Apontamentos sobre o significado de “Repercussão Geral” para efeitos de Recurso
Extraordinário.
Luiz Gustavo Levate1
Sumário: 1- Introdução. 2. Fundamento de Validade. 3. Fundamento Pragmático. 4 Fundamento Político e Direito Comparado. 5- Repercussão Geral e História do Direito. 6 . A
Transcendência do Recurso de Revista no Processo do Trabalho. 7. Da Repercussão Geral
no Direito Processual Civil. 8. O Papel do STF Como Corte Constitucional. 9. Da
Repercussão Geral em Matéria Tributária
Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar o instituto da Repercussão Geral
para efeitos de Recurso Extraordinário. Traz o significado das expressões repercussão
econômica, política, social e jurídica. Mostra o perfil das demandas no STF, e
especificamente no campo tributário, bem como a necessidade de se relevar o papel da mais
alta Corte brasileira como Corte Constitucional.
Palavras-chave: Repercussão Geral; História do Direito; Direito Comparado;
Significado; Direito tributário. Papel do STF.
1- INTRODUÇÃO
As recentes modificações na Constituição Federal e no
Código de Processo Civil trouxeram de volta ao cenário jurídico brasileiro um critério para
1
Procurador do Município de Belo Horizonte. Advogado. Especialista em Direito Público
Municipal pela PUC/MG. Professor de Processo Civil da Escola Superior Dom Helder
Câmara/BH.
diminuir o volume de Recursos Extraordinários interpostos para o Supremo Tribunal
Federal. Deu-se nova roupagem à antiga argüição de relevância federal, bem como se
aproveitou a experiência de outros países para dar à Corte Suprema Brasileira sua
verdadeira vocação de Corte Constitucional, cujo papel é manter a autoridade da
Constituição e das leis substantivas em todo o território nacional.
Da simples leitura do art. 102, §3º, da CF, inserido pela EC
45, infere-se que foi adicionado ao recurso extraordinário um requisito de admissibilidade,
porquanto o legislador deixou claro ao afirmar que o Tribunal examinará a admissão do
recurso. Deve o recorrente, portanto, antes de adentrar no mérito do recurso, demonstrar
a repercussão geral da questão ali abordada. Neste sentido Sergio Bermudes2 e os
professores Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina e Luiz Rodrigues
Wambier3.
A demonstração da repercussão geral, portanto, deve ser
feita na própria peça em que se veiculam as razões do RE, tal como era feito à época da
argüição de relevância da questão federal sob a ordem constitucional anterior.
Em
razão
da
novidade
da
utilização
da
expressão
“Repercussão Geral”, este estudo limita-se a trazer a lume o seu significado jurídico, com
base no Direito Comparado e na História do Direito, sem pretender esgotar a matéria e
enfrentar outros pontos que tantas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais
igualmente fará surgir.
2. FUNDAMENTO DE VALIDADE
Ao
lado
das
hipóteses
de
cabimento
do
recurso
extraordinário, descritas na Constituição da República, a Emenda n. 45/2004 acrescenta
um terceiro parágrafo ao art. 102 da Carta, cujo teor é:
2
A Reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional nº 45, Forense, Rio de Janeiro, 2005, pág. 56
Repercussão Geral e Súmula Vinculante, pág. 373, in Reforma do Judiciário, São Paulo, RT, 2005, Coordenação: Teresa
Arruda Alvim Wambier
3
"No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a
repercussão geral das questões constitucionais discutidas
no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine
a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela
manifestação de dois terços de seus membros.”
Já a lei 11.418/2006, além de outros dispositivos, trouxe a
definição legal do que seria “Repercussão Geral”, utilizando-se, porém, de vocábulos de
extensa vaguidez, que exigirá do aplicador do direito um trabalho hermenêutico para
revelar, diante de cada caso concreto, a ocorrência ou não da indigitada repercussão,
bem como se serviu de uma presunção legal para tanto, senão vejamos:
“Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão
irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário,
quando a questão constitucional nele versada não
oferecer repercussão geral, nos termos deste
artigo.
§ 1o Para efeito da repercussão geral, será
considerada a existência, ou não, de questões
relevantes do ponto de vista econômico, político,
social ou jurídico, que ultrapassem os interesses
subjetivos da causa.
§ 2o O recorrente deverá demonstrar, em preliminar
do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo
Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.
§ 3o Haverá repercussão geral sempre que o
recurso impugnar decisão contrária a súmula ou
jurisprudência dominante do Tribunal.
Trata-se de novo requisito de admissibilidade do apelo
extremo, normalmente chamado de transcendência; para ser admitido, o extraordinário
deve encartar questão transcendente, de repercussão geral. O Recorrente passará a ter
que demonstrar que a matéria discutida no Extraordinário tem uma relevância que
transcende aquele caso concreto, possuindo, assim, interesse geral.
Destarte, passaremos a ter “questões constitucionais
qualificadas”, na feliz expressão do professor José Miguel Garcia Medina.
Segundo o entendimento do professor Arruda Alvim4,
"a expressão ‘repercussão geral’ significa praticamente a
colocação de um filtro ou de um divisor de águas em relação
ao cabimento do recurso extraordinário (...). O Supremo
Tribunal Federal deverá interpretar a questão argüida pelo
recorrente, não apenas no sentido estritamente jurídico, mas
também sob a ótica da repercussão econômica e social,
ainda que sempre conectada com o direito constitucional. O
que realmente interessa é que a repercussão da matéria
constitucional discutida tenha amplo espectro, vale dizer,
abranja um significativo número de pessoas".
A lei nº 11.418/2006 insere-se no contexto da Reforma do
Judiciário, consolidada pela Emenda Constitucional n° 45/2004 acrescentando os arts.
543-A e 543-B ao Código de Processo Civil.
Convém destacar que o fundamento de validade da nova
legislação não se esgota na vertente formal, é dizer, no §3° do art. 102, CF; há um
alicerce material salutar. Trata-se da bem sucedida pesquisa "A Justiça em Números Indicadores Estatísticos do Poder Judiciário Brasileiro"5, que traçou uma radiografia do
Poder Judiciário no Brasil, identificando as principais causas de litigiosidade.
3. FUNDAMENTO PRAGMÁTICO
A pesquisa foi realizada no bojo da reforma gerencial do
Judiciário6 – complementar à reforma da EC n° 45/2004, vale frisar – no intuito de fazer
um diagnóstico dos problemas do Judiciário, para lhe dar maior eficiência. Foi assim que
se chegou ao impressionante dado estatístico de que os recursos extraordinários junto
4
A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral, pág. 64, in Reforma do Judiciário, São Paulo, RT, 2005, Coordenação:
Teresa Arruda Alvim Wambier
Cf. www.stf.gov.br
6
Perfil das maiores demandas do Supremo Tribunal Federal. Relatório final da pesquisa realizada de 1º/1/2002 a 30/6/2004
pela DATAUnB. Disponível em http://www.stf.gov.br/seminario/. Acesso em 13. 01.07
5
aos agravos de instrumento representariam mais de 90% das demandas do Supremo
Tribunal Federal.
Para melhor se compreender a amplitude dos efeitos da
análise da relevância, é válido comparar os Estados Unidos e o Brasil.
Nos Estados Unidos7, país com população superior à do
Brasil e com alto grau de litigiosidade, cerca de 80% das demandas estancam no primeiro
grau e, portanto, apenas 20% sobem aos tribunais de Justiça. Enquanto a Suprema Corte
Americana recebe cerca de cinco mil processos por ano e seleciona não mais que cem
para julgar, o Supremo julga, em média, um número mil vezes maior de ações. No ano
passado, por exemplo, Tribunal recebeu 95.212 processos e realizou 103.700
julgamentos, incluindo decisões monocráticas e colegiadas.
Neste diapasão, no que tange à celeridade e ao direito a
uma tutela jurisdicional adequada e célere (convém relembrar a histórica frase de Ruy
Barbosa “justiça tardia é injustiça qualificada”), o novo requisito de admissibilidade, tal
como previsto na referida lei, constitui, a um só tempo, um filtro para obstar a subida de
RE’s com variáveis particulares e um instrumento eficaz para garantir a autoridade das
decisões proferidas por órgãos hierarquicamente inferiores ao STF.
4 - FUNDAMENTO POLÍTICO E DIREITO COMPARADO
Antônio Álvares da Silva8, discorrendo sobre o fundamento
político- jurídico dos Recursos extraordinários ensina que:
“No Direito Romano, no período da cognitio extraordinária,
desenvolveu-se a idéia de que havia certas controvérsias
que iam além do direito das partes, tendo repercussão
em todo o sistema jurídico e, portanto, em toda a
sociedade. Nestas hipóteses se distinguia entre o ius
litigator, direito dos litigantes, próprio e restrito às partes, do
ius constitucionis, em que a controvérsia afetava a
7
8
André Ramos Tavares Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.p.415
A Transcendência no Recurso de Revista. São Paulo: LTR, 2002. p. 20
constitutio, isto é, a
norma posta em vigência pelo
imperador através de decreto, edito ou epístola. Havia assim
um controle político, e não apenas jurídico, que o juiz
exercia sobre os fatos, dando um relevo extra-autos àquelas
questões que o transcendiam. A origem recente do instituto
se localiza na França (...). Na época da revolução, teve um
papel político relevante para preservar a existência da lei e a
igualdade de todos perante ela”.
A existência de Cortes Judiciárias para preservar o direito
objetivo e uniformizar sua aplicação, que vai muito além do interesse subjetivo das partes,
é comum nos ordenamentos europeus, como no caso da Corte de Cassazione da Itália,
do Bundesgerichthof – Tribunal Superior de Justiça - alemão e da Lê Pourvoir de
Cassation do direito francês.
De toda sorte, o requisito da relevância, como era chamado
pelo RISTF, ou da repercussão geral, na vocação da Emenda Constitucional n. 45/2004,
não foi idéia brasileira.
A Suprema Corte norte-americana, há muito, orienta-se por
ele através do writt de certiorari, que ao julgar o recurso não atua como instância de
revisão, mas tem em vista servir interesses maiores da lei e do ordenamento jurídico. Sua
regra básica era a de que para seu conhecimento o certiorari deveria trazer repercussão
extra-autos do caso decidido. O não-conhecimento deste recurso não importava em
aprovação da sentença inferior pela Suprema Corte. Significava apenas que o caso
decidido não comportava repercussão geral, não havendo adentramento no mérito da
questão.
O mesmo ocorre com o ordenamento argentino, no qual, a
propósito,
"Em
1990,
a
lei
23.774
reformou
parcialmente
o
procedimento do recurso extraordinário federal. A reforma
afetou o art. 280 do Código Processual Civil e Comercial da
Nação que dispôs, a partir de então, na parte pertinente: ‘A
Corte, segundo sua discrição, e apenas com a invocação
desta norma, poderá rechaçar o recurso extraordinário, por
falta de gravame federal suficiente ou quando as questões
suscitadas
resultarem
inconsistentes
ou
carentes
de
transcendência."9
5 - REPERCUSSÃO GERAL E HISTÓRIA DO DIREITO
A repercussão geral não é, outrossim, novidade no Brasil,
onde, na década de setenta, desenvolveu-se o instituto da argüição de relevância. A
Emenda Constitucional n. 07, de 13 de abril de 1977, deu a seguinte redação ao § 1º do
art. 119 da Constituição então vigente, in verbis:
"Art. 119. (...)
§ 1º As causas a que se refere o item III, alíneas a e d,
deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal
no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie,
valor pecuniário e relevância da questão federal."
O RISTF, por seu turno, nos arts. 325 e seguintes,
disciplinou com maiores detalhes tal instituto. A propósito, Evandro Lins e Silva10 anotou
que "a relevância é uma pré-condição ou pré-requisito do recurso. Pode haver negativa de
vigência da lei ou decisão divergente do próprio STF e a causa não ser considerada
relevante, a ponto de exigir a correção extraordinária.” .
Cuidava-se de artifício então utilizado pela Corte Suprema
na tentativa de reverter a crise que nela se instaurara desde os idos de 1950, ou melhor, a
crise do recurso extraordinário, o qual, pela sua ambivalência, instrumento de guarda da
Constituição e da legislação federal, multiplicou-se assustadoramente, alastrando-se por
toda sorte de causas, de cíveis a criminais, de modo a engrossar as fileiras de processos
no Tribunal.
9
LEGARRE, Santiago. Una puesta en matéria de certiorari. In: RIVAS, Adolfo A. et PELLONI, Fernando M. Machado
(coord.) Derecho procesal constitucional. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 313, tradução livre,
10
SILVA, Evandro Lins e. O recurso extraordinário e a relevância da questão federal. In: Revista Forense 255/43
Em verdade, Arruda Alvim11 esclarece a real vocação da
argüição de relevância, ao tratá-la como um instrumento antagônico e neutralizador do
critério de exclusão delineado no RISTF, in verbis:
"A argüição de relevância diferentemente das exclusões
(que são objeto de disciplina negativa, ‘quase genérica’, em
sede regimental, no sentido de que aí já se encontram
concretizadas)
desempenha,
em
rigor,
função
‘neutralizadora’ das exclusões; vale dizer, o valor da causa,
sua espécie, etc., são elementos possíveis para se poder
cogitar da exclusão de cabimento de RE, sempre à luz da
irrelevância da causa ou da questão, os quais elementos
(valor da causa, espécie, etc.), serviram de suportes básicos
do RI, precisamente, para sobre eles incidir o critério da
relevância ou da irrelevância, quando da elaboração
legislativa do elenco constante do art. 325. E, nos RIs
anteriores, influíram esses elementos (avaliados pela
relevância/irrelevância), gerando outra técnica de legislar,
quando se elaboram os ‘elencos’ taxativos de causas e
questões, que ficavam excluídas do cabimento de RE. Já
diferentemente, a argüição de relevância fornece o caminho
adequado para incluir o que tenha sido objeto de exclusão
por obra do Regimento Interno, que vale como lei, neste
particular."
Antônio Álvares da Silva12 noticia que no período que a
argüição de relevância vigorou no Brasil houve mais de 30.000 argüições, e que destas,
apenas 5% foram acolhidas.
Pois bem, o art. 325 do RISTF dispunha que, nas hipóteses
das alíneas a e d do inciso III da Constituição de então, caberia recurso extraordinário,
entre outros, (a) nos casos de ofensa à Constituição, (b) nos casos de divergência com a
súmula do Supremo Tribunal Federal, e (c) nos
processos por crime a que fosse
cominada pena de reclusão.
11
ALVIM, Arruda. A argüição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1988, p. 27
Ao final de seu rol, no inciso XI, estabelecia também ser
cabível o apelo extremo "em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da
questão federal."
Tal argüição tinha lugar em recursos referentes a processos,
cuja controvérsia, em princípio, não se achava albergada pelo elenco nominal do art. 325,
I a X, do RISTF. Estava-se diante, portanto, de uma cláusula aberta que franqueava o
acesso ao Supremo Tribunal Federal a certas causas, que, apesar de não constarem da
enumeração regimental, tivessem a respectiva relevância provada.
E, nos termos do § 1º do art. 327 do RISTF, considerava-se
relevante "a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os
aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do
recurso extraordinário pelo Tribunal."
À Suprema Corte, em sessão do Conselho, competia
privativamente, o exame da argüição de relevância da questão federal (art. 327, caput, do
RISTF).
Conforme as palavras do Ministro Sydney Sanches13 em
palestra proferida na OAB/SP, em 1987, o
"julgamento de relevância de uma questão federal não é
atividade jurisdicional, é ato político, no sentido mais nobre
do termo. Por ele se deve chegar à conclusão sobre se uma
causa, mesmo não se encaixando em qualquer das
hipóteses previstas nos incisos I a X do art. 325 do RISTF,
deve, apesar disso, ser examinada pelo S.T.F., em recurso
extraordinário." E, continuando sua conferência, o referido
Ministro narrou a forma de seleção dos temas relevantes,
para serem julgados pela Corte, ao lado daqueles descritos
exemplificativamente pelo RISTF. O apontamento das
questões federais dava-se em sessões administrativas
fechadas ao público, pois não se tratava propriamente de
julgamentos de casos concretos, mas, sim, de declinação
12
op. cit. p. 46
abstrata da temática que seria apreciada pelo Tribunal, que
divulgava o acolhimento ou não das argüições. Para ilustrar,
citem-se alguns exemplos: "n. 10. Necessidade de vistoria
em quebra de peso de carga em transporte marítimo.
Relevância Econômica"; "n. 19. Termo inicial de correção
monetária sobre honorários de advogado. Relevância
jurídica"; e "n. 37. IPTU. Aumento por decreto. Relevância
jurídica."
Não se pode confundir, assim, a atual repercussão geral (ou
transcendência) com a antiga argüição de relevância. Enquanto esta constituía um
mecanismo de atribuição de admissibilidade apenas
a recursos que não se
encontrassem expressamente previstos na enumeração regimental, aquela é exigida de
todo e qualquer apelo extraordinário, ao menos na vocação literal do novo inciso III do art.
102 da Constituição da República.
Ao não utilizar o termo relevância, como previsto em nosso
sistema constitucional anterior (argüição de relevância) e sim repercussão geral, o
legislador deixou evidente que o recurso extraordinário deve possuir importância geral
para ser julgado. Uma causa é provida de repercussão geral quando há interesse geral
pelo seu desfecho, ou seja, interesse público e não somente dos envolvidos naquele
litígio. No momento em que o julgamento daquele recurso deixar de afetar apenas as
partes do processo, mas também uma gama de pessoas fora dele, despertando interesse
público, tem aquela causa repercussão geral. Numa única palavra, quando houver
transcendência.
6 . A TRASCENDÊNCIA DO RECURSO DE REVISTA NO PROCESSO DO TRABALHO
A par da revogada argüição de relevância, o ordenamento
brasileiro, na atualidade, tem experimentado a polêmica acerca da transcendência do
recurso de revista no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho. A respectiva disciplina foi
veiculada pela Medida Provisória nº 2.226, de 04 de setembro de 2001, cuja
13
SANCHES, Sydney. Argüição de relevância da questão federal. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1988
constitucionalidade foi questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2527,
ainda pendente de julgamento.
O mencionado diploma inseriu o art. 896-A na Consolidação
das Leis do Trabalho, estabelecendo que, no recurso de revista, a Corte Superior do
Trabalho examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos
reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. Apenas quando a
demanda se revestir de tal caráter será admitida a impugnação.
Como na presente pesquisa nos propomos à descobrir o
verdadeiro sentido e alcance do significado da “Repercussão Geral”, vamos primeiro ver
como a doutrina do direito processual do trabalho lida com o tema, haja vista que a lei nº
11.418/2006 se utilizou dos mesmos parâmetros da legislação trabalhista para definir a
referida expressão, no § 1º do artigo 543-A do CPC.
Sérgio Pinto Martins14 busca dar sentido aos vocábulos
contidos no referido artigo, que são, deveras, conceitos abertos dotados de generosa
vaguidão, funcionando como verdadeiros conceitos jurídicos indeterminados:
Transcendência parece que terá o sentido de relevância.
Reflexos de natureza econômica seriam os que tivessem
alguma influência na política econômica do governo, como
planos econômicos, reajustes salariais, o valor do processo
etc.
Critérios jurídicos seriam questões novas.
Critério social seria não-discriminação, como em relação a
menores, mulheres ou outras pessoas.
Reflexos políticos também teriam o sentido dos que
tivessem influência na política adotada pelo governo, que
não seria apenas econômica. Isso também poderia envolver
questões sociais.
Antônio Álvares da Silva15, já citado neste ensaio, nos traz
as seguintes lições:
Transcendência jurídica é "o desrespeito patente aos
direitos humanos fundamentais ou aos interesses coletivos
indisponíveis, com comprometimento da segurança e
estabilidade das relações jurídicas."
Transcendência política é "o desrespeito notório ao princípio
federativo ou à harmonia dos Poderes constituídos”.
A transcendência social é "a existência de situação
extraordinária de discriminação, de comprometimento do
mercado de trabalho ou de perturbação notável à harmonia
entre capital e trabalho”.
A transcendência econômica é "a ressonância de vulto da
causa em relação a entidade de direito público ou economia
mista, ou a grave repercussão da questão na política
econômica
nacional,
no
segmento
produtivo
ou
no
desenvolvimento regular da atividade empresarial" .
Não obstante a elevada categoria dos autores citados,
podemos perceber que, em regra, suas definições voltaram atenção específica para o
direito laboral.
7. DA REPERCUSSÃO GERAL NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Em razão disso, corraboraremos com a fiança de Fredie
Didier Júnior16 os não menos brilhantes ensinamentos de José Miguel Garcia Medina,
Teresa Arruda Alvim Wambier, e Luiz Rodrigues Wambier,17 os quais pedimos vênia para
novamente transcrever:
(i) repercussão geral jurídica: a definição da noção de um
instituto básico do nosso direito, "de molde que aquela
14
Comentários à CLT. São Paulo: Atlas, 2005. p. 988
Op. cit. p. 57 a 59
16
Transformações do Recurso Extraordinário; in Processo e Constituição. São Paulo: RT, 2006. p. 988
17
Breves comentários à nova sistemática processual civil, 3ª ed. São Paulo: RT, 2005. p.104
15
decisão, se subsistisse, pudesse significar perigoso e
relevante precedente";
(ii) repercussão geral política: quando "de uma causa
pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com
Estados estrangeiros ou organismos internacionais";
(jii) repercussão geral social: quando se discutissem
problemas relacionados "à escola, à moradia ou mesmo à
legitimidade do Ministério Público para a propositura de
certas ações";
(iv)
repercussão
geral
econômica:
quando
se
discutissem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação
ou a privatização de serviços públicos essenciais.
O § 3° do art. 543-A incluído pela nova lei, preferiu trazer
uma presunção de existência de repercussão geral sempre que o recurso impugnar
decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
Daí exsurge uma importante questão: será suficiente
apenas indicar que o recurso impugna decisão contrária a súmula ou jurisprudência
dominante do Tribunal para se deduzir que há a repercussão geral, ou, mesmo com tal
indicação, o recurso se submeterá ao crivo da Corte?
Entendemos só ser possível se compreender que a
presunção contida no § 3° do art. 543-A deve ser vista cum granus salis, no sentido de
que não basta ao recorrente impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência
dominante do Tribunal, sob pena de se subverter a natureza de filtro recursal do requisito
ora analisado.
Destarte, cumpre ao STF, a despeito da argüição de
contrariedade a súmula ou jurisprudência do Tribunal, examinar se, de fato, a decisão
recorrida incorre nesta contrariedade, a ponto de estar acobertada pela presunção. Com
efeito, um recurso fundamentado na aludida contrariedade, em que se verifique uma
contradição apenas indireta e reflexa a súmula ou jurisprudência, poderá perfeitamente ter
seu seguimento negado pelo STF, ante a ausência da situação que dá ensejo à
presunção. É que a súmula, apesar de ser considerada por muitos como a norma em
seu estado ótimo, não dispensa a atividade interpretativa.
8. O PAPEL DO STF COMO CORTE CONSTITUCIONAL
O art. 543-B parece positivar o que vem comumente sendo
denominado na doutrina e jurisprudência de objetivação do recurso extraordinário, a fim
de, como se disse acima dar ao Supremo Tribunal Federal sua verdadeira vocação de
Corte Constitucional, cujo papel é manter a autoridade da Constituição e das leis
substantivas em todo o território nacional.
Trata-se da tendência do STF analisar a questão ventilada
no RE, de maneira objetiva, projetando os efeitos da decisão proferida a todos os
recursos extraordinários que versem sobre matéria idêntica, não ficando seus efeitos
restrito entre as partes daquela relação jurídica processual, conforme expõe o Min. Gilmar
Mendes18:
No recurso extraordinário, alega-se violação aos arts. 59 e
239 da Constituição Federal. (...) apesar de não se
vislumbrar no presente caso a violação ao art. 239 da
Constituição, diante dos diversos aspectos envolvidos na
questão, é possível que o Tribunal analise a matéria com
base em fundamento diverso daquele sustentado. A
proposta aqui desenvolvida parece consultar a tendência de
não-estrita subjetivação ou de maior objetivação do recurso
extraordinário, que deixa de ter caráter marcadamente
subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para
assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem
constitucional objetiva. Esse posicionamento foi adotado
pelo Plenário no julgamento do AgRSE 5.206.
É indispensável, no entanto, cautela, ao se afirmar que tal
objetivação traduz-se numa tendência, pois assim só deve ser entendida, no tocante às
18
(...). RE 388.830, voto do Min. Gilmar Mendes, DJ 10/03/06.
demandas de natureza previdenciária, tributária, administrativas, ou outras que envolvam
o Poder Público e tenham por objeto alguma prestação pecuniária, uma vez que versam
sobre relações jurídicas de trato sucessivo semelhantes, homogêneas, e numerosas.
Entre os processos de recurso extraordinário, a maior incidência ocorre na área de Direito
Tributário (30,8%), e depois no Direito Administrativo (21,9%) [...]". Em seguida, vem o
Direito Previdenciário (16,8%)19.
É justamente por versarem sobre situações semelhantes
que estas causas permitem uma solução homogênea para todos os casos. O exemplo
mais representativo disso ocorreu quando o Supremo Tribunal Federal julgou uma
multiplicidade de recursos extraordinários, abordando a relação jurídica sujeito-União lato
sensu, no atinente à questão dos reajustes de FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço). O Ministro Gilmar Mendes20 narrou o acontecimento:
Numa estimativa grosseira, podemos dizer que cerca de 6
milhões de pessoas – se estimarmos que 10 pessoas
estivessem representadas em cada processo – estavam em
juízo contra a CEF, discutindo reajustes. É um número
espetacular. E o Supremo acabou decidindo essa matéria
em 4 processos, abrangendo todos os processos.
A tendência que se observa, então, é mais ampla, no
sentido de que o modelo difuso (representado pelo RE) precisa compartilhar algumas
características do modelo concentrado, objetivo (representado pelas ações diretas), para
garantir a própria operacionalização do sistema. Os precedentes judiciais têm ganhado
força vinculante nos ordenamentos de tradição romano-germânico, tal como ocorreu com
a aprovação da reforma do Judiciário brasileiro em 200421.
19
Perfil das maiores demandas do Supremo Tribunal Federal. Relatório final da pesquisa realizada de 1º/1/2002 a
30/6/2004 pela DATAUnB. Disponível em http://www.stf.gov.br/seminario/. Acesso em 13.01.07. p.65
20
MENDES, Gilmar Ferreira. Legitimidade e Perspectiva do Controle de Constitucionalidade Concentrado no Brasil. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite, coord. Crise e Desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas
constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.p. 263.
21
Tradições do direito, in ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Rachel (org.). Direito e Economia: análise econômica do direito
e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p.149
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart22 bem
afirmam que não é possível estabelecer uma noção a priori, abstrata, do que seja questão
de repercussão geral, pois essa cláusula depende sempre das circunstâncias do caso
concreto.
9. DA REPERCUSSÃO GERAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
Diante dos dados constatados supra, - 30,8% dos recursos
extraordinários envolvem matéria tributária, posto que envolve o Poder Público e tem por
objeto alguma prestação pecuniária, uma vez que versa sobre relações jurídicas de trato
sucessivo semelhantes, homogêneas, e numerosas – podemos prever que decisões que
afrontem princípios constitucionais tributários, como o da legalidade estrita, o da
anterioridade e capacidade contributiva, apoditicamente, trarão consigo repercussão geral
jurídica.
Outrossim, matéria de competência tributária ou v.g. a
definição de certos itens – que configuram verdadeiras obrigações de dar, para efeitos de
incidência de ICMS e de IPI - como sendo serviço, declinados na lista anexa à LC nº
116/2003 ou, em sentido oposto, determinadas “operações” que, em verdade, traduzemse em verdadeiras obrigações de fazer ensejando, assim, a incidência do ISS, e não do
ICMS trarão repercussão geral política, posto que um ente federativo poderá estar
invadindo esfera de competência alheia e exclusiva.
Há repercussão geral política e jurídica também na questão
da competência do Município para exigir o ISSQN, pois intimamente ligada ao pacto
federativo, ao federalismo de cooperação e à repartição das receitas tributárias. Ademais,
definir se o município competente para exigir o ISSQN é aquele onde o exercício é
efetivamente prestado ou onde se localiza o estabelecimento prestador do serviço é
matéria que merece uma decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, por dizer de
perto com um instituto básico do nosso ordenamento jurídico, qual seja, a competência
tributária.
22
Manual do processo de conhecimento. 4ª ed. São Paulo: RT, 2005. p. 558
Ademais,
dificilmente
a
matéria
tributária
repelirá
repercussão geral econômica. É o que aconteceu na declaração de inconstitucionalidade
da tabela anexa à Lei Municipal 5641/1989, que considerou inconstitucional a
progressividade das alíquotas progressivas ali contidas. Ora, tal declaração repercutiria
diretamente na arrecadação municipal, colocando em risco a autonomia financeira do
Município.
Imagine-se, também, se o Tribunal de Justiça declarasse
inconstitucional a cobrança taxa de coleta de resíduos sólidos urbanos, por entender ser
este serviço público inespecífico
e indivisível, ou que a cobrança anual da taxa de
fiscalização de anúncios e da taxa de fiscalização de funcionamento e fiscalização fossem
indevidas em razão da não configuração do poder de polícia. Aqui, a repercussão geral
jurídica estaria umbilicalmente ligada à repercussão geral econômica, visto que a
impossibilidade de cobrança das referidas taxas, tendo por espeque aqueles
fundamentos, desfalcaria sobremaneira os cofres públicos, quanto mais em razão do
iterativo entendimento do Egrégio TJMG de ser a taxa de fiscalização de anúncio devida
pelo exercício do poder de polícia bastando, para tanto, existir estrutura administrativa
para coibir abusos dos particulares. O Egrégio Supremo Tribunal Federal já se manifestou
no sentido de que, no Município de Belo Horizonte, o poder de polícia administrativo é
presumido23.
De tudo isto o que se conclui? A síntese vulgar do instituto
poderia ser expressa numa só frase: o STF determinará o que deve ou não ser julgado,
segundo uma política constitucional. Trata-se, realmente, do balizamento da Corte na sua
função prístina de exercício de uma jurisdição constitucional.
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