X ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GT DE LEXICOLOGIA, LEXICOGRAFIA E TERMINOLOGIA DA ANPOLL – UERJ – Rio de Janeiro, 01-03 de junho de 2015 A TERMINOLOGIA DA CANA-DE-AÇÚCAR EM DUAS PERSPECTIVAS: A VARIAÇÃO ENTRE AS TERMINOLOGIAS DO TÉCNICO E DO AGRICULTOR Luís Henrique Serra Doutorando em Letras (Filologia e Língua Portuguesa) / USP [email protected] INTRODUÇÃO Este estudo busca analisar a variação horizontal na terminologia da cana-de-açúcar em língua portuguesa do Brasil. O estudo busca avaliar até que ponto é possível ver as diferenças lexicais entre os discursos especializados de dois grupos de especialistas do universo da cana-de-açúcar, o agricultor e o agrônomo, e em que ponto a terminologia usada por esses grupos se assemelha. Parte-se do pressuposto de que a variação, quando se comparam os discursos do agrônomo e do agricultor, é resultante das diferenças conceituais, linguísticas e extralinguísticas do universo especializado da cana-de-açúcar do Brasil. Por outro lado, entende-se, de igual modo, que as semelhanças encontradas na terminologia dos dois grupos de especialistas têm relação com a natureza do próprio universo, isto é, alguns campos conceituais (como a plantação, a colheita etc.) apresentam a mesma forma na conceptualização dos dois especialistas. Assim, o estudo parte do pressuposto de que a variação em um universo terminológico é necessária e importante, por que é ela quem conserva e adapta à língua aos diferentes contextos especializados; desse modo, este estudo assume as hipóteses teórico-metodológicas da Teoria Comunicativa da Terminologia. Os resultados mostram que a terminologia do técnico e do agricultor apresentam semelhanças e diferenças formais e conceituais, devido a fatores que são sociais e linguístico-discursivos. Este estudo entende que essas semelhanças e diferenças não podem ser encaradas como uma variação de nível de especialização, ou seja, de um especialista mais preparado ou mais especializado do que o outro, mas sim, como uma variação horizontal, ou seja, em que a diferença é entre especialistas de mesmo nível de conhecimento (alto), mas de natureza diferentes. A VARIAÇÃO EM TERMINOLOGIA: O MODELO DE FREIXA A variação em Terminologia foi bastante discutida no passado e, agora, chegou-se a um consenso indubitável. O que muda no percurso desse debate consiste na alteração da ideia de que a variação é um mal a ser evitado para um pressuposto que diz que o fenômeno da variação é necessário à funcionalidade do discurso especializado. Os seguidores da filosofia positivista e estruturalista, que passou a ser denominada de Teoria Clássica da Terminologia, baseavam-se na tese de doutoramento de Eugen Wüster e pensavam que a variação era um desafio que deveria ser vencido por meio de ordenamentos e documentos normativos, como as normas técnicas. Só com o avanço de uma mentalidade funcionalista, presente na Linguística, a Terminologia pôde olhar para fora dos campos conceituais dos universos especializados e perceber o quanto os discursos dos especialistas tinham da linguagem natural e, por isso, as terminologias técnicas apresentavam os mesmos fenômenos encontrados na linguagem corrente. Com o interesse dos linguístas pelo discurso técnico e especializado, a Terminologia passa a conceber uma face natural das terminologias técnicas, em que a variação é um 1 X ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GT DE LEXICOLOGIA, LEXICOGRAFIA E TERMINOLOGIA DA ANPOLL – UERJ – Rio de Janeiro, 01-03 de junho de 2015 fator inerente e importante para o desenvolvimento e para o uso dessa linguagem. Tendo como base um pressuposto funcionalista, a linguista Maria Teresa Cabré pensa a Teoria Comunicativa da Terminologia, que, atualmente, fundamenta grande parte dos estudos teóricos e metodológicos na Terminologia. A Teoria Comunicativa da Terminologia postula que o termo é uma das funções que uma unidade do léxico pode exercer, nos diferentes discursos em que uma língua pode ser utilizada. Em um discurso especializado, desse modo, um termo seria uma noção que só teria razão no uso, no contexto técnico-científico. Partindo desse pressuposto, a variação seria a característica da língua que permitiria ao técnico adaptar seu discurso aos diferentes públicos aos quais ele possa se dirigir, nos diferentes contextos que o universo especializado apresenta, ou seja, nos diferentes níveis (do altamente especializado à vulgarização) nos quais o especialista se comunica. No âmbito da Teoria Comunicativa da Terminologia e da Socioterminologia, muitas são as propostas de análise e mapeamento das causas da variação nos discursos especializados. As propostas de Auger (2001) e Faulstich (2001), só para citar duas, são bons exemplos. No entanto, conforme lemos em Freixa (2002), muitas dessas propostas acabam por apresentar algumas incoerências e problemas de classificação. Sobre a de Faulstich, Freixa (2014, p. 315) observa que “en esta clasificación mezcla el critério formal y el casual, de forma que resulta dificilmente aplicable”.Tendo em conta os problemas nos modelos sugeridos pelos diferentes estudiosos da variação, Freixa (2001) apresenta um modelo variacionista que resume diversas propostas e que tem como ponto de partida aspectos linguísticos e extralinguísticos do universo especializado. Para ela, “la falta de exhaustividad (las propuestas anteriores permiten classificar solamente determinandos tipos de variación), y la mezcla en un mismo nível de parâmetros de diversa índole (especialmente de tipos formales y causuales)” (FREIXA, 2014, p. 315), são faltas que devem ser superadas, quando se consideram os diferentes modelos de variação terminológica. O modelo de Freixa se apresenta como “(...) una propuesta estructurada em seis bloques, que se dividen em varias causas concretas.” (Op. Cit., p. 323). Desse modo, a variação em Terminologia ocorre devido a cinco motivos, que ela denomina de causas (ii) prévias, (ii) dialetais, (iii) funcionais, (iv) discursivas, (v) interlinguísticas e (vi) cognitivas. As causas prévias são as causas naturais da própria língua, como a redundância e a arbitrariedade do signo linguístico, ou seja, “(...) “estas causas prévias”, no son causas en el sentido de parámetros que haya que tener en cuenta al igual el resto de causas de la propuesta.” (FREIXA, 2014, p. 323, grifos da autora). As causas (ii) dialetais e (iii) funcionais têm como base fatores internos e externos ao sistema linguístico. Enquanto que, na primeira, têm-se falantes diversos usando formas diferentes, na segunda, tem-se o mesmo falante utilizando formas diferentes para referir-se ao mesmo conceito, por causa do contexto comunicativo em que ele está inserido. Com isso, a causa dialetal reúne fatores como variação regional, diacrônica e social; as causas funcionais são aquelas referentes ao discurso e sua materialização, como o campo (ou tema), o modo (ou canal comunicativo) e o teor (substância da mensagem), que dependendo de sua forma, pode levar à variação denominativa. (iv) As causas discursivas são referentes à construção do discurso, ou seja, o estilo, a economia linguística, a criatividade e a ênfase são fatores que também estão atrelados à variação terminológica. As causas interlinguísticas (v) são as diferenças entre as línguas, que levam ao uso ou não de um termo estrangeiro para denotar significados ou filiação teórico-ideológica. As causas cognitivas (vi) são referentes à conceptualização da realidade por parte dos diferentes 2 X ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GT DE LEXICOLOGIA, LEXICOGRAFIA E TERMINOLOGIA DA ANPOLL – UERJ – Rio de Janeiro, 01-03 de junho de 2015 especialistas, bem como o registro dessa conceptualização por meio da definição. Sobre essa última causa, Freixa (2014, p. 326) observa que; “(...) las causas cognitivas se encuentran en un nível superior, porque lo que se está aceptando es que el concepto es susceptible de ser abordado de maneras diferentes, que es variable. Asi, pues, la variabilidad del concepto no es una causa de variación sino una premissa de partida.” Mesmo apresentado um modelo sólido, Freixa chama a atenção para a falta de linearidade de algumas causas e a possível interação e simultaneidade de alguns fatores, alertando sempre para a não completude do modelo. Embora o modelo de Freixa ainda esteja em desenvolvimento, este estudo investiga a variação na terminologia do técnico e do agricultor levando em consideração essa proposta. METODOLOGIA O corpus desta pesquisa é constituído por textos de natureza oral e escrita. O corpus oral é um conjunto de entrevistas orais com micro- e pequenos agricultores, especialistas em cana-de-açúcar; é composto por 28 entrevistas feitas por meio de um questionário semântico-lexical. O questionário, por sua vez, é constituído por 55 questões, divididas em cinco campos conceituais: plantação, colheita, beneficiamento, armazenamento e comercialização. Embora a recolha tenha sido feita com um questionário, durante as entrevistas, eles serviram mais como um guia da interação do que como um questionário propriamente dito. O corpus escrito é um conjunto de 100 textos publicados nos primeiros 12 anos do século XXI, em periódicos especializados na área da Agronomia, mais especificamente, no universo da cana-de-açúcar. Constituem também o corpus teses e dissertações defendidas em programas de pósgraduação em Agronomia em diferentes localidades do Brasil. Os textos acadêmicos foram transformados da extensão .pdf para .txt, para serem processados no programa de processamento e de análise de textos Antconc, com o qual foi possível selecionar os primeiros candidatos a termo. Os dados orais foram transcritos e também transformados em extensão .txt, de forma que também pudessem ser processados pelo programa. Os termos eleitos para esta análise fazem parte de dois dos cinco campos conceituais do questionário para a investigação com os micro- e pequenos plantadores. Os termos selecionados nos discursos dos dois especialistas foram organizados em uma planilha de dados do programa Access, do Windows 2010. ALGUNS RESULTADOS Dada a extensão deste trabalho, serão utilizados exemplos de dois campos conceituais para ilustrar a variação entre os termos utilizados pelo agrônomo e pelo agricultor. Campo conceitual plantação AGRICULTOR muda, planta cova AGRÔNOMO muda, planta, cultivar, variedade sistematização do solo talhões tradagem cova 3 X ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GT DE LEXICOLOGIA, LEXICOGRAFIA E TERMINOLOGIA DA ANPOLL – UERJ – Rio de Janeiro, 01-03 de junho de 2015 touceira aleatória, plantação aleatória, salteado, perna de caldeirão, pé-degalinha 4 enleiramento espaçamento entrelinhas parcial espaçamento entrelinhas uniforme Como se observa, a variação entre o agrônomo e o agricultor, no campo investigado, apresenta-se em diferentes níveis. Primeiramente, no discurso do agrônomo, é possível encontrar diferentes denominações para o mesmo conceito, como a denominação para a planta da cana-de-açúcar que, no discurso do agrônomo, apresenta quatro denominações e, no discurso do agricultor, apenas duas. Por outro lado, no quadro apresentado e em todo o corpus investigado, o conceito modelo de plantação aleatória de um canavial recebeu cinco denominações, colocando-o entre os conceitos mais polidenominados. Campo conceitual colheita AGRICULTOR cortador AGRÔNOMO índice de maturação canavial acamado quebra-lombo, quebra de lombo despalha, despalhação queima queima da cana cana queimada cana crua Analisando esse campo conceitual, é interessante observar que o discurso do agrônomo apresenta um número de termos maior, porque esse profissional desenvolve técnicas de plantio rigorosas, que têm a tecnologia como base. Outro ponto é o detalhamento dado aos diferentes aspectos da planta, para que se possa saber o momento certo do corte, que afeta a produção de sacarose na planta. Vale ressaltar ainda que o técnico denomina os diferentes momentos do corte, que vão desde a preparação do canavial até o corte. Por exemplo, canavial acamado denomina uma imperfeição na estrutura da cana-de-açúcar que traz problemas no momento do corte, e a fase anterior ao corte, que é a queima da cana (cana queimada) ou o corte feito em canavial não queimado, com a colheita realizada por máquinas. O agricultor, por sua vez, por meio de sua terminologia,não faz uso de um detalhamento tão específico da planta, além demonstrar que a queima ainda é uma realidade em seu universo (no universo do técnico, por força da lei, as indústrias não podem queimar canaviais, devido aos danos ambientais que essa prática produz.) e que se utiliza de instrumentos manuais para o corte ou a colheita. Note-se, todavia, que o contexto social da intensificação da produção da indústria canavieira pode fazer desaparecer o termo cana queimada do discurso do agricultor. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em conta os poucos exemplos apresentados neste estudo, levando-se em consideração o modelo de Freixa, observa-se que as causas dialetais, discursivas e cognitivas podem ser verificadas. Quanto às causas funcionais, não se pode deixar de X ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GT DE LEXICOLOGIA, LEXICOGRAFIA E TERMINOLOGIA DA ANPOLL – UERJ – Rio de Janeiro, 01-03 de junho de 2015 considerar que o canal comunicativo utilizado pelos agricultores e pelos agrônomos (oral e escrito) é um fator importante para a variação, visto que as condições e o tempo para a produção dos textos são fatores relevantes. Fatores dialetais, como a distância diatópica entre os diferentes agricultores e sua condição econômica para investir em tecnologia também são fatores que devem ser considerados para a compreensão da variação nesse universo; no entanto, a partir dos dados não se pôde fazer essa análise. Fora isso, é interessante observar a possível mudança que está em curso nesse universo do saber, que é o desaparecimento de uma variante, por questões legais, tendo em vista que há uma lei que proíbe a queima do canavial. Diante dos resultados obtidos neste estudo e da fundamentação teórica utilizada, podese afirmar que os estudos sobre as causas da variação ainda demandam mais tempo e esforços, para que se possa chegar, com maior segurança, nos fatores mais importantes que condicionam a variação nos discursos especializados, uma vez que a Terminologia de cunho descritivista já constatou e consagrou a existência da variação e, com isso, mudou a mentalidade referente a ela na disciplina. O estudo dos fatores que condicionam o fenômeno, porém, carece de mais reflexões, dada sua própria natureza, complexa e heterogênea. Por fim, cabe acrescentar que a variação na terminologia da cana-de-açúcar aponta para uma direção horizontal e não vertical, quando se compara a terminologia usada pelos dois grupos de especialistas: a presença ou a ausência de tecnologia e de investimentos financeiros não pode ser fator preponderante para afirmar que uma terminologia é mais desenvolvida que a outra ou que um especialista é mais especializado do que o outro, pelo contrário, deve-se pensar que a natureza dos dois conhecimentos é diferente e ambos os grupos são altamente especializados, uma vez que o conhecimento que eles apresentam,, tanto o industrial quanto o artesanal, não é de domínio comum REFERÊNCIAS AUGER, F. Essai d´elaboration d´um modele terminologique/ terminographique variationniste. 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