UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS
CURSO DE DIREITO
SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS EM FACE
DAS GARANTIAS JUSFUNDAMENTAIS DOS USUÁRIOS
LUCIO LUCAS BERVIAN
São José, junho de 2008
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS
CURSO DE DIREITO
SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS EM FACE
DAS GARANTIAS JUSFUNDAMENTAIS DOS USUÁRIOS
Monografia submetida à Universidade do
Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito
parcial à obtenção do grau de Bacharel
em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Henrique Urquhart Cademartori
São José, junho de 2008
LUCIO LUCAS BERVIAN
SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS EM FACE DAS
GARANTIAS JUSFUNDAMENTAIS DOS USUÁRIOS
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do titulo de bacharel em
Direito e aprovada pelo Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Jurídicas,
da Universidade do Vale do Itajaí, Campus São José.
Área de concentração: Direito Administrativo
Profª. Elisabete Wayne Nogueira
Responsável pelo Núcleo de Práticas Jurídicas
São Jose, 19 de junho de 2008.
Prof. Luiz Henrique Urquhart Cademartori, Dr.
ORIENTADOR
Profª. Maria Lucia Navarro Lins Brzezinski, MSc.
MEMBRO
Prof. Roberto Wöhlke, Esp.
MEMBRO
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do
Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de
toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José, 19 de junho de 2008.
LUCIO LUCAS BERVIAN
Graduando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do
Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Lucio Lucas Bervian, sob o título
Suspensão dos serviços públicos essenciais em face das garantias jusfundamentais
dos usuários, foi submetida em 19 de junho de 2008 à banca examinadora composta
pelos seguintes professores: Prof. Luiz Henrique Urquhart Cademartori, Dr.,
Orientador, Profª. Maria Lucia Navarro Lins Brzezinski, MSc., Membro e Prof.
Roberto Wöhlke, Esp. e aprovada com a nota 9,50 (nove e cinqüenta).
São José, 19 de junho de 2008.
Prof. Luiz Henrique Urquhart Cademartori, Dr.
Orientador e Presidente da Banca
Profª. Elisabete Wayne Nogueira, MSc.
Responsável pelo Núcleo de Prática Jurídica
Algumas pessoas marcam a nossa vida
para sempre, umas porque nos ajudam a
concretizar sonhos, outras porque nos
desafiam a construí-los. No meu caso,
uma pessoa em especial marcou minha
trajetória acadêmica e foi essencial para
que eu vencesse os desafios desta
jornada, minha esposa, amada, mulher,
amiga, meu porto seguro e minha força
pra vencer os desafios. Obrigado pelo
incentivo e o apoio em todos os
momentos minha Luciana!
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço à Deus, pela força que me
concedeu para chegar até aqui e por me guiar pelo
caminho certo nos momentos de incerteza.
Ao amor da minha vida, Luciana Merlin Bervian, pelo
carinho, amor, atenção e apoio incondicional. Sem
você eu não teria chegado até aqui. Te amo!
Aos meus pais, Adelar e Mariza, pelo amor e pelo
exemplo de vida, força e caráter que me ensinaram.
Às minhas irmãs Angela e Adelaine, meus sobrinhos
Gustavo e Gabriele, meus cunhados Luis Carlos e
Luiz Antonio e meus sogros Antonio e Gessi pelo
apoio e pensamento positivo
À meu professor orientador pelos conhecimentos
divididos.
Aos colegas de universidade pelos momentos
vividos nestes anos de academia.
“O mundo é como um espelho que devolve a cada
pessoa o reflexo de seus próprios pensamentos. A
maneira como você encara a vida é que faz toda
diferença”.
Luís Fernando Veríssimo
RESUMO
Esta pesquisa investigou a partir de uma matriz teórica garantista, a
possibilidade de suspensão dos serviços públicos essenciais. Foram elucidados
alguns aspectos históricos da consagração do serviço público no direito
administrativo, seguido dos conceitos sobre os serviços públicos. Nesta esteira,
foram abordados os princípios que norteiam a prestação dos serviços públicos, com
base na Lei n.º 8987/95. Neste contexto, foram estudados alguns aspectos da Teoria
Garantista, enfocando os conceitos introdutórios do Estado Constitucional e/ou
Democrático de direito e da importância dos direitos fundamentais e suas garantias,
bem como os aspectos inerentes a validade, vigência e eficácia normativas desta
teoria e suas diferenças e peculiaridades em relação ao positivismo jurídico. O
estudo das garantias fundamentais considerou os princípios constitucionais que
servem de base aos direitos e a proteção dos usuários contra a suspensão dos
serviços públicos essenciais. Nesse ínterim, foram referenciadas as leis
infraconstitucionais que regulamentam a prestação destes serviços e disciplinam a
relação entre os usuários e seus prestadores. De acordo com a Teoria Garantista, as
normas infraconstitucionais devem ter conteúdo condizente com os princípios dos
direitos fundamentais e garantias dispostos expressa ou implicitamente na
Constituição, para que possam ser consideradas válidas. Verificou-se que o Estado
Democrático de Direito possui suas raízes intimamente ligadas aos fundamentos da
Teoria Garantista, porém, a efetivação dos direitos garantidos constitucionalmente,
nem sempre é observada na criação das normas infraconstitucionais, o que implica
na promulgação de leis com conteúdo antigarantista. No caso da suspensão dos
serviços públicos essenciais, procurou-se demonstrar que o modo como se procede
a suspensão da prestação dos serviços se caracteriza como uma atuação contrária
aos direitos fundamentais e princípios constitucionais do Estado Democrático de
Direito brasileiro, sob o ponto de vista do garantismo. Por fim, procurou-se
demonstrar a atuação dos operadores do direito frente ao poder discricionário da
Administração Pública e apresentar jurisprudências acerca do assunto.
Palavras-chave: Suspensão. Serviços públicos essenciais. Garantismo.
RESUMEN
Este trabajo investigó a partir de una matriz teórica del garantismo, la
posibilidad de suspensión de los servicios públicos esenciales. Fueron elucidados
algunos aspectos históricos de la consagración del servicio público en el derecho
administrativo, seguido de los conceptos sobre los servicios públicos. En este plan,
fueron abordados los principios que nortean la prestación de los servicios públicos,
con base en la Ley n.º 8987/95. En este contexto, fueron estudiados algunos
aspectos de la teoría del garantismo, enfocando los conceptos introductorios del
Estado Constitucional y/o Democrático de derecho y de la importancia de los
derechos fundamentales y sus garantías, bien como los aspectos inherentes a
validad, vigencia y eficacia normativas de esta teoría y sus diferencias y
peculiaridades en relación al positivismo jurídico. El estudio de las garantías
fundamentales consideró los principios constitucionales que sirven de base a los
derechos y a la protección de los usuarios contra la suspensión de los servicios
públicos esenciales. En ese ínterin, fueron referenciadas las leyes
infraconstitucionales que reglamentan la prestación de estos servicios y disciplinan la
relación entre los usuarios y sus prestadores. De acuerdo con la Teoría del
Garantismo, las normas infraconstitucionales deben tener contenido condecente con
los principios de los derechos fundamentales y garantías dispuestos expresa o
implícitamente en la Constitución, para que puedan ser consideradas válidas. Se
verificó que el Estado Democrático de Derecho posee sus raíces íntimamente
ligadas a los fundamentos de la teoría del garantismo, pero, la efectivación de los
derechos garantidos constitucionalmente, no siempre es observada en la creación
de las normas infraconstitucionales, lo que implica en la promulgación de leyes con
contenido antigarantista. En el caso de la suspensión de los servicios públicos
esenciales, se buscó demostrar que el modo como se procede la suspensión de la
prestación de los servicios se caracteriza como una actuación contraria a los
derechos fundamentales y principios constitucionales del Estado Democrático de
Derecho brasileño, bajo el punto de vista del garantismo. Por fin, se buscó demostrar
la actuación de los operadores del derecho frente al poder discricionario de la
Administración Pública y presentar jurisprudencias acerca del asunto.
Palabras-clave: Suspensión. Servicios públicos esenciales. Garantismo.
SUMÁRIO
RESUMO .....................................................................................................................8
RESUMEN...................................................................................................................9
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12
CAPITULO 1.................................................................................................................................16
OS SERVIÇOS PÚBLICOS NO DIREITO BRASILEIRO...................................................16
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA CONSAGRAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO NO
DIREITO ADMINISTRATIVO ....................................................................................16
1.2 SERVIÇOS PÚBLICOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL .................................19
1.3 SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL ....................................................................22
1.4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ..........................26
1.4.1 Princípio da regularidade ..................................................................................28
1.4.2 Princípio da continuidade ..................................................................................29
1.4.3 Princípio da eficiência .......................................................................................30
1.4.4 Princípio da segurança .....................................................................................32
1.4.5 Princípio da atualidade......................................................................................33
1.4.6 Princípio da generalidade .................................................................................34
1.4.7 Princípio da cortesia..........................................................................................35
1.4.8 Princípio da modicidade ....................................................................................36
CAPITULO 2.................................................................................................................................38
TEORIA GARANTISTA.................................................................................................................38
2.1 CONCEITOS INTRODUTÓRIOS ......................................................................38
2.1.1 O Estado Constitucional e/ou Democrático de Direito ......................................38
2.1.2 Os direitos fundamentais ..................................................................................41
2.2 GARANTISMO COMO TEORIA JURÍDICA ......................................................44
2.2.1 Garantismo jurídico: aspectos destacados .......................................................44
2.2.2 Validade, vigência e eficácia normativas na teoria garantista ...........................46
2.3 A TEORIA JURÍDICA GARANTISTA EM FACE DO POSITIVISMO ................48
2.3.1 A teoria positivista crítica garantista ..................................................................48
11
2.3.2 Direitos fundamentais e garantias .....................................................................51
2.3.3 O modelo garantista de legitimidade .................................................................54
CAPITULO 3.................................................................................................................................56
SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS EM FACE DAS
GARANTIAS JUSFUNDAMENTAIS ......................................................................... 56
3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.......................................56
3.2 DA SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS ........................60
3.3 O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO .................................................................67
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................80
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................82
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa investigou a partir de uma matriz teórica garantista, a
possibilidade de suspensão dos serviços públicos essenciais em face das garantias
jusfundamentais de seus usuários. O estudo das garantias fundamentais considerou
os dispositivos constitucionais que tratam da prestação de serviços públicos pela
Administração Pública de forma direta ou indireta; dos princípios constitucionais que
servem de base aos direitos e a proteção dos usuários destes serviços, bem como
das leis infraconstitucionais que regulamentam a prestação dos serviços públicos
essenciais e disciplinam a relação entre os usuários destes serviços e seus
prestadores.
Os motivos que ensejaram o presente estudo, relativo à ilegalidade da
suspensão dos serviços públicos essenciais, têm seu fundamento principal no fato
de que estes serviços são considerados indispensáveis ao desenvolvimento e
funcionamento da sociedade e, portanto, devem ser submetidos ao princípio da
continuidade do serviço público. O não atendimento deste princípio pode gerar na
sociedade como um todo um mal muito maior do que o inadimplemento individual de
seus usuários, pois os serviços essenciais abrangidos neste caso detêm
fundamental importância para a coletividade. Assim, se ocorrer a negativa na
prestação destes serviços ao usuário, pela Administração Pública, poderá ocorrer
como conseqüência o surgimento de situações prejudiciais a coletividade. Um
exemplo disto seria o caso do fornecimento de água e tratamento de esgoto que
atingem não só o usuário individual, mas também as pessoas que têm contato com o
ambiente em que este vive.
Ainda em relação à suspensão de serviços públicos essenciais, é importante
analisar sua ilegalidade sob o foco do direito à ampla defesa, contraditório e devido
processo legal, princípios estes que vedam a possibilidade do prestador de serviços
efetuar a suspensão dos mesmos através do exercício arbitrário das próprias razões.
Além disso, resta estudar se a subsunção do fornecimento de serviços públicos
essenciais não destoa do princípio da dignidade da pessoa humana e da proteção
13
do usuário, uma vez que a satisfação das necessidades de interesse público é vital
ao desenvolvimento e funcionamento da sociedade.
Considerando-se a sistemática legal e constitucional de proteção ao usuário,
optou-se nesta pesquisa por analisar a aplicação deste sistema a partir de uma
abordagem garantista em respeito aos fundamentos de proteção dos indivíduos.
Estes fundamentos, a priori, encontram-se dispostos na Constituição Federal e,
dentro da concepção garantista, devem servir de fundamento para a atuação da
Administração Pública implementada pelo Estado Democrático de Direito, para
atender às necessidades dos cidadãos que compõe a sociedade.
Para que seja atingido o objeto geral mencionado foram delineados os
seguintes objetivos específicos:
a) Descrever a evolução histórica e conceitual da noção de serviço
público;
b) Especificar as características que ensejam a classificação de um
serviço público como essencial;
c) Identificar os princípios norteadores dos serviços públicos com base na
Lei 8.987/95;
d) Caracterizar a abordagem garantista enquanto teoria jurídica do Estado
Democrático de Direito;
e) Relacionar os direitos fundamentais e garantias e a suspensão da
prestação dos serviços públicos essenciais;
f) Descrever o papel do Poder Judiciário frente ao poder discricionário da
Administração Pública.
Quanto à metodologia empregada, em primeira instância, utilizou-se o
raciocínio dedutivo como abordagem investigatória. Sobre este tipo de abordagem
destaca-se o silogismo, ou seja, a construção lógica a partir de duas preposições
chamadas premissas, onde se retira uma terceira, nelas logicamente implicadas,
14
denominada conclusão dos estudos. De acordo com Oliveira (1999, p. 62) o método
dedutivo “Trata-se de um raciocínio puramente formal, no qual a conclusão não
fornece um conhecimento novo, ao contrario da indução; isto por que a dedução já
esta implícita nos princípios”.
Partindo da análise do conceito de Oliveira, destaca-se que as premissas1
desta pesquisa consideram que os serviços públicos essenciais são vitais ao
desenvolvimento da sociedade e que a lei prevê que estes tipos de serviços devem
ser contínuos. Portanto, determinou-se como hipótese de pesquisa2 que a
suspensão dos serviços públicos essenciais, da maneira como é efetuada no Brasil,
é ilegal.
A técnica de pesquisa utilizada foi a observação de documentação indireta
que se subdivide em pesquisa documental, realizada em documentos como leis e
acórdãos, que podem ser encontradas em arquivos públicos ou particulares,
bibliotecas, sites da internet, etc.; e pesquisa bibliográfica em livros, artigos e outros
meios de informação em periódicos (revistas, boletins, jornais).
Com intuito de ordenar o estudo com coerência aos temas relatados, esta
pesquisa foi dividida em três capítulos de forma simétrica e lógica.
No Capítulo 1, aborda-se aspectos da consagração dos serviços públicos no
direito administrativo, sua previsão na Constituição Federal de 1988, bem como a
classificação e os princípios que norteiam a prestação destes aos usuários, tendo
como base o disposto no parágrafo 1.º do artigo 6.º da Lei 8987/95.
Em seguida, no Capítulo 2, apresenta-se a Teoria Garantista, onde se enfoca
aspectos relativos ao Estado Constitucional e/ou Democrático de Direito, as
1
“[...] uma premissa é uma fórmula considerada hipoteticamente verdadeira, dentro de uma dada inferência.”
(ENCICLOPEDIA WIKIPÉDIA, 2008a).
2
“A Hipótese é uma proposição que se admite de modo provisório como princípio do qual se pode deduzir pelas
regras da lógica um conjunto dado de proposições, ou um mecanismo da experiência a explicar”. [...] No método
científico, a hipótese é o caminho que deve levar à formulação de uma teoria. O cientista, na sua hipótese, tem
dois objetivos: explicar um fato e prever outros acontecimentos dele decorrentes (deduzir as consequencias).
(ENCICLOPEDIA WIKIPÉDIA, 2008b).
15
diferenças e particularidades desta teoria em relação ao Positivismo e a importância
referenciada por esse modelo jurídico aos direitos fundamentais e garantias
representadas pelos princípios constitucionais explícitos e implícitos.
A partir dos fundamentos dos Capítulos 1 e 2, o Capítulo 3 aborda
diretamente o tema desta pesquisa, ou seja, a suspensão dos serviços públicos
essenciais, em fase das garantias jusfundamentais de seus usuários, dentro da ótica
da Teoria Garantista, perpassando pelo princípio da dignidade da pessoa humana e
da continuidade da prestação de serviços públicos essenciais. Além disso, abordase o papel do Poder Judiciário, em especial dos juízes, no controle da atuação
discricionária da Administração Pública.
CAPITULO 1
OS SERVIÇOS PÚBLICOS NO DIREITO BRASILEIRO
Neste capítulo, faz-se uma incursão acerca dos fundamentos sobre os
serviços públicos. Perpassando pelos diversos autores, são elucidados os aspectos
históricos da consagração do serviço público no direito administrativo, seguido dos
conceitos destes, na Constituição Federal. Nesta esteira é embasado o serviço
público essencial, e, por fim, os princípios norteadores dos serviços públicos.
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA CONSAGRAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO NO
DIREITO ADMINISTRATIVO
A teoria acerca das primeiras noções de serviço público surgiu na França, no
início do século XX, com a criação da chamada Escola de Serviço Público, a qual
era chefiada por Leon Duguit. A primeira concepção de serviço público surgiu no
período do Estado Liberal e era bastante ampla, pois abrangia todas as atividades
desempenhadas pelo Estado. Houve, inclusive, a idéia de substituição da noção de
soberania pela de serviço público, a qual abrangia toda a matéria relacionada com o
direito público. (DI PIETRO, 2006, p. 110).
Medauar (2003, p.368), ao comentar a concepção de serviço público
defendida pela referida Escola, aduz que “Para esta escola o serviço público era a
idéia mestra do direito administrativo e o Estado seria uma cooperação de serviços
públicos, organizados e controlados pelos governantes.” Portanto, para a autora em
comento, a referida escola idealizava a concepção de Estado como uma grande
máquina prestadora de serviços públicos.
Esta concepção de serviço público adotava os critérios: subjetivo, o qual
considerava que só era serviço público aquele prestado pelo Estado; material, o qual
entendia que a atividade exercida deveria atender as necessidades coletivas para
17
ser considerada ‘serviço público’; e formal, a qual considerava que o regime jurídico
aplicado deveria ser exclusivamente público. Este tipo de classificação foi válido em
sua origem, pois, “o serviço público abrangia as atividades de interesse geral,
prestadas pelo Estado sob regime jurídico publiscista.” (DI PIETRO, 2006, p. 112).
Ocorre que, com o afastamento do Estado das concepções liberais, em
meados do século XX, ocorreu certa dissociação da noção de serviço público tal
como considerado em sua origem, gerando a primeira crise em relação à noção de
serviço público. Esta pretensa crise resultou do fato de que o Estado passou a atuar
em ramos de atividades antes exercidas apenas por particulares, o que eliminou a
noção subjetiva de que o serviço público só poderia ser executado pelo Estado e foi
inserida neste contexto a atuação de entidades privadas, que passaram a atuar sob
o regime de direito público privado. (MEDAUAR, 2003).
A partir destas constatações definiu-se a noção de serviço público dentro do
direito administrativo como “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para
que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de
satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou
parcialmente público.” (DI PIETRO, 2006, p. 114).
Neste mesmo sentido complementa Gasparini (2006, p. 288), acerca da
concepção de serviço público dentro do direito administrativo:
Os administrados, para o bom desempenho de suas atribuições na
sociedade, necessitam de comodidades e utilidades. Umas podem
ser atendidas pelos meios e recursos que cada um dos membros da
comunidade possui; outras só podem ser satisfeitas através de
atividades a cargo da Administração Pública, a única capaz de
oferecê-las com vantagem, segurança e perenidade. Todas as
atividades da Administração Pública, destinadas ao oferecimento de
comodidades e utilidades com essas características, constituem
serviços públicos.
Importante também a conceituação proposta por Bandeira de Mello (2003, p.
612), acerca de serviço público:
Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou
comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral,
18
mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume
como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem
lhe faça, às vezes, sob um regime de Direito Público – portanto,
consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições
especiais –, instituído em favor dos interesses definidos como
públicos no sistema normativo.
Assim, restou instituído que os serviços públicos seriam as atividades
exercidas pela Administração Pública na procura da satisfação das necessidades da
sociedade. Porém, a Administração Pública não deveria exercer atividades que a
iniciativa privada detinha condições de desenvolver, devendo, nestes casos, se ater
em atuar como um órgão fiscalizador a fim de garantir o desenvolvimento destes
empreendimentos de iniciativa particular. Ao menos em lei, esta noção prevalece no
âmbito das democracias liberais que têm como exemplo no Brasil o Art. 173 da
Constituição Federal, o qual determina que “Ressalvados os casos previstos nesta
Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante
interesse coletivo, conforme definidos em lei.”
No Brasil, a noção de serviço público teve recepção expressa na Constituição
de 1988, a qual fornece alguns parâmetros e referenciais para sua definição.
Portanto, no Brasil, só são considerados serviços públicos aqueles definidos
constitucionalmente ou através de leis ordinárias que tenham sido editadas em
consonância com as diretrizes estabelecidas pelo texto constitucional. (GROTTI,
2003, p. 88)
Segundo Di Pietro (2006, p. 114-116), esta concepção de serviço público
desenvolvida no Brasil, adota os critérios subjetivo, material e formal, porém, com
algumas modificações em relação a sua definição original, vista anteriormente.
Nesta nova concepção, o critério subjetivo prevê a criação do serviço público pelo
Estado de acordo com a importância e necessidade para a coletividade, sendo que a
sua prestação pode ser efetuada pelo próprio Estado ou pela iniciativa privada, por
meio de concessão, permissão ou de pessoas jurídicas criadas com essa finalidade.
Em relação ao critério formal, a autora destaca que a definição do regime
jurídico aplicado é determinado por lei, e, dependendo de suas características, pode
ser público ou privado. Porém, a previsão de regime jurídico privado é híbrida, pois
19
não se aplica o regime comum, utilizado nos casos de empresas privadas, na sua
totalidade, em razão da natureza dos serviços prestados.
No que tange ao critério material, a autora aduz que o serviço público é
atividade que visa o interesse da coletividade sem que haja um objetivo de auferir
lucro com o desenvolvimento desta atividade, ou seja, a busca por rentabilidade não
é seu objetivo primordial, e sim, a satisfação das necessidades públicas.
Já Bandeira de Mello (2003, p. 615), adota apenas os critérios material e
formal para compor a noção de serviço público. Através da conjugação destes dois
elementos, o Autor conclui que o critério material consiste somente em um suporte
fático de onde se extrai a noção jurídica de serviço público, assim, este critério seria
insuficiente para caracterizá-lo, pois pode existir não só no serviço público, mas
também em outras atividades governamentais. Por fim, complementa o autor que o
serviço prestado somente poderá ser considerado público quando regido pelo
regime de direito administrativo, configurando uma atividade administrativa pública
prestada sob regime de Direito Público.
1.2 SERVIÇOS PÚBLICOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Como visto anteriormente, no Brasil o serviço público tem previsão
constitucional em vários artigos. Para Grotti (2003, p. 89), alguns destes artigos
dispõem sobre seu aspecto subjetivo (Arts. 37, XIII3; 39 § 7.º4; 136 §1.º, II5 dentre
outros), mais ligado ao aparato administrativo do Estado e outros mais ligados ao
aspecto objetivo, ou seja, na prestação das atividades de natureza pública (Arts. 21,
3
Art. 37, XIII - é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de
remuneração de pessoal do serviço público.
4
Art. 39, § 7º Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios disciplinará a aplicação de
recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia e
fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e
desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de
adicional ou prêmio de produtividade.
5
Art. 136, §1.º, inciso II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade
pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
20
X6, XI7, XII8, XIV9; 30, V10; 37, § 6.º11; 139, VI12; 145, II13; 17514, dentre outros).
Acentua a referida autora:
A amostra é bem expressiva de que a Constituição brasileira acolhe
a categoria de serviço público, e de que inspira a atuação do Poder
Público também na idéia de prestação de um sistema de serviços.
Trata-se de atividades de titularidade do Poder Público, que não se
desnaturam quando sua execução é delegada a particulares, pois a
Constituição fixa um vínculo orgânico com a Administração, ao
dispor, no caput do Art.175, que incumbe ao Poder Público a
prestação de serviços públicos, diretamente ou sob regime de
concessão ou permissão (GROTTI, 2003, p. 89).
Em contrapartida, para Justen Filho (2005, p. 484), as atividades
consideradas como serviços públicos pela Constituição, nem sempre serão
entendidas como tal. Para o Autor, uma atividade só terá status de serviço público
quando envolver “[...] a prestação de utilidades destinadas a satisfazer direta e
imediatamente os direitos fundamentais.” Complementa ainda o referido Autor que,
havendo “[...] oferta de utilidades desvinculada da satisfação dos direitos
fundamentais, existirá uma atividade econômica em sentido estrito [...]” e não um
serviço público.
6
Art. 21, X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional.
7
Art. 21, XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de
telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão
regulador e outros aspectos institucionais
8
Art. 21, XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de
radiodifusão sonora, e de sons e imagens; b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento
energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; c)
a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária; d) os serviços de transporte ferroviário e
aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;
e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; f) portos marítimos, fluviais e
lacustres.
9
Art. 21, XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito
Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por
meio de fundo próprio.
10
Art. 30, V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos
de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial.
11
Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
12
Art. 139,VI - intervenção nas empresas de serviços públicos.
13
Art 145, II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de
serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.
14
Art. 175 Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
21
Já o posicionamento de Di Pietro (2006, p. 116), ao comentar sobre os
aspectos que envolvem a prestação de serviços considerados públicos através de
particulares, se faz no sentido de que não basta ter o serviço público finalidade de
promover o bem estar público, deve também ter previsão atribuindo ao Estado esse
objetivo. E afirma ainda a Autora que, a partir destes apontamentos, denota-se que
“[...] todo serviço público visa atender a necessidades públicas, mas nem toda
atividade de interesse público é serviço público.”
Para Justen Filho (2005, p. 486), o problema acerca da constatação de que
um serviço considerado público pela Constituição pode atender realmente à
satisfação das necessidades fundamentais da população, e, assim, possa ser
classificado como serviço público, se resolveu com a previsão de que “[...] a
publicização de certa atividade e as hipóteses em que figurará serviço público”
caberá à lei ordinária, a qual atenderá os dispositivos constitucionais que se referem
aos serviços públicos.
Exemplo típico da determinação de que leis ordinárias seriam responsáveis
pela regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos aos serviços públicos
é a Lei 8.987/9515, que regulamenta o Art. 175 da Constituição. O referido artigo
dispõe acerca da prestação de serviços públicos e prevê que a prestação deve ser
efetuada de maneira adequada a atender às necessidades dos usuários, nos
seguintes termos:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou
sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação,
a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de
serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua
prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e
rescisão da concessão ou permissão;
II – os direitos dos usuários;
III – política tarifária;
IV – a obrigação de manter serviço adequado.
15
LEI Nº 8.987, DE 13 DE FEVEREIRO DE 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da
prestação de serviços públicos previstos no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências.
22
Para Justen Filho (2005, p. 488), este artigo quer deixar claro que o serviço
público deve ser prestado pelo Estado, porém este poderá atribuir sua gestão a
particulares. Complementa o Autor que nos casos em que a prestação for feita por
particulares, “Não se aplicam os princípios da livre iniciativa, uma vez que a
prestação do serviço incumbe ao Estado. Nem se poderia cogitar de livre
concorrência, pois a titularidade estatal se retrata no monopólio estatal.”
Portanto, a partir desta imposição determinada constitucionalmente, deixou-se
para o legislador ordinário a tarefa de instituir os parâmetros de aplicação e
regulamentação do dispositivo constitucional em apreço. Assim, a fim de
regulamentar este dispositivo constitucional, foi instituída a Lei 8.987/95, a qual
dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos,
estabelecendo alguns requisitos básicos na prestação dos serviços públicos.
Impende salientar que tais requisitos, embora estejam dispostos em lei relativa à
concessão e permissão de serviços
públicos, também são aplicáveis à
Administração Pública quando esta os presta diretamente.
1.3 SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL
Conforme abordado anteriormente, os serviços públicos são aqueles em que
o Poder Público, visando atender às necessidades dos usuários, disponibiliza
através do regime de direito administrativo, diversas atividades visando o
atendimento das necessidades da coletividade. Segundo a ótica de Di Pietro (2006,
p. 120-124) os serviços públicos podem ser classificados como:
a) Próprio (atende às necessidades coletivas e é executado pelo Estado ou
concessionários e permissionários) e impróprio (atende às necessidades
coletivas e não é executado pelo Estado, mas somente por ele
autorizados, regulamentados e fiscalizados).
23
b) Administrativo (atende às necessidades internas ou prepara outros
serviços que serão prestados ao público16); Comercial ou industrial (a
administração pública executa, diretamente ou indiretamente, para atender
às necessidades coletivas de ordem econômica) e social (atende às
necessidades coletivas onde a atuação do Estado é essencial, porém,
divide a atuação com a iniciativa privada).
c) Uti singuli (tem por finalidade a satisfação individual e direta das
necessidades dos cidadãos) e uti universi (prestadas à coletividade, mas
usufruídos indiretamente pelos indivíduos).
d) Originários ou congênitos (atividade essencial do Estado – tutela do
direito) e derivados ou adquiridos (atividade facultativa – social,
comercial e industrial do Estado).
e) Exclusivos (podem ser executados pelo Estado ou particular, desde que
autorizado pelo Poder Público) e não exclusivos (prestados pelo Estado
ou por particulares, no primeiro caso são chamados de próprios e no
segundo de impróprios).
Frente ao exposto, destaca-se que é fundamental o interesse atendido pelos
serviços, a fim de determinar a essencialidade ou não essencialidade destes à
coletividade. Quanto à essencialidade dos serviços públicos, Di Pietro (2006, p. 123)
destaca o exposto por Caio Tácito (1975), que enfatiza que esta “[...] passou a
abranger tanto os encargos tradicionais de garantias de ordem jurídica, como as
prestações administrativas que são emanadas dos modernos direitos econômicos e
sociais do homem [...]”, havendo, todavia,
[...] uma sensível diferença entre os serviços públicos que, por sua
natureza, são próprios e privativos do Estado e aqueles que,
passíveis em tese de execução particular, são absorvidos pelo
Estado, em regime de monopólio ou de concorrência com a iniciativa
privada. (p. 123).
16
Di Pietro (2006, p. 122) destaca que essa expressão é equivoca, pois costuma ser usada em sentido mais
amplo para abranger todas as funções administrativas e também para indicar os serviços que não são usufruídos
diretamente pela comunidade.
24
Neste momento, frente à necessidade do tema abordado neste estudo e pela
especificidade da discussão, entende-se que não se pode discutir sobre serviços
públicos essenciais sem considerar a associação do conceito de serviço público ao
de função administrativa, diretamente relacionada às funções do Estado. A respeito,
vale, ainda que breve, mencionar que:
O conceito público e sua amplitude são variáveis segundo o âmbito
da intervenção do Estado na ordem econômica, sendo que, de
acordo com a opção política espalhada no ordenamento jurídico de
cada país, caberá maior ou menor número de serviços para o
Estado, ou, mediante processo de privatização, serão colocados tais
serviços nas mãos de particulares. (SCARTEZZINI, 2006, p. 56).
Bandeira de Mello (1979, p. 65) complementa destacando que:
[...] o serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou
comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral,
mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume
como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem
lhe faça às vezes, sob um regime de Direito Público [...].
Neste contexto, infere-se que o serviço público consiste em prestação de
utilidades essenciais à coletividade. Em relação à essencialidade dos serviços
públicos, Meirelles (2005) faz algumas considerações, porém, o referido autor
classifica os serviços essenciais como serviços públicos e os não essenciais como
serviço de utilidade pública. Ensina o autor, em relação aos serviços públicos
essenciais:
Serviços públicos: propriamente ditos, são os que a Administração
presta diretamente à comunidade, por reconhecer sua
essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e
do próprio Estado. Por isso mesmo, tais serviços são considerados
privativos do Poder Público, no sentido de que só a Administração
deve prestá-los, sem delegação a terceiros, mesmo porque
geralmente exigem atos de império e medidas compulsórias em
relação aos administrados. (MEIRELLES, 2005, p. 324)
Complementando o conceito do autor, destaca-se o Art. 9º, § 1º da
Constituição Federal, o qual define que serviços públicos essenciais: "São
25
necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em
perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população."
Ainda em relação aos serviços públicos essenciais, a Lei 7.783/8917 elenca
em seu Art. 10, determinadas atividades prestadas pelo Poder Público, direta ou
indiretamente, ou ainda por terceiros, consideradas essenciais à população:
a) tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição
de energia elétrica, gás e combustíveis;
b) assistência médica e hospitalar;
c) distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
d) funerários;
e) transporte coletivo;
f) captação e tratamento de esgoto e lixo;
g) telecomunicações;
h) guarda, uso e controle de substâncias radioativas,
equipamentos e materiais nucleares;
i) processamento de dados ligados a serviços essenciais;
j) controle de tráfego aéreo;
k) compensação bancária.
Este rol de atividades serve como um bom indicativo acerca dos serviços
considerados essenciais à população, porém, nada impede que se junte a estes
outros serviços, uma vez que a sociedade vive constantes mudanças em suas
necessidades. Além disso, como o Brasil é um país de dimensões muito grandes e
com muita diversidade social, nada obsta que um serviço seja considerado essencial
em determinada região, enquanto que em outra não o seja.
Ainda se faz necessário mencionar, mesmo que breve, o conceito de serviços
não essenciais, que de acordo com Meirelles (2005) são:
Serviços de utilidade pública: são os que a Administração,
reconhecendo sua conveniência (não essencialidade, nem
necessidade) para os membros da coletividade, presta-os
diretamente ou aquiesce em que sejam prestados por terceiros
(concessionários ou autorizatários), nas condições regulamentadas e
sob seu controle, mas por conta e risco dos prestadores, mediante
remuneração dos usuários. (p. 324-325).
17
LEI Nº 7.783, DE 28 DE JUNHO DE 1989. Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades
essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências.
26
Meirelles (2005) aduz que é fundamental para que o serviço seja considerado
essencial, o fato deste visar a satisfação das necessidades da sociedade e a
garantia de sua subsistência e desenvolvimento, ou seja, dirigir-se ao bem comum.
Outrossim, o serviço oferecido com o intuito de facilitar a vida do usuário na
coletividade, proporcionando-lhe conforto e bem estar, de acordo com as suas
conveniências individuais, deve ser considerados não essencial.
1.4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Assim como todo instituto possui um regime jurídico sedimentado em
princípios que o diferenciam, dando-lhes identidade própria, também os serviços
públicos submetem-se a um conjunto de normas que os diferenciam das demais
atividades realizadas pelo Estado. A doutrina diverge quanto à nomenclatura,
número, conteúdo e valor jurídico dos princípios aplicados aos serviços públicos.
Grotti (2003, p. 256-257) comenta essa diversidade de entendimentos entre os
doutrinadores:
O que há são pontos comuns entre os diferentes serviços públicos,
princípios fundamentais que se aplicariam sem distinção de seu
modo de exercício, que lhes conferem prerrogativas e restrições
especiais em relação aos particulares. Isso não impede que os
serviços sejam regidos por outras regras e princípios específicos, de
acordo com as peculiaridades da atividade exercida, de forma a
possibilitar o atendimento de seus objetivos. Tais princípios achamse consagrados no direito positivo de cada sociedade sob várias
formulações normativas e visam assegurar a qualidade do serviço e
oferecer garantias ao usuário.
Portanto, não importa a nomenclatura ou quantidade de princípios utilizados
pelos doutrinadores a fim de sedimentar a prestação de serviços públicos, o que se
deve buscar é atender ao fim para os quais estes foram criados, aplicando-se a eles
regras que assegurem seu cumprimento eficaz.
A par da divergência doutrinária acerca dos princípios que devem reger a
prestação de serviços públicos, a Lei 8.987/95 estabeleceu, no parágrafo 1.º do Art.
27
6º, que estes necessitam ser prestados de maneira adequada à satisfação de seus
usuários, e, para atender a esta disposição, devem satisfazer às condições previstas
na referida lei, ou seja, regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade,
generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. Convém salientar
que a lei em comento não classifica as supracitadas condições para prestação de
serviço público adequado como princípios e sim como critérios de adequação dos
serviços. A classificação destes critérios como princípios resulta de construção
doutrinária, a qual será adotada nesta pesquisa.
Gasparini (2006, p. 296-297) conclui que os princípios supracitados, quando
não cumpridos pelos órgãos a quem se concedeu ou permitiu a realização de
alguma atividade da qual o Poder Público seria responsável, permitem à
Administração Pública tomar medidas administrativas ou judiciais a fim de
restabelecer o cumprimento adequado dos serviços prestados por aqueles. Aduz
ainda o Autor que tais providências não são de mera discricionariedade
administrativa, caracterizando-se como atos dos quais a Administração Pública não
tem qualquer disponibilidade.
Meirelles (2005, p.387-388) complementa Gasparini ensinando que o dever
de prestar serviço público adequado deve ser feito no interesse da coletividade e,
em virtude disto, a Administração Pública tem poder de regulamentar e controlar sua
prestação, podendo inclusive fiscalizar “desde a organização da empresa até sua
situação econômica e financeira, seus lucros, o modo e a técnica da execução dos
serviços, bem como fixar as tarifas em limites razoáveis [...]”.
Portanto, em se tratando de serviços públicos, deve-se atentar para os
princípios que norteiam sua prestação, sendo que, por ser uma atividade precípua
do Estado, este pode invocar os referidos princípios a fim de regulamentar a atuação
de quem detém concessão ou permissão de prestação de serviços públicos, uma
vez que:
[...] não é possível se alcançar um conceito de serviço público
absoluto. É preciso a observação de cada caso concreto. Mas uma
vez determinado que uma atividade é serviço público, isso produzirá
efeitos quanto às prerrogativas, obrigações e relações com os
28
usuários. Uma delas é a obrigação de se observar os princípios.
(KANAYAMA, 2006, p. 199)
Isto posto, passar-se-á ao estudo destes princípios, tendo como base o
disposto na Lei 8.987/95, a qual servirá de parâmetro para determinar os princípios
que são analisados na presente pesquisa.
1.4.1 Princípio da regularidade
Segundo Gasparini (2006, p. 297), a regularidade se justifica pela exigência
de um padrão de qualidade e quantidade, as quais devem ser impostas pela
Administração pública, em caso de concessão ou permissão, ou cumpridas por esta
quando responsável diretamente pelos serviços prestados. Argüi ainda que, para ser
regular, o serviço deve atender às exigências dos usuários, sem deixar de lado “as
condições técnicas exigidas pela própria natureza do serviço público e as condições
de sua prestação.”
Outrossim, Grotti (2003, p. 287) argumenta, ao comentar que a maioria dos
doutrinadores tratam os princípios da continuidade e regularidade de maneira
indistinta, que estes se diferenciam em razão de que o primeiro “[...] se refere à
realização ininterrupta do serviço público, segundo a natureza da atividade
desenvolvida e do interesse a ser atendido [...]”, enquanto que o segundo “[...] se
vincula à prestação devida de acordo com as regras, normas e condições
preestabelecidas par esse fim, ou que lhe sejam aplicáveis.” Complementa ainda a
Autora que um serviço pode muito bem ser prestado continuamente, porém, sem
regularidade, ou seja, este pressupõe a existência daquele, no entanto a
continuidade independe do serviço ser regular ou não.
29
1.4.2 Princípio da continuidade
Trata-se de um princípio que visa garantir o atendimento das necessidades
dos usuários de serviços públicos de forma ininterrupta. Este princípio teve sua
previsão consagrada pelo Código de Defesa do Consumidor, o qual dispõe em seu
Art. 22 que “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a
fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais,
contínuos.”
O princípio da continuidade caracteriza o regime dos serviços públicos, no
qual a prestação de serviço regular não deve ser suspensa ou interrompida. Destaca
Bagatin (2006, p. 30-31) que, a priori, este princípio não pode ser confundido com a
gratuidade da prestação dos serviços públicos, devendo ser analisada a
possibilidade de suspensão ou não destes, em virtude da falta de pagamento por
meio da análise do caso concreto.
Para Faria (2004, p. 293), é dever da administração pública prestar serviço
público continuadamente, devendo inclusive, nos casos em que o serviço é prestado
indiretamente, usar das prerrogativas que o direito lhe confere a fim de cumprir esta
designação. No mesmo sentido já se posicionou Scartezzini (2006):
Qualquer que seja a forma de prestação, direta ou indireta, o
princípio da continuidade deve ser fielmente observado como
garantia da finalidade pública a ser colimada. Com efeito, os serviços
públicos devem funcionar bem, como legitimação da própria
existência do Estado. (p. 87)
Complementa Gasparini (2006, p. 297), o fato de o serviço público dever ser
prestado continuamente não exclui a possibilidade deste; em casos de emergência,
após aviso acerca de problemas técnicos, ou de segurança, ou em caso de falta de
pagamento pelos usuários, ser interrompido a fim de sanar eventuais problemas
alheios ao prestador de serviços.
30
Di Pietro (2006, p. 88) enumera algumas conseqüências importantes que
decorrem deste princípio, como a vedação da possibilidade de greve nos serviços
públicos, que embora não seja uma determinação absoluta, prevê alguns limites
para que possa ocorrer; a impossibilidade da parte que contrata com a
Administração Pública de invocar o princípio do exceptio non adimpleti contractus18
nos contratos de prestação de serviços públicos; a possibilidade da Administração
Pública “[...] utilizar os equipamentos e instalações da empresa que com ela
contrata, para assegurar a continuidade do serviço”; em caso de necessidade,
admitir a aplicação dos institutos da suplência, delegação e substituição, a fim de
preencher temporariamente vagas em aberto nas funções públicas; e por fim “[...] a
possibilidade de encampação da concessão de serviço público.”
Portanto, verifica-se que o Poder Público deve procurar manter sempre a
continuidade da prestação dos serviços públicos, principalmente os essenciais,
porém, em determinados casos a sua interrupção pode ser admitida, desde que
atendidos certos requisitos dispostos em lei.
1.4.3 Princípio da eficiência
O princípio da eficiência, segundo Gasparini (2006, p. 297), pressupõe a
busca pelo resultado prático dos serviços prestados aos usuários. Acentua que estes
“[...] devem ser prestados sem desperdício de qualquer natureza, evitando-se,
assim, onerar os usuários por falta de método ou racionalização no seu
desempenho.”, ou seja, deve-se procurar ter o mínimo de gastos possíveis a fim de
18
Exceção de contrato não cumprido. Este princípio confere à Administração Pública a possibilidade de invocá-lo
para alterar o contrato firmado de forma unilateral. Além disso, a Administração Pública detém várias
prerrogativas em relação a quem com ela contrata, conforme o disposto no artigo 58 da Lei 8.666/ 93.
Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em
relação a eles, a prerrogativa de:
I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os
direitos do contratado;
II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta Lei;
III - fiscalizar-lhes a execução;
IV - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;
V - nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços
vinculados ao objeto do contrato, na hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas
contratuais pelo contratado, bem como na hipótese de rescisão do contrato administrativo.
31
baratear sua prestação e diminuir o custo para os usuários, porém, sem deixar de
prestar tais serviços de acordo com as necessidades da coletividade.
Para Silva (2007, p. 671), o princípio da eficiência, mais que um conceito
construído juridicamente, é na verdade um conceito econômico que serve para
qualificar as atividades prestadas pelo poder público. O autor define este princípio
como:
Numa idéia muito geral, eficiência significa fazer acontecer com
racionalidade, o que implica medir os custos que a satisfação das
necessidades públicas importam em relação ao grau de utilidade
alcançado. Assim, o princípio da eficiência, introduzido agora no art.
37 da Constituição pela EC-19/98, orienta a atividade administrativa
no sentido de conseguir os melhores resultados com os meios
escassos de que se dispõe a menor custo. Rege-se, pois, pela regra
da consecução do maior benefício com o menor custo possível.
(SILVA, 2007, p. 671)
Ainda em relação ao princípio em apreço, conceitua Di Pietro (2006, p. 98):
O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode
ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público,
do qual se espera o melhor desempenho possível de suas
atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao
modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública,
também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados
na prestação do serviço público.
Assim, através da aplicação do princípio da eficiência estar-se-ia melhorando
a organização do Estado como um todo, possibilitando que sua atuação fosse mais
efetiva, permitindo assim, a prestação de serviços públicos de maneira mais
condizente com as necessidades dos usuários. Além disso, a aplicação desse
princípio possibilita que os serviços sejam prestados com o menor custo possível
aos usuários, porém, sem perder sua qualidade e a satisfação das necessidades
dos usuários.
32
1.4.4 Princípio da segurança
O principio da segurança visa garantir que a execução dos serviços públicos
seja disponibilizada sem que ocorram riscos aos usuários quando estes forem
utilizar o serviço, bem como do prestador ao fornecê-lo.
Este princípio impõe aos prestadores de serviços públicos a responsabilidade
pelos danos que causarem a terceiros, conforme estabelece expressamente o Art.
37, 6.º da Constituição Federal de 1988. Silva, (2007, p. 674) comenta que esta
previsão advém das determinações emanadas do Estado de Direito e que o dever
de indenizar, em caso de danos, independe de comprovação destes, bastando para
tal a comprovação da ocorrência do dano ter sido causada pelo prestador de serviço
público. O autor define esta previsão como doutrina do risco administrativo, na qual
“O terceiro prejudicado não tem que provar que o agente procedeu com culpa ou
dolo, para lhe correr o direito ao ressarcimento dos danos sofridos.”
Para Gasparini (2006, p. 298), “Nada deve ser menosprezado se puder, por
qualquer modo, colocar em risco os usuários do serviço público ou terceiros ou,
ainda, bens públicos e particulares.”
Por sua vez, Grotti (2003, p. 293) ensina que:
Podem ser exigíveis as precauções e a segurança legitimamente
esperadas que não inviabilizem a prestação do próprio serviço. O
item segurança pressupõe uma relação de custo-benefício, cujo
objeto é o interesse público, envolvendo, pois, uma ponderação das
vantagens e desvantagens das medidas atinentes à diminuição dos
riscos.
Por fim, complementa a Autora, que o risco a ser evitado pode ser tanto de
ordem física como emocional e que a proteção deve se estender não só ao usuário,
mas a todos que tiverem contato com o serviço prestado.
33
1.4.5 Princípio da atualidade
Para Gasparini (2006, p. 298), este princípio pressupõe a constante
atualização das técnicas e equipamentos responsáveis pela prestação de serviços
aos usuários, visando “[...] oferecer à coletividade de usuários o que há de melhor,
dentro das possibilidades da outorga.”
Já para Grotti (2003, p. 296), a atualização dos serviços deve ser avaliada
analisando-se a relação custo-benefício decorrente da mesma, uma vez que os
custos da atualização poderão acarretar no aumento da contraprestação por parte
dos usuários, correndo-se o risco de inviabilizar sua fruição por determinadas
camadas sociais da população. No entanto, complementa a Autora: “[...] a
manutenção de técnicas cientificamente ultrapassadas poderá constituir-se em fonte
geradora de ineficiência e de insegurança do serviço.”
Por fim, complementa Justen Filho (2005, p. 490), referindo-se ao princípio da
mutabilidade ou adaptabilidade, o qual pela definição do autor, infere-se tratar do
mesmo princípio nomeado como da atualidade pelos outros doutrinadores já citados:
A mutabilidade retrata a vinculação do serviço público à necessidade
a ser satisfeita e às concepções técnicas de satisfação. É da
essência do serviço público sua adaptação conforme a variação das
necessidades e a alteração dos modos possíveis de sua solução. Há
um dever para a Administração de atualizar a prestação do serviço,
tomando em vista as modificações técnicas, jurídicas e econômicas
supervenientes.
Além disso, salienta o autor, não há que se falar em direito adquirido quando
se tratar de prestação de serviços conforme contratado originariamente, pois estes
estão em constante modificação, assim como a sociedade em si.
34
1.4.6 Princípio da generalidade
Este princípio encontra-se disposto, além da Lei 8987/95, nos Arts. 5.º e 37
da Constituição de 1988, uma vez que destes artigos emanam precipuamente os
princípios da igualdade e impessoalidade. O princípio da generalidade, também
chamado por alguns de princípio da igualdade ou impessoalidade, segundo
Gasparini (2006, p. 298), se refere ao fato de que se os usuários atenderem às
condições exigidas para sua obtenção devem receber o serviço em condições de
igualdade com todos os demais. No mesmo sentido é o posicionamento de Di Pietro
(2006, p. 120), o qual aduz que não deve haver distinções de caráter pessoal na
prestação de serviços públicos.
Justen Filho (2005, p. 489) complementa, acerca do referido princípio, que
todos que se encontrem em igualdade de condições não podem sofrer restrições ao
acesso dos serviços públicos. Aduz ainda que, “Nesse ponto, o intérprete se depara
com a conhecida dificuldade inerente ao princípio da isonomia, relacionada ao
problema de identificar os limites da igualdade.” A partir desta constatação, o Autor
prega que podem ocorrer discriminações, desde que sejam “[...] fundamentadas em
critérios adequados.” e transparentes, e que esta discriminação não inviabilize a
prestação do serviço.
Por outro lado, Silva (2007, p. 667) comenta que este princípio pode ser
aplicado também sob o ponto de vista que “[...] os atos e provimentos administrativos
são imputáveis, não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade
administrativa em nome do qual age o funcionário”, ou seja, o agente é apenas o
instrumento que manifesta a vontade do Estado.
Di Pietro (2006, p. 85) também compartilha da mesma idéia de Silva (2007),
ao acrescentar que o princípio em comento “[...] tanto pode significar que esse
atributo deve ser observado em relação aos administrados como a própria
Administração.” Na visão da autora, o primeiro sentido significaria que este princípio
estaria relacionado à finalidade da Administração pública, a qual não pode prejudicar
ou beneficiar pessoas determinadas e no segundo teria a mesma conotação já
35
referida por Silva, ou seja, a que a impessoalidade se referiria ao agente que presta
o serviço em nome do Estado.
Portanto, este princípio encontra fundamento, acima de tudo, na própria
concepção de Estado, enquanto prestador de serviços públicos, pois se trata de
dever garantido constitucionalmente, sem distinções, e disponível a todos os
usuários, os quais devem ser tratados indistintamente, uma vez que não se trata de
um favor ou conveniência do Poder Público a sua disponibilização a todos os
usuários.
1.4.7 Princípio da cortesia
Segundo Grotti (2003, p. 299), o princípio da cortesia visa garantir, a todos
que usufruem os serviços públicos um atendimento condizente com a urbanidade e
civilidade com que todos devem ser tratados, sendo um dever de quem está
prestando o serviço e um direito do cidadão, ser atendido de acordo com o que se
quer dispor com tal princípio. Outrossim, acrescenta a Autora, que hoje em dia já são
disponibilizados meios para os usuários reclamarem, quando não atendido o
princípio da cortesia na prestação dos serviços.
Na mesma linha de pensamento, Gasparini (2006, p. 298) aduz que a
prestação em consonância com o já comentado, “[...] não é favor do agente ou da
Administração Pública, mas dever de um e de outro [...]”. Assim, o princípio da
cortesia advém do fato de que todos devem ser tratados com o devido respeito,
sendo que o prestador do serviço, no caso o Estado, representado pelo agente
público, deve atender ao usuário como um cliente a quem se tem o dever de prestar
um serviço, o qual é direito seu receber.
36
1.4.8 Princípio da modicidade
O princípio da modicidade visa garantir o acesso a prestação de serviços da
maneira menos onerosa possível. Conforme leciona Gasparini (2006, p. 299), os
serviços públicos não devem visar a obtenção de lucro, o valor cobrado pela
prestação destes deve que ser suficiente apenas para “[...] remunerar os benefícios
recebidos e permitir o seu melhoramento e expansão.” Argüi ainda o referido Autor
que “[...] em situações excepcionais o Poder Público pode subsidiar seu custo ou
consentir na utilização de outras fontes de receitas [...]” nos termos do Art. 11 da Lei
8.987.
Bandeira de Mello (2003, p. 618) aduz que a modicidade é corolário essencial
na prestação de serviços públicos, devido a sua importância para as pessoas a
quem se destinam, sendo que, “[...] pagar importâncias que os onerassem
excessivamente e, pior que isto, que os marginalizassem.” seria um grande
impropério. Igualmente, complementa o Autor, num país como o Brasil, onde a
maioria da população é pobre ou miserável, “[...] é obvio que o serviço público, para
cumprir sua função jurídica natural, terá de ser remunerado por valores baixos,
muitas vezes subsidiados.”
Para Justen Filho (2005, p. 491), o princípio da modicidade na prestação de
serviços públicos influi inclusive na concepção destes, uma vez que não teria
cabimento disponibilizar um serviço público que não fosse acessível aos usuários
em geral. Além disso, argumenta que se deve contribuir na medida da capacidade e
da intensidade dos benefícios auferidos. Por fim, complementa que, aos indivíduos
carentes, o acesso ao serviço público deve ser custeado por outrem, através de
subsídios oriundos dos cofres públicos e contribuições dos demais usuários.
Feitas essas considerações acerca da origem e evolução histórica da
concepção de serviço público, bem como os princípios instituídos por lei para
garantir sua prestação a fim de atender às necessidades dos usuários, passar-se-á
agora ao estudo da Teoria Garantista, a qual será utilizada como matriz teórica para
37
desenvolvimento da problemática acerca da possibilidade de suspensão dos
serviços públicos essenciais.
CAPITULO 2
TEORIA GARANTISTA
O capítulo 2 vislumbra a Teoria Garantista enfocando os conceitos
introdutórios no que tange o Estado Constitucional e/ou Democrático de direito e os
direitos fundamentais. Dentre os conceitos abordados pela teoria do garantismo
jurídico destacam-se os aspectos inerentes a validade, vigência e eficácia
normativas dentro da concepção garantista e suas diferenças e peculiaridades em
relação ao positivismo jurídico. Por fim, aborda-se a importância dos direitos
fundamentais e garantias na perspectiva da Teoria Garantista.
2.1 CONCEITOS INTRODUTÓRIOS
2.1.1 O Estado Constitucional e/ou Democrático de direito19
O Estado Constitucional de direito fundamenta-se em regras e limites que
constituem e determinam seu funcionamento enquanto regime democrático. Em sua
concepção, procura idealizar a garantia dos direitos das pessoas que são a base
deste Estado e não apenas “[...] valores externos ou condições axiológicas, mas
também
vínculos
estruturais
de
toda
a
dinâmica
que
nele
se
perfaz.”
(CADEMARTORI, 2001, p. 67)
19
Cumpre salientar que para a presente pesquisa, entender-se-á que Estado Constitucional de Direito e Estado
Democrático de Direito possuem a mesma conceituação, haja vista os autores pesquisados utilizarem destas
duas definições como sinônimas, ora referindo-se ao Estado como Constitucional de Direito, ora como
Democrático de Direito.
39
Cademartori (2007) ao analisar os aspectos que determinaram a aparição
deste Estado Constitucional de Direito, em substituição ao Estado de Direito
Legislativo ou liberal comenta em relação a estes que:
A crise destas visões da lei e do poder legislativo acabou por
questionar a capacidade dos mesmos para regular adequadamente a
vida social e política, supondo assim a definitiva superação do
Estado legislativo de Direito enquanto modelo de ordenação social e
a necessidade de restaurar a eficácia do direito como limite de poder.
(CADEMARTORI, 2007, p. 17)
O autor ensina ainda que, em razão desta crise firmou-se a necessidade de
se criar uma ordem normativa superior e vinculante, a qual poderia assegurar “a
máxima vinculação de todos os poderes do Estado e da sua produção normativa.”
Esta nova visão é resultado do fato de que as normas constitucionais passaram a ter
poder vinculante e o próprio Estado tem o dever de respeitar seus comandos
normativos. Por fim, complementa Cademartori (2007, p. 24), que a “forma política
que é conhecida hoje como Estado Democrático de Direito, que tem como
característica a constitucionalização de Direitos Naturais”, é quem legitima a
democracia contemporânea e concretiza os direitos fundamentais positivados pelas
constituições.
Canotilho (2002, p. 97-100) ensina que o Estado Democrático de Direito deve
cumprir às exigências implantadas pela Constituição, no que tange às limitações do
poder político, ou seja, o Estado submete-se ao direito, e assevera que a soberania
popular juridicamente regulada serve de ligação entre o Estado de Direito e o Estado
Democrático, a fim de estruturar o moderno Estado Democrático de Direito.
Cademartori (2001, p. 47) contribui, salientando que “A instauração desse
novo Estado também coincidiu com o surgimento de constitucionalismo, corrente
esta que via na Constituição um instrumento de proteção e garantia das liberdades
do cidadão, estabelecendo limitações às prerrogativas dos governantes.”
Já Ferrajoli (2006, p. 790) complementa que este modelo de Estado, derivado
das modernas Constituições, caracteriza-se no plano formal pelo princípio da
legalidade, o qual subordina o Poder Público “[...] às leis gerais e abstratas que lhe
disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de
40
legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes [...]” e; no plano
substancial na busca pela garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, ou seja,
“[...] por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos
correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e
das obrigações de satisfação dos direitos sociais, bem como dos relativos poderes
dos cidadãos de ativarem a tutela judiciária.”
O referido autor frisa que:
Graças a estas duas fontes, não existem, no Estado de Direito,
poderes desregulados e atos de poder sem controle: todos os
poderes são assim limitados por deveres jurídicos, relativos não
somente à forma, mas também aos conteúdos de seu exercício, cuja
violação é causa de invalidez judicial dos atos e, ao menos na teoria,
de responsabilidade de seus autores. (FERRAJOLI, 2006, p.790)
Silva (2007, p.120), ao comentar acerca do Estado Democrático de Direito
refere-se à Constituição de 1988 asseverando que através desta, aquele obteve
subsídios para concretizar “as exigências de um Estado de justiça social, fundado na
dignidade da pessoa humana.” O referido autor destaca ainda que:
[...] a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode
ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social.
E se a Constituição se abre para as transformações políticas,
econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se
elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental
expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento
necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função
transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais
democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar uma
função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores
socialmente aceitos. (2006, p. 121-122)
Por fim, Bortoli (2004, p. 100) ensina que o modelo normativo, próprio do
Estado Democrático de Direito, caracteriza-se “[...] no plano formal, pelo princípio da
legalidade, em virtude do qual todo poder público [...]” subordinam-se as formas de
exercício disciplinadas nas leis gerais e abstratas e submetem-se ao controle de
legitimidade efetuado pelos juízes, os quais são independentes e separados do
Estado; já no plano substancial, infere-se que todos os poderes estatais devem
buscar a garantia dos Direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da observação
41
do que dispõe a Constituição acerca dos deveres públicos, dos direitos de liberdade,
da satisfação dos Direitos Sociais e da possibilidade dos cidadãos requererem a
tutela judicial.
2.1.2 Os direitos fundamentais
Os direitos fundamentais estão na ordem dos direitos que, conforme apregoa
Castro (2003, p. 244), “[...] tanto o Estado quanto a sociedade devem respeitar,
como condição do progresso individual e coletivo, inclusive, e especialmente, para a
permanência dos esquemas institucionais do convívio social traçados dois séculos
atrás.”. Na concepção do autor, o ser humano é o princípio e o fim da sociedade e
do Estado e merece a tutela do poder público, o qual se justifica em razão daquele.
O referido autor defende que os direitos fundamentais possuem uma
reconhecida função social, o que impende determinar que as normas constitucionais
que os regulamentam estendem sua eficácia às relações públicas e privadas, a fim
de garantir condições minimamente dignas de igualdade entre os homens, enquanto
seres individuais, e complementa:
É pois, com relação ao grupo social como um todo, abrangendo a
sociedade, o Estado e as comunidades de Estados, que o indivíduo e
as multidões de indivíduos reivindicam ascensão aos patamares da
dignidade humana, na convicção de que a consagração secular dos
direitos fundamentais não busca somente a salvaguarda atomizada
da individualidade de um ser determinado, mas, por certo, da
individualidade de todos os seres coletivamente inseridos na
sociedade, responsáveis que são, de per si e em conjunto, pelo
destino comunitário. Nessa visão revisitada do liberalismo, que não
deixa de ser a porta de entrada da social democracia, os preceitos
constitucionais consagradores dos direitos fundamentais protegem
determinados bens e valores e obrigam de modo indistinto, tanto os
Poderes Públicos quanto a sociedade civil, conformando
axiologicamente o sentido de ordenação (jurídica) das relações
sociais. (p. 244-245).
42
Para Cademartori (2007, p. 26-29), os direitos fundamentais têm como
principais características a primazia do interesse dos cidadãos frente ao Estado e é
resultado da concepção individualista da sociedade na qual os indivíduos livres e
iguais proporcionam o novo paradigma de legitimação do Estado. Para o autor, os
direitos fundamentais são fruto de condições reais ou históricas que fundamentam
sua criação, e, por isso mesmo, estão em constante criação, ou seja, conforme
surgem novas exigências sociais surgem também novos direitos fundamentais, a fim
de satisfazer àquelas. Além disso, complementa o autor, os direitos fundamentais
são usufruíveis por todos, indistintamente e seu fundamento de validade advém de
um consenso universal da humanidade, a qual não pode dispor de seus
mandamentos.
Silva (2007, p. 178-179) complementa que estes direitos são “direitos
fundamentais do homem” e os conceitua como “[...] situações jurídicas, objetivas e
subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade
da pessoa humana”. Além disso, indicam “[...] situações jurídicas sem as quais a
pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive [...]”,
sendo que, tais situações devem atender “[...] a todos, por igual, devem ser, não
apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.”
Sarmento (2001, p. 60/61) destaca que os direitos fundamentais possuem um
núcleo essencial, o qual dispõe acerca do “limite dos limites” de proteção destes. E
sobre esse conteúdo essencial dos direitos fundamentais o autor destaca duas
teorias, a absoluta e a relativa. A teoria absoluta apregoa a delimitação abstrata do
conteúdo essencial, sendo que esta delimitação não pode ser ultrapassada sob
hipótese alguma, “[...] nem mesmo quando a invasão possa ser justificada pela
proteção a outros direitos fundamentais de mesma hierarquia.”. A teoria relativa
defende que o núcleo fundamental dos direitos fundamentais deve ser delineado de
acordo com cada caso em concreto, por meio da análise dos direitos em jogo. Neste
caso, aplicar-se-ia o princípio da proporcionalidade e da ponderação dos referidos
direitos.
Complementando, Cademartori (2007, p. 31) ensina que os direitos
fundamentais,
antes
considerados
normas
programáticas
encontradas
nas
constituições, a partir do fim da segunda guerra mundial, passaram a ter força
43
normativa. Nas palavras do autor, “Isso implica levar os direitos fundamentais a
sério, ou seja, surge então a exigência de ter de operar com essa nova espécie
normativa.” Para o autor, essas normas de direitos fundamentais possuem
enunciados principiológicos, o que acarreta em inúmeras vezes, ao confronto entre
os princípios que delas emanam. Nestes casos, como não há hierarquia entre os
princípios, esses conflitos devem ser decididos levando-se em conta o que é mais
justo ao caso em apreço.
Acerca dessa possibilidade de confronto entre princípios que estabelecem
direitos fundamentais, Sarmento (2001) explica que, para resolução destes conflitos,
deve-se utilizar o método da ponderação de bens, o qual, segundo o autor,
encontra-se intimamente ligado ao princípio da hermenêutica constitucional, uma
vez que ambos preocupam-se em analisar o caso concreto, sem, contudo,
descuidar-se das dimensões normativas da Constituição. O autor ensina ainda que:
O equacionamento das tensões principiológicas só pode ser
empreendido à luz das variáveis fáticas do caso, as quais indicarão
ao intérprete o peso específico que deve ser atribuído a cada cânone
constitucional em confronto. E a técnica de decisão que, sem perder
de vista os aspectos normativos do problema, atribui especial
relevância às suas dimensões fáticas, é o método de ponderação de
bens. (p. 55)
Igualmente, o referido autor destaca a importância do princípio da
proporcionalidade no controle da constitucionalidade dos atos do Poder Público e na
realização da ponderação de bens, a fim de analisar os interesses em jogo nos
casos de conflitos de princípios constitucionais detentores de direitos fundamentais.
Enfim, numa tentativa de delinear o entendimento acerca do equacionamento
e da ponderação de bens relacionados às questões que envolvam direitos
fundamentais, importante é o entendimento de Cademartori (2001):
Com efeito, muitos desses direitos, quais sejam, os fundamentais,
devem prevalecer sobre quaisquer interpretações de cunho
utilitarista, hoje apresentados sob a roupagem de interesse geral ou
interesse público, utilizadas inúmeras vezes pela Administração na
sua atuação discricionária. Assim sendo, tais direitos passam a ser
limitações intransponíveis pelo Poder Público na sua interação com
os administrados. (p. 175).
44
2.2 GARANTISMO COMO TEORIA JURÍDICA
2.2.1 Garantismo jurídico: aspectos destacados
Ao falar-se de garantismo jurídico devem destacar-se três aspectos que
definem e justificam sua aplicação nos mais diversos campos do ordenamento
jurídico. O primeiro destes aspectos diz respeito à designação do garantismo como
um modelo normativo de direito baseado na estrita legalidade, própria do Estado de
direito.
Ferrajoli (2006, p. 786) ensina que este modelo, precipuamente aplicado ao
direito penal, tem aplicação adequada a todo o sistema constitucional, “[...]
sobretudo pelos mecanismos de invalidação e de reparos idôneos, de modo geral, a
assegurar efetividade aos direitos normativamente proclamados [...] a fim de conferir
a Constituição “[...] o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo.”
Cademartori define que:
Esse modelo permite ao estudioso analisar um determinado sistema
constitucional para verificar eventuais antinomias entre as normas
inferiores e seus princípios constitucionais, bem como incoerências
entre as práticas institucionais efetivas e as normas legais. A partir
daí, poderá inferir-se o grau de garantismo do referido sistema, ou
seja, o grau de efetividade da norma constitucional. (2007, p. 97)
O segundo aspecto a ser destacado dentro da Teoria Garantista diz respeito
à validade, efetividade e vigência das normas, compreendidas em relação às
diferenças existentes entre si. Nesse desiderato, Ferrajoli argumenta que:
Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação
teórica que mantém separados o “ser” do “dever ser” no direito; e,
aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos
ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente
garantistas) e práticas operacionais (tendentemente antigarantistas),
interpretando-a com a antinomia – dentro de certos limites, fisiológica
e, fora destes, patológica – que subsiste entre validade (e não
45
efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas.
(2006, p.786)
A partir destas constatações, o autor pretende deixar claro as divergências
existentes no ordenamento jurídico em relação “[...] a normatividade e realidade,
entre direito válido e direito efetivo, um e outro vigentes.” (2006, p. 786)
Cademartori (2007, p. 97-98) por sua vez, complementa que “A abordagem
teórica neste caso permite estabelecer uma diferença entre ser e dever ser no
Direito [...]” apontando como principal divergência neste modelo normativo a
tendência garantista de sua concepção e a aplicação tendencialmente antigarantista
de sua prática efetiva, formando um modelo normativo válido, com aplicação prática
efetiva, porém ineficaz.
O terceiro aspecto a ser destacado na Teoria Garantista se refere à
percepção do garantismo como filosofia política justificada pelos interesses e bens
externos ao direito e ao Estado. Para Ferrajoli:
Neste último sentido o garantismo pressupõe a doutrina laica da
separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto
de vista interno e ponto de vista externo na valoração do
ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. E
equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda da
legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista
exclusivamente externo. (2006, p. 787)
A partir destes aspectos, Ferrajoli (2006, p.811-812) destaca que na Teoria
Garantista, num primeiro momento tem-se um modelo de ordenamento capaz de
invalidar o poder exercido contrariamente ao disposto nas normas superiores que
tutelam os direitos fundamentais, num segundo momento, há criação de uma teoria
jurídica capaz de deslegitimar as normas vigentes inválidas e num terceiro momento,
permite-se instituir uma doutrina filosófico-política que critica e deslegitima “[...] o
exterior das instituições jurídicas positivas, baseadas na rígida separação entre
direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entre ponto de vista jurídico ou interno
e ponto de vista ético-político ou externo ao ordenamento.”
A partir da análise desses três aspectos acerca do garantismo, que a Teoria
Garantista, embora fundamentada dentro do direito penal, possui elementos
46
aplicáveis a todos os segmentos do direito, sendo possível aplicar seu modelo “[...]
com referência a outros direitos fundamentais e a outras técnicas e critérios de
legitimação, modelos de justiça e modelos garantistas de legalidade [...]”
(FERRAJOLI, 2006, p. 788) análogos ao aplicado ao direito penal.
2.2.2 Validade, vigência e eficácia normativas na teoria garantista
Como visto anteriormente, o garantismo tem sua fundação embasada no
conceito individualista e apresenta uma estrutura hierarquizada de normas que
visam limitar o poder político. Assim, Cademartori considera que a Teoria Garantista,
embora tenha derivado da Teoria Garantista Penal, possui o modelo ideal de
legitimação do Estado de Direito. O autor ensina que:
Em nível epistemológico, essa teoria embasa-se no conceito de
centralidade da pessoa, em nome de quem o poder deve constituirse e a quem deve o mesmo servir. Esta concepção instrumental do
Estado é rica em conseqüências, tanto como teoria jurídica quanto
visão política, dado que as mesmas vêem o Estado de Direito como
um artifício criado pela sociedade, que é logicamente anterior e
superior ao poder político. (2007, p. 91)
Em relação à validade, a teoria positivista prega que esta se relaciona ao
procedimento adotado na criação das normas. Porém, a Teoria Garantista somou a
este procedimento um novo elemento. Segundo Cademartori (2007, p. 99-100), a
partir da concepção do Estado Constitucional de Direito, analisando às normas sob a
ótica do garantismo, estas somente terão validade se, além de adotarem os
procedimentos previstos em normas superiores, atenderem também ao conteúdo
substancial destas, ou seja, os direitos fundamentais que delas emanam, no sentido
de impor limitações e imperativos negativos ou positivos ao poder de legislar do
Estado.
Neste sentido, importante a contribuição de Bortoli:
47
Com relação à validade, o Garantismo rompe com a tradição
positivista que reduzia a validade de uma norma à sua eficácia ou à
sua mera validade formal ao demonstrar que uma norma, para ser
válida, deve obedecer não somente aos seus requisitos
procedimentais, mas também aos substanciais. A correspondência
aos critérios formais de produção normativa, por sua vez, vai ser
conceituada pelo Garantismo como vigência. (2004, p.102)
Assim, na visão da Teoria Garantista a definição de validade feita pela teoria
positivista se refere à legitimidade das normas e não a sua validade, sendo que,
para essa teoria, uma norma vigente pode ser considerada válida ou inválida, ou
ainda, eficaz ou ineficaz. (CADEMARTORI, 2007, p. 100)
Já em relação à ótica defendida pelo Garantismo em relação à vigência das
normas, colhe-se o ensinamento de Bortoli (2004), o qual aduz que:
O Garantismo defende que a coerência e a plenitude não são
propriedades do Direito vigente, mas ideais limites do Direito válido,
refletindo o dever-ser das normas em relação com as superiores e
não o ser do Direito. No Estado de Direito, as normas
hierarquicamente superiores se apresentam como normas em
relação às inferiores e estas como fatos em relação às superiores.
(2004, p. 103)
A partir destas constatações, Cademartori (2007) define a visão teórica geral
do Garantismo em relação à distinção que este imputa às normas. Ensina o autor
que, para a Teoria Garantista:
a) Uma norma é “justa” quando responde positivamente a
determinado critério de valoração ético-político (logo,
extrajurídico);
b) Uma norma é “vigente” quando é despida de vícios formais; ou
seja, foi emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão
competente, de acordo com o procedimento prescrito;
c) Uma norma é “válida” quando está imunizada contra vícios
materiais; ou seja, não está em contradição com nenhuma norma
hierarquicamente superior;
d) Uma norma é “eficaz” quando é de fato observada pelos seus
destinatários (e/ou aplicada pelos órgãos de aplicação). (p. 101102)
Ferrajoli (2006) define esta relação existente entre normas e direitos válidos,
vigentes e eficazes ou efetivos ao discorrer acerca do normativismo e do realismo
em que se divide o direito contemporâneo. Ensina o autor que:
48
Conseqüentemente, como se disse, “direito vigente” não coincide
com “direito válido”: é vigente, ainda que inválida, uma norma efetiva
que não obtempera todas as normas que regulam a sua produção.
Nem coincide, de outra parte, com “direito efetivo”: é vigente, ainda
que não efetiva, uma norma válida não obtemperada pelas normas
às quais regula a produção. (p. 803)
Por fim, complementa Cademartori (2001, p. 156), que a validade das normas
poderá ser auferida quando estas não contiverem vícios materiais e não forem
contraditórias a outras normas hierarquicamente superiores; serão vigentes se
atenderem à forma procedimental prevista em normas superiores e; serão eficazes
quando observadas pelos seus destinatários e aplicadas pelos órgãos competentes.
2.3 A TEORIA JURÍDICA GARANTISTA EM FACE DO POSITIVISMO
2.3.1 A teoria positivista crítica garantista
Verifica-se que o garantismo possui uma visão própria acerca da definição de
validade, vigência e eficácia que o difere da visão adotada pelo positivismo jurídico
implantado pelo Estado Moderno, “[...] caracterizado pela forma estatal do Direito e
pela forma jurídica do Estado [...]’ (CADEMARTORI, 2007, p. 103)
Ferrajoli (2006, p. 804) argumenta que a teoria de direito garantista “[...] se
configura principalmente como crítica do direito positivo vigente não meramente
externa, ou política, [...]”, mas também interna ou jurídica, posto que preocupada
com os contornos de invalidade e inefetividade das normas oriundas deste modelo
de direito.
A partir desta constatação acerca da teoria jurídica garantista, Cademartori
(2007, p. 104) ensina que o objeto de pesquisa desta é construir uma crítica interna
ao Direito positivo vigente, analisando seus aspectos em relação à ineficácia e
49
invalidade. Ao referir-se a esta perspectiva de estudo fundada no âmbito do
Garantismo, o autor assevera que:
De fato, denuncia ele como “ideológicas” tanto as orientações
normativistas, que confundem vigência com validade, quanto as
teorias realistas, que reduzem a validade à eficácia. As primeiras são
tidas por ideológicas por contemplarem apenas o direito válido,
esquecendo-se de sua possível ineficácia; as segundas porque
apreciam apenas as normas eficazes, deixando de lado a sua
possível invalidade. O resultado dessas operações simplificadoras é
a legitimação ideológica do Direito inválido vigente: de um lado, por
ser ignorado como não vigente, e do outro lado por ser tido como
válido. (2007, p. 103)
Para Cademartori (2007, p. 105-106), outro elemento importante estudado
pela Teoria Jurídica Garantista diz respeito ao papel do jurista em explicitar as
características estruturais do Direito vigente - que, segundo a visão garantista, são a
incompletude e incoerência existentes entre os níveis normativos, os quais se
apresentam “[...] como normativo com respeito ao inferior e como fáctico com
respeito do nível superior” – por meio de juízos de invalidade das normas inferiores e
ineficácia das superiores.
Cademartori (2007, p. 106-107) observa em relação aos juízos de vigência e
validade das normas que, o primeiro refere-se a caracteres descritivos, pois se
relacionam a promulgação das normas “[...] por autoridades competentes e a
observância do devido procedimento de edição [...]”, enquanto que o segundo possui
uma carga axiológica acentuada. Para o autor, estas características – as quais ele
define como condições formais de vigência e condições substanciais de validade são encontradas nas normas superiores e constituem-se em requisitos de fato para
sua existência e garantias ao respeito dos valores, principalmente constitucionais,
que as normas devem ter, a fim de se evitar antinomias.
Bortoli (2004) complementa, em relação à crítica realizada pelo Garantismo
ao positivismo jurídico dogmático, ao referir-se ao papel desempenhado pelo jurista
garantista:
Outra característica que revela o teor crítico do Garantismo em
relação ao positivismo jurídico dogmático é a tarefa incumbida ao
jurista garantista de denunciar as antinomias e lacunas do
50
ordenamento mediante juízos de invalidade das normas inferiores e
de ineficácia das superiores. Pois a coerência e a plenitude do
ordenamento não são propriedades do Direito vigente, mas de ideais
limites do Direito válido que não refletem o ser do Direito, mas o
dever ser das normas inferiores em sua relação com as superiores.
O Direito vigente se caracteriza como incompleto e incoerente devido
às violações de fato das proibições impostas ao legislador.
(BORTOLI , 2004, p. 105)
Assim, segundo Ferrajoli (2006), a tarefa do jurista segundo o modelo
garantista seria explicar a incoerência e incompletude das normas
[...] mediante juízos de invalidade sobre aquelas inferiores e
correlativamente de não efetividade sobre aquelas superiores. É
assim que a crítica do direito positivo, sob o ponto de vista do direito
positivo, tem uma função descritiva das antinomias e das suas
lacunas, e ao mesmo tempo prescritiva da sua auto-reforma,
mediante invalidação das primeiras e integração das segundas. (p.
810)
Ainda em relação ao papel do jurista garantista, Ferrajoli (2006, p. 804-805)
argumenta que as orientações críticas garantistas, as quais ele define como
“juspositivismo crítico”, se refletem “[...] no modo de conceber o trabalho do juiz e do
jurista, pondo em questão dois dogmas do juspositivismo dogmático: a fidelidade do
juiz à lei e a função meramente descritiva e valorativa do jurista na observação do
direito positivo vigente.”
Cademartori (2007, p. 107) complementa ainda que, para esse desiderato,
ganha espaço relevante a atividade discricionária de quem aplica as normas ao
interpretá-las, o que implica na “[...] ilegitimidade da autoridade judiciária sem,
contudo, comprometer o modelo de Estado de Direito de forma importante eis que
tal modelo comporta esses espaços de ilegitimidade [...]”.
51
2.3.2 Direitos fundamentais e garantias
Pode-se destacar que a Constituição da República Federativa do Brasil é um dos
principais instrumentos de proteção dos direitos fundamentais. Sarlet (2006)
comenta que o constituinte brasileiro
[...] deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção
de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas
embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive
(e especialmente) aquilo que se pode – e nesse ponto parece haver
consenso – denominar de núcleo essencial de nossa Constituição
formal e material. (p. 61)
De modo geral salienta-se que os direitos são declarados e as garantias
estabelecem-se em função dos direitos como meios de proteção. Cademartori
(2007, p. 107) ensina que embora as garantias e os direitos fundamentais possam
ser considerados tecnicamente distintos, para muitos autores estas expressões são
consideradas sinônimas, sobretudo se levar-se em consideração, no caso do Brasil,
que a Constituição Federal de 1988 não faz distinção entre as duas espécies de
expressões.
Silva (2007, p. 412) não compartilha do pensamento daqueles que
consideram as expressões em análise sinônimas. Para o autor “[...] os direitos são
bens e vantagens conferidos pela norma, enquanto as garantias são meios
destinados a fazer valer esses direitos, são instrumentos pelos quais se asseguram
o exercício e gozo daqueles bens e vantagens.”
Assim, para o autor, os direitos fundamentais, os quais ele denomina como
“direitos fundamentais do homem”, referem-se aos princípios ideológico-políticos que
destinam-se a designar situações de maneira concreta e material, para garantir à
pessoa humana sua convivência em sociedade de maneira digna, livre e igual aos
demais indivíduos. (SILVA, 2007, p. 178)
Cademartori (2007, p. 110) complementa que estes direitos fundamentais
possuem certa hierarquia entre si e entende que aqueles considerados superiores
52
não podem ser limitados, sendo considerados pelo garantismo como ‘direitos
fundamentais absolutos. Neste mesmo sentido, Ferrajoli (2006), ao referir-se aos
princípios de direito penal mínimo, ensina que:
Estes mesmos princípios – de justificação externa e, se
constitucionalizados, de legitimação interna – assinalam, de resto, a
existência de direitos fundamentais por assim dizer absolutos, porque
hierarquicamente supra-ordenados a todos os outros e não limitados
por nenhuma razão, tampouco a tutela de outros direitos
fundamentais [...] (p. 843)
Já as garantias, as quais Silva (2007, p. 188-189) divide em gerais e
constitucionais, seriam: as gerais, destinadas a conferir aos direitos fundamentais
existência e efetividade; e as constitucionais responsáveis por determinar “[...]
imposições, positivas ou negativas, aos órgãos do Poder Público, limitativas de sua
conduta, para assegurar a observância ou, no caso de violação, a reintegração dos
direitos fundamentais.”
Portanto, conforme ensina Silva (2007):
Nesse sentido, essas garantias não são um fim em si mesmas, mas
instrumentos para a tutela de um direito principal. Estão a serviço dos
direitos fundamentais, que, ao contrário, são um fim em si, na medida
em que constituem um conjunto de faculdades e prerrogativas que
asseguram vantagens e benefícios diretos e imediatos a seu titular.
Podem-se auferir tais vantagens e benefícios sem utilizar-se das
garantias. Mas estas não conferem vantagens nem benefícios em si.
(p. 189)
Para Bortoli (2004), as garantias têm papel fundamental para estruturação do
positivismo voltado a existência e o cumprimento dos direitos fundamentais. O autor
dá especial relevância ao papel da Constituição, como norma orientadora do Estado
e do Direito para atingir este desiderato. Por fim o autor ressalta que:
Os distintos elementos ou valores, tanto os direitos fundamentais
quanto os direitos subjetivos e os interesses legítimos, cuja garantia
ou preservação se pretende no Estado Constitucional, são
analisados como garantias da manutenção da posição central da
pessoa no direito e frente ao Estado e como instituições ou
instrumentos que vão permitir que o sistema jurídico e a atuação dos
53
poderes públicos estejam abertos a todo o momento às exigências e
expectativas formuladas ex parte populi. (p. 107)
Ferrajoli (2006, p. 844) destaca dois princípios desenvolvidos dentro das
garantias penais, objeto de estudo do Garantismo, segundo o qual possuem caráter
geral. São eles o princípio da legalidade e o princípio da submissão à jurisdição. O
primeiro porque impõe ao Poder Público, os pressupostos, os órgãos responsáveis e
os procedimentos a serem adotados na prestação dos direitos sociais e o segundo
para garantir a possibilidade de se acionar em juízo os sujeitos responsáveis por
eventuais lesões aos direitos fundamentais liberais ou sociais, a fim de que estas
sejam sancionadas e removidas.
Canotilho (2002) complementa acerca dos princípios da legalidade e
submissão à jurisdição, asseverando que:
Por outras palavras: no direito de acesso aos tribunais inclui-se o
direito de obter uma decisão fundada no direito, embora dependente
da observância de certos requisitos ou pressupostos processuais
legalmente consagrados. Por isso, a efetivação de um direito ao
processo não equivale necessariamente a uma decisão favorável;
basta uma decisão fundada no direito quer seja favorável quer
desfavorável às pretensões deduzidas em juízo. (p. 494)
Ainda no âmbito das garantias, Cademartori (2007, p. 208) faz uma distinção
entre as garantias consideradas por ele, as negativas e as positivas. As garantias
negativas seriam responsáveis por limitar o poder normativo infraconstitucional e as
proibições de fazer, no que tange aos direitos de liberdade, e as garantias positivas
consistiriam em prestações individuais e sociais.
Por fim, Cademartori (2001, p. 27) define as garantias, sob o enfoque da
Teoria Garantista, como “[...] uma técnica de limitação da atuação do Estado no que
se refere aos direitos fundamentais de liberdade [...]”, ou ainda, como meio de
implementação dos direitos sociais. Assim, conforme o autor supracitado, dentro da
perspectiva desenvolvida pela Teoria Garantista, esta tanto pode referir-se a uma
organização jurídica como ao posicionamento assumido pelos operadores do direito
ao realizarem sua aplicação ou modificação.
54
2.3.3 O modelo garantista de legitimidade
Em relação à legitimidade, Cademartori (2007, p. 221) ensina que o modelo
garantista representa um ideal de limitação e imposição normativa de atuação do
governo em seus ordenamentos e ressalta o papel do intérprete do direito na
realização deste desiderato, uma vez que estas limitações e imposições nem
sempre encontram-se explícitas nas normas superiores. Para o autor em comento, o
modelo garantista de legitimidade:
[...] avalia o poder de acordo com critérios postulados por valores
superiores e externos ao Estado, assegura a manutenção da tarefa
do poder como estrutura voltada à satisfação dos interesses da
sociedade, e, na medida, é uma teoria mais apta ao julgamento da
instância política. (p. 220)
Ferrajoli (2006, p. 845) classifica a legitimação, sob o ponto de vista
garantista, em formal e substancial. “A legitimação formal é aquela assegurada pelo
princípio da legalidade e pela sujeição do juiz à lei.” Já a legitimação substancial
advém da “[...] função judiciária e da sua capacidade de tutela ou garantia dos
direitos fundamentais do cidadão.”
O referido autor ensina que sob o âmbito do direito administrativo estas
espécies de legitimação não possuem um nexo tão estreito como na ótica do direito
penal. Porém, considera que mesmo na jurisdição civil e administrativa a lei
desempenha importante papel como fonte de legitimação formal “[...] para a
existência de uma motivação ao menos em parte cognitiva, cuja validade é conexa
com a fundamentação legal e seus argumentos [...]”.
Para Ferrajoli (2006, p. 845), a afirmação supracitada advém do fato de que
na jurisdição administrativa a legitimação substancial dos direitos fundamentais
tutelados tem natureza diversa do direito penal e sua satisfação não prescinde de
verdade ou enumeração exaustiva, daí sua relativa independência da legitimação
formal. O autor complementa ainda:
Mais exatamente, a legalidade civil e administrativa não requerem a
exata denotação dos casos específicos em concreto, mas podem
55
ainda incorporar cláusulas gerais ou critérios valorativos; a motivação
das correspondentes sentenças não deve necessariamente comporse de meras proposições assertivas, mas pode ainda incluir juízos de
valor; e a sua validade substancial não é tão maior quanto mais
aproximadamente lhe é possível predicar-lhe “verdade processual”,
mas simplesmente quanto mais ela é razoavelmente fundada ou
argumentada com referência a direitos fundamentais. (p. 846)
Cademartori (2007, p. 208) complementa que a legitimidade formal refere-se
às competências e procedimentos utilizados para tomar decisões que vinculem toda
a comunidade e a substancial corresponde às garantias dos direitos fundamentais,
liberdade e igualdade social. Por fim, o referido autor ensina que:
De outra parte, a teoria garantista da legitimação, a partir da
assunção da idéia-base do Estado como instrumento da sociedade,
repõe uma vinculação dessa estrutura de poder a valores que têm
por centro a dignidade da pessoa. Em casos como o do nosso país,
onde a sociedade vê-se continuamente avassalada por medidas
legislativas (oriundas do Executivo ou não) que muitas vezes
colocam-na a serviço de uma racionalidade econômica alheia a seus
interesses, a adoção desse enfoque heteropoiético pode fornecer um
travejamento teórico que resgate a valorização da pessoa como
ontologicamente anterior ao Estado fundado por ela. (p. 235)
Assim, partindo da matriz teórica garantista apresentada neste capítulo,
procurar-se-á dentro da perspectiva desta teoria, demonstrar no terceiro capítulo
desta pesquisa a possibilidade, ou não, da suspensão dos serviços públicos
essenciais, em face do inadimplemento dos usuários, tendo em vista o papel do
Estado Constitucional de Direito frente à sociedade e seus direitos fundamentais,
com ênfase ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao papel dos operadores
do direito na resolução de possíveis antinomias, na resolução de conflitos inerentes
à prestação de serviços públicos essenciais.
CAPITULO 3
SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS EM FACE
DAS GARANTIAS JUSFUNDAMENTAIS
Conforme abordado nos capítulos anteriores, a prestação de serviços
públicos está pautada na observância de diversos princípios, os quais permitem aos
usuários receberem serviços públicos adequados às suas necessidades. Restou
definido que os serviços públicos essenciais devem ser postos a disposição dos
usuários, atendendo-se principalmente ao dever de continuidade na prestação
destes, conforme previsão legal contida no Código de Defesa do Consumidor.
Viu-se que, de acordo com a Teoria Garantista, as normas infraconstitucionais
devem ter conteúdo condizente com os princípios dos direitos fundamentais
dispostos expressa ou implicitamente na Constituição, para que possam ser
consideradas válidas. Verificou-se que o Estado Democrático de Direito possui suas
raízes intimamente ligadas aos fundamentos da Teoria Garantista, porém, a
efetivação dos direitos garantidos constitucionalmente, nem sempre é observada na
criação das normas infraconstitucionais, o que implica muitas vezes na promulgação
de leis com conteúdo antigarantista, gerando antinomias.
No caso da suspensão de serviços públicos essenciais, procurou-se
demonstrar neste capítulo que o modo como se procede a suspensão da prestação
dos serviços se caracteriza como uma atuação contrária aos direitos fundamentais e
princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito brasileiro sob o ponto de
vista do garantismo. Neste sentido, a proclamação do principio da dignidade da
pessoa humana assenta as conclusões iniciais deste estudo.
3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe que as pessoas
devam ter condições de vida digna. Dentro da ótica garantista, este princípio possui
57
grande relevância, uma vez que, conforme assinalado anteriormente, a Teoria
Garantista defende que o Estado deve atuar em prol da satisfação das necessidades
dos indivíduos, ou seja, a legitimação estatal tem sua razão de ser na
disponibilização de meios para conferir aos membros da sociedade condições de
vida digna. Neste sentido importa destacar o que ensina Rosa (2005):
Com efeito, a Teoria Geral do Garantismo, entendida como modelo
de Direito, está baseada no respeito à dignidade da pessoa humana
e seus Direitos Fundamentais, com sujeição formal e material das
práticas jurídicas aos conteúdos constitucionais. Isso porque, diante
da complexidade contemporânea, a legitimação do Estado
Democrático de Direito deve suplantar a mera democracia formal,
para alcançar a democracia material, na qual os Direitos
Fundamentais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob
pena de deslegitimação paulatina das instituições estatais. (p. 04)
No Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana foi constituído como
um dos fundamentos da Constituição Federal de 1988, na qual restou determinado:
Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III – a dignidade da pessoa humana;
Silva (2006) sustenta a importância deste fundamento ao proclamar que este
“[...] é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do
homem, desde o direito à vida.”. O autor acrescenta que:
Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a
todos existência digna (art. 170), a ordem social visará à realização
da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa
e seu preparo para o exercício da cidadania (art.205) etc., não como
meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo
normativo eficaz da dignidade da pessoa humana. (p. 105)
Nesse sentido, assume extrema relevância o pensamento de Moraes (2006),
ao referir-se acerca dos fundamentos da República Federativa do Brasil, ao ensinar
que a dignidade da pessoa humana:
58
Concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo
inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a
idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e
Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor
espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente
na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz
consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas,
constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico
deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam
ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas
sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas
as pessoas enquanto seres humanos [...] (p. 16).
Canotilho (2002, p. 225-226), por sua vez, ensina que o princípio da dignidade
da pessoa humana constitui-se no núcleo essencial de existência do Estado, o qual
deve ter este princípio como base dos limites e fundamentos de seu domínio político.
Numa tentativa de delinear este entendimento, Sarlet (2006), após discorrer
acerca da evolução do conceito do princípio da dignidade da pessoa humana, desde
a antigüidade clássica, passando pelos ensinamentos de Tomás de Aquino, Kant e
Hegel, acaba por concluir que o princípio em apreço ocupa,
[...] um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, do
que dá conta a sua já referida qualificação como valor fundamental
da ordem jurídica, para expressivo número de ordens constitucionais,
pelo menos para as que nutrem a pretensão de constituírem um
Estado Democrático de Direito. (p. 38)
Nesta mesma linha de pensamento, Castro (2003) destaca o princípio em
apreço como epicentro dos direitos fundamentais do homem e eixo central do
Estado Democrático de Direito, na medida em que este se configura como protetor
dos direitos humanos radicados essencialmente na dignidade. Para o autor,
[...] no que toca aos direitos fundamentais do homem, impende
reconhecer que o princípio da dignidade da pessoa humana tornouse o epicentro do extenso catálogo de direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais, que as constituições e os
instrumentos internacionais em vigor em pleno terceiro milênio
ofertam solenemente aos indivíduos e às coletividades. (p.15-16)
Há que se ressaltar que a prestação de serviços públicos deve atender à
satisfação dos direitos fundamentais, os quais, por sua vez, têm como núcleo de
formação a defesa incondicional da dignidade da pessoa humana. Importa
59
esclarecer que não se está procurando com essa afirmação desconsiderar a atuação
do Estado na busca do interesse público. Como bem diz Domingos (2006):
O que se pretende demonstrar é tão-somente a necessidade de se
visualizar o fenômeno jurídico e, portanto, também os institutos do
Direito Administrativo, a partir de um paradigma ético-humanista.
Neste sentido, reconhece-se que os serviços públicos estão ligados
àquelas atividades, executadas sob regime de direito público, que
visam satisfazer necessidades ligadas a direitos fundamentais. É sob
esta perspectiva que se deve apreender o conteúdo do interesse
público: a defesa incondicional da dignidade da pessoa humana. (p.
91)
Nessa linha argumentativa, infere-se que o serviço público é o meio de
atuação que o Estado utiliza para fornecer as utilidades necessárias para satisfação
dos direitos fundamentais, ou seja, como bem assevera Breus (2006, p. 263), “[...]
significa que o serviço público é um dos principais meios de assegurar a existência
digna do ser humano, por isso a sua fundamental importância dentro do
ordenamento jurídico brasileiro.”.
Por fim, impende reportar-se aos ensinamentos de Sarlet (2006) acerca da
atuação positiva ou negativa do Estado a fim de garantir a eficácia do princípio da
dignidade da pessoa humana:
Consoante já restou destacado, o princípio da dignidade da pessoa
impõe limites à atuação estatal, objetivando impedir que o poder
público venha a violar a dignidade pessoal, mas também implica (
numa perspectiva que se poderia designar de programática ou
impositiva, mas nem por isso destituída de plena eficácia) que o
Estado deverá ter como meta permanente, proteção, promoção e
realização concreta de uma vida com dignidade para todos, [...]
Assim, percebe-se, desde logo, que o princípio da dignidade da
pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção
(respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e
proteger a dignidade dos indivíduos.(p. 110-111)
Diante do exposto, fica evidenciado que os direitos fundamentais e as
garantias possuem intima ligação com o princípio da dignidade da pessoa humana,
haja vista que a observância e a realização daqueles implica no reconhecimento e
respeito a este princípio. Feita esta constatação, passar-se-á ao estudo de direitos
fundamentais e garantias aplicáveis à atuação do Estado como prestador de
serviços públicos, condizentes com o objetivo de atender às necessidades dos
60
usuários, proporcionando-lhes o mínimo de dignidade e a possibilidade de
suspensão destes serviços sob a ótica destes princípios e garantias.
3.2 DA SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
De acordo com o que já restou delimitado anteriormente, os direitos
fundamentais e as garantias possuem papel destacado dentro do Estado
Democrático de Direito, o qual tem sua legitimidade reconhecida a medida que
disponibiliza aos indivíduos os meios necessários para satisfação de suas
necessidades.
Conforme apregoa Moraes (2006, p. 25), há que se refletir sobre os
fundamentos de proteção do homem contra o poder exercido pelo Estado, pois o
poder delegado pelo povo a seus representantes não é absoluto, tendo como
limitação, a previsão de direitos e garantias individuais e coletivas, indissoluvelmente
ligados à noção de limitação do poder.
Nesse sentido assume extrema relevância destacar que os direitos
fundamentais visam afiançar e consagrar o respeito à dignidade da pessoa humana,
uma vez que são essenciais à vida, pois oriundos da própria condição humana e
previstos pelo ordenamento constitucional de forma explicita ou implícita, não
podendo ser alterados ou abolidos. Além dos direitos fundamentais, têm-se as
garantias que se destacam como meios oferecidos para a proteção destes direitos.
É necessário comentar que o Estado, ao disponibilizar aos usuários os
diversos serviços públicos e, em especial os essenciais, deve pautar-se pelo
atendimento das necessidades transindividuais e individuais de seus destinatários.
Numa tentativa de delinear o entendimento acerca da relação entre os direitos
fundamentais e os serviços públicos, Domingos (2006) comenta:
Impende admitir, neste sentido, que a qualificação de determinada
atividade como “serviço público” deve ter como critério
preponderante a supremacia e indisponibilidade dos direitos
61
fundamentais. Ou seja, referida atividade deve se destinar a suprir
demandas cuja satisfação não admite qualquer transigência, por
estar diretamente vinculada ao princípio máximo da supremacia da
dignidade da pessoa humana. (p. 82)
Para o autor, a prestação de serviços públicos no Estado Democrático de
Direito “[...] subordina-se a um critério excelso e anterior à supremacia do interesse
público, qual seja, a supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais.”, ou
seja, o Estado não pode utilizar o interesse público como “desculpa” para não prover
os direitos fundamentais aplicáveis à realização do princípio da dignidade da pessoa
humana. E acrescenta:
Ora, os direitos fundamentais, especialmente aqueles ligados à
dignidade da pessoa humana, apresentam-se ínsitos aos indivíduos
justamente como conseqüência de sua condição primeira e original
de “pessoa humana”. Esses direitos são apriorísticos e indisponíveis,
independendo de qualquer mediação (inclusive do Direito) para que
sejam reconhecidos. E daí advém sua indisponibilidade.
São estes valores que justificam a existência do Estado e do próprio
Direito. Em última análise, trata-se do “fim” – objetivo máximo – a ser
atingido pelo Estado (o “meio” concebido para atingir tal desiderato).
(Domingos, p. 85-86)
Infere-se da análise ao que restou demonstrado anteriormente que os direitos
fundamentais empregados para satisfação do mínimo necessário para os indivíduos
terem dignidade, constitui-se em dever do Estado Democrático de Direito, como é o
brasileiro. Neste aspecto ganha relevância a atuação estatal por meio da
disponibilização dos serviços públicos essenciais. Conforme conclui Domingos
(2006, p. 88) “[...] os serviços públicos aparecem como forma de realização do
interesse público, na medida em que seu regime jurídico apresenta-se estruturado
com base no escopo primordial de satisfazer o princípio máximo da dignidade da
pessoa humana.”, com o intuito de satisfazer às necessidades fundamentais dos
indivíduos inseridos na sociedade.
Impende salientar que de acordo com os fundamentos deste estudo, os
princípios dos serviços públicos estão diretamente relacionados com a realização
efetiva dos direitos fundamentais e determina ao Estado o dever de garantir sua
disponibilidade a todos os usuários, uma vez que a prestação da atividade pública
deve ser colocada a disposição de todos sem discriminação.
62
Neste sentido, destaca-se inicialmente o caput do Art. 5.º da Carta Magna
onde preceitua que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, [...]”. Vê-se nesta disposição, que nas palavras de Silva (2006, p. 190)
trata-se de uma declaração formal, porém, com intuito de primar pelo direito de
igualdade, o qual deve servir de orientação ao intérprete ao considerar os direitos
fundamentais do homem, a ligação com a definição que Sarlet (2006) dá ao princípio
da dignidade da pessoa humana:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por
parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos da própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
(p. 60)
Essa constatação contribui para realçar a importância de reconhecer o direito
fundamental ao tratamento igualitário a todos, sem distinções de qualquer natureza,
a fim de assegurar condições mínimas de dignidade. Castro (2003, p. 360) defende
que o ideário igualitário foi “[...] o eixo central do projeto constituinte de
transformação social.” implantado pela Constituição Federal de 1988. Para o autor, o
princípio da igualdade irradiou seus efeitos “[...] com a magnitude de valor
protagonista no cenário jurídico constitucional, a todos os demais direitos e garantias
individuais e coletivos que integram a extensa relação de direitos fundamentais.” que
justificam a interpretação da Constituição voltada à promoção da igualdade cultural,
social e econômica.
Para esta pesquisa, alguns direitos fundamentais e/ou garantias dispostas no
art. 5.º da Constituição Federal ganham especial relevância na análise da
possibilidade de suspensão dos serviços públicos essenciais. Primeiramente
destaca-se o inciso XXXV, o qual determina que “a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”.
O dispositivo supracitado diz respeito à garantia constitucional de acesso a
justiça, a qual, segundo Canotilho (2002, 487), ao referir-se à garantia do acesso
63
aos tribunais, constitui-se em “[...] princípio estruturante do Estado de direito.”. Para
o autor:
[...] no direito de acesso aos tribunais inclui-se o direito de obter uma
decisão fundada no direito, embora dependente da observância de
certos requisitos ou pressupostos processuais legalmente
consagrados. Por isso, a efetivação de um direito ao processo não
equivale necessariamente a uma decisão favorável; basta uma
decisão fundada no direito quer seja favorável quer desfavorável às
pretensões deduzidas em juízo. (p. 494)
Torna-se evidente a importância desse princípio para garantir a aplicação da
justiça e do direito através da prestação jurisdicional. Neste sentido, oportuno citar o
comentário de Silva (2006):
A primeira garantia que o texto revela é a de que cabe ao Poder
Judiciário o monopólio da jurisdição, pois sequer se admite mais o
contencioso administrativo que estava previsto na Constituição
revogada. A segunda garantia consiste no direito de invocar a
atividade jurisdicional sempre que se tenha como lesado ou
simplesmente ameaçado um direito, individual ou não, [...] (p. 431)
O autor continua sua análise à garantia dos indivíduos poderem invocar a
proteção jurisdicional para tutela de seus direitos, agregando dois novos elementos
a esta previsão constitucional, a possibilidade de garantia da plenitude de defesa e o
devido processo legal, assegurado pelos incisos LIV e LV do art. 5.º da Constituição
Federal:
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes;
Moraes (2006, p. 26) ensina que as garantias referidas nos incisos
supracitados têm como corolário lógico a defesa dos indivíduos, seja em processo
judicial ou administrativo e conceitua o que entende por ampla defesa e
contraditório:
64
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de
condições que lhe possibilitem trazer ao processo todos os
elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se
ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a
própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução
dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela
acusação caberá igual direito de defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe
a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma
interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.
Feitos estes apontamentos acerca das garantias e direitos fundamentais,
cumpre agora analisar se os mesmos são respeitados pelo Poder Público quando da
suspensão na prestação dos serviços públicos essenciais. Para esse desiderato,
convém ressaltar que os serviços públicos, conforme já restou mencionado no
primeiro capítulo desta pesquisa, devem ser pautados pelos diversos princípios que
visam garantir a prestação destes de maneira adequada.
Além disso, ganha importância a visão expressa pela Teoria Garantista, a
qual defende um modelo de Estado voltado para atender aos direitos fundamentais
dos indivíduos, os quais, conforme já explanado, têm estreita ligação com o princípio
da dignidade da pessoa humana, que por sua vez constitui-se em fundamento do
Estado Democrático de Direito brasileiro.
Conforme já restou aqui disposto, a suspensão dos serviços públicos
essenciais encontra óbice no artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor, o qual
determina que “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a
fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais,
contínuos.”.
Ao analisar-se a proposição acima referida poder-se-ia afirmar que a
suspensão dos serviços públicos essenciais é ilegal, pois a Lei determina que estes
devem ser prestados, em consonância com o princípio da continuidade, já estudado
no capítulo I desta pesquisa. Porém, em razão da previsão contida no artigo 6.º, 3.º,
inc. I e II da Lei n.º 8.987/95, esta afirmação muitas vezes não é observada pelos
prestadores de serviços públicos essenciais. O referido artigo dispõe:
65
§ 3.o Não se caracteriza
interrupção em situação
quando:
I - motivada por razões
instalações; e,
II - por inadimplemento
coletividade.
como descontinuidade do serviço a sua
de emergência ou após prévio aviso,
de ordem técnica ou de segurança das
do usuário, considerado o interesse da
Com base neste artigo, os prestadores de serviços públicos essenciais muitas
vezes deixam de prestá-los, ferindo o princípio da continuidade. Ocorre que, sob a
ótica do garantismo jurídico, a prestação de serviços públicos e, mais ainda os
essenciais, são colocados à disposição dos usuários a fim de garantir-lhes o
atendimento de seus direitos fundamentais. Diante disso, entende-se que os
mesmos não podem ser suspensos por um ato discricionário do Poder Público.
Nesse ínterim, a presente pesquisa vale-se mais uma vez dos ensinamentos de
Cademartori (2001) ao considerar que nas questões que envolvam direitos
fundamentais, estes prevalecem sobre toda e qualquer interpretação auferida pelo
Poder Público, seja de interesse geral ou público, ou seja, os direitos fundamentais
representados neste caso, pelos serviços públicos essenciais, constituem-se em
limitações a atuação discricionária de seus prestadores.
Cumpre salientar que pensar em serviço público como direito fundamental é
ter a certeza de se aplicar efetivamente a Constituição Federal, é dar vida ao artigo
5º LXXVIII parágrafo 2º, no qual está definido que os direitos e garantias
fundamentais expressos na constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados.
Importante especificar, deste modo, que o Poder Público deve prestar os
serviços públicos essenciais em conformidade com os direitos fundamentais, pois
tratam-se de serviços disponibilizados aos indivíduos para atendimento de suas
necessidades básicas, o que os torna imprescindíveis. Assim, de acordo com o que
já foi analisado nessa pesquisa, a suspensão destes deveria atender ao disposto na
Constituição Federal, mais precisamente na parte que trata da garantia ao devido
processo legal.
Ocorre que, no tocante à suspensão dos serviços públicos essenciais, o corte
na prestação acontece, na maioria das vezes, sem que seja oportunizado ao usuário
o direito de insurgir-se ao ato levado a efeito pelo ente prestador do serviço. Nessa
66
esteira, não lhe é oportunizado o direito ao contraditório e a ampla defesa. A decisão
de realizar o corte parte diretamente do prestador de serviços públicos, configurando
uma situação que não encontra amparo na legislação pátria, que, conforme já
exposto, determina, no inciso LIV do Art. 5.º da Constituição Federal, que “ninguém
será privado da liberdade, ou de seus bens, sem o devido processo legal”, ou seja,
sem que lhe seja oportunizado o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Vê-se, portanto, que o Poder Público, no que tange a prestação de serviços
públicos disponibilizados diretamente pela administração pública ou por meio de
concessão ou permissão, não tem atendido aos direitos fundamentais e garantias
constitucionais dos usuários, uma vez que a suspensão destes serviços não atende
às disposições constitucionais que se referem à garantia do devido processo legal.
Sob o ponto de vista da Teoria Garantista, Rosa (2005) refere-se aos limites
da atuação do Estado, em consonância com os preceitos constitucionais, os quais
podem ser aplicados ao objeto desta pesquisa:
A Teoria Garantista representa, ao mesmo tempo, o resgate e
valorização da Constituição como documento constituinte da
sociedade. Esse resgate Constitucional decorre justamente da
necessidade
da
existência
de
um
núcleo
jurídico
irredutível/fundamental capaz de estruturar a sociedade, fixando a
forma e a unidade para resolução de conflitos emergentes,
elencando os limites materiais do Estado, as garantias e direitos
fundamentais e, ainda, disciplinando o processo de formação
político/jurídico do Estado. (p.15).
Oportuno citar o comentário de Scartezzini (2006) que, ao reportar-se aos
princípios da razoabilidade e proporcionalidade, implícitos na Constituição Federal,
refere-se à suspensão dos serviços públicos, argüindo que:
Esse direito de corte, inerente à prestação do serviço, como
conseqüência do não cumprimento do dever do usuário de pagar a
tarifa, deve ser exercido com a devida moderação, informado pelos
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Insta cotejar
valores e verificar qual deles deve preponderar: o direito do
concessionário de ser remunerado pelo serviço prestado, a fim de
evitar colapso do fornecimento com prejuízo de toda a comunidade,
se esse inadimplemento ganhar proporção expressiva; ou os direitos
à vida digna, à segurança, à saúde. (p. 113).
67
O autor complementa que para essa questão não há como estabelecer uma
regra absoluta, somente alguns parâmetros podem ser estabelecidos para nortear as
situações, as quais devem ser analisadas individualmente, com suas peculiaridades.
Nesse sentido, uma vez mais ganha força o entendimento de que o corte no
fornecimento de serviços públicos essenciais não deve ser realizado como um ato
discricionário de seus fornecedores e sim através de um procedimento que
possibilite ao usuário insurgir-se quanto ao ato da Administração Pública.
Conforme explicita Cademartori (2001, p. 147), ao referir-se ao papel da
Administração Pública no atual modelo de Estado Democrático de Direito, “[...] a
Administração não pode eximir-se dos direitos e interesses dos cidadãos, já que ela
própria é uma manifestação da subordinação do Estado ao social, ou seja, ao
externo.”.
Dessa maneira, como a atuação da Administração Pública na prestação dos
serviços públicos encontra-se desprovida de substrato constitucional material, cabe
aos operadores do direito, por meio dos instrumentos públicos capazes de garantir
os direitos fundamentais, atuarem na busca do atendimento ao modelo de validade
das normas e atos conforme a Teoria Garantista, ou seja, de acordo com os direitos
fundamentais e garantias constitucionais. Para isso ganha especial relevância o
controle jurisdicional dos atos administrativos no modelo garantista.
3.3 O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO
Por meio dos fundamentos acerca dos serviços públicos essenciais e a Teoria
Garantista, buscou-se investigar a partir de uma matriz teórica garantista a atuação
da Administração Pública na disponibilização e na suspensão dos serviços públicos
essenciais. A figura a seguir, ilustra a estrutura do pensamento deste estudo, tendo
no núcleo os elementos da matriz garantista e nas laterais as influências/forças das
teorias sobre serviço público essencial e o garantismo.
68
Figura: Matriz do estudo.
Fonte: Desenvolvido pelo pesquisador.
De acordo com o que já foi apresentado nesta pesquisa percebe-se que o
Estado Democrático de Direito brasileiro, embora tenha na sua concepção um
modelo criado de acordo com o que defende a Teoria Garantista, muitas vezes não
segue o que estabelece esta teoria. Isso fica claro, se for comparada à figura
apresentada à atuação da Administração Pública na suspensão dos serviços
públicos essenciais. O que se percebe é a inobservância aos princípios
constitucionais consagradores dos direitos fundamentais e garantias dos indivíduos.
Nesse sentido, ganha relevância a atuação dos operadores do direito, a fim
de tutelar a observância do conteúdo material da Constituição, nos atos praticados
pela Administração Pública. Dito isso, cabe apresentar a percepção de Rosa (2005)
no que tange a necessidade de pautar-se a atuação jurídica e social pelos princípios
constitucionais, a qual ele define como uma das tarefas dos operadores do direito
garantistas no Estado Democrático de Direito:
Com efeito, é dever primevo dos atores jurídicos a compreensão
adequada da Constituição Federal, concretizando-a na sua maior
extensão possível, primordialmente no tocante aos Direitos
Fundamentais. Existe a necessidade orgânica de convergência das
práticas jurídicas e sociais aos regramentos Constitucionais relativos
69
aos Direitos Fundamentais, estabelecendo-se, portanto, um sistema
de garantias simultâneo de preservação e realização. (p.18)
Cademartori (2001) defende essa idéia e destaca principalmente o papel a ser
desenvolvido pelos julgadores ao verificarem nos casos concretos se houve lesão ao
direito garantido constitucionalmente, na atuação administrativa. O autor se refere à
função jurisdicional para atender este desiderato argumentando que:
Sob essa ótica, o juiz, no exercício da sua função, somente está
vinculado ao Direito, e num sentido mais favorável, aos direitos
fundamentais dos cidadãos garantidos constitucionalmente, e cuja
relevância deixa de ser vista apenas sob o aspecto formalinstrumental, passando a ter prevalência substancial na defesa
destes direitos. (p.146).
Ainda sob essa linha de entendimento, o referido autor enfatiza a importância
de se realizar o controle da atividade administrativa pelo Poder Judiciário:
Isso tudo significa que o controle a ser realizado pelo Judiciário da
atividade administrativa terá sempre como base os direitos
fundamentais constitucionais, considerados, agora, sob um aspecto
substancial e primacial, posto que eles traduzem os valores morais e
políticos da sociedade.
Dessa maneira, esses valores morais e políticos são configurados
nos direitos fundamentais e estes, por sua vez, convertem os direitos
dos cidadãos no elemento último que outorga sentido ao controle
sobre a atividade administrativa. (p. 148).
No que tange aos serviços públicos essenciais, esse controle deve ser
exercido com o intuito de estruturar a atuação da Administração Pública. Nesse
ínterim, conforme ensina Cademartori (2001, p. 158), sob a ótica da Teoria
Garantista, os atos da Administração Pública devem adequar-se “[...] aos princípios
escorados nos direitos fundamentais e nos respectivos valores morais e políticos
que eles traduzem.”, ou seja, devem atentar-se aos critérios de justiça interna e
externa do ato praticado.
Feitas estas considerações acerca do papel do Poder Judiciário em relação à
suspensão dos serviços públicos essenciais, cumpre demonstrar, através de
algumas decisões prolatadas pelo egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a
importância da atuação do Poder Judiciário, a fim de evitar prejuízos aos cidadãos
70
que, muitas vezes, têm seu direito usurpado por ato unilateral dos prestadores dos
serviços em apreço. Saliente-se que os acórdãos apresentados não têm pretensão
de esgotar as decisões exaradas pelo Tribunal catarinense acerca do assunto, e
sim, ilustrar a relevância da atuação jurisdicional nos feitos que envolvam o direito ao
recebimento de serviços públicos essenciais.
Administrativo. Corte de energia elétrica. Não comprovada a
alegação de fraude no medidor. Não observados os princípios
constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Prática abusiva.
Não provada notificação prévia (art. 6º, § 3º, da Lei n. 8.987/95) e
conseqüente oportunidade de contraditório, o corte no fornecimento
de energia elétrica por suposta fraude no consumo é ilegal.
Utilizar-se de meio coercitivo para obrigar o pagamento do débito
decorrente de um furto de energia, sem ao menos ter comprovado a
fraude, viola os princípios ao contraditório e à ampla defesa
assegurados pela Constituição Federal. (Apelação Cível n.
2003.030119-4, de Araranguá. Relator: Des. Pedro Manoel Abreu.
Data da decisão 30/07/2005).
A decisão referida apresenta no voto prolatado por seu relator, vários
argumentos que corroboram com o que foi apresentado ao longo deste estudo, no
que tange aos direitos dos usuários não serem privados do fornecimento de serviços
públicos essenciais sem possibilidade de antes fazer uso do contraditório e da ampla
defesa. Colhe-se do acórdão:
[...]
Existem algumas espécies de prestações sem as quais a vida
cotidiana se torna impraticável. Trata-se da prestação dos chamados
serviços essenciais, tais como o fornecimento de água, energia
elétrica, entre outros. São serviços essenciais e indispensáveis e
que, por isso, recebem tratamento especial da legislação,
notadamente no que se refere à continuidade de sua prestação.
O art. 22 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor dispõe que
"Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento,
são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e,
quanto aos essenciais, contínuos".
O cerne do presente litígio gira em torna da responsabilidade do
autor na fraude evidenciada do medidor de energia elétrica situado
no domicílio deste.
Extrata-se dos autos que a empresa ré, ao realizar as inspeções
rotineiras, detectou a violação em seu equipamento, o que teria
ocorrido, pelo intento de burlar a avaliação do consumo de energia.
Efetuou, então, cálculo unilateral requerendo o pagamento dos
valores corretos, sob pena de corte no fornecimento de energia, ou
seja, utilizou-se de meio coercitivo sem ter comprovado a suposta
fraude, violando os princípios do contraditório e da ampla defesa,
insculpidos no inciso LV, do artigo 5º, da Lex Mater.
71
In casu, não restou comprovada a responsabilidade do usuário
quanto à pratica de fraude.
O boletim de autorização de parcelamento, repita-se, realizado de
maneira unilateral, revela a pressão exercida sobre o consumidor
para que aceitasse, sem defesa, as diferenças impostas pela
concessionária.
Aqui, vale destacar que não se está pactuando com qualquer
irregularidade em detrimento dos interesses da ré. Entretanto, para a
admissão do corte de energia elétrica faz-se necessária a
instauração do devido processo no âmbito criminal ou mesmo
administrativo, até para que o próprio consumidor possa defender-se,
o que, na espécie, efetivamente não ocorreu.
Com efeito, compete à concessionária investigar a prática de
irregularidades praticadas e tomar as medidas cabíveis para evitar
seu prejuízo, que afinal atinge toda a coletividade. Porém não pode
atuar fora dos seus limites, coagindo o consumidor a cumprir suas
próprias decisões, sem a plena certeza da autoria da irregularidade.
Corroborando o raciocínio apresentado, confira-se julgado do
STJ em caso similar:
"Está em discussão ameaça concreta de corte de energia elétrica,
alicerçada, ao que se depreende do apelo, na existência de débito
decorrente da prática de furto imputado à apelada. Cumpre dizer que
a eminência da prática do ato lesivo é inquestionável, reconhecida
pela própria concessionária".
"Num primeiro momento, não há negar que a energia é bem
essencial, constituindo-se em serviço público indispensável e
subordinado, em regra, ao princípio da continuidade de sua
prestação" (ROMS n. 8.915/MA, rel. Min. José Delgado).
Assim, a verificação da legalidade da suspensão de seu
fornecimento deve ser precedida de percuciente análise dos motivos
que a ensejaram.
Conforme acentuou o digno Magistrado de primeiro grau, Dr. Pedro
Aujor Furtado Júnior, "a concessionária concluiu que o autor agiu
fraudulentamente em seu medidor, com base em perícia não
contestada em inquérito policial (sem destino certo comprovado nos
autos) e resolveu a manu militari aplicar a sanção mais gravosa, e
ainda impondo multas e outros encargos, exigindo do consumidor um
parcelamento que se sabia certo, já que sem ele a energia
permaneceria cortada" (in verbis, pág. 72).
Não pode a empresa ré proceder o corte de energia como forma de
coagir ao pagamento de multa imposta na ausência de provas
robustas que comprovem a responsabilidade do usuário quanto a
prática de má-fé.
Cumpridos os requisitos legais, é legítimo o corte no fornecimento de
energia elétrica a consumidor inadimplente ou que esteja a fraudar o
consumo. Todavia, repita-se, não provada notificação prévia (art. 6º,
§ 3º, da Lei n. 8.987/95) e conseqüente oportunidade de
contraditório, o corte no fornecimento de energia elétrica por suposta
fraude no consumo é ilegal.
À vista disso, não há como afirmar que o autor cometeu crime sem
sentença transitada em julgado, sem regular processo administrativo,
com contraditório e amplo exercício do direito de defesa. Não se
pode permitir a aplicação de qualquer penalidade ao cidadão,
protegido pelas normas garantistas da Constituição da República, e
72
amparado, em última instância, pelas normas do Código de Proteção
e Defesa do Consumidor.
Desse modo não é concebível que a concessionária julgue e execute
suas próprias decisões, sem possibilitar ao consumidor o direito à
defesa, sob a acusação de furto de energia. [...]
Nesta mesma perspectiva, colhe-se outras decisões do egrégio Tribunal de
Justiça de Santa Catarina:
APELAÇÃO CÍVEL - DANOS MORAIS - CELESC - INTERRUPÇÃO
ILEGAL NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO.
A concessionária atuou alheia ao princípio constitucional de
continuidade do serviço público essencial, efetuando indevidamente
o corte, pois o recorrido já o havia quitado por meio de débito
automático em conta corrente, cometendo, dessa forma, ato ilícito
que lhe causou danos morais a serem reparados.
Não provada notificação prévia (art. 6º, § 3º, da Lei n. 8.987/95) e
conseqüente oportunidade de contraditório ao usuário, o corte no
fornecimento de energia elétrica por suposta fraude no consumo é
ilegal.
PAGAMENTO EFETUADO EM CASA LOTÉRICA - ERRO DE
DIGITAÇÃO
CULPA
ATRIBUÍDA
A
TERCEIRO
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - ILEGITIMIDADE PASSIVA
AFASTADA - CIRCUNSTÂNCIAS ESPECÍFICAS DO CASO - DANO
MORAL.
A concessionária prestadora de serviço público está submetida à
responsabilidade objetiva, prevista no art. 37, § 6º da Carta Maior,
bastando a comprovação do dano e do nexo de causalidade entre o
evento danoso e a conduta daquela para que se configure o dever de
indenizar. (Apelação cível n. 2006.044803-3, de Joinville. Relator:
Des. Volnei Carlin. Data da decisão: 17/05/2007).
APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA - CORTE DE
ENERGIA ELÉTRICA - FRAUDE NO MEDIDOR - NÃO
OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA AMPLA
DEFESA E DO CONTRADITÓRIO - PRÁTICA ABUSIVA - ATO
ILEGAL
NECESSIDADE
DE
COMPRVAÇÃO
DA
RESPONSABILIDADE DO USUÁRIO PELA SUPOSTA FRAUDE RECURSO DESPROVIDO.
Não provada notificação prévia (art. 6º, § 3º, da Lei n. 8.987/95) e
conseqüente oportunidade de contraditório ao usuário, o corte no
fornecimento de energia elétrica por suposta fraude no consumo é
ilegal.
Utilizar de meio coercitivo para obrigar ao pagamento do débito
decorrente de furto de energia sem a observância de procedimento
adequado caracteriza violação aos princípios do contraditório e
ampla defesa assegurados pela Constituição Federal, possuindo o
73
consumidor direito líquido e certo de continuar recebendo o serviço
até que se apure sua efetiva responsabilidade pela eventual fraude,
respeitado o princípio do devido processo legal. (Apelação Cível em
Mandado de Segurança n. 2006.034431-9, de Gaspar. Relator: Des.
Cid Goulart. Data da decisão: 17/04/2007).
APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA - CELESC SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA ESTADUAL - INEXISTÊNCIA
DE INTERVENÇÃO DA UNIÃO - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
ESTADUAL - CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA
ELÉTRICA - POSSIBILIDADE EM CASOS RESTRITOS, TAIS
COMO INADIMPLÊNCIA, DESDE QUE DEVIDAMENTE EFETUADA
A PRÉVIA NOTIFICAÇÃO - AVISO REALIZADO EM RELAÇÃO A
APENAS UMA FATURA QUE, ENTRETANTO, FOI PAGA EM
PRAZO HÁBIL - IMPOSSIBILIDADE DE SUSTAÇÃO DO SERVIÇO RECURSO DESPROVIDO.
O serviço de fornecimento de energia elétrica, essencial ao bemestar, tanto individual quanto coletivo, de toda a sociedade, mostrase fundamental à consubstanciação do princípio da dignidade do ser
humano, de modo que a interrupção no seu fornecimento somente se
faz possível em situações excepcionais.
A regra é a continuidade da prestação do serviço de fornecimento de
energia elétrica cuja interrupção, no entanto, constitui a exceção,
sendo possível, no caso de inadimplemento, somente quando
efetivado o prévio aviso que faculta ao devedor o pagamento da
quantia devida, evitando, por conseguinte, a dispendiosa
movimentação do aparato judicial. (Apelação Cível em Mandado de
Segurança n. 2003.012349-0, de Blumenau. Relator: Des. Anselmo
Cerello. Data da decisão: 10/10/2003).
Além das decisões supracitadas, podem-se citar ainda decisões do Superior
Tribunal de Justiça, as quais demonstram o que já foi apresentado anteriormente, no
que tange ao fato de que as leis muitas vezes possuem aspectos ou teor
compatíveis com as concepções garantistas. Porém, na hora de efetivar-se a
aplicação destas, tem-se um resultado que pode ser denominado como
antigarantista. Nestas decisões têm-se inúmeras referências aos princípios que
devem nortear a relação entre a Administração Pública e os usuários de serviços
públicos essenciais, concluindo pela impossibilidade de suspensão destes. No
entanto, em virtude do caráter uniformizador das decisões do Superior Tribunal de
Justiça, as posições defendidas nos votos prolatados, não são mantidas, em prol da
segurança jurídica, conforme segue:
74
ADMINISTRATIVO.
RECURSO
ESPECIAL.
DIREITO
DO
CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA DE
ÁGUA.
INTERRUPÇÃO
DO
FORNECIMENTO.
CORTE.
IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 22 E 42 DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO
DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR). ENTENDIMENTO
DO RELATOR. ACOMPANHAMENTO DO POSICIONAMENTO DA
1ª SEÇÃO DO STJ. PRECEDENTES.
1. Recurso especial interposto contra acórdão que considerou ilegal
o corte no fornecimento de água como meio de coação ao
pagamento de contas atrasadas.
2. Não resulta em se reconhecer como legítimo o ato administrativo
praticado pela empresa concessionária fornecedora de água e
consistente na interrupção de seus serviços, em face de ausência de
pagamento de fatura vencida. A água é, na atualidade, um bem
essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável,
subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que
se torna impossível a sua interrupção.
3. O art. 22 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor
assevera que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas,
concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. O seu
parágrafo único expõe que, “nos casos de descumprimento, total ou
parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas
jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na
forma prevista neste código ”. Já o art. 42 do mesmo diploma legal
não permite, na cobrança de débitos, que o devedor seja exposto ao
ridículo, nem que seja submetido a qualquer tipo de constrangimento
ou ameaça. Tais dispositivos aplicam-se às empresas
concessionárias de serviço público.
4. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil,
especialmente, quando exercida por credor econômica e
financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor.
Afrontaria, se fosse admitido, os princípios constitucionais da
inocência presumida e da ampla defesa. O direito de o cidadão se
utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em
sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem
deles se utiliza.
5. Caracterização do periculum in mora e do fumus boni iuris para
sustentar deferimento de liminar a fim de impedir suspensão de
fornecimento de água. Esse o entendimento deste Relator.
6. No entanto, embora tenha o posicionamento acima assinalado,
rendo-me, ressalvando meu ponto de vista, à posição assumida pela
ampla maioria da 1ª Seção deste Sodalício, pelo seu caráter
uniformizador no trato das questões jurídicas no país, que vem
decidindo que “é lícito à concessionária interromper o fornecimento
de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia
elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta
(L. 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II) ”(REsp nº 363943/MG, 1ª Seção, Rel.
Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 01/03/2004). No mesmo
sentido: EREsp nº 337965/MG, 1ª Seção, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de
08/11/2004; REsp nº 123444/SP, 2ª T., Rel. Min João Otávio de
Noronha, DJ de 14/02/2005; REsp nº 600937/RS, 1ª T., Rel. p/
Acórdão, Min. Francisco Falcão, DJ de 08/11/2004; REsp nº
623322/PR, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 30/09/2004.
75
7. Com a ressalva de meu ponto de vista, homenageio, em nome da
segurança jurídica, o novo posicionamento do STJ.
8. Recurso especial provido. (REsp. nº 822.090 – RS. Relator: Min.
José Delgado. Data do julgamento: 11/04/2006).
ADMINISTRATIVO. CORTE DO FORNECIMENTO DE ÁGUA.
INADIMPLÊNCIA DO CONSUMIDOR. LEGALIDADE.
1. A 1ª Seção, no julgamento do RESP nº 363.943/MG, assentou o
entendimento de que é lícito à concessionária interromper o
fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor
de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da
respectiva conta (Lei 8.987/95, art. 6º, § 3º, II).
2. Ademais, a 2ª Turma desta Corte, no julgamento do RESP nº
337.965/MG entendeu que o corte no fornecimento de água, em
decorrência de mora, além de não malferir o Código do Consumidor,
é permitido pela Lei nº 8.987/95.
3. Ressalva do entendimento do relator, no sentido de que o corte do
fornecimento de serviços essenciais - água e energia elétrica - como
forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa,
extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de
respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão se utiliza dos
serviços públicos posto essenciais para a sua vida, curvo-me ao
posicionamento majoritário da Seção.
4. A aplicação da legislação infraconstitucional deve subsumir-se aos
princípios constitucionais, dentre os quais sobressai o da dignidade
da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República e um
dos primeiros que vem prestigiado na Constituição Federal.
5. Deveras, in casu, não se trata de uma empresa que reclama uma
forma de energia para insumo, tampouco de pessoas jurídicas
portentosas, mas de uma pessoa física miserável, de sorte que a
ótica tem que ser outra. O direito é aplicável ao caso concreto, não o
direito em tese. Imperioso, assim tenhamos, em primeiro lugar,
distinguir entre o inadimplemento de uma pessoa jurídica portentosa
e o de uma pessoa física que está vivendo no limite da sobrevivência
biológica.
6. Em segundo lugar, a Lei de Concessões estabelece que é
possível o corte considerado o interesse da coletividade, que
significa não empreender o corte de utilidades básicas de um hospital
ou de uma universidade, tampouco o de uma pessoa que não possui
módica quantia para pagar sua conta, quando a empresa tem os
meios jurídicos legais da ação de cobrança. A responsabilidade
patrimonial no direito brasileiro incide sobre patrimônio devedor e,
neste caso, está incidindo sobre a própria pessoa!
7. Ressalvadas, data máxima vênia, opiniões cultíssimas em
contrário e sensibilíssimas sob o ângulo humano, entendo que
'interesse da coletividade' a que se refere à lei pertine aos
municípios, às universidades, hospitais, onde se atingem interesses
plurissubjetivos.
8. Por outro lado, é mister considerar que essas empresas
consagram um percentual de inadimplemento na sua avaliação de
76
perdas, por isso que é notório que essas pessoas jurídicas recebem
mais do que experimentam inadimplementos.
9. Destacada a minha indignação contra o corte do fornecimento de
serviços essenciais de pessoa física em situação de miserabilidade e
absolutamente favorável ao corte de pessoa jurídica portentosa, que
pode pagar e protela a prestação da sua obrigação, submeto-me à
jurisprudência da Seção.
10. Embargos de divergência rejeitados, por força da necessidade de
submissão à jurisprudência uniformizadora. (REsp 337965/MG.
Relator: Min. Luiz Fux. Data da decisão : 22/09/2004).
ADMINISTRATIVO. CORTE DO FORNECIMENTO DE ENERGIA
ELÉTRICA.
RECONHECIMENTO,
PELO
MUNICÍPIO,
DA
INADIMPLÊNCIA DO PAGAMENTO DA TARIFA RELATIVA À
ILUMINAÇÃO PÚBLICA. "UNIDADES PÚBLICAS ESSENCIAIS".
ILEGALIDADE.
SEGURANÇA
PÚBLICA.
INTERESSE
DA
COLETIVIDADE. GARANTIA. PRINCÍPIOS DA ESSENCIALIDADE E
CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. OBSERVÂNCIA.
1. A Corte Especial, no julgamento do AgRg na SS 1497/RJ,
perfilhou o entendimento de que: "AGRAVO REGIMENTAL SUSPENSÃO - DEFERIMENTO - FORNECIMENTO DE ENERGIA CORTE POR INADIMPLÊNCIA - MUNICÍPIO - POSSIBILIDADE.
1. A interrupção do fornecimento de energia elétrica por
inadimplemento não configura descontinuidade da prestação do
serviço público. Precedentes.
2. O interesse da coletividade não pode ser protegido estimulando-se
a mora, até porque esta poderá comprometer, por via reflexa, de
forma mais cruel, toda a coletividade, em sobrevindo má prestação
dos serviços de fornecimento de energia, por falta de investimentos,
como resultado do não recebimento, pela concessionária, da contraprestação pecuniária.
3. Legítima a pretensão da Concessionária de suspender a decisão
que, apesar do inadimplemento, determinou o restabelecimento do
serviço e a abstenção de atos tendentes à interrupção do
fornecimento de energia, porque a questão relativa à eventual
compensação de dívidas recíprocas não foi objeto da ação
mandamental em que originada a decisão objeto do pedido de
suspensão.
4. Agravo não provido."
2. Destarte, é lícito à concessionária interromper o fornecimento de
energia elétrica se, após aviso prévio, o consumidor de energia
elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta.
3. A Lei de Concessões, entretanto, estabelece que é possível o
corte desde que considerado o interesse da coletividade (artigo 6º, §
3º, inciso II, da Lei 8.987/95), que significa não empreender o corte
de utilidades básicas de um hospital ou de uma universidade, quando
a empresa tem os meios jurídicos legais da ação de cobrança.
4. In casu, o acórdão recorrido assentou que a suspensão no
fornecimento implicaria em ofensa ao interesse da coletividade, uma
vez que "... a iluminação pública é serviço essencial ao bem-estar e
segurança da população, que não pode ser punida com o corte, pois
77
é ela que, ao fim e ao cabo, sofrerá o ônus. É o cidadão, que paga
seus tributos regularmente, que será penalizado. Não se pode
olvidar, ainda, que se trata de uma concessão do serviço que
deveria, sim, ser prestado pelo Estado. Por razões que ora não
importam, o Estado concede a um particular a prestação deste
serviço. E o fornecedor, no caso, dispõe dos mecanismos legais para
se ressarcir, que é a ação de cobrança, não podendo lançar mão de
meios nitidamente coercitivos para tanto.(...)". Segundo o Tribunal de
origem, "há na espécie, nitidamente, afronta ao interesse público,
com infringência, inclusive, de direitos fundamentais garantidos
constitucionalmente. Efetivamente, o corte da energia elétrica
ocasionaria todo tipo de transtornos, destacando-se entre eles a
insegurança pública, tendo em vista que uma cidade às escuras
propiciaria um campo fértil aos acidentes de automóveis, roubos e
furtos, gerando um verdadeiro caos urbano. Destarte, correta a
afirmação de que a energia elétrica é um bem essencial à vida na
sociedade urbana moderna, não podendo ser o seu fornecimento
suspenso unilateralmente, sem o embasamento, no mínimo, de uma
decisão transitada em julgado".
5. O corte de energia nas repartições públicas municipais (Prefeitura
municipal, escolas, Secretaria de Saúde e de Obras) e nos
logradouros públicos atinge serviços públicos essenciais, gerando
expressiva situação de periclitação para o direito dos munícipes.
6. As normas administrativas devem ser interpretadas em prol da
administração, mercê de impedir, no contrato administrativo a
alegação da exceptio non adimplenti contractus para paralisar
serviços essenciais, aliás inalcançáveis até mesmo pelo consagrado
direito constitucional de greve.
7. Deveras, este relator, a despeito da jurisprudência majoritária
desta Corte, tem ressalvado o entendimento de que o corte do
fornecimento de serviços essenciais - água e energia elétrica – como
forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa,
extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de
respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão se utiliza dos
serviços públicos, posto essenciais para a sua vida. O interesse da
coletividade abrangeria não apenas o interesse público em sentido
amplo (necessidades coletivas), como também o de uma pessoa que
não possui módica quantia para pagar sua conta: em primeiro lugar,
há que se distinguir entre o inadimplemento de uma pessoa jurídica
portentosa e o de uma pessoa física que está vivendo no limite da
sobrevivência biológica.
8. In casu, não se trata de corte de energia uti singuli, vale dizer: da
concessionária versus o consumidor isolado, mas, sim, do corte de
energia em face do Município e de suas repartições, o que pode
atingir serviços públicos essenciais. A supressão da iluminação
pública de Município afronta a expectativa da população no
recebimento de serviço público essencial, constituindo ainda grave
risco de lesão à ordem pública, atingindo toda a coletividade
municipal.
9. Ademais, sucede que, na hipótese em comento, o inadimplemento
municipal sequer é absoluto, uma vez que se encontra noticiado nos
autos a quitação das faturas referentes às repartições públicas,
sendo tão-somente confesso o atraso atinente à iluminação pública.
10. Precedente da Segunda Turma, da relatoria do Ministro Castro
Meira, pugna pela impossibilidade de suspensão do fornecimento de
78
energia elétrica de "unidades públicas essenciais", verbis:
"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ARTIGO 535 DO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA.
SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA.
IMPOSSIBILIDADE. INADIMPLEMENTO. UNIDADES PÚBLICAS
ESSENCIAIS. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DOS ARTS. 22 DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E 6º, § 3º, II, DA LEI Nº
8.987/95. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL INDEMONSTRADA.
(...)
2. O artigo 22 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor),
dispõe que: "os órgãos públicos, por si ou suas empresas,
concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos".
3. O princípio da continuidade do serviço público assegurado pelo
art. 22 do Código de Defesa do Consumidor deve ser amenizado,
ante a exegese do art. 6º, § 3º, II da Lei nº 8.987/95 que prevê a
possibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica
quando, após aviso, permanecer inadimplente o usuário, considerado
o interesse da coletividade.
4. Quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público,
prevalece nesta Turma a tese de que o corte de energia é possível,
desde que não aconteça de forma indiscriminada, preservando-se as
unidades públicas essenciais.
5. A interrupção de fornecimento de energia elétrica de Município
inadimplente somente é considerada ilegítima quando atinge as
unidades públicas provedoras das necessidades inadiáveis da
comunidade, entendidas essas - por analogia à Lei de Greve – como
"aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a
sobrevivência, a saúde ou a segurança da população", o que se
perfaz na hipótese.
(...)
7. Recurso especial improvido.” (REsp 791713/RN, Relator Ministro
Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 01.02.2006)
11. Recurso especial desprovido. (REsp 721119/RS. Relator:
Ministro LUIZ FUX. Data do julgamento: 11/04/2006).
Infere-se da análise aos acórdãos prolatados pelo Tribunal de Justiça de
Santa Catarina e do Superior Tribunal de Justiça, que os atos da Administração
Pública, praticados diretamente ou indiretamente, através de suas concessionárias
ou permissionárias, deveriam pautar-se pelo atendimento aos princípios que regem
a prestação de serviços públicos e, especialmente, no caso do objeto da presente
investigação, àqueles princípios relativos a prestação de serviços públicos
essenciais.
Verifica-se nas Jurisprudências juntadas, as quais, como já foi dito
anteriormente, tem o objetivo de ilustrar o que foi estudado nesta pesquisa, a
importância de reportar-se aos direitos fundamentais e garantias constitucionais, a
79
fim de proporcionar aos usuários a possibilidade de insurgirem-se quanto aos atos
praticados pela Administração Pública, em especial à suspensão dos serviços
públicos essenciais.
Denota-se ainda a importância da teoria defendida pelo Garantismo Jurídico
para o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos, garantindo-lhes o
mínimo de dignidade humana. A importância de se observar os princípios
constitucionais e o problema da promulgação de leis infraconstitucionais contrárias
ao que preceitua a Constituição, o que acarreta na interpretação dos fundamentos
constitucionais de acordo com o que dispõem estas leis infraconstitucionais, quando
deveria ser ao contrário, ou seja, estas leis é que deveriam adaptar-se ao que a
Constituição determina para terem validade, sob a ótica da Teoria Garantista.
Para este desiderato, salienta-se, mais uma vez, a importância do Poder
Judiciário, em especial os juízes, conforme bem observa Cademartori (2001):
Em termos mais claros, afirma-se que o único sentido que o juiz pode
dar à norma é o melhor desde a perspectiva constitucional, vale
dizer, o que melhor garanta os direitos fundamentais da pessoa e
torne mais efetivas as normas constitucionais ao reduzir o desvio
entre estas e a realidade social e jurídica.
[...]
Nessa medida, o juiz está vinculado ao Direito e à lei, mas somente
na configuração que estes termos assumem na perspectiva
garantista, que é a da proteção e implementação dos direitos
fundamentais na sua dimensão mais ampla: formal e substancial, ou
seja, da vigência e da validade sendo que ambas precisam estar em
conformidade com o ordenamento jurídico.
Por fim, cumpre salientar que as jurisprudências supracitadas têm por objetivo
corroborar com o entendimento apresentado ao longo desta pesquisa, bem como,
salientar o papel do Poder Judiciário na garantia da observância dos direitos
fundamentais e das garantias constitucionais, que fundamentam a prestação de
serviços públicos essenciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi apresentado nesta pesquisa conclui-se que os serviços
públicos essenciais são regidos pelo Direito Administrativo, o qual embasa a
atividade jurídica do Estado e a Administração Pública. Logo, o serviço público é
incumbência do Estado. Nesta concepção, destaca-se que a Administração Pública
é responsável por fornecer serviços públicos aos seus usuários, quer seja através de
uma prestação direta do ente público ou através de serviços concedidos, permitidos
ou autorizados, sob controle ou fiscalização do Estado.
Nesse desiderato, o Direito Administrativo, ao regular a atuação do Estado na
prestação de serviços públicos, dispõe acerca das características inerentes a estes,
classificando-os de acordo com o fim a que se destinam. Igualmente, estabelece
direitos fundamentais e garantias, representadas por postulados que devem ser
respeitados para proporcionar a disponibilização de serviços adequados às
necessidades dos usuários. Para este fim, a Lei 8987/95, o Código de Defesa do
Consumidor e a Constituição Federal elencam princípios que proporcionam maior
segurança ao cidadão em sua relação com a Administração Pública.
Em relação a estas garantias e direitos fundamentais, destaca-se o princípio
da continuidade dos serviços públicos essenciais, previsto no Código de Defesa do
Consumidor, o qual determina a impossibilidade de constranger os usuários destes
serviços com ameaças de corte em seu fornecimento. Outrossim, destacam-se os
princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório, devido processo legal e
dignidade da pessoa humana, os quais garantem ao usuário a possibilidade de
justificar seu inadimplemento e não ser privado de um serviço essencial para sua
vida em sociedade através de um ato, muitas vezes abusivo, do prestador de
serviços públicos essenciais.
Considerando os princípios supracitados, impende assegurar mecanismos
para implementar, efetivamente, os direitos fundamentais e garantias explicitados.
Neste ínterim, evidenciasse a importância do modelo de Estado Democrático de
Direito na acepção apregoada pela Teoria do Garantismo Jurídico, onde o indivíduo
é o fim maior a que se destina a existência do Estado. Nesta concepção, os direitos
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fundamentais e as garantias dos indivíduos devem servir como fundamento da
atuação da Administração Pública, a qual não pode furtar-se de pautar sua atuação
na busca do bem comum e para essa aspiração é relevante a prestação continua
dos serviços públicos essenciais.
Cabe lembrar o pensamento de Cademartori (2001, p. 181), que diante desse
quadro, exalta a atuação do Poder Judiciário, o qual, sob os parâmetros da Teoria
do Garantismo Jurídico, deve efetuar o controle e a adequação axiológicaconstitucional dos atos da Administração Pública, a fim de garantir que o juiz aprecie
“[...] na sua inteireza, quaisquer atos oriundos do Poder Público, tendo como
parâmetros as garantias constitucionais e os direitos fundamentais cuja diretriz
política estará referida à primazia do administrado frente à Administração.”
Essas reflexões permitem afirmar que, sob a ótica da Teoria do Garantismo
Jurídico, a suspensão dos serviços públicos essenciais, da maneira como é efetuada
no Brasil, é ilegal, uma vez que não possibilita aos seus usuários utilizarem os meios
previstos
constitucionalmente
ou
através
de
leis
infraconstitucionais,
para
insurgirem-se quanto ao ato que os priva da utilização destes serviços.
Impende salientar ainda, o papel dos operadores do direito, com vistas a
efetivar a observância dos diretos fundamentais e das garantias dispostas na
Constituição, aplicáveis a prestação de serviços públicos essenciais pela
Administração Pública, com o intuito de proporcionar aos indivíduos o mínimo
necessário para atender suas necessidades, bem como contribuir para o
desenvolvimento e funcionamento da sociedade.
Por derradeiro, conclui-se que somente quando os serviços públicos,
proporcionarem a efetividade dos princípios fundamentais que regem toda
sociedade, será possível vislumbrar a efetiva realização dos direitos e garantias
fundamentais com o respeito incondicional a dignidade da pessoa humana.
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