Luiz Fernando Medeiros de Carvalho “A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais” Escrever para quê? Para conservar um ponto qualquer, um ponto anterior à velocidade do tempo que apaga aquela insistência em comentar, em registrar algo que vai funcionar como sintoma, como irradiação do trânsito de uma arte à outra. Rute Gusmão é uma artista acostumada a lidar com o traço do desenho, com os pincéis, com a textura das cores, com a concretude da tinta e sua passagem mesma pelo suporte material que recebe e reage e que provoca a mão, que faz a mão experimentar outro modo de ser. Agora o traço é memoria do que viu e experimentou com aquela outra materialidade plástica. O traço agora vai fazer a transição, a sua passagem pelos caminhos da palavra. Olho e mão empreendem uma viagem para dizer com o texto o domínio do corpo e da visualidade. Tudo é tecido. O que contorna, o que se constitui como moldura é da ordem dos recortes que o poema faz para criar paragens ou pontos de observação. O que está fora e o que está dentro? O que se torna moldura de quê? Qual é o próximo corte, qual a próxima dobra que vai possibilitar ver melhor a grande textura? O trabalho da poeta consiste em aproximação e distanciamento em relação a um corpo, a um ponto de referencia poroso, aberto ao esbarrar das coisas em movimento, que não estão ainda visíveis ou audíveis, que estão em estado de vizinhança, à espera de chegar, como um veludo é visto, ou uma pétala se conhece. A esse ponto corporal e hospitaleiro, o poema se dirige para formar núcleos ou imagens que falam da relação com as coisas do mundo. Tudo é de raspão, mas deixando marcas que a atração contamina. Fico com três poemas: sobre o quarto pintado por Van Gogh, em Arles. Sobre a primeira versão do quadro que está em Amsterdã. O poema intitulado Van Gogh é seletivo e fala da experiência de ver com palavras, de dizer o que olhos e mãos já experimentaram em outra dimensão. O poema precisa dizer como os olhos leram aquele primeiro quarto. E mostrar o paradoxo de agarrar os móveis de manteiga. Agarrar com a escrita essa experiência visual. Até um crescendo que permite o teorizar sobre o que se vê: “quanto mais claro o quarto / mais esbarro / nas pinceladas / escorrego em óleo”. No poema intitulado Degas, há uma meditação sobre a pesquisa do pintor, sobre a experiência dos limites do corpo. Degas era um refinado experimentador da transgressão dos limites. Para ele, o corpo é um território hospitaleiro ao transe, do perceptível ao imperceptível. Se a percepção foca num ponto qualquer, algo já está se passando em outro lugar. O poema medita sobre essa ultrapassagem da linha como forma de pensar a moldura como o mais além do que o olho vê. Na outra dimensão dos sentidos, pela música, o poema traduz em imagens o que é dançar o mundo pelos passos do tango: “O tango marca a pele / como faca / veludo e pétala se tocam /à media luz / tudo se orquestra / carmins cantos distantes/ e um esbarrar de cordas”. O poema diz a sensação do corpo ao experimentar a música e a dança e como se dá a transmutação em palavras do que pertence ao reino das imagens: veludo, pétala e esbarrar de cordas. Palavras que falam do toque, que pode ser dos tímpanos, avisados da chegada do sonho. A poesia de Rute Gusmão apresenta-se como transfiguradora dos materiais, criando no tempo e no espaço da página, a maturação de sua arte plural. www.textoterritorio.pro.br/molduradapele