DOSSIER Reabsorções dentárias "Ócios do ofício" O problema das reabsorções dentárias está amplamente estudado entre a comunidade científica, no entanto, não estão perfeitamente definidos os factores etiológicos que conduzem à sua ocorrência. Em alguns casos, assume mesmo uma natureza idiopática, mas, na grande maioria, é possível estabelecer procedimentos preventivos que ponham cobro à situação. Os tratamentos ortodônticos são apontados como uma das principais causas de reabsorções radiculares xistem vários tipos de reabsorções dentárias descritas na literatura, umas fisiológicas, outras do foro patológico, que necessitam intervenção do médico dentista. O termo abrange uma série de situações em que os tecidos dentários mineralizados são eliminados pelas células clásticas em algum ponto da superfície interna ou externa do dente. O processo ocorre com a exposição da superfície E SO Maio-Junho 2005 na sua origem ou contribuir para a evolução de uma reabsorção dentária. Os tratamentos ortodônticos, por exemplo, são apontados por alguns estudos como a principal causa de reabsorções radiculares. No entender de Afonso Pinhão Ferreira, coordenador da cadeira de Ortodontia da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto (FMDUP), as reabsorções radiculares «podem mesmo ser encaradas como um risco dentária ao tecido conjuntivo do periodonto ou da polpa dentária, numa altura em que a acção das células que protegem a superfície do dente, os cementoblastos, externamente, e os odontoblastos, internamente, deixam de existir. Os factores que desencadeiam este problema são de natureza distinta - físicos, biológicos ou químicos -, mas também os próprios tratamentos médico dentários podem estar 46 biológico do tratamento. O tratamento ortondôntico baseia-se numa mecânica imposta, que implica uma ligeira reabsorção das raízes - se formos medir ao microscópio há de certeza reabsorções em consequência dos tratamentos ortodônticos -, mas que, no entanto, são permissíveis e não têm qualquer importância do ponto de vista clínico. Trata-se de um risco controlado que não é sequer quantificável clinicamente. Aliás, se assim não fosse, se o dano fosse maior que o beneficio ninguém fazia tratamentos ortodônticos», defende o professor. Na opinião deste especialista «não se pode sequer considerar uma desvantagem deste tipo de intervenção, pois são fenómenos que não tem qualquer relevância na duração, na mecânica, na vitalidade e, inclusivamente, na funcionalidade do aparelho estomatogmático». Forças ortodônticas Embora seja encarada como uma "factura" a pagar pelo tratamento ortodôntico, existem também alguns casos em que, antes da colocação do aparelho e do início da DOSSIER O profissional deve informar o seu paciente sobre os riscos inerentes a qualquer tratamento aplicação de forças, já existia uma reabsorção. «Está provado cientificamente que a aplicação de forças por um período maior do que é aceitável do ponto de vista fisiológico aumenta o risco e o desenvolvimento de reabsorções», sublinha Pinhão Ferreira. A raiz sofre uma reabsorção quando uma força é aplicada ao dente para movimentá-lo e corrigir a sua posição. O osso, apesar de ser um tecido duro e parecer inerte, tem uma dinâmica de remodelação muito grande que permite que a raiz do dente mude a sua posição no alvéolo dentário, quando aplicadas forças ortodônticas. Contudo, a aplicação de uma força excessiva conduz não só uma reabsorção do osso como da própria raiz. Não só a magnitude das forças aplicadas pode conduzir a reabsorções como também a duração do tratamento pode contribuir para o seu desenvolvimento. Os estudos publicados mal, mas mais do que isso o índice de reabsorção é tremendo e exponencial», revela Pinhão Ferreira. Chegam a existir casos documentados de sobre esta matéria apontam para uma duração média de dois anos do tratamento, aplicando forças ligeiras. «Quando duram até três anos não há grande pacientes que usaram aparelhos durante sete anos e que posteriormente acabaram por perder toda a dentição. «As correcções ortodônticas podem durar até dois ou três anos, mas a partir daí a reabsorção dos dentes já não é um risco calculado, pois os dentes ficam sujeitos a forças durante demasiado tempo», sublinha o professor de Ortodontia. Para diagnosticar estes casos é aconselhável que o ortodontista mande realizar pelo menos uma radiografia panorâmica durante o tempo de tratamento, «até para controlar o paralelismo das raízes», explica Pinhão Ferreira. Nas situações em que é detectada uma evolução de uma reabsorção exige-se uma especial atenção por parte dos profissionais. O procedimento, segundo Pinhão Ferreira, passa por verificar se a causa reside em «alguma força traumática ou oclusal. Em alguns Exemplos de alguns factores que podem desencadear o aparecimento de reabsorções dentárias: Físicos – traumatismos, procedimentos cirúrgicos, movimentação dentária induzida, reimplantes, calor excessivo aplicado nas técnicas de branqueamento dentário ou gerado no uso inadequado de instrumentos rotativos no canal radicular Biológicos – acção das bactérias e seus produtos tóxicos Químicos – produtos utilizados nas técnicas de branqueamento Novas tendências de diagnóstico Uma equipa de investigadores da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo está a desenvolver um kit de diagnóstico de reabsorções dentárias para que os profissionais as possam identificar, mesmo em estados muito precoces. O professor da disciplina de Patologia, Alberto Consolaro, explicou à revista da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas (APCD) que «quando ocorre uma reabsorção dentária, o organismo produz anticorpos contra as proteínas dentinárias. Esses anticorpos estão na circulação sanguínea logo no início do processo e são eliminados pelo suco lacrimal, pela saliva e outras secreções». Através de uma análise à presença destes anticorpos numa gota de sangue ou de saliva, no seu próprio consultório, o clínico poderá saber se o paciente tem ou não algum tipo de reabsorção dentária naquele momento, mesmo que ela ainda tenha uma dimensão tal que não apareça nas radiografias. «Dessa forma, podem ser identificadas fases iniciais de reabsorção dentária, antes que, com o avançar do processo, apareçam radiograficamente», detalha o professor. 47 Maio-Junho 2005 SO DOSSIER casos, torna-se fundamental alterar a mecânica para arcos de menor calibre, arcos que libertem forças mais ligeiras». A manutenção de um quadro clínico propenso à evolução de reabsorções pode conduzir à perda do dente, sobressaindo a importância de resolver o caso o mais depressa possível, pois o tempo em que a raiz fica sujeita ao trauma é um forte handicap ao seu desaparecimento. Pinhão Ferreira evoca um caso de uma criança com dois incisivos com metade da raiz, «provocado por um traumatismo resultante de uma sucção violenta de uma espécie de chupeta. Estas situações exigem alguns cuidados de contenção no sentido de estabilizar os dentes e as raízes na posição correcta. Se o dente tem uma raiz pequena, a própria funcionalidade leva a que exista uma mobilidade acrescida porque o dente tem menos ancoragem. Assim, temos que lhe dar uma ancoragem terapêutica». Os códigos de conduta ética e deontológica dos profissionais e os protocolos de actuação nesta área apontam para a necessidade de informar os pacientes sobre os tratamentos a desenvolver, tanto sobre os seus benefícios como sobre os seus riscos. «Embora seja difícil definir o perfil de um paciente destas lesões multicausais são provocadas por vários factores», refere o docente de Ortodontia. O papel da Endodontia O tratamento das reabsorções pode passar pela medicação intracanalar com pasta de hidróxido de cálcio até porque cada um tem metabolismos diferentes. Há uma causa primária e uma série de causas coadjuvantes que não sabemos quais são nem quais os seus pesos. Grande parte com maior predisposição de desenvolver reabsorções radiculares, desde logo se pode afirmar que os aparelhos fixos provocam em algumas pessoas mais ou menos reabsorções, Os factores que desencadeiam este problema são de natureza distinta - físicos, biológicos ou químicos -, mas também os próprios tratamentos médico dentários podem estar na sua origem ou contribuir para a evolução de uma reabsorção dentária ●● ●● SO Maio-Junho 2005 48 No campo da Endodontia, está também documentado que os tratamentos não são directamente responsáveis pela formação de reabsorções radiculares, contudo se não for executado correctamente pode conduzir a lesões periapicais persistentes e a reabsorções inflamatórias na superfície radicular. Marques Ferreira, coordenador da disciplina de Endodontia da licenciatura em Medicina Dentária Faculdade de Medicina Universidade de Coimbra (FMUC), distingue três tipos específicos de reabsorções: «as inflamatórias, que podem ser internas ou externas, e as substitutivas». As mais observadas são as reabsorções inflamatórias radiculares externas apicais que ocorrem em pacientes com lesões periapicais e em dentes que sofreram intrusão no alvéolo, provocada por um impacto mecânico. Os danos no ligamento periodontal e no cemento tornam a superfície radicular susceptível à reabsorção e, nesses casos, o tratamento endodôntico pode prevenir a necrose da polpa dentária. No que se refere à reabsorção radicular substitutiva, ela é considerada grave, pois é impossível impedir o processo. No entanto, o dente pode ficar em função por muitos anos, até à completa substituição da dentina radicular por tecido ósseo. «Nas reabsorções de substituição os osteoclastos não DOSSIER distinguem o osso do dente e então destroem tudo», explica o professor de Endodontia. Estas situações ocorrem com alguma frequência em dentes reimplantados que sofreram uma avulsão acidental por trauma. «O resultado e o prognóstico do reimplante dentário está dependente de vários factores como o tempo que o dente permaneceu fora do alvéolo e em que condições. Os danos no ligamento periodontal são irreversíveis e o contacto directo do cemento radicular com o osso alveolar provoca a anquilose alvéolo-dentária», revela Marques Ferreira. No caso de inflamações de origem pulpar, «tem que se proceder a um tratamento endodôntico com recurso a uma medicação intracanalar com pasta de hidróxido de cálcio», devido à sua alta alcalinidade (Ph básico) e capacidade de induzir formação de tecido mineralizado. «O dianós- A magnitude e o intervalo de aplicação de forças podem desencadear processos de reabsorções dentárias tico das reabsorções dentárias deve ser feito radiograficamente, embora, em alguns casos, nomeadamente nas reabsorções de superfície, sejam tão pequenas que se torna muito difícil detectá-las, nem mesmo através de radiografias periapicais», diz Marques Ferreira. A detecção de reabsorções dentárias internas coronárias pode ser feita através de um Níveis de severidade das reabsorções radiculares: Alguns estudos descrevem quatro graus de reabsorção radicular que podem ocorrer após seis meses do início de um tratamento ortodôntico: 1. Ausência de reabsorção ou reabsorção mínima que apresenta contorno apical irregular – sem grandes riscos de evolução, o tratamento pode ser mantido. 2. Reabsorção moderada – apresenta-se maior que 1mm e igual ou inferior a 2mm – a medida neste caso é tornar o fio passivo e a mecânica, estabilizada, e manter esse repouso por dois a três meses. Além disso, deve-se reavaliar o planeamento e comunicar ao paciente o risco regular de evoluir para reabsorção severa. Em seguida dar continuidade ao tratamento, com o cuidado de aumentar (duplicar) o intervalo de aplicação da força e ficar mais atento a factores locais de risco. Devem ser feitas novas radiografias após três meses. 3. Reabsorção severa – se o nível de reabsorção ficar entre 2mm e 1/3 da raiz – apresenta risco grande de evoluir para a reabsorção extrema. É obrigatório um descanso de 90 dias, além de reavaliação do tratamento, análise de factores novos de ordem geral e verificação radiográfica da situação dos outros dentes do paciente. Quando se encontra esse nível de reabsorção, o profissional deve expor o problema ao doente e propor que o tratamento, ou seja interrompido, ou seja simplificado com a redução do tempo e a quantidade de mecânica ortodôntica. De qualquer forma, deve haver controlo radiográfico trimestral. 4. Reabsorção extrema – quando atinge mais de 1/3 da raiz – o médico dentista deve seguir os mesmos procedimentos sugeridos para um caso de reabsorção severa, mas a interrupção ou simplificação do tratamento agora não é obrigatória. Fonte: revista da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas vol. 59 – n.º 1 Jan./Fev. 2005 SO Maio-Junho 2005 50 exame clínico, perante a presença de um ponto rosado, o mesmo acontecendo com o diagnóstico de uma anquilose alvéolo-dentária, «em que se realiza um teste de percussão». Neste capítulo, « a ausência de mobilidade e a infra-oclusão, que pode ocorrer, por exemplo, em crianças com os dentes permanentes em processo de crescimento, são também indicadores importantes», revela o professor de Endodontia. A velocidade com que se desenvolvem as reabsorções dentárias varia consoante o seu tipo. Nas reabsorções inflamatórias o processo é relativamente rápido, ao invés, a reabsorção de substituição, é um pouco mais lenta. Ambas têm tendência progressiva e destrutiva, exigindo uma intervenção endodôntica o mais rápida possível, pois pode resultar em perfuração lateral da raiz ou perda da possibilidade de recuperação do dente. DOSSIER Riscos de branqueamento As técnicas de branqueamento são também apontadas por alguns autores como um factor que estimula o desenvolvimento de reabsorções. Nos casos de branqueamento externo, os efeitos colaterais sobre o esmalte e a mucosa bucal não estão conjuntivo gengival: Marques Ferreira refere que «o peróxido de hidrogénio é um dos factores etiológicos na reabsorção cervical externa. A anatomia do dente, a forma como o esmalte e o cemento terminam estão relacionadas com uma probabilidade de reabsorção externa grande; porque a actuação dos peróxidos de hidrogénio vai contribuir directamente associados ao aparecimento de reabsorções dentárias. Já no que se refere ao branqueamento interno, os agentes podem potenciar uma maior permissividade da dentina coronária. Ao alcançar os túbulos dentinários que se abrem na região limite amelocementária; os produtos químicos podem originar inflamações no tecido Factores de influência nas reabsorções radiculares no tratamento ortodôntico Factores de influência geral (sem comprovação científica): Hereditariedade – Ainda não está claramente definido a influência da genética. Idade – Maior susceptibilidade dos adultos. Com o envelhecimento, a membrana periodontal fica menos vascularizada, sem elasticidade e mais estreita, o que dificulta o movimento dentário. Em mulheres na menopausa, a ocorrência de osteoporose pode ser considerada um risco adicional. Saúde – Alterações endócrinas como o hipotiroidismo, hipo e hiperpituitarismo. Alergia – Maior predisposição de indivíduos com reacções alérgicas exacerbadas. Factores de influência local: Tipo de má oclusão – Quanto mais grave a má oclusão, maior o número de recurso mecânicos exigidos e mais extenso o período de tratamento. Má oclusão de carácter esquelético e que exigem grandes movimentos compensatórios, criam um risco maior para a reabsorção radicular. Nestes casos deveria ser considerada como opção terapêutica a cirurgia ortognática. Hábitos – Onicofagia e pressão atípica da língua podem acentuar a reabsorção. É indicado a eliminação do hábito antes do início do tratamento. Trauma prévio – Se houve sinais de reabsorção radicular decorrente de algum trauma, o dente mostra-se predisposto à reabsorção. Mas se o dente estiver íntegro apesar do trauma, pode significar pouca predisposição. Estágio de desenvolvimento radicular – Dentes com ápice aberto são menos susceptíveis à reabsorção radicular, provavelmente por terem melhor nutrição, por apresentarem maior celularidade da área apical e adequada adaptação muscular às mudanças oclusais. Esse é o argumento utilizado pelos que advogam tratamento ortodôntico em duas fases. Forma radicular – Provavelmente existe correlação entre reabsorção e a forma radicular. Algumas raízes em fora de pipeta ou abauladas seriam potencialmente predispostas. Além disso, deve-se considerar a situação radicular em pacientes que já passaram por tratamento ortodôntico, para definir o nível de susceptibilidade. Estado da saúde oral – Devem ser exigidos no pré-tratamento ortodôntico: ausência de lesões cariosas e restaurações, coroas e tratamento endodôntico adequadamente executados. Factores de influência mecânicos: Magnitude da força – Deve ser leve. A força deve ser suficiente para desencadear o processo de reabsorção e ao mesmo tempo proporcionar um generoso aporte sanguíneo na área circundante, para não formar uma área hialina. A quantificação dessa força, no entanto, é individual. Mais importante do que a força aplicada ao dente é a força resultante por área radicular. Porém, força leve não basta para evitar a reabsorção radicular. Intervalo de aplicação da força – Aparentemente, o intervalo é um factor mais importante do que a magnitude da força. A definição da duração do intervalo depende da resposta metabólica (capacidade do organismo em executar as funções necessárias para permitir o movimento do dente pressionado por uma força ortodontica). Se o intervalo da aplicação de força for aumentado, haverá tempo para a resposta metabólica ser completa, ou seja, para que as três fases da hialinização (degeneração, eliminação dos tecidos destruídos e reparação) sejam cumpridas. Em pacientes predispostos, o ideal é duplicar o intervalo de aplicação da força. Fonte: revista da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas vol. 59 – n.º 1 Jan./Fev. 2005 SO Maio-Junho 2005 52 A substituição dos dentes de leite pelos definitivos também é encarada como uma reabsorção dentária, mas do foro fisiolófico para desnaturar as proteínas». O tratamento da reabsorção inflamatória cervical intra-óssea baseia-se na restauração com um material não reabsorvível, como resina composta, ionômero de vidro ou agredado de trióxido mineral, mas em muitos casos o tratamento endodontico é também necessário quando a reabsorção alcançar o canal. As reabsorções dentárias têm etiologias e formas de tratamento diferentes. Nas fases mais avançadas, quando envolve o ápice com a consequente redução do comprimento da raiz dentária não é possível reverter o quadro. Os profissionais de Medicina Dentária podem adoptar procedimentos preventivos que devem ser equacionados no planeamento de um tratamento. Se o especialista desprezar os conhecimentos disponíveis poderá ser acusado de negligência, já que é possível identificar uma predisposição individual e a possibilidade de ocorrência de uma reabsorção radicular. A anatomia da raiz, a proporção entre a raiz e a coroa e a forma do ápice são alguns indicadores, mas mesmo adoptando os protocolos de actuação nesta área e a execução correcta de um tratamento não eliminam o risco da ocorrência desde fenómeno.