setembro. Passaram para São Paulo e
lá, após encerrada a temporada, dissolveu-se o grupo conforme o previsto
pela agenda empresarial.
Amelita Galli-Curci e Hipólito Lázaro formaram então uma outra
companhia, Galli-Curci-Lázaro, conservando a maioria dos cantores e o
maestro Ricardo Dellera. Estréia no Teatro São Pedro do Rio de Janeiro em
06.10.1915 com Sonambula de Bellini. Já pela qualidade já pelos preços
populares o sucesso das apresentações foi tanto que resolveram repetir em
São Paulo. Vitoriosos resultados. Tiveram então a feliz idéia da vinda ao Rio
Grande do Sul para grande gáudio dos pampas, embora naquele momento os
pampas não pudessem ponderar ainda o quão significativo era esse porvir.
Mesmo com as modificações (pequenas) feitas por Walter Mocchi, do
Colón ao Municipal do Rio e as feitas por GaIli-Curci-Lázaro do Municipal ao
São Pedro do Rio e dali ao São Pedro de Porto Alegre, o resultado
desembarcado em Porto Alegre trazia nitidamente — embora em grau um
pouco menor — o padrão Walter Mocchi. Vejamos os dois quadros:
16
Integrou-se ao grupo o tenor gaúcho de Livramento José Martins Pavão com formação
européia. Mas Caruso só cantaria no Municipal em 1917, levado por Mocchi.
117
Dos 16 componentes básicos (porque certos co-primários eram
contratados nas próprias cidades onde se apresentavam) que vieram a Porto
Alegre, sete eram estrelas de Mocchi no Colón e cinco (também dele) no
Municipal. Apenas quatro eram de Galli-Curci-Lázaro. Aristide Anceschi já era
conhecido em Buenos Aires desde 1902. Não foi contratado para o Colón em
1915 porque possivelmente já tinha compromisso. Em junho e julho, por
exemplo, cantava no Coliseo pela Cia. Caracciolo-Gubellini. Maria Viscardi,
nascida na Umbria e perto de Roma, tinha elogiável registro de lírico spinto.
Destacou-se em Aida, Tosca, Cavalleria, Gioconda e outros assemelhados.
Contracenou com Anceschi ou Pinheiro várias vezes fora do Brasil. No ano de
sua morte (1966) até saiu em Roma a obra biográfica Maria Viscardi, una vita
118
per il canto 17 . Recém terminara um contrato quando GaIli-Curci chamou-a
daqui para cantar Tosca e Cavalleria. Mario Pinheiro ainda jovem tornou-se o
maior expoente dos baixos brasileiros (provavelmente fosse um baixobarítono). Apareceria elogiado em atuações na Itália. Criou o papel de O Rei
Galaor no Rio em 1922. Aida Poggetti, porto-alegrense, foi aluna do maestro
Mário La Mura quando ele morava aqui e trazia companhias líricas. No ano
anterior estreara no Theatro São Pedro, na ópera La Bohème, cantando na
presença do Presidente do Estado Borges de Medeiros. Galli-Curci convidoua para fazer Musetta e saiu-se bem. Sua contratação foi também um gesto de
interação da companhia com a Cidade.
***
Fica evidente que tal companhia, a mais qualificada que passou
por aqui, foi subproduto do dinamismo e das exigências qualitativas de
Walter Mocchi. Embarcou no porto de Santos vindo no navio Itapuca
expressamente fretado para esse fim. A Federação e Correio do Povo de
Porto Alegre, Echo do Sul de Rio Grande e Diário Popular de Pelotas
demonstravam ufana expectativa. Não escondiam o orgulho de que um
tenor gaúcho pertencia à companhia.
“Ouviremos nos Pagliacci o tenor brasileiro José Martins, riograndense, que há tempos viveu em nosso meio estudando
medicina e cujos estudos abandonou para dedicar-se ao canto.
Depois de um curso de quatro anos no conservatório, debutou em
Milão com a referida ópera: tendo já cantado nos teatros
municipais do Rio e São Paulo, recebendo consagração unânime
da imprensa, conforme já publicamos. As localidades acham-se
desde já à venda em a Livraria Americana...” 18
Homenagens, recepções calorosas, festejos, elogios, muitos elogios
após cada performance. No dia 18, Amelita Galli-Curi completou 33 anos; até
17
DILLON, César A. e SALA, Juan. El teatro musical en Buenos Aires I. Buenos Aires: Ediciones
de Arte Caglianone, 1997.
18
A Federação, 04.11.1915, p. 3.
119
jóias recebeu entre os presentes dados por fãs entusiasmados. Antes porém,
no dia 8, foi recebida juntamente com o esposo por Pinheiro Machado, então
vice-presidente do Estado. No dia seguinte foi a vez do Presidente Borges de
Medeiros recepcioná-los no Palácio Piratini. Parece que naquela época, ópera
e governo estavam mais integrados.
A seqüência dos espetáculos em novembro foi assim: Rigoletto (6),
Bohème (7), Lucia (8), Barbeiro (10), reprise de Bohème (11), Traviata (13),
Os Puritanos (14), Tosca (16), Cavalheria e Palhaços (17), Sonambula (19).
Eduardo Hirtz, proprietário e programador do Cine-Teatro Apoio, convidou a
companhia para mais três espetáculos a preços populares, já que a lotação —
que se esgotou era mais que o dobro da do Theatro São Pedro. No sábado
(20) foi Tosca. No domingo (21) à tarde, Rigoletto (com a dupla Galli-CurciLázaro) e, à noite, Cavalheiria e Palhaços, finalizando com Galli-Curci
cantando a Ária da Loucura da Lucia, levando aquele povaréu “à loucura”.
Muitas cadeiras extras tiveram que ser colocadas para esses espetáculos.
Nos jornais saiu depois uma certa notícia curta, seca e significativa.
“A cia. lírica que há pouco trabalhou no São Pedro, obteve em 12 récitas
50:055$000. Nos 3 espetáculos que realizou no Apollo a receita foi de
13:600$000, perfazendo o total de 66:355$000, ou seja, 4:423$000 por
espetáculo”. Tempos transparentes!
***
Pelo navio Javary foram para Pelotas. Parte do grupo hospedou-se
no Hotel Aliança. Eram esperados ansiosamente e repetiu-se boa parcela do
ocorrido em Porto Alegre: homenagens, recepções, carinhos, festejos, etc.
Quatro foram as apresentações por assinatura 19 : Lucia, La Bohème,
Rigoletto e Traviata; realizadas no Teatro Sete de Abril que possuía
camarotes, cadeiras de platéia, balcões, galeria numerada e galeria sem
19
O Diário Popular de Pelotas noticiara diferentes programações de óperas durante os dias que
antecederam a estréia. Significa que houve demora para optarem.
120
número (o tradicional “ poleiro”). A intenção inicial era que depois de Pelotas a
companhia voltaria para o Rio. Razões desconhecidas mudaram a idéia
anterior; para alegrias maiores nossas. Com isso foram dadas duas
apresentações em Rio Grande e três em Bagé.
No dia seguinte da Traviata de Pelotas o grupo foi de trem para Rio
Grande e apresentou Traviata numa noite e Rigoletto na outra. Ambas no
Polytheama que tinha melhores condições do que o Sete de Setembro 20 .
Coincidentemente o Polytheama apresentara recentemente o filme mudo A
Dama das Camélias de Giuseppe De Liguoro com Francesca Bertini e
Gustavo Serena. A orquestra do teatro tocava Traviata durante toda a sessão.
É de estranhar os constantes deslocamentos que na época faziam as
companhias líricas, empregando pouco tempo para arrumar e desarrumar. Na
época o público pouco se importava com cenários corretos ou guarda-roupa
valioso e muito menos com idéias de marcação cênica. O que facilitava ainda
mais deslocamentos e arrumações. As vozes é que faziam a alegria e o
entusiasmo do ouvinte e também que os cantores ficassem quase todo o
tempo com a cara virada para ele. Tal comportamento era comum na maioria
dos teatros do mundo de então.
De Rio Grande a companhia, também de trem, foi para Bagé. A
imprensa local descreveu a festiva chegada dos artistas na estação. Por
muito povo soltando vivas foram conduzidos aos alojamentos. Na praça, GalliCurci deu amostra do que faria no Coliseu Bagéense (seria algum trecho da
Lucia ou do Rigoletto?). No dia primeiro de dezembro foi Traviata com
Giacomucci e Lázaro. No dia 2, Lucia com Galli-Curci e Tedeschi. Na última
récita (3), Rigoletto cantado por Galli-Curci e Hipólito Lázaro. Esta récita foi
em benefício da Cruz Vermelha Italiana e com pensamento na distante Itália
sangrando pela guerra.
20
O Echo do Sul de Rio Grande só confirmou a vinda no próprio dia da estréia porque nada
estava decidido. A companhia pensava voltar para o Rio, após Pelotas.
121
Numa avaliação comparativa hoje as apresentações em Porto Alegre,
Pelotas, Rio Grande e Bagé estariam assim: Plácido Domingo e Angela
Gheorghiou numa noite, em outra José Cura e Edita Gruberova, na seguinte
Cura e Gheorghiou e noutra Domingo e Gruberova.
Dormíamos de olhos abertos ou parece que a tradição insiste em
sonhar esses fatos reais como se fossem lendas?
***
Para este trabalho contribuiu principalmente parte das pesquisas
feitas pessoalmente e in loco nos acervos do Teatro alla Scala de Milão, do
Teatro Costanzi (Teatro dell’Opera) de Roma, do Teatro Colón de Buenos
Aires, do Teatro Municipal de Santiago, do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, da Biblioteca Nacional de Madri, da Biblioteca de Florença
(documentação sobre o Teatro Verdi), da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, da Biblioteca Rio-Grandense da cidade de Rio Grande, da Biblioteca
Municipal de Pelotas, da Biblioteca Pública de Porto Alegre, do Museu Don
Diogo de Souza de Bagé, do Museu Hipólito da Costa de Porto Alegre, do
jornal Correio do Povo de Porto Alegre e da Memória RBS de Porto Alegre.
In memoriam dos criadores e descritos em:
• Palco, Salão e Picadeiro (Editora Globo, 1956)
• O Teatro São Pedro na vida cultural do Rio Grande do Sul (DACSEC/RS, 1975).
122
9
O PANORAMA CELESTE DA
BANDEIRA DO BRASIL
___________________
Geraldo Rodolfo Hoffmann ∗
∗
Doutor em História Natural, Livre Docente em Geologia. Ex-Docente de Geologia e
Paleontologia na PUCRS e UNISINOS. Av. General Barreto Viana, 599, CEP 91330-630, Porto
Alegre, RS, Brasil.
123
O Panorama Celeste da Bandeira do Brasil:
um posicionamento temático
Os eventos sul-americanos, sejam quais forem suas naturezas,
transcorrem sobre um substrato físico que é o próprio complexo geológico
continental (vide Hoffmann, G. R., Origem e evolução da América do Sul. in:
Integração 2002, Coleção Conesul 3).
Mas acima dos habitantes deste continente descortina-se, à noite,
um outro mundo peculiar: o exuberante panorama celeste austral. E
justamente este panorama é representado, em parte, no campo circular da
Bandeira Brasileira.
Assim a presente abordagem entretece a configuração estelar e
constelacional real com sua versão gráfica, tal como é efetivamente mostrada
na Bandeira Nacional do Brasil.
Bandeiras e sua diversidade
Compondo as idéias, tanto convergentes como divergentes, dos
conceitos constantes em dicionários e outras fontes, pode ser obtido um
consenso que, em termos gerais, seria o seguinte: bandeira é uma peça de
tecido (atualmente costuma ser empregado poliéster), geralmente retangular,
de uma ou mais cores, podendo portar emblemas, símbolos ou legendas. Tal
peça, que é presa à parte superior de uma haste de modo que possa
desenrolar-se e flutuar, serve de emblema ou distintivo de uma nação,
corporação, sociedade, partido ou congregação.
O termo lábaro, embora freqüentemente empregado como sinônimo
de bandeira, designa efetivamente, e numa conotação histórica restrita, o
estandarte dos exércitos romanos (LABARUM era o estandarte imperial).
A palavra flâmula, um diminutivo de flama e portanto com a
conotação de pequena chama, designa genericamente bandeiras de formato
124
triangular, sobretudo pequenas. Costuma ser definida como urna bandeirola
longa e estreita, terminada em bico ou farpada.
Na presente abordagem, contudo, o enfoque é direcionado às
bandeiras de nações, com a devida ênfase à Bandeira Brasileira. Em termos
mundiais estariam em cogitação tanto as bandeiras de nações atuais como
algumas de nações mais antigas que sofreram desmembramentos com
movimentos de independência.
Usualmente suas formas são retangulares, com as mais variadas
proporções das duas medidas fundamentais. Neste caso, considerando a
bandeira hasteada, a medida horizontal representa o comprimento e a medida
vertical sua largura.
Só raramente, como nos casos específicos da Suíça e do Vaticano,
as bandeiras são quadradas. Também igualmente raras são as bandeiras
recortadas, como no caso da Groenlândia (retangular com uma reentrância
triangular na extremidade livre) e do Nepal (a dupla flama).
No que diz respeito às cores, a bandeira pode mostrar um campo
monocromático sem qualquer adorno, como por exemplo a de Fujaira, ou
com eventuais figuras incorporadas. O mesmo é válido para bandeiras com
campos pluricromáticos. Portanto as bandeiras podem apresentar campos
de uma ou mais cores sem ornamentações, ou com tais campos
constituindo substratos para outros elementos. No caso de ocorrerem duas
ou mais cores, as zonas cromáticas podem ser separadas por linhas retas,
curvas, sinuosas ou denteadas, gerando campos secundários circulares,
quadrados, retangulares, triangulares ou de outros formatos; e isto nas mais
variadas combinações.
Na Bandeira Brasileira, a título de exemplificação, ocorrem três
configurações geométricas concêntricas: a interna circular, a intermediária
losangular e a externa retangular; de colorações respectivamente azul,
amarela e verde. Embora o verde e o amarelo do retângulo e do losango, já
125
constantes no desenho original de Jean Baptiste Debret para a primeira
Bandeira (concretizada logo após a Independência) tenham a conotação
tradicional “das matas e do ouro”, como riquezas naturais do Brasil, sua
origem remonta à permanência das cores das casas de “Lorena” (a família
Habsburgo de Dona Leopoldina) e “Bragança” (Dom Pedro).
Convém lembrar que de 1640 a 1683 estava em uso a Bandeira do
Principado do Brasil, portando a grande esfera armilar da coroa portuguesa.
Esta esfera armilar foi rein corporada à Bandeira Imperial do Brasil no período
de 1822 a 1889. Posteriormente, com a consolidação da República, as armas
imperiais, conservando a Cruz de Cristo e a esfera armilar com as estrelas
representativas das províncias, deram lugar ao atual círculo da Bandeira.
Embora nas bandeiras portadoras de estrelas a ocorrência destas
seja predominantemente unitária, sendo poucos os casos de duas ou mais, o
limite está praticamente em uma dezena.
Assim muitas bandeiras (mais de duas dezenas) apresentam, em
sua ornamentação, uma estrela de cinco pontas: Camarões, Chile, Coréia
do Norte, Cuba, Gana, Guiné-Bissau, Ilhas Marianas do Norte, Libéria,
Porto Rico, Senegal, Somália e Togo, bem como as repúblicas Árabe do
lemen, Benin, Centro-Africana, lemen do Sul, Djibouti, Timor Oriental e
Vietnã: em especial. Estrelas de cinco pontas com bordos marginados são
constatadas na bandeira da Iugoslávia (duas concêntricas) e do Marrocos
(com barras trançadas).
Já a bandeira de Israel, ostentando a estrela de Davi com suas seis
pontas, foge aos padrões usuais. Algo similar ocorre na bandeira de Burundi
com suas três estrelas de seis pontas. Igualmente raros são os casos de
estrelas com sete (Jordânia) ou mais pontas.
Mas também não podem ser ignoradas as estrelas multirradiadas por
excelência, já com uma nítida conotação solar (Argentina, China Nacionalista,
Formosa (Taiwan), llhas Marshall, Nauru, Uruguai).
126
Nas bandeiras do Panamá, da República Democrática de São Tomé
e Príncipe, e da Síria, ocorrem duas estrelas, enquanto nas do Iraque e da
Micronésia constam, respectivamente, três e quatro estrelas. Nas bandeiras
de Honduras, Novas Hébridas e Ilhas Salomão estão presentes cinco
estrelas. Na de Niue e na da República Popular da China também ocorrem
cinco estrelas, sendo uma grande e quatro pequenas. A bandeira das Antilhas
Holandesas possui seis estrelas, enquanto as da Venezuela e de Grenada
contam com sete cada uma. As bandeiras de Tuválu e Dominica ostentam
nove e dez estrelas respectivamente.
Em termos de bandeiras nacionais atuais não ocorrem casos de oito
estrelas. Contudo uma curiosidade, que merece menção, é a da bandeira do
Alasca (um dos estados norte-americanos). Nela constam oito estrelas que
serão comentadas, comparativamente com a brasileira, no final do tópico
O Céu Austral.
Enquanto na maioria dos casos tais estrelas sejam os únicos
elementos presentes, sobre um fundo usualmente homogêneo, por vezes
estão conjugadas com outras figuras, tais como um arco lunar (crescente ou
minguante), uma foice e um martelo ou tantas outras.
Assim algumas variantes combinam estrelas com a Lua ou o Sol.
Uma estrela acompanhada pela Lua constitui um par constatável em
bandeiras como as da Argélia, da Mauritânia, do Paquistão, de Umn AlQaiwain, da Turquia e da Tunísia. Já a Lua acompanhada por quatro
estrelas pode ser vista na bandeira da República de Comores, e por cinco
estrelas na de Cingapura. A bandeira das llhas Maldivas só apresenta a
Lua, ao passo que a da Malásia mostra a Lua e o Sol. Malavi e Antígua
incluem, nas suas bandeiras, meio Sol cada uma. No caso do Nepal ocorre
o Sol e um conjunto Lua-Sol.
Em certas bandeiras as estrelas são acompanhadas por outros
elementos, usualmente simbólicos. Uma estrela com uma foice ornamenta a
127
bandeira
da
República
Popular
do
Congo,
enquanto
uma
estrela
acompanhada pelo conjunto da foice e do martelo consta das bandeiras da
Ucrânia, da Bielorrússia e da extinta U.R.S.S. Na bandeira das Filipinas
ocorrem três estrelas juntamente com uma “roseta”.
Embora a temática fundamental desta abordagem seja a presença
de estrelas nas bandeiras, é apropriado ressaltar outros tipos de inclusões
ornamentais, responsáveis pelo aumento da complexidade nos desenhos
das bandeiras.
Dentro desta diversidade podem ser encontradas lanças, chaves,
brasões, escudos, letras e inclusive mensagens em forma de textos. Até
estilizações exóticas das mais diversas, como as três pernas radiadas (na
realidade coxas e pernas em ângulos) da Ilha de Man.
Finalmente temos os casos de animais típicos (“normais”),
estilizados e míticos. No primeiro caso predominam as águias, embora
possam ocorrer outras aves, além de leões e elefantes. Na categoria de
animais estilizados temos as típicas águias duplas e as águias de duas
cabeças e, no âmbito mítico, os dragões. Também vegetais, ou partes dos
mesmos, são representados em bandeiras (folhas, ramos, palmeiras e
árvores tradicionais). Como exemplos podem ser citadas as águias das
bandeiras equatoriana, espanhola e mexicana, bem como o quetzal (uma
das mais belas aves centro-americanas) na bandeira da Guatemala. A
bandeira da Albânia mostra uma águia bicéfala, acompanhada por uma
estrela. Em termos de mamíferos podem ser considerados os elefantes da
antiga bandeira do Laos e o Leão da Etiópia. Na bandeira do Butão está
um dragão. No âmbito botânico devem ser ressaltados o cedro da
bandeira do Líbano e a folha de bôrdo da bandeira canadense.
Um primeiro passo para representações constelacionais pode ser
constatado nas bandeiras da Samoa ocidental e de Papua — Nova Guiné,
ambas ostentando o Cruzeiro do Sul clássico, isto é, com suas cinco estrelas
128
fundamentais. A da Nova Zelândia, contudo, só apresenta as quatro mais
luminosas. A bandeira da Austrália também mostra o Cruzeiro do Sul (quatro
estrelas com sete pontas e a Intrometida com cinco) além de uma estrela
adicional de sete pontas; embora na transição histórica da evolução desta
bandeira tenha havido estrelas com oito pontas.
Grande número de estrelas, acima de uma dezena, ocorre somente
em quatro bandeiras: na da Birmânia, na das Ilhas Cook, na dos Estados
Unidos da América do Norte e na do Brasil. Nos dois primeiros casos as
bandeiras apresentam anéis constituídos por estrelas de cinco pontas: 14 no
caso da Birmânia (Burma) e 15 no das llhas Cook. As outras duas
ultrapassam bastante aqueles números (27 estrelas no caso do Brasil e 50 no
dos Estados Unidos). Uma peculiaridade, no caso da bandeira da Birmânia, é
que a versão mais antiga dispunha de um curioso desenho com apenas seis
estrelas de cinco pontas, sendo uma central grande e cinco pequenas
posicionadas entre as pontas da maior.
As estrelas da bandeira norte-americana (a clássica Stars & Stripes
Flag) estão perfiladas em alinhamentos geométricos lineares, segundo uma
rede regular formada por cinco linhas de seis estrelas entremeadas por quatro
linhas de cinco estrelas. Todas elas são de cinco pontas e de mesmo
tamanho, independendo portanto de qualquer representação constelacional;
constituindo assim um simples simbolismo numérico dos estados. Convém
ressaltar que nesta bandeira atual as estrelas são brancas e estão
concentradas num espaço retangular azul que ocupa uma posição esquerda
superior. O restante do campo da bandeira é ocupado pelas faixas horizontais
(listas) brancas e vermelhas alternadas. Na bandeira original (a primeira)
havia as mesmas 13 faixas, que foram conservadas, e apenas 13 estrelas
dispostas na forma de um anel (representando os estados originais).
Posteriormente, com o aumento do número de estados, só foram alteradas a
quantidade das estrelas e a sua disposição.
129
A Bandeira constelacionada
A única bandeira detentora da representação de uma “paisagem
celeste” é a brasileira, fato que, naturalmente, já determina a maior
complexidade do seu desenho.
Mas o que ela efetivamente mostra em seu campo estelar, o círculo
que representa a configuração estilizada de uma esfera armilar? A
representação é sobretudo simbólica, constituindo uma espécie de “licença
poética gráfica” e não um mapa celeste com seu devido rigor científico.
Como o campo estelar em questão está superimposto ao resto da
Bandeira, é requerido um esclarecimento da associação.
O delineamento básico da Bandeira obedece a um padrão geométrico
modular (vide Prancha I), definido pela legislação brasileira, sendo o campo
fundamental um retângulo modulado em 20 x 14. Portanto o módulo
referencial (arbitrário) é empregado para definir um comprimento de 20 M (M
por módulo) e uma largura de 14 M. O desdobramento deste campo
fundamental, mediante duas medianas perpendiculares, define quatro
retângulos menores e iguais que favorecem a seqüência do traçado.
Pontos marcados num afastamento de 1,7 M das margens, sobre os
extremos de cada mediana, permitem o traçado do campo losangular.
Finalmente é traçada uma circunferência com raio 3,5 M, centrada no
cruzamento das medianas. Tal linha (a circunferência) delimita o círculo da
Bandeira. O bálteo, a faixa oblíqüa que representa uma fração da Eclíptica
sobre o círculo, é obtido com o traçado de dois arcos paralelos, de raios 8 M e
8,5 M. Estes arcos são centrados num ponto situado na margem inferior da
bandeira, num afastamento de 2 M à esquerda da mediana vertical.
A palavra bálteo, embora esteja em desuso, corresponde à primitiva
designação de faixa branca da Bandeira, pois cinge o círculo à semelhança
da cinta do boldriê, isto é, uma correia a tiracolo (do latim balteurn: cinta,
cinturão ou talabarte). Eclíptica, o plano orbital terrestre, também designa a
130
linha gerada pela projeção celeste do perímetro deste mesmo plano. Como o
plano orbital da Lua possui uma inclinação de cinco graus e oito minutos de
arco, em relação ao plano da órbita da Terra, a posição do nosso planeta
irmão (denominado satélite por tradição) pode alcançar tal amplitude angular
de ambos os lados da linha da eclíptica. Estes limites, ao norte e ao sul da
linha, definem a faixa da eclíptica. Como sobre ela estão posicionadas
(embora parcialmente) cada uma das 12 constelações conhecidas como
zodiacais, também é conhecida como faixa do Zodíaco.
Enfim são delineadas as estrelas, sobre uma grade quadriculada
inscrita no círculo. A grade em questão tem malhas de um décimo do raio do
referido círculo. As estrelas (sempre brancas e de cinco pontas) obedecem
igualmente a uma construção modular, sendo empregadas cinco categorias
dimensionais representando estrelas de primeira a quinta grandezas, inscritas
em círculos de módulos 0,30 M, 0,25 M, 0,20 M, 0,14 M e 0,10 M.
Também as letras da citação ORDEM E PROGRESSO (advinda do
positivismo de Augusto Comte) seguem padrões modulares: 0,33 M de altura
por 0,30 M de largura para as letras das duas palavras e 0,30 M de altura por
0,25 M de largura para a conjunção E. Dentre tais letras, oficialmente de cor
verde, o P está posicionado sobre a mediana vertical.
O Céu Austral
Os panoramas celestes (estelares e constelacionais) devem ser
analisados sob dois aspectos fundamentais, ambos do ponto de vista de um
observador posicionado no Sul do Brasil e latitudes adjacentes. Um dos
aspectos é invariável e o outro variável.
A invariabilidade é determinada pela localização geográfica, isto é,
estrelas posicionadas entre 60°N e o Pólo Norte Celeste (boreais extremas)
nunca serão vistas por um observador no Rio Grande do Sul; estarão sempre
abaixo do seu horizonte.
131
No segundo aspecto estão enquadradas as estrelas posicionadas
entre a declinação boreal de 600 (correspondente à latitude 60°N) e o Pólo
Celeste Sul. A observação delas implica numa variabilidade parcial. Estrelas
entre 60°S e o Pólo Celeste Sul (austrais extremas) estarão acima do
horizonte durante toda a observação noturna, em qualquer época do ano. Já
as demais (entre as declinações 60°S e 60°N) estarão em parte acima e em
parte abaixo do horizonte. Quais delas serão visíveis dependerá do horário de
observação e da época do ano em que a mesma for efetuada.
O mais importante, diante destas circunstâncias, é que o observador
voltado para o Sul pode ver, olhando também para cima (o zênite), para a
esquerda (Leste) e para a direita (Oeste) — e inclusive forçando a cabeça um
pouco além destas orientações — as estrelas austrais por excelência
(aquelas posicionadas entre o Equador e o Pólo Celeste Sul). As principais
constelações que podem ser vistas por um observador diretamente voltado
para o Sul, estão representadas na Prancha II.
Virando-se em seguida para o Norte, e tendo agora o Leste à direita e
o Oeste à esquerda, poderá ver as demais estrelas até o limite latitudinal da
declinação celeste 60°N.
Dentro desse âmbito, que na realidade abrange a maior parte da
assim chamada esfera celeste, está a maioria das constelações mais
notáveis,
incluindo
as
12
zodiacais.
Destas
últimas
sobressaem
particularmente oito: Áries, Touro, Gêmeos, Leão, Virgem, Escorpião,
Sagitário e Capricórnio. As constelações de Câncer, Libra, Aquário e
Peixes, cujas estrelas são menos chamativas, despertam menos a
atenção do observador.
Algumas dentre as não-zodiacais, posicionadas ao sul da faixa do
Zodíaco, são sobremodo atraentes, dada a grande luminosidade de suas
principais estrelas. No caso podem ser ressaltadas constelações como o
Cruzeiro do Sul, o Centauro, o Lobo, o Triângulo Austral, o Pavão, o Grou, a
132
Fênix, o caçador Órion, o Peixe Austral, o Cão Maior, o Cão Menor, o Corvo,
a Lebre e, naturalmente, o complexo da nau dos argonautas (Argo) com seus
três componentes principais: a Quilha, a Vela e a Popa.
Três constelações imensas (pois ocupam uma grande extensão no
céu), a Hidra, a Baleia e o Rio Erídano, são medianamente notáveis: com
exceção da última, cuja foz é simbolizada pela brilhante estrela Achernar.
Curiosamente esta estrela está posicionada tão meridionalmente quanto o
próprio Cruzeiro do Sul. Na Hidra igualmente sobressai uma estrela bastante
luminosa: Alphard, também citada como Alfard.
Dentre as boreais visíveis também podem ser referidas algumas
belíssimas constelações, tais como o Cisne, a Águia, a Lira, o Boiadeiro
(Boieiro), o Cocheiro, a Coroa Boreal e o par Pégaso-Andrômeda;
secundados por Hércules e Perseu. A famosa e bela constelação da Ursa
Maior, contudo, só é parcialmente visível das latitudes gaúchas.
Convém
ressaltar
que
nenhuma
das
constelações
boreais
posicionadas ao norte da faixa zodiacal (e portanto nenhuma das estrelas que
as integram) participam da amostragem estelar da Bandeira Brasileira.
Também convém esclarecer que apenas uma das estrelas de nossa
Bandeira é boreal: Procyon do Cão Menor. Ela está ao norte do Equador, mas
ainda assim ao sul da Eclíptica (metade da linha da Eclíptica fica ao norte e a
outra metade ao sul do Equador).
Na definição do panorama celeste representado na Bandeira
Brasileira participam estrelas de nove constelações, sendo duas delas
(Virgem e Escorpião) zodiacais. Da constelação de Virgem só é considerada
uma estrela, sua alfa conhecida pelo nome de Spica. De parte do Escorpião
temos a presença de oito estrelas.
Dentre as não-zodiacais, tanto a constelação do Cruzeiro do Sul
como a do Cão Maior contribuem com cinco estrelas cada uma. O Triângulo
Austral participa com suas três estrelas fundamentais e a Hidra (mais
133
precisamente Hidra Fêmea) com duas. Do Cão Menor só consta sua alfa, a
estrela Procyon. Da “super-constelação” Argo, a nau dos argonautas, apenas
está inscrita na bandeira a Alfa da Quilha, de nome Canopus. Curiosamente a
Sigma do Oitante é uma das estrelas menos luminosas desta constelação de
difícil identificação. A importância desta estrela é sobretudo simbólica.
Conhecida como Estrela Polar Sul (em contrapartida a Polaris que é a Estrela
Polar do Hemisfério Norte), ela simboliza o Distrito Federal.
Cinco das bandeiras inicialmente referidas (Bandeiras e sua
diversidade) mostram, cada uma, uma constelação. Nas da Austrália, Nova
Zelândia, Papua-Nova Guiné e Samoa trata-se do Cruzeiro do Sul; na do
Alasca da Ursa Maior. Mas a bandeira do Alasca possui oito estrelas, das
quais apenas sete compõem a constelação da Ursa Maior. A oitava
representa Polaris, a brilhante estrela polar boreal. Portanto duas bandeiras
ostentam estrelas polares: a do estado norte-americano do Alasca (Polaris) e
a brasileira (Sigma do Oitante).
O Cruzeiro do Sul e sua translação
O quadro constelacional, visível no céu noturno, varia com o horário e
com a época do ano em que são feitas as observações.
O Cruzeiro do Sul, por exemplo, é visível posicionado verticalmente,
acima do horizonte Sul, no início da noite na transição de maio a junho. Tal
posição também é constatada em março, mas por volta da meia-noite, e em
janeiro antes de amanhecer.
Se no primeiro caso (maio-junho) a observação do Cruzeiro do Sul for
efetuada à meia-noite, ele estará “deitado” acima do horizonte Sul-Sudoeste.
Pouco antes de amanhecer, estará fortemente inclinado (de “cabeça para
baixo”) descendo junto ao horizonte. Contudo na mesma ocasião, na latitude
da cidade do Rio de Janeiro que é adjacente ao Trópico de Capricórnio, o
Cruzeiro do Sul já estará praticamente abaixo da linha do horizonte. Esta
134
referência é oportuna pois o Rio de Janeiro, na qualidade de antigo Distrito
Federal, é a cidade referencial do quadro estelar da Bandeira (vide adiante,
no tópico O Céu efetivo da Bandeira, as leis pertinentes).
A representação geral da Prancha III mostra o Cruzeiro do Sul
posicionado horizontalmente acima do horizonte Sul-Sudeste, no início da
noite, nos primeiros dias de março. Por volta da meia-noite já ocupará um
posicionamento vertical e estará deitado acima do horizonte Sul-Sudoeste
antes do amanhecer.
Este movimento translacional (que no presente exemplo ocorre em
sentido horário para o observador) decorre do movimento de rotação da
Terra para Leste (no caso em sentido anti-horário). Tal deslocamento do
Cruzeiro do Sul, mostrado em detalhe na mesma prancha, é acompanhado
pelas demais constelações pois a rotação terrestre (fenômeno real) sugere
ao observador a idéia do giro de toda a abóbada celeste (movimento
aparente conseqüente).
É apropriado recordar que, convencionalmente, as estrelas de uma
constelação são designadas mediante letras gregas minúsculas, em ordem
decrescente de brilho (salvo exceções). No caso do Cruzeiro do Sul isto é
válido para as cinco estrelas principais, quatro das quais ainda recebem
denominações próprias, populares e consagradas. Assim a Alfa é também
Acrux ou Estrela de Magalhães, a Beta é Mimosa e a Gama tem a designação
de Rúbia. A menos brilhante das cinco (Epsilon), excêntrica em relação ao
ponto de cruzamento dos braços que são desiguais e um pouco inclinados, é
conhecida por Intrometida.
O problema da especularidade
A especularidade, também designada enantiomorfia, representa a
condição da imagem de um corpo formada num espelho, constituindo assim o
inverso da forma real.
135
Já
a
igualdade,
geometricamente,
indica
que
duas
figuras
seriam superponíveis.
A distinção pode ser facilmente reconhecida se considerarmos as
mãos como elementos de comparação. As duas mãos só seriam iguais se
suas formas, igualmente orientadas (palmas voltadas para o mesmo lado),
fossem superponíveis, o que não ocorre na realidade. A forma da mão
esquerda corresponde à imagem da outra (a direita) formada num espelho.
Por esta razão as duas mãos não são iguais, mas sim especulares (=
simétricas = enantiomorfas). A Figura 1 da Prancha IV demonstra,
comparativamente, as condições de igualdade e de simetria.
As representações constelacionais e estelares da Bandeira são
efetivadas em condição de especularidade. Assim o Cruzeiro do Sul,
mostrado na Bandeira, representa o inverso (imagem simétrica) da
constelação tal como é vista no céu.
Consideremos, para tanto, o aspecto do Cruzeiro do Sul visto através
do vidro de uma janela; vidro no qual suas estrelas fundamentais poderiam
ser desenhadas.
É importante lembrar que o brilho das estrelas, tais como as
vemos, é relativo; dependendo dos brilhos reais e das distâncias. Assim
como uma lâmpada muito luminosa parece fraca, se sua distância for
grande, as estrelas também estão sujeitas ao mesmo efeito. A segunda
estrela do Cruzeiro do Sul (Mimosa), na realidade muito mais luminosa do
que a primeira (Acrux), parece um pouco menos brilhante para o
observador por estar muito afastada. A segunda figura da Prancha IV
mostra a relação entre as estrelas, com seus brilhos e afastamentos
relativos efetivos, e a figura sugerida ao observador.
Mas se olharmos o desenho das cinco estrelas fundamentais, feito no
vidro da janela, pelo outro lado (de fora), teremos sua imagem invertida. É
esta figura, em condição simétrica, que está representada na Bandeira. O
136
mesmo ocorre com as oito estrelas da constelação do Escorpião escolhidas
para nela constarem. Para tanto a figura real da constelação é rebatida,
gerando a imagem invertida que constitui sua representação simétrica
(Prancha IV, Figura 3).
O céu efetivo da Bandeira
Em conformidade com a legislação brasileira o campo celeste
mostrado na Bandeira corresponde aquele que seria visível no período
matutino do dia quinze de novembro do ano de 1889, se naquele horário o
céu estivesse escuro. Afinal isto representaria, convencionalmente, o céu na
ocasião da proclamação. Desse campo celeste foram selecionadas 27
estrelas, ressaltadas diante da exclusão das demais.
Originalmente havia 21 estrelas, mas o acréscimo posterior de outras
seis totalizou as atuais 27.
Para melhor compreensão da figuração atual convém serem
lembradas as leis n° 5.700 de 01.09.1971 (editada no governo Médici), em
seu parágrafo único do artigo terceiro, e nº 8.421 de 11.05.1992 (editada
no governo Collor) que, no seu parágrafo primeiro do artigo terceiro,
altera a anterior.
Seus enunciados são, respectivamente:
Na Bandeira Nacional está representado, em lavor artístico, um
aspecto do céu do Rio de Janeiro, com a constelação do
‘Cruzeiro do Sul’ no meridiano, idealizado como visto por um
observador situado na vertical que contém o zênite daquela
cidade, numa esfera exterior à que se vê na Bandeira.
As constelações que figuram na Bandeira Nacional
correspondem ao aspecto do céu, na cidade do Rio de Janeiro,
às oito horas e trinta minutos do dia 15 de novembro de 1889
137
(doze horas siderais) e devem ser consideradas como vistas por
um observador situado fora da esfera celeste.
É também esta última lei, no apêndice 1 do seu anexo n° 2, que
define o total atual das 27 estrelas e a correspondência das mesmas aos
estados da União.
Justamente neste ponto devem ser ressaltadas as discrepâncias
entre a representação estelar da Bandeira e a configuração real, tal como
vista no céu ou num mapa celeste.
A configuração mostrada na Bandeira foi efetivada com modificações
da realidade, objetivando um enfoque mais estético do ponto de vista da
composição gráfica.
O primeiro passo da transformação foi uma inversão de imagem, em
caráter especular. Portanto a representação estelar mostrada na Bandeira
equivale à das esferas armilares dos antigos astrônomos e astrólogos. As
constelações, e suas estrelas constituintes, são mostradas como se fossem
projetadas na superfície do globo terrestre e observadas de fora.
A seguir foi procedida uma estilização do conjunto de estrelas
envolvendo, inclusive, duas alterações de posições estelares em relação à
Eclíptica, simbolizada pelo bálteo da Bandeira. Trata-se de Spica, a Alfa da
constelação de Virgem, e de uma das estrelas do Escorpião. Spica, que é
austral relativamente à Eclíptica, passou a ocupar uma posição boreal. Com a
estrela Beta (Akrab) do Escorpião ocorreu o inverso.
Outras alterações, quando ocorrem, são de posicionamentos relativos
das constelações e seus componentes.
Examinando, comparativamente, a disposição espacial efetiva das 27
estrelas escolhidas com as do campo estelar definitivo da Bandeira (vide
figuras correspondentes na Prancha V), podem ser facilmente constatadas as
alterações mencionadas.
138
A estilização final, que visa concentrar as estrelas num espaço restrito
corresponde, aproximadamente, a uma fotografia distorcida na periferia,
obtida com uma câmara dotada de objetiva com sistema de lentes do tipo
“Olho de Peixe”, focada no Cruzeiro do Sul.
Também é oportuno salientar que os tradicionais globos celestes
disponíveis no comércio (geralmente do mesmo porte dos globos terrestres e
usados como eles principalmente para fins decorativos e eventualmente
didáticos) mostram as constelações na condição em que constavam nas
esferas armilares e nas clássicas esferas celestes, isto é, “vistas de fora”. Um
dos exemplos mais antigos destas esferas celestes é a escultura do Atlas
Farnésio, onde é mostrada sustentada pelo titã Atlas. Para maiores
esclarecimentos sobre tais representações consulte os textos Resgatando a
Uranogeoscopia e Uma Ave Celeste sobrevoa Porto Alegre (vide referências:
Hoffmann, G. R.).
E é justamente a representação plana de uma face de um globo
celeste, embora estilizada, que encontramos no círculo da Bandeira. Não se
trata, portanto, de um traçado incorreto, mas sim de uma representação
clássica e consagrada. Só que, deve ser novamente lembrado, não serve de
guia para a observação direta das constelações e estrelas no céu por consistir
numa imagem invertida das mesmas.
Nos casos já referidos das bandeiras da Austrália, da Nova Zelândia,
de Papua-Nova Guiné, de Samoa e do Alasca as representações
constelacionais são diretas, isto é, as figuras das constelações são mostradas
tais como visíveis no céu.
Portanto a Bandeira do Brasil não é única apenas por ter um
quadro constelacional múltiplo, mas também pela representação estelar
em caráter especular.
139
As Estrelas da Bandeira e os Estados Brasileiros
A Lei n° 8.421, através do primeiro apêndice ao seu segundo anexo,
relaciona os Estados simbolizados pelas estrelas da Bandeira. Assim o que
antes era informal foi efetivamente formalizado. A Prancha VI mostra a
correspondência oficial.
Contudo uma das publicações destinadas ao melhor conhecimento
das bandeiras históricas do Brasil, e também de seus Estados, Brasil: Hinos &
Bandeiras Nacionais & Estaduais (vide referências: Rodrigues, Bellomo e
outros), requer o doloroso dever de um comentário crítico. Embora muito
elucidativa, sobretudo na abordagem dos “rituais” pertinentes à Bandeira,
apresenta duas falhas bastante graves nas páginas 61 e 79. Uma é referir a
estrela Sigma do Oitante (a constelação) como Sigma do Oriente e a outra é
uma lamentável confusão na identificação de estrelas. Quase todas as
estrelas da metade esquerda do círculo (inclusive a Delta e a Epsilon do
Cruzeiro do Sul) estão trocadas. Somente duas (Canopus e a Beta do Cão
Maior) não foram confundidas.
Este fato traz à tona uma outra questão problemática. Conforme a
redação inicial do artigo 39 da Lei n° 5.700 de 01.09.1971 são obrigatórios
tanto o ensino do desenho e significado da Bandeira Nacional, como o ensino
do Hino Nacional.
Mas será que isto é realmente cumprido? Numa interpretação pessoal
posso afirmar que sou pessimista.
A temática da Bandeira envolve sobretudo dois campos de caráter
técnico-científico: o desenho e a abordagem astronômica. A formação de
professores aos quais compete (pela natureza das disciplinas) a
propagação de conhecimentos relativos à Bandeira é de orientação
humanística, o que gera um conflito óbvio. Geralmente incapazes de
identificar no céu o Cão Maior, o Escorpião e o próprio Cruzeiro do Sul, as
constelações mais destacadas da Bandeira, e manusear um compasso
140
para explicar o desenho da mesma, tendem a ignorar tais aspectos
atendo-se aos tratamentos devidos à Bandeira.
Nestas circunstâncias, possivelmente, o objetivo maior do tema aqui
concluído é o de contribuir para a superação das dificuldades encontradas,
por muitos, na interpretação da faceta astronômica da Bandeira do Brasil.
Referências
CRAMPTON, W. Bandeiras. Série Aventura Visual. São Paulo: Globo, 1990.
DUNLOP, S. (Ed.). Atlas of the night sky. England: Newness Books, 1994.
HOFFMANN, G. R. Terra e espaço: um aprendizado de astronomia. In:
BAKOS, M. M.; CASTRO, I. B.; PIRES, L. A. (Orgs.). Origens do Ensino.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 63-100.
___. Resgatando a uranogeoscopia. In: FLORES, H. A. H. (Org.). RS: século
XX em retrospectiva. Porto Alegre: Ediplat, 2001. p. 165-202.
___. Uma ave celeste sobrevoa Porto Alegre. In: FLORES. H. A. H. (Org.).
RS: história, cultura e Ciência. Porto Alegre: Evangraf, 2002. p. 11-40.
___. Origem e evolução da América do Sul. In: FLORES, H. A. H. (Org.).
Integração 2002. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 9-31.
PAUVELS, P. G. J. Atlas Geográfico Melhoramentos. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1954, 1980 e 1989 (ed. 12, 41 e 52).
RODRIGUES, J. P. (Org.); BELLOMO, H. R. (Col.) et al. Brasil: Hinos &
Bandeiras Nacionais & Estaduais. Porto Alegre: Magister. 2001.
SIMIELLI, M. E. Geoatlas. São Paulo: Ática, 1988.
The eyewitness Atlas of the World. London: Dorling Kindersley, 1990.
Observações:
I. Fontes primárias das leis e decretos pertinentes: Diário Oficial e
republicações nos Anuários LEX.
141
II. Fonte adicional: Título FLAGS. In: Encyclopaedia Britannica.
142
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146
147
10
SOCIEDADE OITOCENTISTA II
________________________
Hilda Agnes Hübner Flores ∗
Abordamos em volume anterior da coleção Integração, as “Mulheres
e mujeres que construíram a história”, e em 2002 analisamos as ainda
grotescas condições de vida dessas mulheres e do povo em geral que viveu
na primeira metade do século XIX, fase que o historiador uruguaio José Pedro
Barran denomina de “bárbara”, ainda carente de regramentos modeladores da
sociedade organizada: higiene, medidas sanitárias, educação, recreação...
O altíssimo índice de mortalidade levou o povo a banalizar a morte,
encarando-a como algo corriqueiro, agente de entretenimento. A criança
falecida era vista não como uma perda, mas como um anjinho que precede os
pais ao paraíso e, em torno do minúsculo corpo, colocado no centro da sala,
se bailava e se bebia, comemorando o evento. Esses “festejos da morte”,
irregulares mas freqüentes, somados aos feriados religiosos e cívicos,
atingiam a elevada soma de 80 feriados anuais no Uruguai — uma forma de
driblar o enorme ócio gerado pela superabundância de gado, cuja carne
alimentava todas as camadas da população. Bastavam três dias de trabalho
semanal para se viver, até mesmo na camada pobre da população, receptora
das sobras da abundância.
A “barbárie” aos poucos foi absorvida pelo “disciplinamento”, no
segundo meado oitocentista, quando a sociedade dos países do Mercosul se
modernizou, por efeito de inventos científicos que transformaram para melhor
as condições materiais e espirituais do povo: ferrovia, navegação a vapor,
∗
Historiadora. Presidente da Academia Literária Feminina do RS. Rua Aurélio Bitencourt,
219/401, CEP 90430-080, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mali: [email protected]
148
saneamento com instalação gradativa de redes de esgoto e pluvial... É a fase
que enfocamos aqui.
Renovação
Com os avanços das ciências e as decorrentes mudanças de hábitos,
a vida privada, até então impregnada de violência e assassinatos,
desnudando
sem
pudor
sentimentos
primitivos,
passou
a
um
tom
paulatinamente mais “civilizado”, face a novas regras tendentes a regular o
viver em sociedade.
A mudança foi um trabalho lento, de equipe. A Igreja teve papel
importante. Em vez de padres adeptos de vida fácil, cuidando de enriquecer
em vez de zelar pela salvação dos fiéis, surgem no Uruguai expoentes
clericais com liderança positiva. Além dos curas nos confessionários e
púlpitos, concorreram também os mestres nas escolas, os médicos nos
consultórios, os pais de família investidos de autoridade perante mulher e
filhos, o governo através da Polícia e os políticos no parlamento ou através da
imprensa (Barran, 1991, p. 34).
Regulamentando a morte
Igreja e governo buscaram domínio sobre o ritual “bárbaro” da morte,
visando coibir a exibição desbragada dos sentimentos. Os enterros não mais
seriam no interior das igrejas, mas no cemitério ao lado, sendo que no Brasil
havia separação entre pessoas livres e escravos. Anúncios fúnebres
uruguaios passaram a estampar o emblema da cruz em lugar de imagens
macabras. Em 1861 a Igreja de Montevidéu proibiu missas de corpo presente
e a condução de cadáveres a descoberto; em 1886 foi vedada a venda de
bebida alcoólica, a 2 de novembro, na frente dos cemitérios. Escolares não
mais afluíam aos enterros de crianças, reduzindo a freqüente suspensão de
149
aulas e preservando-os do mau exemplo de atitudes liberais por parte da
população adulta. A Igreja generalizou o uso da água benta, sem se dar conta
do aspecto de falta de higiene que representa (Barran, 1991, p. 12, 13 e 49).
Moral
Para sanear os costumes, a Igreja antepôs o conceito de família
estável à concepção de amor livre do período “bárbaro”. Reforçou-se o
conceito de amor e respeito mútuo. Era conceito ideal de família, segundo o
periódico montevideano Lucha Obrera, em 1884: Atraídos por um profundo e
recíproco afeto, os dois seres se unem para passar toda a sua vida juntos (...)
para elevar os filhos no seu amor (Barran, 1991, p. 30).
O bispo Jacinto de Vera (1860-81) trabalhou em comunhão com a
polícia pela implantação do “puritanismo” sexual, impondo com rigor a
separação de sexo nos banhos de mar. À mulher católica cabia ser modesta
no vestir, guardando o pudor no traje e gastando com parcimônia o dinheiro
ganho pelo trabalho do marido (Barran, 1991, p. 12 e 25).
A antiga “barbárie” passa a ser encarada como pecado e, como tal,
precisava ser controlada. Crianças, jovens, mulheres e setores populares
passam a ter “proteção” oficial, como a parte fraca da sociedade que
encarnam (Barran, 1991, p. 26).
Adultério
A moral distinguia entre os sexos, com larga vantagem para o
homem, detentor de mais liberalidade que a mulher, dentro da máxima
pregada desde o séc. XVII pelo moralista luso, Pe. Antônio Vieira: Os
pecados contra a castidade são igualmente graves perante Deus, para
homens e mulheres, mas nas mulheres, ainda que veniais, tiram a honra e
nos homens não, ainda que mortais (Flores, 1999, p. 1164; Vieira, 1951, v. 9,
150
p. 18-20). Dois séculos mais tarde, o deputado argentino Enrique Perod,
preocupado em preservar o bom nome das famílias, continua reforçando o
duplo aspecto da moral: a mulher com limites restritos ao lar, pois seus
filhos, mesmo os ilegítimos, nascem sempre dentro do espaço doméstico, o
que não acontece com os filhos ilegítimos do homem. Por isso, em 1880,
Perod repete as palavras de Vieira: EI adultério de la mujer es más grave
que el del hombre. En efecto, el deshonor de la mujer repercute en la familia
(Barran, 1991, p. 72).
O adultério feminino, principalmente o da mulher burguesa, encontrou
dupla repressão: pelos valores morais do cristianismo e como forma de
controlar e fortalecer as fortunas, sustentáculo da burguesia. Os Estados
platinos, bem como o Brasil, criam toda uma legislação referente à herança,
que excluía e discriminava os filhos ilegítimos.
Isto deu sustentáculo a que durante séculos muito assassinato de
esposa fosse cometido em nome da “legítima defesa da honra”, argumento
machista acolhido pelos tribunais, que absolviam sistematicamente o marido
assassino. Esse hábito continuou a vingar entre nós séc. XX adentro, até que
a Constituição de 1988 modificasse oficialmente esse quadro no Brasil, dando
iguais direitos a homens e mulheres perante o Código Penal.
Confissão
No século XIX sobreviviam resquícios dos tempos coloniais, quando a
confissão teve o efeito de permitir à mulher, habitualmente reclusa, de sair do
espaço doméstico para se dirigir à igreja. Por outro lado, a confissão tornavase momento de conflito de sentimentos adormecidos, notadamente quando el
confessor con suas preguntas inquisitoriales sobre la matéria delicadísima de
la sexualidad, alertaba, enardecía e pervertia a la esposa e hijas (Barran,
1991, p. 63). No Brasil se registraram algumas dezenas de casos de padres
151
pouco criteriosos nos confessionários, que acabaram caindo nas malhas da
Inquisição que da Metrópole estendeu seus tentáculos à Colônia.
Contra a “liberdade exagerada” da mulher zelava o bispo do Pará, D.
Francisco Manuel de Melo: ... os contatos com o confessor, as idas à igreja ou
a participação em festas devem ser dosadas pelo marido, investido de
autoridade paratal (Algranti, 1993, p. 116).
Recreação
A polícia uruguaia combatia costumes “bárbaros” que insistiam em
perdurar, como a longa duração e os excessos do carnaval, tradicional feriado
nacional de festejos e desatinos populares. Em 1873 proibiu o jogo da água,
que renasceu com intensidade nos anos 90, quando a população, inclusive
mulheres, eram saudadas com baldes de água, bombas tremendas, ovos
naturais e artificiais e tomates... O controle mais efetivo dos excessos
carnavalescos foi processo moroso (Barran, 1991, p. 12 e 31).
O baile era outra das poucas formas de recreação do século XIX. A
presença do rapaz precisava ter o aval do chefe da casa, como candidato
nato a genro que era. Nas danças houve avanços ousados, com polcas e
valsas que permitiam escandalosa aproximação, o rapaz enlaçando
ousadamente a cintura da moça. A bebida era vinho ou cachaça, pois ainda
não havia refrigerantes.
Positivismo
No Rio Grande do Sul houve um grande reforço aos princípios
moralistas da Igreja e também da maçonaria, com o positivismo comtiano.
Júlio de Castilhos, seu propagador-mor, quando assumiu o governo do
Estado em 1893, implantou a industrialização como meta de progresso, por
152
mãos masculinas. À mulher delegou a tarefa de guardiã da moral.
Confinando-a ao espaço doméstico na condição de “rainha do lar”, devia
cuidar do marido, educar os filhos homens para futuros soldados da pátria e
mantenedores do lar, e as filhas, como continuadoras de sua obra doméstica,
abrigadas das tentações que o mundo exterior oferece.
O jornal Corimbo de Rio Grande, em junho de 1901 estampa o artigo
“Original contrato de casamento” no qual o noivo Ferdinando Martino, de Bagé,
RS, exigia que sua noiva assinasse unilateralmente um contrato que deveria
regular a vida do casal. O art. 9° detalha as atribuições cotidianas da rainha do
lar: Serei a primeira a erguer-me do leito ao despertar do dia, para aprontar o
café, arrumar a casa, dar ordens à criada, observar o asseio da cozinha, dos
pratos, panelas, xícaras, talheres; limpeza dos aposentos e do pátio, assim
como determinar o preciso para o almoço e o jantar, e não consentirei que
criadas levem trouxinhas para casa (Flores, 1994, p. 53). O jornal informa ainda
sobre o malogro da noiva que se recusou a assinar o contrato.
Estudo
O Uruguai em 1877 tornou obrigatório o ensino primário, tirando das
ruas e do ócio crianças de ambos os sexos (Barran, 1991, p. 12). No Rio
Grande do Sul, quando Júlio de Castilhos propôs a meta de industrialização, a
quota de 74% de analfabetismo não coadunava com o progresso a ser
atingido. Era precisa alfabetizar. O salário tradicionalmente precário, afastou
os homens do magistério, de sorte que coube à “rainha do lar” somar tarefas,
cumprindo com os filhos alheios a mesma missão educadora que exercia com
os seus, com a vantagem de trazer alguma remuneração para casa, fato bem
aceito pelos abalizados chefes de família, mantenedores do lar.
Estabeleceu-se correlação entre ensino e moral, orientação seguida
pelos livros didáticos portenhos: “Da, oh Dios, a las fuentes água (...) Da la
153
salud al enfermo, pan al mísero mendigo (...) Haz que mis padres e hermanos
(...) tengan salud y fortuna y estén contentos conmigo” (Barran, 1991, p. 47).
O procedimento e as diversões das crianças eram controladas, valorizando-se
a aplicação ao estudo. A Igreja abalizou esta medida. As Congregações
religiosas, dedicadas ao magistério, aplicavam vastamente o ensino moralista.
Alfabetizavam-se as meninas e se lhes ensinava prendas domésticas.
Em Porto Alegre, as Escolas Técnicas Ernesto Dornelles e Darcy Vargas,
ambas estaduais, adentraram século XX nesta modalidade de ensino. Às
meninas uruguaias ensinava-se princípios de limpeza no arranjo da casa, da
roupa e dos alimentos. Emma Catalá de Princivalle, em seu manual “Lições
de Economia Doméstica”, prescreve a limpeza quinzenal da casa e da
cozinha a cada semana, devendo-se sacudir, barrer, lavar, fregar y limpiar
todo cuidadosamente, no dejando un solo objeto ni un solo rincón sin haber
recebido la benéfica caricia de la escoba, el cepillo, el água, la lejía o el jabón
(Barran, 1991, p. 48).
As exceções
Algumas raras mulheres entre nós tiveram acesso à cultura desde as
primeiras décadas oitocentistas, como Ana de Barandas com seu aspecto
reivindicativo, já citada em trabaIho anterior. Em 1869 iniciou em Porto Alegre
a Escola Normal, atual Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha,
preparando professorado. Sobressaiu na primeira turma a enjeitada Luciana
de Abreu, professora bem-sucedida com uma centena de alunos em sua
escola particular e que brilhou na tribuna da douta Sociedade Partenon
Literário ao pregar a igual capacidade intelectual entre meninos e meninas,
que necessitam apenas de iguais chances para se desenvolver.
Apesar dessas vozes isoladas, o estudo das meninas continuava
direcionado para as funções do lar, de esposa e mãe. Só ao final do século
154
XIX fala-se em capacitação profissional, caminho para a autodeterminação. O
clamor parte de mulheres feministas, raras no começo, como a argentina
Joana Manso (1819-1875), exilada da política de Urquiza, que levou sua
experiência aos países do Conesul: no Uruguai fundou o Álbum de Señoritas,
de reivindicação de direitos femininos; em Pelotas, RS, foi redatora do jornal
A Imprensa e no Rio de Janeiro fundou o Jornal das Senhoras (1852-55), no
qual defende a educação feminina como forma de emancipação do marasmo
e subserviência em que jazia a mulher. Em Buenos Aires, para onde
regressou já separada do marido e com duas filhas, em 1853, fundou um
colégio para meninas e batalhou por bibliotecas escolares. Em 1864 fundou e
redigiu o La Siempre Viva, jornal que lutou pela emancipação feminina, mérito
que lhe deu ingresso na Sociedad Estímulo Literário. Sua luta prosseguiu nas
páginas de La Flor del Aire (Auza, 1988, p. 17, 33, 64 e 196).
Entre nós, a rio-pardense Ana Aurora do Amaral Lisboa (18601951), dramaturga, jornalista e política, reagiu à prisão dos irmãos, a
mando de Castilhos no início da Revolução Federalista. Punida com
remoção do colégio público onde ingressara por concurso, demitiu-se e
abriu educandário particular para melhor defender direitos de liberdade, de
ensino para meninas e a abolição da escravatura, que não coadunava com
seus ideais de educadora. Defendeu também o direito de voto feminino e,
coerente com a posição maragata que assumiu, exaltava em versos os
chefes revolucionários de 1893.
As irmãs Revocata de Mello (1853-1944) e Julieta de Mello Monteiro
(1860-1928), poetisas e dramaturgas, mantiveram na cidade portuária de Rio
Grande o jornal Corimbo, que espelhou os avanços e recuos da sociedade e
da jornada evolutiva da mulher. Foram 60 anos de depoimentos (1883-1943)
que pedem reedição a bem da memória cultural do Rio Grande do Sul e do
país — tarefa afeta aos órgãos públicos, que a podem viabilizar através de
incentivos fiscais.
155
Sufragistas
A par das feministas surge, originário da Europa, e se intensifica,
um novo aspecto reivindicatório: o clamor das sufragistas, que viram no
direito de voto para escolha dos dirigentes do país uma maneira de
alcançar o equacionamento das questões sociais básicas. Congressos
sufragistas lutam por esta nova meta, com manifestações radicais, como
sói
acontecer
em
todo
início
de
reivindicação.
Enfrentando
o
conservadorismo masculino, reivindicam direito ao trabalho remunerado,
fonte da verdadeira emancipação social.
Em Montevidéu a reação foi forte. Em 1911 o conservadorismo
masculino e o medo de mudanças produziu afirmações como esta: o
sufragismo não interessa às mulheres daqui, porque vivem todas elas muito à
vontade no seio de sua família, cuidando dos filhos e acariciando ilusões
sobre o porvir. As que, em diferentes nações européias têm abraçado com
frenesi o sufragismo, são em sua totalidade mulheres que suportam as
terríveis conseqüências de uma péssima eleição conjugal e que não
esperavam nada dos afetos de uma família, nem das delícias do amor
(Barran, 1991, p. 30). No Brasil tiveram êxito com a aprovação do voto
feminino, em 1932.
Condições sanitárias
A descoberta bacteriana na base das infecções, a pasteurização e a
invenção da vacina datam de 1860-90, mas esses avanços científicos só se
propagaram efetivamente a partir da II Guerra Mundial. Crianças continuavam
morrendo às centenas e o aborto foi encontrado como forma “civilizada” para
controle dos inúmeros nascimentos (Barran, 1991, p. 14). A Igreja não o
endossou, porém, a prática se vulgarizou.
156
Igreja e médicos associavam o excesso sexual à tuberculose. O
deputado médico uruguaio, Jacinto de Leon, sustentava em 1885 que os
adolescentes que se entregam aos prazeres sexuais facilmente contraíam a
tísica. O sexo extenua e os jovens necessitam de freqüentes tônicos, assim
como as “senhoras delicadas” e os idosos debilitados, todos alvo fácil da
tísica. O Nuevo Catecismo de Montevidéu, 1893, valorizou o casamento —
civil e religioso, ambos indissolúveis — e combateu o “pecado desonesto”,
que embota as faculdades intelectuais, mina a saúde física e antecipa a
morte. A mulher, movida pelos sentimentos e frágil ante a paixão, continuava
carecendo de vigilância permanente, quando menos para garantir a
legitimidade da prole (Barran, 1991, p. 69-72).
No Brasil o manual Saúde das creanças, do jesuíta Sebastião Kneipp,
publicado em Porto Alegre, 1898, assevera rigorosa vigilância dos pais sobre
os filhos adolescentes, controlando seus movimentos e suas saídas de casa.
Más companhias induzem ao pecado, assim como a masturbação, que deixa
o rapaz pálido e com olhar lânguido, andar indolente e movimentos
efeminados, voz rouca e hálito fétido... Para evitar a tentação do pecado, o
adolescente não deve andar de mãos nos bolsos nem escorregar no corrimão
de escada. Dê-se-lhe ocupação constante, intercalando esforço intelectual
com trabalho físico, de maneira que à noite cala exausto na cama e durma.
Ao acordar, não deve permanecer na cama, porque induz a maus
pensamentos.
Higiene
Kneipp, introdutor da “cura pela água”, atual SPA, Saúde per aquam,
usual na Alemanha de nossos dias, direcionou seu manual à mulher,
responsável pela aplicação da medicina caseira. Nele apregoa a necessidade
diária de lavar cabeça, rosto e mãos e receita o banho sob três modalidades:
157
o de regador, do joelho para baixo; o banho de imersão “até o sovaco” e o de
imersão total. O banho é sempre frio porque o calor efemina e enfraquece
corpo e alma.
A escritora uruguaia Emma Princivalle reforça em 1905 a necessidade
de se superar os longos séculos em que se conviveu com odores inmorales y
asqueantes exalados pela sujeira do corpo. Reforça a necessidade de asseio
escrupuloso en la boca, Ia cabeça, las manos, los pies, el cuerpo todo.
Aconselha o banho inteiro, em água pura, diário no verão e semanal no
inverno Barran, 1991, p. 48).
Ainda no raiar do século XX, pequenos anúncios no centenário jornal
Correio do Povo de Porto Alegre, dão conta de doenças endêmicas por
debelar: Rio, 21: O governo publicou decreto considerando sujo o porto de
Buenos Aires e suspeitos os portos do Paraná e os argentinos do rio da Prata,
por motivo da peste bubônica (23.4.1902).
Em 6.9.1903, a Diretoria de Higiene informa o estado sanitário da
quinzena anterior: 13 moléstias transmissíveis: 7 de tuberculose, 8 de difteria,
2 de septicemia e 1 de febre tifóide. Em Montevidéu a influenza grassava com
intensidade, com cerca de 10 mil pessoas acometidas na Capital e 50 mil no
território uruguaio, e no Rio de Janeiro grassava a varíola e recrudesciam os
óbitos por peste bubônica (23.8.1903).
Na imprensa eram comuns reclames de tônicos e fortificantes
capazes de combater anemias e dar vigor ao corpo, para enfrentar o
fantasma da tuberculose ou males como a pobreza do sangue, o raquitismo,
constituições linfáticas débeis... Surgem cuidados com a beleza feminina,
como cremes, ondulação de cabelo a vapor... Aqui como nos países do Prata,
o corpo feminino modelo devia ser rechonchudo desde criança, corpo de
respeitável matrona, pois, la falta de carne significa falta defuerzas (Barran,
1991, p. 51).
158
Na virada do séculos XIX e XX surgem nas residências opulentas as
primeiras banheiras com torneira de água corrente, sem que se fizesse dela o
devido uso, por desconhecimento e crendices, sendo voz corrente que o
banho de imersão podia provocar esterilidade. Ilustração dessa época mostra
a empregada esfregando as costas da mocinha em pé, do lado de fora da
banheira, usada como mera bacia gigante!
Contudo, apesar da onda de limpeza e higiene apregoadas, das
melhorias sanitárias e dos inventos científicos de natureza vária, continuavam
proliferando microorganismos e pragas de insetos como percevejos, bichosde-pé, piolhos e outros, mostrando que muito estava por fazer. Enfermidades
como tuberculose, sífilis e gonorréia persistiram século XX afora, molestando
e ceifando vidas.
Ao ócio, jogo e sexualidade, opôs-se o trabalho (apresentado como
virtude e não mais como desprazer), disciplina, pontualidade e higiene do
corpo. A pobreza passou a ser vista como fruto da ociosidade do indivíduo e a
esmola perdeu seu aspecto de obrigatoriedade religiosa. A Casa dos
Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre é exemplo disso. Se
antes padrinhos e madrinhas acorriam prestativos ao ato de batismo e
endossavam o dever moral de auxiliar na criação do afilhado, ao final do
século XIX essa obrigatoriedade tornou-se preceito vago e a Santa Casa teve
de apelar para seus funcionários para batizar os menores abandonados,
conforme evidenciou levantamento procedido nos Livros de Registro dos
Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Mulher
No início do período aqui enfocado, condenava-se o luxo e gastos
fáceis, pois competia à mulher virtuosa ser econômica e ordeira, não
esbanjando o dinheiro do marido. A uruguaia Adela Correge, em sua novela
de 1885, Tula y Elena o sea el orgullo y la modéstia, considerava o luxo como
159
verdadeiro corruptor da sociedade. Economizar tostões em guloseimas ou
adornos equivalia a juntar reais, pela poupança continuada, na visão de
Monsenhor Mariano Soler, que em carta pastoral sobre o matrimônio, em
1890, afirma: A economia é a fonte da opulência, da verdadeira generosidade
e da fortaleza da alma, enquanto o gasto fácil conduz ao servilismo e à
baixeza (Barran, 1991, p. 43-44).
Mas, ao final do século XIX, muito por conta do positivismo castilhista
que implantou a alfabetização no Rio Grande do Sul por conta do magistério
feminino,
o
trabalho
remunerado
tornara-se
já
tímida
realidade.
Excepcionalmente alguma mulher exercia profissão técnica, como a médica
Maria Generoso Estrella, primeira médica formada no Brasil e que praticava
ginecologia em seu Estado, o Rio Grande do Sul.
A remuneração assegurava independência e autodeterminação à
mulher, se comparado à total dependência de séculos anteriores. As duas
guerras mundiais, no séc. XX trariam poderoso reforço neste sentido,
impulsionando a mulher às fábricas para suprir a produção européia afetada
pela guerra. Ao mesmo tempo, a partir da década de 1940, começam a surgir
Faculdades freqüentadas por um número majoritário de mulheres, a maioria
de feição humanista. O ingresso no campo técnico seguiria. Mas esta é nova
fase, a da conquista da tecnologia.
Referências
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1993.
AUZA, Nestor Tomás. Periodismo y feminismo en la Argentina: 1830-1930.
Buenos Aires: Emecê Editores, 1988.
160
BARRAN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. Montevidéu:
Ediciones de la Banda Oriental, 1991. Tomo 1: La cultura bárbara: 1800-1860.
Tomo 2: El disciplinamiento: 1860-1920.
CORIMBO — Jornal feminino de Rio Grande, RS, jun. 1901.
FLORES,
Hilda
A.
Hübner.
Presença
literária.
Porto
Alegre:
Nova
Dimensão, 1994.
___. Sermões de Pe. Vieira. In: Terceiro Centenário da morte do Pe. António
Vieira. Braga, Portugal: Univ. Católica, 1999.
VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões. Porto: Lello & Irmão, 1951. 15v.
161
11
ARQUITETURA E ESCULTURA
BARROCA NO BRASIL E NO
RIO GRANDE DO SUL
____________________
Thiago Nicolau de Araújo ∗
O contexto socioeconômico do Brasil colonial foi propício ao
desenvolvimento do barroco, essencialmente ligado à religião católica. Além
das igrejas, vemos diversas construções civis com as características do
barroco 1 , mas as edificações religiosas constituem a maior parte das
manifestações deste estilo artístico.
O Brasil por ser uma colônia riquíssima na cultura e comércio do
açúcar e pela mineração, deveria produzir um barroco rico em sua
ornamentação, como vemos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na Bahia.
Mas nem sempre a arte foi assim representada, pois houve regiões onde as
condições socioeconômicas determinaram outros tipos de construções, com
expressões artísticas mais modestas. Com isso percebemos dois pólos do
barroco no Brasil, um rico e ornamentado e outro mais pobre e modesto.
As regiões auríferas do Brasil provocaram a primeira corrida do ouro
no mundo ocidental, seguida mais tarde pelos Estados Unidos e no Século
XIX na África do Sul e Alasca. Esse ouro foi o primeiro grande fluxo que a
Europa recebeu. Com isso surge espetaculares construções nos locais de
extração aurífera, como Minas Gerais, que tornou-se o principal foco do
barroco no Brasil.
∗
Licenciado e Bacharel em História pela PUCRS. Professor do Ensino Médio. Mestrando em
História pela PUCRS.
1
Para aprofundar o assunto, ver: BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. São Paulo:
Nobel, s/d.
162
Mas como o das demais partes da América colonial, o ouro brasileiro
foi de aluvião e por isso se esgotou com relativa rapidez. Esse ouro não
acabou de repente, foi escasseando aos poucos e como conseqüência, se
incrementavam as técnicas de extração que perduraram entre o século XVIII
e XIX, até meados de 1820 2 . Com a vinda da família real para o Brasil em
1808, os recursos voltam-se para o Rio de Janeiro, capital na época. Com
isso estabelece-se aos poucos a decadência econômica e social dos centros
de mineração. Com a República, acentua-se essa situação, e o barroco perde
sua condição socioeconômica de desenvolvimento.
A Companhia de Jesus foi a primeira a empregar a arquitetura do
barroco, lançando-se na luta pela catequese indígena. Seus membros
estavam entre os primeiros a chegar no Brasil Colônia. Algumas de suas
construções datam do Século XVII.
Das obras de arte realizadas no início do século XVI, nada restou,
porque Portugal só se preocupou realmente com o território descoberto na
segunda metade do século, quando então se pensou seriamente numa
organização central da colônia e só então começou a surgir um movimento
cultural e artístico, sendo essencialmente introduzido pelas ordens religiosas.
A Igreja utiliza o barroco a partir da contra-reforma, e, ao contrário do
que os protestantes condenavam e aboliram, o lado católico exaltou. Os
protestantes negavam a santidade da Virgem Maria e dos santos, e
apresentavam simplicidade nos templos. Os católicos reagiram, reforçando o
conceito da Imaculada Conceição e enalteceu o papel dos seus santos e
mártires, além de promover a pompa nas cerimônias religiosas, com templos
suntuosos, para exaltação de Deus e dos santos. Isso deu ao barroco um
campo imenso e fértil, onde proliferou e dominou totalmente. Temos como
exemplo a Basílica de São Pedro, em Roma.
2
PRADO JUNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins Editora, 1942.
p. 168.
163
O Brasil colônia foi uma imagem refletida da metrópole (Portugal),
apenas reproduzindo seus usos e costumes. Com a mesma religião
controladora administrada pelas ordens religiosas, jesuítas, franciscanos e
beneditinos usaram a arma da excomunhão para controlar a população e
mesmo a coroa. A interferência era tanta que vemos referências
testamentárias incluírem sempre “às justiças reais e eclesiásticas” 3 .
Os membros das ordens eram constantemente removidos da
metrópole para a colônia e vice-versa. Nestas ordens haviam professores de
vários países, em geral muitos deles artistas ou bons artesãos. Desse modo,
inseriram no Brasil as técnicas aprendidas na Europa.
Os jesuítas tinham como principal preocupação a catequização,
usando para isso o discurso, sermões e autos teatrais e neste contexto a
construção de igrejas foi parte desta prática. Já a ordem beneditina produziu
templos caracterizados pela monumentalidade e pela suntuosidade barrocas,
além de esculpir as imagens no Brasil, sendo que a grande maioria vinha
ainda da Europa. Os franciscanos tiveram suas manifestações artísticas
restritas ao interior de seus conventos, que tinham como característica os
frontispícos decorados, a cruz de pedra no adro, e usavam geralmente a
pedra e cal, como por exemplo, o Convento de São Francisco, em São Paulo.
No princípio, as construções foram provisórias e precárias, muitas
feitas já com o propósito de serem reconstruídas por outra maior, como por
exemplo, a Igreja matriz de N. Sra. da Conceição, em Viamão, RS. Usava-se
a taipa de pilão e adobe, e nas construções em orla marítima, utilizava-se a
pedra e a cal. Por isso, muitas edificações tiveram uma vida limitada, logo
ruindo, verificando-se isso principalmente nas missões do RS.
Com o esgotamento do ouro no Brasil, as construções barrocas
acabaram, muito pela falta de condições financeiras para sustentar o
3
ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: psicologia e remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato
Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São Paulo: Melhoramentos/Ed. da
Universidade de São Paulo, 1974. p. 44.
164
esplendor das igrejas, mas também pela implantação do neoclássico, onde se
retoma os atributos artísticos clássicos e renascentistas, além de não
necessitar de grande ornamentação decorativa.
Desse modo, muita coisa caiu em ruínas pelo abandono e muito mais
foi destruído por conta do falso conceito contra o barroco na época. As
exigências da urbanização e a valorização territorial das cidades contribuíram
para o desaparecimento desse estilo, sendo que, o que restou, deve-se ao
interior do pais, pois com o abandono da população que foi para cidade,
muitas regiões não se desenvolveram, e assim todo acervo artístico acabou
se autopreservando.
O barroco colonial evidenciou-se primoroso nos trabalhos em canto
(pedra lavrada) e talha (madeira esculpida). Decorava-se relativamente pouco
o exterior nas partes relativas à fachada, padieiras (molduras que envolviam
as janelas) e portadas.
A arte colonial brasileira é essencialmente religiosa e a arquitetura é a
sua maior manifestação, estando ligados a ela a talha, a pintura, a ourivesaria
e a azulejaria.
Os mais antigos materiais usados na construção de igrejas foram
pedra, cal e taipa-de-pilão (argila amassada entre tábuas). Os retábulos
tinham decorações enquadradas dentro de molduras simétricas, ainda com
influências clássicas e renascentistas.
As primeiras manifestações arquitetônicas começam durante o
governo de Tomé de Souza, em 1549, e se estende até meados do século
XVII. A primeira igreja construída em Salvador era recoberta com folhas de
palmeira. Somente em 1561 surge a primeira igreja construída inteiramente
de pedra e cal, a atual catedral de Salvador.
A tradição arquitetônica brasileira está ligada à evolução da
arquitetura portuguesa, sendo que as primeiras construções não são nada
mais que uma extensão do modelo português.
165
Aos poucos, no entanto, foram surgindo diferenças entre o Reino e
a Colônia, diferenciando no uso de materiais próprios, técnicas mais
simples aprendidas com o contato com os índios, além de dificuldades
locais que os arquitetos tinham que solucionar, dessa forma criando uma
arquitetura luso-brasileira.
Apenas no século XVIII aparece realmente uma arquitetura colonial
brasileira, a chamada escola mineira, em especial, nas obras de um mestiço
nascido em Vila Rica, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Esse mestre
do barroco brasileiro consegue dominar a arte dos mestres toreutas, baianos
e pernambucanos, renovando-as e apurando-as. Educado na arte da
torêutica por seu pai e por outros mestres, tornou-se mais célebre que seus
mestres. Como entalhador, enriqueceu os interiores e frontispícios de igrejas
com numerosos trabalhos de talha, tanto em madeira como em pedra; como
escultor, foi criador das decorações ornamentais das fachadas, o estatuário
das três figuras centrais nos Passos do Santuário de Congonhas, que são
obras de arte esculpidas em pedra sabão 4 .
O último período da arquitetura colonial brasileira, o que se inicia na
metade do século XVIII e começo do século XIX, demonstra um crescimento
da escola mineira. Salvador, capital do Vice-Reino, tornou-se o centro de
grandes edificações inspiradas nos modelos da Metrópole.
A riqueza das minas de ouro descobertas pelos bandeirantes no fim
do século XVII, fizeram de Ouro Preto um dos lugares mais ricos do mundo,
produzindo no espaço de um século, uma série de monumentos que mostram
toda a evolução da arquitetura colonial brasileira, mostrando um típico
exemplo do barroco nacionalizado.
O estilo barroco, prevalecente nas igrejas coloniais, pretendia
induzir o crente a um êxtase celestial, como se o paraíso estivesse sendo
4
AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos/ Ed. da Universidade
de São Paulo, 1971. p. 447.
166
recriado no interior do templo. Ao mesmo tempo, o fiel deveria sentir-se
empolgado, extasiado, humilhado e oprimido diante daquela manifestação
de poder e magnificência.
Neste sentido, as igrejas eram pontos de convergência do povo e
todos seus elementos tinham significância. O púlpito era importante, visto que
o sermão se constituía num elemento de mobilização da opinião pública.
Embora ainda muito rígidas na fachada, as primitivas igrejas já eram bem
decoradas no interior.
Dentro das igrejas, houve os espaços necessários para a
imaginação do artista colonial, mesmo quando muito já vinha pronto de
Portugal. Proliferaram azulejos, volutas e espirais. O decorativismo
assumiu um caráter minucioso e requintado, fundindo-se arquitetura,
escultura e pintura para oferecer um efeito global. A santuária 5 legou
obras de inestimável valor para a cultura brasileira e a torêutica 6 teve
grande importância na decoração e os nichos, lugar onde se colocavam as
imagens sobre os altares, eram envolvidas pelos retábulos, molduras
muitas vezes suntuosamente decoradas.
A escultura no Brasil desenvolveu-se segundo o modelo português,
tendo como característica mais original os interiores decorados com talha
dourada e policromada, ocupando todos os espaços interiores das igrejas.
A igreja dourada foi a maior inovação do barroco português, onde a
talha dourada recobria toda igreja. Esses interiores irão influenciar as colônias
na Índia e no Brasil.
Os primeiros artistas são jesuítas ou beneditinos formados nos
próprios conventos, ou artesãos educados pela ordem. Os primeiros centros
de arte estão localizados perto da costa, em Pernambuco e Bahia, Rio de
5
Santuária é o conjunto de ornamentos que compõe a decoração de uma Igreja, incluindo
imagens, pinturas, etc.
6
Torêutica significa a arte de gravar, cinzelar e esculpir em metais, marfim e madeira.
167
Janeiro e só mais tarde chega para o centro em São Paulo e por último no Rio
Grande do Sul.
As esculturas quando começaram a ser feitas no Brasil, assumiram
um caráter realista, tornaram-se policromadas, com articulações e cabelos
humanos. A função didático-pedagógica levou à exploração das expressões
faciais e dos gestos, enfatizando-se a dor e morte e criando-se uma
encenação densa e teatral, conforme a tendência barroca de valorizar ao
máximo a retórica visual.
Unindo as pessoas através de uma combinação de emoção e
piedade, a estatuária barroca veio a ser um compromisso de fé, um
instrumento de coesão social e, estimulando a devoção, teve uma função
mais catequizadora do que estética 7 .
Enfim, tudo convergia para fazer do catolicismo um espetáculo e
uma encenação, incluindo procissões, música, novena e sermões. Nesse
processo, cabia ao artista plástico fornecer o cenário adequado à
cerimônia, reforçando a ideologia vigente com toda a carga de solenidade,
magia e sedução.
O barroco no Brasil sobreviveu por mais de 60 anos ao europeu, pois
Aleijadinho continuou trabalhando neste estilo em suas geniais produções até
o ano de sua morte, em 1814. Muitas igrejas só foram terminadas durante o
início da República. Em conseqüência disso surge o termo barroco tardio.
No Rio Grande do Sul o barroco em geral possui uma simplicidade
na fachada e suntuosidade no seu interior. Isso se explica pelas
dificuldades encontradas na obtenção de recursos para a ornamentação
das fachadas e exteriores das igrejas, pois não se contava com recursos
humanos e materiais, sobretudo a pedra. No entanto havia facilidades
7
LOPEZ, Luis Roberto. Cultura brasileira: das origens a 1808. Porto Alegre: Ed. da Universidade,
1988. p. 47.
168
para a decoração do interior, pela abundância de madeiras próprias para a
talha e de ouro para a sua douração 8 .
A pedra era escassa no interior da Colônia. além de ter seu transporte
muito dificultado pela falta de condições estruturais (estradas, meios de
transporte, etc.). Em Minas Gerais empregou-se a pedra sabão e o
itacolomito, no fim do século XVIII, sendo estes tipos fáceis de esculpir e
abundantes nesta região.
Essa diferença de contraste entre o exterior e o interior das igrejas
também tem outras explicações. Uma delas é a força que manteve a tradição
da arquitetura românica em Portugal, com suas estruturas sólidas, sóbrias e
maciças. Outra é a austeridade do exterior de nossas igrejas enquanto
expressão de uma sociedade local mais rústica e menos refinada que suas
semelhantes européias 9 .
Durante o governo de D. José, surge no cenário político da Europa o
marquês de Pombal, que exerce a função de Ministro do Estado do Reino.
Em relação à colônia, Pombal declarou a liberdade dos índios e sua
emancipação da tutoria jesuítica, levantando contra si os protestos da
Companhia de Jesus, que passa a criticá-lo. Começa então uma luta entre o
marquês e os padres, que o acusavam de ser contrário à religião cristã. Em
1773 Pombal consegue fechar a ordem.
Esse anticlericalismo se reflete na colônia pela proibição da
construção de seminários e conventos, sendo mais um fator para explicar a
simplicidade das construções barrocas 10 . Por isso, salvo exceções, o aspecto
externo das igrejas coloniais do Rio Grande do Sul é simples e sem enfeites
decorativos, caracterizando o nosso barroco como pobre no exterior, e em
contraste, rico no interior das igrejas.
8
ETZEL, Eduardo, op. cit., p. 45.
LOPEZ, Luis Roberto, op, cit., p. 42.
10
FLORES, Moacyr, op. cit., p. 66.
9
169
Pela carência de recursos amplos, decorria largo espaço de tempo
entre o início da obra e seu acabamento final, sendo que as condições
econômicas de cada região sofriam alterações que levavam a acelerar ou
retardar sua edificação.
Como o Brasil sempre foi rico na madeira, o que faltou para o exterior
sobrou para o interior, a partir das monumentais portas esculpidas. Vê-se no
interior das igrejas a abundância de talha em cedro recamada de folhas de
ouro, o que é característico do barroco brasileiro.
Por essa dificuldade na obtenção de recursos destinados às
construções, houve um largo espaço de tempo entre o início e o fim de uma
obra, sendo que muitas vezes se iniciava com uma simples capela, que logo
ruía ou se desgastava, sendo substituída por outras reconstruções, e a data
de construção inicial acaba ficando como data da atual.
Portanto a maioria das igrejas no RS iniciava suas construções no
apogeu do barroco europeu, mas terminavam já no período neoclássico,
dessa forma aplicando-se bem o termo barroco tardio.
170
Fig. 1 Igreja N. Sra. da Conceição – Porto Alegre, RS.
Fig. 2. Porta
de entrada.
171
Fig. 3. Escultura em madeira do teto e arco do cruzeiro.
Fig. 4. Altar esculpido em madeira
172
Fig. 5. Igreja Matriz de Viamão, RS.
Referências
ALVIM, Sandra. Arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ/IPHAN, 1999. v. II.
AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos/Ed.
da Universidade de São Paulo. 1971.
173
BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, [s.d.].
ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: psicologia e remanescentes em São
Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São
Paulo: Melhoramentos/Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova
Dimensão, 1993.
GUIDO, Ângelo. Conceito do Barroco, In: Aspectos do Barroco I. Porto Alegre:
Ed. da Universidade. [s.d.].
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
LOPEZ, Luis Roberto. Cultura Brasileira: das origens a 1808. Porto Alegre:
Ed. da Universidade, 1988.
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo:
Martins, 1942.
WÔLFLLIN, Heirich. Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo
barroco e sua origem na Itália. São Paulo: Perspectiva, 1989.
174
12
AS COLÔNIAS DE
NOVA FRIBURGO (RJ) E TORRES (RS):
UM ESTUDO COMPARATIVO
_______________________
Marcos Antonio Witt ∗
O presente texto tem como objeto de estudo a comparação entre
as colônias de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e a de Torres, no Rio
Grande do Sul 1 . Os referenciais que servem de base para esta análise são
o artigo de Maria José Carneiro e as pesquisas que o autor vem
desenvolvendo desde a sua graduação em História. Ambas as análises
são complementadas pela historiografia da imigração alemã e por estudos
específicos pertinentes ao tema.
O texto de Carneiro faz uma varredura na história dos suíços e
alemães instalados em Nova Friburgo a partir de 1818. De maneira sintética,
pode-se dizer que a autora verifica a passagem dos descendentes destes
indivíduos de “colonos” a “jardineiros da natureza”, como consta no título de
seu artigo 2 . Embora a colônia alemã das Torres ainda não tenha atingido tal
processo, ou seja, os lotes coloniais na sua maioria continuam com a sua
função original — a produção de gêneros agrícolas —, o fracionamento das
∗
Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos — UNISINOS. São
Leopoldo/RS. Av. Henrique Bier, 2307, São Leopoldo/RS, CEP 93135-000. E-mail:
[email protected].
1
As colônias de Nova Friburgo (RJ) e Torres (RS) foram instaladas a partir de 1818 e 1826,
respectivamente. Ambas as colonizações integravam o projeto imperial de distribuir colônias
estrangeiras em pontos estratégicos do litoral do Brasil com o objetivo de povoar o território,
produzir alimentos e fornecer soldados para as tropas imperiais. Ver: LUNCKES, Mariseti Cristina
Soares. Um velho projeto com novos rostos: uma colônia alemã para a Ponta das Torres.
Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós Graduação em
História, UNISINOS. São Leopoldo, 1998.
2
CARNEIRO, Maria José. Descendentes de suíços e alemães de Nova Friburgo: de “Colonos” a
“Jardineiros da Natureza”. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). História de imigrantes e de
imigração no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 44-65.
175
propriedades agrícolas e a conseqüente dispersão dos descendentes destes
colonos são semelhanças encontradas nas duas colônias.
Pesquisando os Registros Paroquias da Lei de Terras (1850) e os
Livros de Tabelionato, foi possível constatar o que já se evidenciava em
pesquisas e estudos anteriores: desde a sua instalação, os colonos
começaram a vender, trocar e fracionar os seus lotes agrícolas. Além disso,
com um alto índice demográfico, rapidamente as terras tornaram-se
insuficientes para tantos filhos e para as gerações subseqüentes. Foi assim
que, num primeiro momento, os descendentes dos colonos de São Pedro de
Alcântara e Três Forquilhas 3 espalharam-se pelo restante do Litoral Norte do
Rio Grande do Sul (LNRS) e, também, pelos Campos de Cima da Serra (hoje
São Francisco de Paula, Lagoa Vermelha, Bom Jesus, Vacaria...).
Este mesmo fracionamento das propriedades agrícolas ocorreu em
Nova Friburgo, também ocasionado pelo grande número de filhos de cada
família, obrigando a busca por novos locais de moradia e de empregos
alternativos, quase sempre externos ao núcleo colonial. Tão importantes
quanto este são os outros motivos enumerados por Carneiro, os quais
colaboraram para o quadro degenerativo da colônia: o número de imigrantes
superior ao acordado, a topografia muito acidentada (região serrana), a
deficiência das acomodações para os colonos, a fragilidade dos meios de
comunicação com os centros urbanos e a ausência de uma administração
eficaz por parte do governo imperial, fatos que permitiram, desde logo, as
primeiras crises entre os colonos e as autoridades responsáveis pela
distribuição das terras (Carneiro, 2000, p. 45). Realidade idêntica à que os
colonos do LNRS viram-se confrontados.
3
A antiga Colônia Alemã das Torres foi dividida em dois núcleos: em São Pedro de Alcântara
ficaram os católicos, e em Três Forquilhas, os evangélicos. Cabe ressaltar que os motivos de tal
divisão foram o número excessivo de colonos remetidos à região e as cheias do rio Mampituba (o
qual separa os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina), que obrigaram o Tenente
Coronel Francisco de Paula Soares a buscar novas áreas para o assentamento dos colonos. Ver:
RUSCHEL, Ruy Ruben. Por que foram os colonos separados por motivos religiosos? In: ELY,
Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo. Porto Alegre: EST, 2000. p. 38-41
176
Os aspectos acima remetem ao questionamento principal que
permeia este texto: até que ponto o fracionamento das propriedades agrícolas
e a dispersão dos descendentes dos colonos contribuíram para uma ausência
de identidade social e uma memória genealógica curta — nas palavras de
Carneiro —, levando-se em conta que a “relação... do camponês com a terra
era um elemento fundamental para a criação de espaços de sociabilidade que
alimentam laços de solidariedade, definindo alianças e contribuindo para a
elaboração de identidades sociais” (Carneiro, 2000, p. 47 e 49).
O que Carneiro diz em relação a dois distritos de Nova Friburgo
equivale para São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas:
Tendo sua origem na primeira experiência oficial de colonização
de população européia no Brasil, os moradores dos distritos de
Lumiar e São Pedro da Serra guardam poucos registros dessa
história, a tal ponto que tratá-los, hoje, como ‘descendentes de
imigrantes’ é algo que soa um tanto distante e estranho a seus
próprios ouvidos. Apesar da pele clara, dos olhos azuis, dos
cabelos alourados e dos nomes de família, poucos são os que se
reconhecem como diferentes dos demais brasileiros que
compartilham com eles a ocupação desse território (Carneiro,
2000, p. 44).
Vamos por parte. Em 1996, um grupo de pesquisadores, professores
e outros interessados promoveu uma festa alusiva aos 170 Anos da Imigração
Alemã no Vale do Três Forquilhas 4 . Pode-se afirmar, com certeza absoluta,
que 95% das pessoas que assistiram às comemorações e participaram do
domingo festivo eram “de fora” do núcleo colonial, isto é, descendentes vindos
de outras cidades para rever a terra de origem, visitar parentes ou
simplesmente fazer um passeio de fim de semana. A população colonial
praticamente esquivou-se das festividades, uns entendendo a festa como um
evento da Igreja Luterana (IECLB), pois foi usada a sede desta instituição
4
Este evento foi fruto de um trabalho de equipe, cuja organização esteve aos cuidados da
historiadora Nilza Huyer Ely e dele resultou o livro ELY, Nilza Huyer & BARROSO, Véra Lucia
Maciel (Orgs.). Imigração alemã: 170 anos. Vale do Três Forquilhas. Porto Alegre: EST, 1996.
177
tanto para o culto quanto para o almoço; uns achando que o evento estava
sendo motivado por interesses político-partidários — e quem era contrário ao
partido o qual estava no poder deixou de comparecer —; e outros que não
captaram o sentido, o propósito daquela comemoração, ora porque não os
tocou, ora porque os promotores pareciam estar intrometendo-se no seio da
comunidade: eram “pessoas de fora”. Todavia há um aspecto importante no
final da citação de Carneiro o qual vale ser destacado. Ao contrário dos
descendentes de Nova Friburgo, muitos dos colonos do LNRS perderam o
fenótipo apresentado pela autora: “pele clara, ... olhos azuis, ... cabelos
alourados e ... nomes de família..”.. (Carneiro, 2000, p. 44). Sobre as
características físicas, desde o início da colonização, os alemães viram-se
confrontados com a população nacional que já ocupava os campos existentes
entre a serra geral e o mar. Deste contato, originaram-se casamentos
interétnicos e, quanto aos sobrenomes, com o passar dos anos, vários deles
sofreram alterações na forma escrita, a tal ponto que existem, hoje,
descendentes destes imigrantes desconhecedores da origem da sua família.
É preciso considerar ainda a mobilidade espacial associada à
instabilidade crônica das condições de produção agrícola (Carneiro, 2000, p.
44) do século XIX, sobretudo numa região que estava distante de mercados
centrais como Porto Alegre ou Rio Grande. A mobilidade — leia-se o ir e vir
dos colonos — deve ser entendida como uma busca de alternativas para a
sobrevivência e não como um ato impensado ou a sujeição destes colonos
aos seus caprichos e desejos. Zarth alerta para a situação do mercado
agrícola do Rio Grande do Sul no século XIX, mostrando o fato de a situação
de instabilidade e as dificuldades de comunicação e transporte serem comuns
e tremendas em todo o território rio-grandense, o que emperrava o
desenvolvimento econômico e cultural de diversas regiões, quer coloniais ou
178
não 5 . Percebe-se, deste modo, que o “discurso da lamentação” em razão das
dificuldades de transporte e comércio é insuficiente para explicar o pouco
desenvolvimento do LNRS em praticamente todas as suas áreas 6 .
De acordo com a idéia de Carneiro sobre a mobilidade espacial
associada ao quadro normalmente instável do comércio agrícola, os
descendentes dos colonos de Nova Friburgo foram obrigados a buscar
alternativas para o trabalho, a renda e a sustentação de suas famílias.
Adotamos essa idéia como uma hipótese plausível para São Pedro de
Alcântara e Três Forquilhas, baseados numa breve pesquisa realizada com
os descendentes que residem e trabalham atualmente em Canoas, Porto
Alegre e São Leopoldo (cidades do RS) e Foz do Iguaçu (PR). As declarações
dos entrevistados são unânimes: todos saíram para buscar emprego já que
não havia terras para o plantio, quer pelo fracionamento das propriedades ou
pela falta de dinheiro para adquirir um pedaço de chão. A partir da década de
1950, intensificou-se esse processo migratório em direção aos centros
urbanos, de certa forma repetindo as atitudes dos primeiros colonos, quando,
nos anos iniciais da colonização, alguns deles deixaram, trocaram, venderam
ou fracionaram os seus lotes agrícolas. Isso gerou um certo distanciamento
entre a célula-mãe — a colônia — e os que dela se retiraram, separação que
acabou refletindo na manutenção da própria história da colonização daquele
local, quer entre indivíduos ou mesmo entre famílias agora segregadas por
dezenas ou centenas de quilômetros.
5
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio Grande do Sul rural
do século XIX. Tese (Doutorado) — Programa de Pós-Graduação em História, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1994.
6
Em pesquisa anterior, tentei elucidar um pouco esta prática da “lamentação” e constatei que o
fato do LNRS estar fora do eixo central da política e da economia rio-grandense do século XIX,
pode ter despertado nos políticos litorâneos a artimanha da “lamentação” com o objetivo de
receber, ao menos, as migalhas que caíam da mesa do poder provincial. Ver: WITT, Marcos
Antonio. Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a participação de nacionais e de colonos
alemães — 1840/1889. Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de
Pós-Graduação em História, UNISINOS, São Leopoldo, 2001.
179
Neste momento, deve-se ressaltar a divisão dos colonos de São
Pedro de Alcântara e Três Forquilhas em dois grupos: a grande maioria, a
qual continuou ligada à agricultura, e uma minoria que se sobressaiu devido,
principalmente, a sua inserção no mundo do comércio e da política. Os
colonos e seus descendentes que se diferenciaram da maioria — os
exponenciais — deram um salto quantitativo (econômico) e qualitativo
(cultural) se comparado aos que deles dependiam tanto para conseguir
mercadorias e produtos não existentes naquele local, quanto para solicitar um
favor. Parte desta diferenciação social pode estar na origem profissional dos
imigrantes, uma vez que não somente agricultores, mas também artesãos
foram trazidos para o Brasil com o objetivo de dinamizarem o mercado
artesanal/fabril. As mesmas considerações apresentadas por Carneiro para
Nova Friburgo em relação à dicotomia agricultor/artesão são válidas para as
colônias do Rio Grande do Sul (Carneiro, 2000, p. 46-47). Saliente-se que
muitos destes exponenciais compraram e utilizaram mão-de-obra escrava em
suas lavouras e no comércio, como os Voges, em Três Forquilhas, e os
Raupp, em Torres, o que parece ser um sinal evidente da necessidade de
inserirem-se no meio da liderança nacional onde estavam vivendo. Carneiro
localiza esta mesma situação em Nova Friburgo, afirmando que:
Nessa época, os descendentes dos primeiros imigrantes suíços e
alemães já se diferenciavam em dois grupos. Os de maior sorte e
de maior poder aquisitivo que conseguiram se estabelecer em
terras menos acidentadas e mais férteis, principalmente nas
regiões de Cantagalo e Macaé, desenvolveram uma agricultura
comercial baseada em áreas mais extensas e, até, na utilização
de mão-de-obra escrava. Os demais, que se instalaram em lotes
menores e de pior qualidade, centraram a sua reprodução social
na agricultura de alimentos voltada para o autoconsumo, com
base no trabalho familiar e em baixos níveis técnicos, combinada
à lavoura mercantil mais rentável: o café (Carneiro, 2000. p. 50).
Cabe ressaltar o caráter específico destas duas colonizações — Nova
Friburgo e Torres — se comparado ao desenvolvimento alcançado por São
180
Leopoldo, tão louvado na historiografia clássica da imigração alemã 7 . Sobre a
Colônia Alemã das Torres, estudos recentes têm apontado para as suas
especificidades, como o estabelecimento de rotas comerciais via tropeiros e a
ligação deste espaço com os Campos de Cima da Serra e a província de
Santa Catarina. Registre-se um outro desenvolvimento para o LNRS que foge
ao enquadramento das teorias desenvolvimentista e germanista. Como São
Pedro de Alcântara e Três Forquilhas estavam impossibilitadas de agigantar o
seu comércio com Porto Alegre ou Rio Grande (como fez São Leopoldo) e por
“perderem” suas qualidades germânicas, afirmação que pode ser encontrada
nos relatórios de presidentes da província 8 e na historiografia clássica da
imigração alemã, autores e pesquisadores passaram a olhar para estes
núcleos como uma espécie de mancha negra na história da Imigração alemã
no RS. Passaram despercebidas para eles as especificidades da história e as
contradições da dinâmica que estes grupos estabeleceram com os nacionais.
Assim como em Nova Friburgo, a produção e o mercado instável dos
gêneros agrícolas e o sistema de herança, o qual partilhava a terra entre
todos os herdeiros, foram motivos para gerar dispersão entre os
descendentes dos primeiros colonos e criar uma certa caducidade quanto à
manutenção dos elos da história da imigração alemã no LNRS. Conforme
Carneiro, a dispersão constante impediu a formação de núcleos sociais mais
estáveis, o que, certamente, contribuiu para destruir as condições necessárias
à reprodução e transmissão da memória sobre a cultura originária. Nesses
7
Por historiografia clássica da imigração entendemos aquela de louvação étnica, na qual as
características de um grupo, neste caso os alemães, se sobrepõem aos demais componentes da
sua história. É de fundamental importância para esta historiografia destacar os termos “civilizado”
e “trabalhador”, dentre outros, e suprimir tudo aquilo que poderia denegrir a imagem dos
imigrantes e seus descendentes.
8
Os relatórios encontram-se no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e refletem, entre outros
temas, o posicionamento das autoridades sobre a colonização estrangeira no Rio Grande do Sul.
A título de exemplo, ver: AHRS — Documentação dos Governantes — Relatórios e Falas dos
Presidentes da Província — A7.03 — Relatório do Presidente da Província João Lins Vieira
Cansansão de Sinimbú — outubro/1853 e A7.03 — Relatório do Presidente da Província
Jeronymo Francisco Coelho — dezembro/1856 e A7.06 — Relatório do Conselheiro Joaquim
Antão Fernandes Leão — 1859.
181
termos, é possível sugerir que a perda de referências espaciais e pessoais,
principalmente da família, seja uma explicação para a ausência da construção
e manutenção de uma identidade sustentada na origem étnica (Carneiro,
2000. p. 49, 55-56).
Em síntese, buscou-se, através desta análise, comparar dois
núcleos de imigração européia (Nova Friburgo, no RJ, e Colônia Alemã
das Torres, no RS), verificando possíveis aspectos que tenham “barrado”
a formação de uma etnicidade mais permanente e visível. Não se delineou
um aprofundamento sobre os conceitos de grupos étnicos e etnicidade
porque este exercício mereceria um acréscimo de páginas ou mesmo
transformaria este texto em outro. Sem querer fazer uso da “futurologia”, a
última reflexão: Se São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas transformarse-ão em sítios de lazer, ou se os colonos deixarão de ser “colonos” para
assumirem a nova profissão de “jardineiros da natureza”, somente as
futuras políticas sociais poderão responder 9 .
Referências
CARNEIRO, Maria José. Descendentes de suíços e alemães de Nova
Friburgo: de “colonos” a “jardineiros da natureza”. In: GOMES, Angela de
Castro (Org.). História de imigrantes e de imigração no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 44-65.
ELY, Nilza Huyer; BARROSO, Véra Lucia Maciel (Orgs.). Imigração alemã:
170 anos. Vale do Três Forquilhas. Porto Alegre: EST, 1996.
9
O fato de a antiga colônia de Três Forquilhas (hoje, os municípios de Itati, Terra de Areia e Três
Forquilhas) ser cortada pela Rota do Sol; a proximidade dos vários núcleos coloniais do LNRS
com a praia; e o lento mas gradual incremento do turismo nesta região são variáveis que
suscitaram as indagações acima.
182
LUNCKES, Mariseti Cristina Soares. Um velho projeto com novos rostos: uma
colônia alemã para a Ponta das Torres. Dissertação (Mestrado em História da
América Latina) — Programa de Pós-Graduação em História, UNISINOS,
São Leopoldo, 1998.
RUSCHEL. Ruy Ruben. Por que foram os colonos separados por motivos
religiosos? In.: ELY, Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo.
Porto Alegre: EST. 2000. p. 38-41.
WITT, Marcos Antonio. Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a
participação de nacionais e de colonos alemães — 1840/1889. Dissertação
(Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em
História, UNISINOS, São Leopoldo, 2001.
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio
Grande do Sul rural do século XIX. Tese (Doutorado) — Programa de PósGraduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.
183
13
A INVERSÃO DA IMAGEM DA
COLUNA PRESTES NA IMPRENSA:
DE REVOLTOSOS PARA HERÓIS
________________________
Júlia Matos ∗
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS
“O heroísmo dos revoltosos abalou,
realmente, o
povo brasileiro e deu a medida do extremo
a que
chegara a paixão pela causa que
defendiam.”
NÉLSON WERNECK SODRÉ
Por compreender que os meios de comunicação de massa,
especialmente os jornais, possuem desde suas primeiras aparições na
história um papel central na formação ideológica da sociedade, este artigo
propõe uma análise sobre a utilização da imagem, construída pela imprensa,
da Coluna Prestes, pelo O Jornal, veículo pertencente aos Diários e
Associados, durante os primeiros meses de campanha eleitoral, ou seja de
agosto a novembro de 1929 e janeiro/fevereiro de 1930. Pretendemos, desta
forma, demonstrar como o O Jornal se posicionou ao lado da Aliança Liberal e
quais artifícios jornalísticos utilizou para legitimar a campanha de seus
candidatos à presidência da República, chegando até a antecipadamente
propor uma revolução para garantir a posse de Getúlio Vargas e João
Pessoa. Este artigo pretende apresentar uma breve análise de como a
imprensa constrói ou desconstrói a imagem do fato, do evento.
∗
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS e membro efetivo do Circulo de
Pesquisas Literárias — CIPEL.
184
Para a melhor compreensão do leitor faremos agora uma breve
contextualização. O movimento chamado Tenentismo que deu origem à
Coluna Prestes marcou a história nacional como a soma de surtos
revolucionários liderados por jovens militares: estes insatisfeitos com os
rumos políticos da nação deram início a diversas revoltas no Rio de Janeiro e
em outros estados, como protesto em defesa da dignidade ofendida, devido
ao caso das Cartas Falsas 1 . O movimento marcado com o incidente chamado
o 18 do Forte foi sufocado em 1922, pelo então presidente da República
Epitácio Pessoa. No entanto, alguns dos militares revoltosos continuaram
conspirando contra o governo.
Em 1923, no Rio Grande do Sul, por causa da vitória eleitoral
considerada fraudulenta de Borges de Medeiros, a oposição se levantou em
armas com o apoio de diversos chefes militares que esperavam a intervenção
federal. Um dos líderes da revolução era Assis Brasil que havia concorrido
com Borges de Medeiros nas eleições do Estado. Assis Brasil apoiara Arthur
Bernardes nas eleições presidenciais enquanto Medeiros apoiara Nilo
Peçanha. Por isso, Assis Brasil e os revolucionários acreditavam que o
governo Federal interviria a seu favor, o que não ocorreu. O Governo da
República interveio, mas a favor de Borges de Medeiros e o movimento foi
sufocado. Esta rebelião a primeiro momento de âmbito regional, contra o
Governo
de
Borges
de
Medeiros,
tornou-se
nacional,
devido
ao
posicionamento do Presidente da República, Arthur Bernardes, ao lado do
Presidente do Estado Borges de Medeiros.
Os militares não haviam esquecido ainda o caso das Cartas Falsas e
assim, rapidamente os ânimos entre os militares revoltosos se exaltaram
novamente. Eclodiu então em 5 de julho de 1924, em São Paulo, mais uma
rebelião para depor o Presidente da República Arthur Bernardes. Diversas
1
Episódio que marcou o governo de Arthur Bernardes, as cartas falsas consideradas de sua
autoria, ofendiam o Mal. Hermes da Fonseca e somente muito depois do início das revoltas foram
desmentidas, o que não arrefeçou os conflitos.
185
unidades militares aderiram à rebelião e os revoltosos gaúchos levantaramse, sob o comando do Capitão Luís Carlos Prestes, e reiniciaram o levante
armado. Posteriormente, em dezembro de 1924, o grupo militar rio-grandense
liderado por Prestes uniu-se aos paulistas em Foz de Iguaçu, pois, esta
cidade era propícia para a fuga ao exílio, por estabelecer fronteira entre três
países, Brasil, Paraguai e Argentina. No entanto, Prestes e seu grupo
optaram pela continuidade da luta armada, criando assim a Coluna Prestes.
Prestes acreditava que era preciso “... organizar uma coluna que fosse dotada
de capacidade de deslocamento rápido e que percorresse o interior do país,
entrando por Mato Grosso e rumando para São Paulo quando adesões
significativas ou novas condições o permitissem” 2 . Os homens que
participaram da Coluna ao lado de seu líder Luís Carlos Prestes, partindo do
Rio Grande do Sul, fizeram das fronteiras, com Uruguai e Argentina, muitas
vezes sua liberdade.
O movimento tenentista e a Coluna Prestes declaradamente lutavam
por maior participação no Governo, voto secreto e o fim das oligarquias. Sua
bandeira foi muito bem explorada pelos opositores do governo de Arthur
Bernardes. Segundo Boris Fausto “Durante os anos vinte, tornou-se, para
todas as camadas intermediárias e populares da sociedade, o grande
depositário das esperanças de uma alteração da ordem vigente” 3 . Mas, como
os ideais dos revoltosos da Coluna Prestes podiam ser conhecidos se esta
não fazia campanha? Pelo que sabemos um de seus objetivos era depor o
governo e para isso precisava de estratégias de guerra e não de campanha
para disseminar seus ideais.
Em 1925, Assis Chateaubriand opositor declarado do governo de
Arthur Bernardes, insistindo nas reportagens, enviou seu primo Rafael Correa
de Oliveira para seguir a Coluna Prestes. “... pela primeira vez o público lê na
2
WERNEK, Nelson Sodré. O Tenentismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p. 32.
FAUSTO, Boris. Sociedade e Instituições. In: História geral da civilização brasileira. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1977. Tomo III, v. 2, p. 409.
3
186
grande imprensa algo que até então só aparecia em panfletos políticos:
entrevistas em que os chefes rebeldes descrevem suas refregas contra as
forças regulares do governo federal” 4 . Seu jornal colocado há muito em
campanha contra o Presidente Bernardes investiu na imagem romântica e
aventuresca da Coluna Prestes, sempre exaltando os feitos do Capitão
Gaúcho, “... sabendo que a divulgação dos movimentos da Coluna era mais
uma maneira de azucrinar o presidente da República (...) 5 .
O Jornal já era um veículo de imprensa de grande sucesso em 1925,
contava com uma venda de 40 mil exemplares dia e “... certamente começava
a cair no gosto da população” 6 . A imprensa oficial se esforçava por comparar
as atividades da Coluna Prestes às do bandido cangaceiro Lampião, o que
muito indignava Chateaubriand. Em artigo, publicado na capa do O Jornal,
Chateaubriand revidou as acusações da imprensa oficial:
O ministro da Justiça, que tanto se preocupa em censurar, não
devia permitir a ignomínia dessa comparação. Lampião é bandido,
um salteador vulgar, um miseráel que assassina para roubar, um
degenerado que se fez cangaceiro a fim de dilapidar os bens e tirar
a vida de seus semelhantes. O capitão Prestes é um revolucionário,
e, enquanto não for julgado por um juiz civil ou um concelho de
guerra, faz parte do Exército brasileiro. O raid do capitão Prestes
valerá pela tenacidade e pelo arrojo do soldado-menino de 26
anos, bravo, ardente, pugnaz, como decerto o Brasil não tinha
visto nada comparável 7 .
Através desta citação vemos a imagem de Prestes que O Jornal fazia
questão de divulgar e defender. A campanha em prol da imagem heróica dos
revoltosos da Coluna Prestes, liderada pelo O Jornal ganhou novos adeptos
em fins de 1925, como os jornais A Noite e o Correio da Manhã. Estes, unidos
4
MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994. p 150.
5
MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994. p. 150.
6
Ibidem. p. 151.
7
CHATEAUBRIAND, Assis. In:_____O Jornal, 1925. p. 01.
187
lançaram uma subscrição pública destinada a coletar dinheiro dos leitores
para ajudar os rebeldes. A importância em dinheiro levantada foi entregue a
Prestes por Oswaldo Chateaubriand, Irmão de Assis. A entrega do dinheiro e
a quantia arrecadada foram amplamente divulgadas pela imprensa, como
forma de demonstração do apoio popular à causa revolucionária, “... porque
foi uma manifestação inequívoca de que o povo brasileiro aplaudia a
campanha que empreenderâmos na defesa de suas liberdades mais caras” 8 .
Chateaubriand insistia em promover Prestes e defender com entusiasmo a
anistia dos revoltosos da Coluna.
A Coluna passou então a gozar de uma imagem positiva, inversa a
imagem de guerrilheiros pilhadores divulgada pela imprensa oficial. A
positividade da imagem da Coluna para com a população era tanta que o O
Jornal, veículo que apoiava declaradamente a campanha da Aliança Liberal,
continuou exaltando em inúmeros artigos, reportagens e entrevistas a ação da
Coluna Prestes, realizando uma associação desta aos candidatos à
presidência da República, Getúlio Vargas e João Pessoa em fins de 1929.
Mesmo com os revoltosos da Coluna Prestes exilados na Bolívia
desde 1927, durante a campanha eleitoral de Getúlio Vargas o O Jornal
entrevistou Luís Carlos. Esta entrevista, visto sua importância para o
momento político eleitoral, ganhou destaque na primeira página do jornal,
como podemos ver na manchete do dia 16.09.1929 (Fig. 1). A frase
destacada nesta manchete deu margem para a possibilidade de apoio dos
revolucionários a campanha oposicionista de Getúlio Vargas.
8
Anotação do diário do historiador oficial que acompanhou toda a trajetória da Coluna, Lourenço
Moreira Lima.
188
Fig. 1. Entrevista com Prestes ganha manchete no O Jornal
em 16.09.1929. (Fonte: Arquivo Museu Hlpólito José da Costa)
Devida a imensa popularidade dos revolucionários e sua imagem
nacionalista criada pela própria imprensa, o tema da anistia se tornou muito
popular e explorado durante a campanha getulista. Neste período uma forte
campanha em prol da anistia aos exilados políticos foi lançada pelo O Jornal
(Fig. 2). Podemos observar isto através da freqüência de artigos e
reportagens que tratavam do assunto.
Fig. 2. Campanha em prol da anistia aos exilados políticos tomou força pelo O Jornal.
(Fonte: Arquivo Museu Hipólito José da Costa)
Neste artigo de 16 de agosto, assinado por Assis Chateaubriand, o
assunto é tratado com ironia. Chatô fez elogios irônicos ao então Presidente
Sr. Washington Luís e satirizou dizendo anistiá-lo todas as manhãs ao
acordar ou sempre ao saber de mais algum de seus “atos descabidos”.
Por isso, mesmo sem o apoio de Prestes, O Jornal não deixou de
fazer associações dos revolucionários aos candidatos à Presidência,
189
exaltando assim suas posturas nacionalistas. A anistia aos exilados,
principalmente aos participantes das revoltas tenentistas, foi o tema da
campanha aliancista, é o que podemos ver no discurso veiculado pelo O
Jornal, com destaque de página inteira, no dia 07.09.1929 (Fig. 3).
Outro fato importante para compreendermos o alcance da campanha,
empenhada pelo dono do O Jornal, de exaltação nacionalista da imagem dos
revoltosos da Coluna Prestes, é o número de Jornais adquiridos por
Chateaubriand durante os anos de 1924 e 1930. Durante estes anos Assis
Chateaubriand adquiriu cinco jornais e duas revistas, todos colocados a
serviço da campanha aliancista. A compra dos jornais Diário de Notícias do
Rio Grande do Sul, Diário da Noite do Rio de Janeiro e o Estado de Minas de
Minas Gerais, ocorreu durante a campanha eleitoral com o auxílio, inclusive
financeiro, da Aliança Liberal.
190
Fig. 3. Discurso aliancista ganha destaque de
página inteira no O Jornal de 07.09.1929.
(Fonte: Arquivo Museu Hipólito José da Costa).
Como sabemos o Brasil diante de sua imensidade territorial sempre
teve dificuldades de integração cultural entre seus estados, no entanto, vemos
que a rede de jornais criada na segunda metade dos anos 20 por
Chateaubriand atuou como disseminadora dos ideais revolucionários. Desta
forma, vemos a importância da imprensa na construção romantizada da
191
imagem da Coluna Prestes e do Movimento Tenentista, que tem perpassado
a história até hoje.
Entendemos que esta primeira atuação do Diários e Associados na
divulgação e defesa dos ideais revolucionários da Coluna Prestes, de certa
forma, prepararam os ânimos brasileiros para a posterior Revolução de 1930,
que colocou Getúlio Vargas no poder. Isto porque defendia pontos que foram
assimilados nas propostas de governo da Aliança Liberal. Os líderes da
Coluna não apoiaram a Revolução de 1930, como já não haviam apoiado a
campanha de Vargas, por defenderem ideais para a nação e oporem-se a
intervenção partidária na causa, o que não invalidou sua ação como
precursora e divulgadora dos ideais de anistia, voto secreto e reforma política.
Entretanto, sua imagem nacionalista construída pela O Jornal, foi
muito explorada durante a campanha eleitoral, com inúmeras associações
entre os “heróis nacionalistas gaúchos” da Coluna Prestes e os candidatos à
presidência da República, homens de “... coragem e da bravura dos seus
conterrâneos (...)” e depois que “têm demonstrado as qualidades que se
exigem aos homens de ação realizadora” 9 .
Desta forma, vemos que “A palavra carrega a prática social da
sociedade, enfeixa os valores de um determinado momento histórico” 10 . As
reportagens e entrevistas veiculadas pelo O Jornal elucidam um momento
histórico e nos auxiliam a compreender como se deu a construção da imagem
de um evento histórico. Entendemos com estes textos que “Os sistemas de
valores não são construções particulares de um indivíduo; são, antes, o
resultado de todo um contexto socio-histórico que determina as condições de
produção do discurso 11 . Sendo assim, o O Jornal e sua obra são frutos de
seu tempo e devem ser analisados como tal.
9
Coluna “A Successão Presidencial” de 07 de agosto de 1929, p. 01.
CINTRA, Ana Maria. Para entender as linguagens documentárias. 2. ed. São Paulo, Polis,
2002, p. 11.
11
Idem
10
192
Fontes
Arquivo Museu Hipólito José da Costa.
O Jornal, ago./dez. 1925.
O Jornal, ago/dez. 1929.
O Jornal, jan/fev. 1930.
Referências
CINTRA, Ana Maria. Para entender as linguagens documentárias. 2. ed. São
Paulo: Polis, 2002.
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930. In: FAUSTO, Boris; MOTA, Carlos G.
(Orgs). Brasil em perspectiva. 10. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978.
___. Sociedade e instituições. In: ___. História geral da civilização brasileira,
Rio de Janeiro: DIFEL, 1977. Tomo III. v. 2.
FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. 6. ed. Porto Alegre: Nova
Dimensão, 1996.
LIMA, Lourenço Moreira. Diário do historiador oficial que acompanhou toda a
trajetória da Coluna.
MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das
Letras. 1994.
WERNEK, Nelson Sodré. O Tenentismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
WILMSEN, Ana P. A argumentatividade e a heterogeneidade enunciativa de
textos jornalísticos. In: BORSTEL, Clarice von. III Caderno de Língua e
Literatura. Cascavel: EDUNIOESTE, 2001.
ZICMAN, Renneè Barata. História através da Imprensa — algumas
considerações metodológicas. In: Projeto História SP, Revista do Programa
de Estudos Pós-Graduados em História, Departamento de História, PUCRS,
n. 4. jun. 1985.
193
14
CONFLITOS E IDENTIDADES:
A AÇÃO MARISTA NOS NÚCLEOS
TEUTOS DO RIO GRANDE DO SUL
_________________________________
Kate Fabiani Rigo ∗
O artigo é apenas um recorte da minha dissertação de mestrado
sobre a Congregação Marista nos núcleos teutos do RS. A idéia de montar
um trabalho sobre os irmãos maristas e sua atuação nas colônias teutas veio
a partir da necessidade de sanar uma lacuna historiográfica existente sobre
os mesmos no Rio Grande do Sul.
Durante a revisão bibliográfica feita sobre os maristas nas colônias
alemãs, foi constatado que os fatos apresentados pelos autores deste
assunto estão descritos de forma isolada e a sua contextualização é mínima e
até mesmo subjetiva. Quanto à questão dos irmãos maristas franceses no
período de propagação da germanidade nas colônias de origem teuta, aqui no
Estado, esta quando trabalhada é posta de forma superficial.
Segundo o autor Riolando Azzi, “falta ainda um estudo mais profundo
que analise as vinculações do clero católico com a germanidade”. Esta frase
nos fez perceber que o desenvolvimento da pesquisa era válido, na medida
em que analisamos os reflexos da germanidade nas escolas coloniais e como
a Congregação Marista, de origem francesa, conseguiu realizar o seu projeto
educacional nos redutos teutos durante as primeiras décadas do século XX.
A Congregação Marista surgiu na França após a Revolução
Francesa, onde foi percebida a necessidade de oferecer à Juventude
francesa, das zonas rurais, um ensino voltado para a formação religiosa,
∗
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
194
intelectual e esportiva de seus alunos. Estas características fizeram com que
as escolas, fundadas por Marcelino Champagnat, se destacassem e se
espalhassem pelo interior da França.
Durante o século XIX e início do século XX, a Congregação e as demais
Ordens religiosas, que estavam envolvidas em atividades educacionais, sofreram
com a inserção das idéias iluministas, que visavam a gradual laicização das
escolas francesas. A Congregação, em especial, sofreu o maior golpe em 1903,
com a instalação da Lei de Combes 1 , nesta foi decretado o fechamento de 400
escolas maristas e o exílio dos irmãos. A partir de então, a Congregação Marista
espalhou-se por diversas partes do mundo.
Já a vinda da Congregação para o Rio Grande do Sul, está
relacionada à exigência das colônias teutas de instalarem escolas em suas
comunidades mais afastadas. Os padres jesuítas, que eram os detentores do
poder educacional desde a segunda metade do século XIX, sentiram a
necessidade de pedir auxílio aos irmãos maristas franceses, já que estes
eram conhecidos por atenderem as comunidades rurais, no interior da França.
A instalação da Congregação aqui no Rio Grande do Sul, provocou
um acelerado processo expansionista da mesma, devido à nova
pedagogia de ensino integral aplicada pelos irmãos e devido à
precariedade do ensino gaúcho, principalmente nas regiões coloniais mais
afastadas 2 . Após o sucesso obtido pelos maristas, no início do século XX, os
primeiros empecilhos propiciados causados pelas diferenças culturais com as
comunidades teutas começaram a surgir, em especial no período de 1910-1922.
Esta delimitação temporal foi definida a partir das situações de conflito
1
O criador da Lei de Combes foi Émile Combes (1835-1921), antigo seminarista e político
francés, fazia parte do governo anticlerical de Léon Bourgeois e depois fez parte do mandato de
René Waldeck-Rousseau, como Primeiro Ministro do Interior e da Religião. A lei de Combes foi
instaurada em 1903 onde as Associações religiosas precisavam da autorização legal do Estado
para funcionar.
2
Para saber mais sobre o histórico da Congregação Marista no Rio Grande do Sul,
recomendamos a leitura dos estudos de Ir. Eugênio Damião, Ir. Nadir Bonini Rodrigues e de
Riolando Azzi. A referência completa encontra-se na bibliografia.
195
existentes entre os irmãos maristas e as comissões escolares que controlavam o
desenvolvimento da educação nas colônias de origem teutocatólicas.
A questão de preservação da identidade germânica está intimamente
ligada ao exarcebado patriotismo implantado pela monarquia Hohenzollern,
após a Guerra Franco-Prussiana (1871). Neste período a monarquia assumiu
o controle das escolas, promovendo a construção do espírito alemão e a
concepção de uma Alemanha suprema, superior a tudo que jamais existiria,
ou seja, uma nação divina.
Sobre a construção deste espírito alemão através da educação, H.G.
Wells apresenta os deveres do professor durante a dinastia Hohenzollern:
O mestre, o professor que não ensinasse e pregasse, com
oportunidade e fora de oportunidade, a superioridade racial,
moral, intelectual e física dos germanos sobre todos os outros
povos, a sua extraordinária devoção à guerra e à sua dinastia e o
seu inevitável destino à direção do mundo sob a égide dessa
dinastia, era homem marcado, fadado ao desastre e a
obscuridade (Wells, 1939, p. 306).
Durante este período, o ensino de história na Alemanha, se
transformou numa grande manipulação forjada pelos interesses do governo
Hohenzollern. Quanto às demais nações, estas eram vistas como incapazes
ou decadentes; e os prussianos seriam os condutores e os regeneradores da
humanidade (Wells, 1939, p. 306). Sabemos que muitos imigrantes teutos
vieram para o sul do Brasil com esse sentimento patriótico exarcebado
imbuído
em
sua
bagagem
cultural.
Esta
era
uma
característica,
principalmente, dos teutos oriundos dos redutos urbanos, que devido ao
contato com outras culturas (lusa, italiana, polonesa...) viam a sua integridade
cultural germânica ameaçada. Aqui no sul, a difusão da germanidade foi
orientada por intelectuais que possuíam acesso às escolas e à imprensa,
sendo que através destes meios, lutavam pela preservação da identidade
teuta através da língua alemã.
196
Com esta breve caracterização do espírito alemão e sua ligação
direta com as escolas e o ensino, fizemos o seguinte questionamento: Sendo
os maristas oriundos de uma congregação francesa, qual foi o impacto de sua
atuação nas colônias alemãs, durante a difusão do germanismo no Rio
Grande do Sul?
A partir desta problemática percebemos que a vinculação existente
entre a fé católica (jesuítas) e a germanidade impedia que se visse com bons
olhos qualquer interferência de religiosos oriundos de outra nação para dentro
de uma zona caracteristicamente alemã. Especialmente quando estes
religiosos eram de origem francesa, devido às tensões históricas existentes
entre França e a Alemanha. Tensões estas que estão relacionadas à situação
de fronteiras que se agravaram no decorrer da Primeira e Segunda
Guerra Mundial.
Segundo Eugênio Damião, a questão da germanidade foi um dos
principais motivos para que surgissem atritos entre os maristas e as
comissões patrocinadoras escolares. Esta questão é ressaltada no Histórico
da Província do Brasil Meridional:
Decepcionou, de certo modo, aos homens de influência o fato
dos Irmãos Maristas serem franceses, embora vindo da Lorena...
Quando notaram que os religiosos ensinavam, no colégio, além
do alemão e do português, ainda o francês, ficaram por assim
dizer mais atentos à sua ação. De fato, os irmãos ensinaram o
português desde o início, mesmo na escola paroquial, ainda que
o programa não exigisse (Damião, 1950, p. 136).
As divergências estavam relacionadas às matérias lecionadas, pois
achavam que não estavam dando atenção suficiente à língua e à cultura
germânica. Segundo Azzi, no ano de 1907 os irmãos maristas se propuseram
a comprar o prédio do colégio de Bom Princípio, mas o jornal Deutsches
Volksblatt lançou um apelo para que de maneira alguma o educandário de
Bom Princípio fosse vendido aos irmãos, alegando que estes haviam
197
desvirtuado os objetivos fundamentais da germanidade traçados inicialmente
para a escola complementar.
Em 1918, os maristas foram afastados da direção da Escola de Bom
Princípio, pois pretendiam dar feriados aos alunos em datas brasileiras, o que
contrariava o desejo da Comissão Paroquial. Após esta decisão e depois de
outros atritos ocorridos em escolas alemãs e os religiosos maristas, estes
resolveram sair do reduto cultural dos imigrantes alemães, partindo para
atender as solicitações dos colonos italianos.
Acreditamos que a defesa da germanidade e a reação frente à
pedagogia francesa aplicada pelos irmãos estavam associadas à perda do
monopólio cultural e educacional dos jesuítas. De forma que estes se
utilizaram os princípios de preservação da integridade cultural alemã para
que a expansão educacional marista fosse freada nas comunidades de
origem teuta.
Considerando o fato de que a pesquisa atinge duas etnias distintas —
a alemã com os teuto-brasileiros e os jesuítas e a francesa com os irmãos
maristas — utilizamos o estudo de Norbert Elias para entendermos que as
auto-imagens
nacionais
representadas
através
de
conceitos
como
“Civilização” e “Kultur” assumem formas distintas. Por mais divergentes que
seja a auto-imagem dos alemães, que falam com orgulho de sua “Kultur”, e a
de franceses, que se envaidecem com a sua “civilização”; todos consideram
esta a maneira como o mundo dos homens como um todo, quer ser visto e
julgado (Elias, 1996, p. 25).
Deste modo compreendemos que o imigrante alemão, aqui no Rio
Grande do Sul, aplicou a manutenção do “Kultur” através de suas escolas,
sociedades e pela preservação de seu idioma materno. Quanto à chegada
dos irmãos maristas nas escolas teutas, que tiveram toda a sua base
pedagógica francesa, o termo “Civilização” pode ser encontrado na idéia de
expansão, ou seja, de levar o conhecimento a todos e de fazer com que seus
198
alunos estudassem além do idioma alemão, o português e também o francês.
Este espírito de “civilizar” francês foi um dos fatores que propiciaram o rápido
avanço que a Congregação Marista teve pelo mundo após a sua saída da
França com a chamada “Lei de Combes” no ano de 1903.
Como mencionamos anteriormente, a nossa hipótese de que a
manutenção da identidade cultural teuta tenha sido utilizada pelos padres
jesuítas como uma forma de deter o avanço educacional marista nos núcleos
de origem alemã está calcada na teoria de dominação simbólica, onde por
meio do imaginário coletivo o imigrante pode ser atingido. Segundo Baczko,
em seu texto “Imaginação Social” (1985, p. 332), qualquer coletividade produz
um sistema simbólico que compreende os imaginários sociais, e que para a
garantia desta difusão é necessário controlar instrumentos relacionados à
persuasão, pressão e inserção de valores e crenças. Assim a defesa pela
integridade cultural teuta se difundiu através da imprensa (persuasão), da
religião (pressão) e das escolas (inserção de valores e crenças), formando
uma rede que através desta a construção do imaginário se dividiu e montou
seus próprios objetivos (preservação da integridade cultural). Para Baczko, a
construção desta coletividade:
...designa sua identidade, elabora uma certa representação de si;
estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais, é
produzido, em especial, uma representação global e totalizante
da sociedade como uma ‘ordem’ em que cada elemento encontro
o seu ‘lugar’, a sua identidade e a sua razão de ser (Baczko,
1985, p. 309).
Com a definição de que os jesuítas tenham controlado a expansão
educacional marista a partir do imaginário coletivo e de que sua
propagação esteve diretamente ligada a redes de controle coletivo como:
Imprensa, Igreja e Escola. Consideramos de suma importância destacar a
participação destes elementos na manutenção do “Kultur” e também na
propagação do germanismo.
199
Esta atribuição a Ordem Jesuítica está relacionada a sua influência,
na época, em todos os elementos da rede simbólica. Podemos citar como
exemplo a sua participação na imprensa através do Deutsches Volksblatt e no
Lehrerzeitung; na religião por serem os responsáveis pelas paróquias das
comunidades teutas e por fim na escola por serem os responsáveis pela
formação de escolas paroquiais nas colônias de origem alemã do Estado.
Com todas estas informações, é possível que o leitor faça o seguinte
questionamento: “Já que o ideal jesuíta era o de preservar a integridade
cultural teuta às futuras gerações, por que então foi chamado o auxílio de
uma congregação de outra etnia?”
A resposta está ligada ao objetivo a um projeto maior, de maneira que
a vinda da congregação não estava associada somente à falta de professores
na região alemã, mas também estava ligada a um projeto católico que visava
evitar a propagação de escolas leigas por um lado e de luteranas por outro.
Esta breve caracterização é válida no sentido de entendermos o sentido no
qual padres jesuítas alemães convidaram professores de uma congregação
francesa para auxiliá-los no seu projeto educativo.
De início as primeiras ações maristas nas escolas paroquiais teutas
foram aprovadas pelos padres jesuítas, no entanto, com o passar das
fundações maristas, os jesuítas deixaram de ver os irmãos como aliados e sim
como concorrentes. Já que toda a estrutura educacional das comunidades
teuto-católicas era supervisionada e administrada pelos jesuítas. Com a
chegada dos maristas esta estrutura monopolista foi quebrada, o que gerou o
desencadeamento de atritos entre jesuítas e maristas.
É importante lembrarmos que estamos falando de duas instituições
católicas que estão marcadas não só por suas diferenças estruturais como
também por suas diferenças identitárias, onde uma preserva o “Kultur”
(jesuítas alemães) e a outra leva a todos a sua civilização (maristas).
200
Para que possamos compreender estas divergências estruturais e
identitárias
selecionamos
alguns
pontos
de
discordância
entre
as
duas instituições:
• Os jesuítas alemães possuíam um projeto educativo baseado na
manutenção da integridade cultural e identitária do teuto-brasileiro.
Os maristas vieram para cá com o espírito universalista fazendo
com que seus alunos expandissem seus conhecimentos através de
uma pedagogia integral.
• Os jesuítas alemães possuíam um sistema de ensino mais rígido,
onde a relação entre professor e aluno era extremamente
distante e a disciplina era bastante rigorosa. Os maristas
trouxeram uma pedagogia mais flexível em relação aos jesuítas,
considerando a relação do professor-aluno mais próxima e o
sistema disciplinar era mais flexível, esta característica está
associada à pedagogia de presença.
• Os jesuítas utilizavam a cultura local para difundir os valores
católicos. Os maristas utilizaram a pedagogia para a difusão destes
mesmos valores.
Sabemos que existem outras diferenças entre as duas instituições, no
entanto, selecionamos apenas estas por terem sido as principais motivadoras
das desavenças. Os confrontos muitas vezes podem ser marcados também
pela igualdade de objetivos, como no caso dos jesuítas e maristas, ambos
possuíam o espírito educacional expansionista e catequizador. O caso do Rio
Grande do Sul é um bom exemplo deste ideal catequizador das instituições,
onde estas buscam o controle educacional do território rio-grandense
promovendo uma verdadeira disputa pelo espaço cultural do Estado.
Para exemplificarmos a nossa afirmação selecionamos duas citações,
uma apresentando a idéia dos jesuítas de não perderem o seu domínio
201
cultural na região teuta e outra que ressalta o projeto educacional
expansionista marista:
Para aliviar a nossa sociedade do peso do magistério, foram
chamados os irmãos das escolas, denominados maristas.
Principiaram esta tarefa e, 1° de janeiro de 1903.
Os edifícios, contudo, os móveis da escola, assim como a
administração e a direção permanecem em nossas mãos
(Azzi, 1997, p. 256 apud Líber generallis residentiae S. Crucis.
S.J., 1903).
A citação apresenta claramente o intuito dos jesuítas de terem os
irmãos apenas na docência da escola, não dando abertura para uma possível
ascensão. Outro ponto observado se refere à necessidade de mostrar os
maristas como subordinados ao domínio administrativo dos Jesuítas.
Podemos associar a idéia de domínio e subordinação ao imaginário que
cercava o teuto, no caso os jesuítas alemães, que ele representava um
modelo de superioridade em relação às demais nações, principalmente em
casos relativos aos franceses (maristas), já que suas rivalidades ocupam o
campo histórico e cultural.
A próxima citação está associada ao interesse da Congregação
Marista de expandir o seu projeto educacional, esta foi um trecho extraído da
carta enviada pelo Ir. Weibert ao Superior Geral Marista:
Eu acabo de apresentar meus títulos franceses a fim de ser
nomeado para a escola oficial (...). Eu me comprometi de
apresentar em dos meus professores aos exames de dezembro
de 1901 para a obtenção do diploma; se o bom Deus me der
saúde e um pouco de tempo, eu mesmo me prepararei a estes
exames cujo programa é muito pesado (é o diploma superior
francês). Se como eu espero a coisa saia bem, será um
precedente; e nós poderemos desta maneira ter muitos
estabelecimentos no Estado do Rio Grande do Sul (Rodrigues,
2000, p. 59).
O trecho final destaca a possibilidade e o desejo do Ir. Weibert de
instalar uma Província Marista aqui no Rio Grande do Sul. Este projeto
202
educacional expansionista se relaciona com a definição do “Civilizar” para o
francês, onde este se julga preparado para difundir o conhecimento a todas
as partes do mundo, já que o mesmo se denomina civilizado.
A idéia de “civilizar” está associada a um sentimento de superioridade
em relação a uma outra nação menos “civilizada”. Este é mais um fator de
igualdade entre os maristas, que difundem pelo mundo sua pedagogia
humanista com base francesa e os jesuítas alemães que vieram para as
terras do Rio Grande do Sul com um forte sentimento de superioridade
adquirido principalmente no período de Bismarck na Alemanha.
A contribuição dos irmãos nestas colônias foi indiscutível, já que
os mesmos complementaram e aperfeiçoaram o trabalho já desenvolvido
pelos padres jesuítas aqui no Rio Grande do Sul, mais especificamente
nas colônias teutas. Mesmo com os desentendimentos com as comissões
escolares, os irmãos maristas conseguiram implantar um sistema
educacional tão eficaz que quanto mais se conheciam, mais solicitações
eram recebidas, gerando um grande descontentamento por parte da
Ordem Jesuítica, aqui implantada.
Por fim, evidenciamos que as divergências entre os maristas
franceses e os jesuítas alemães estão relacionadas aos termos “Kultur” e
“Civilização”, onde o jesuíta utilizava a educação como um meio de preservar
ao máximo a sua identidade cultural de seus educandos através do “Kultur”, já
o marista utilizava a educação como um meio de expandir e de levar a todos
a sua “Civilização”. Consideramos de suma importância ressaltar que esta
mistura entre alemães e franceses no processo de formação das escolas nos
núcleos teutos do Rio Grande do Sul trouxeram para as suas comunidades
uma espécie de equilíbrio, já que o jesuíta fez com que a comunidade não
perdesse por completo a sua identidade cultural e o marista mostrou para a
mesma que é possível preservar esta identidade através do conhecimento de
outras identidades culturais.
203
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Download

Integração: história, cultura e ciência: 2003 Elvo Clemente