Apontamentos sobre o significado de “Repercussão Geral” para efeitos de Recurso Extraordinário. Luiz Gustavo Levate1 Sumário: 1- Introdução. 2. Fundamento de Validade. 3. Fundamento Pragmático. 4 Fundamento Político e Direito Comparado. 5- Repercussão Geral e História do Direito. 6 . A Transcendência do Recurso de Revista no Processo do Trabalho. 7. Da Repercussão Geral no Direito Processual Civil. 8. O Papel do STF Como Corte Constitucional. 9. Da Repercussão Geral em Matéria Tributária Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar o instituto da Repercussão Geral para efeitos de Recurso Extraordinário. Traz o significado das expressões repercussão econômica, política, social e jurídica. Mostra o perfil das demandas no STF, e especificamente no campo tributário, bem como a necessidade de se relevar o papel da mais alta Corte brasileira como Corte Constitucional. Palavras-chave: Repercussão Geral; História do Direito; Direito Comparado; Significado; Direito tributário. Papel do STF. 1- INTRODUÇÃO As recentes modificações na Constituição Federal e no Código de Processo Civil trouxeram de volta ao cenário jurídico brasileiro um critério para 1 Procurador do Município de Belo Horizonte. Advogado. Especialista em Direito Público Municipal pela PUC/MG. Professor de Processo Civil da Escola Superior Dom Helder Câmara/BH. diminuir o volume de Recursos Extraordinários interpostos para o Supremo Tribunal Federal. Deu-se nova roupagem à antiga argüição de relevância federal, bem como se aproveitou a experiência de outros países para dar à Corte Suprema Brasileira sua verdadeira vocação de Corte Constitucional, cujo papel é manter a autoridade da Constituição e das leis substantivas em todo o território nacional. Da simples leitura do art. 102, §3º, da CF, inserido pela EC 45, infere-se que foi adicionado ao recurso extraordinário um requisito de admissibilidade, porquanto o legislador deixou claro ao afirmar que o Tribunal examinará a admissão do recurso. Deve o recorrente, portanto, antes de adentrar no mérito do recurso, demonstrar a repercussão geral da questão ali abordada. Neste sentido Sergio Bermudes2 e os professores Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina e Luiz Rodrigues Wambier3. A demonstração da repercussão geral, portanto, deve ser feita na própria peça em que se veiculam as razões do RE, tal como era feito à época da argüição de relevância da questão federal sob a ordem constitucional anterior. Em razão da novidade da utilização da expressão “Repercussão Geral”, este estudo limita-se a trazer a lume o seu significado jurídico, com base no Direito Comparado e na História do Direito, sem pretender esgotar a matéria e enfrentar outros pontos que tantas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais igualmente fará surgir. 2. FUNDAMENTO DE VALIDADE Ao lado das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, descritas na Constituição da República, a Emenda n. 45/2004 acrescenta um terceiro parágrafo ao art. 102 da Carta, cujo teor é: 2 A Reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional nº 45, Forense, Rio de Janeiro, 2005, pág. 56 Repercussão Geral e Súmula Vinculante, pág. 373, in Reforma do Judiciário, São Paulo, RT, 2005, Coordenação: Teresa Arruda Alvim Wambier 3 "No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.” Já a lei 11.418/2006, além de outros dispositivos, trouxe a definição legal do que seria “Repercussão Geral”, utilizando-se, porém, de vocábulos de extensa vaguidez, que exigirá do aplicador do direito um trabalho hermenêutico para revelar, diante de cada caso concreto, a ocorrência ou não da indigitada repercussão, bem como se serviu de uma presunção legal para tanto, senão vejamos: “Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. § 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. § 2o O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral. § 3o Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. Trata-se de novo requisito de admissibilidade do apelo extremo, normalmente chamado de transcendência; para ser admitido, o extraordinário deve encartar questão transcendente, de repercussão geral. O Recorrente passará a ter que demonstrar que a matéria discutida no Extraordinário tem uma relevância que transcende aquele caso concreto, possuindo, assim, interesse geral. Destarte, passaremos a ter “questões constitucionais qualificadas”, na feliz expressão do professor José Miguel Garcia Medina. Segundo o entendimento do professor Arruda Alvim4, "a expressão ‘repercussão geral’ significa praticamente a colocação de um filtro ou de um divisor de águas em relação ao cabimento do recurso extraordinário (...). O Supremo Tribunal Federal deverá interpretar a questão argüida pelo recorrente, não apenas no sentido estritamente jurídico, mas também sob a ótica da repercussão econômica e social, ainda que sempre conectada com o direito constitucional. O que realmente interessa é que a repercussão da matéria constitucional discutida tenha amplo espectro, vale dizer, abranja um significativo número de pessoas". A lei nº 11.418/2006 insere-se no contexto da Reforma do Judiciário, consolidada pela Emenda Constitucional n° 45/2004 acrescentando os arts. 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil. Convém destacar que o fundamento de validade da nova legislação não se esgota na vertente formal, é dizer, no §3° do art. 102, CF; há um alicerce material salutar. Trata-se da bem sucedida pesquisa "A Justiça em Números Indicadores Estatísticos do Poder Judiciário Brasileiro"5, que traçou uma radiografia do Poder Judiciário no Brasil, identificando as principais causas de litigiosidade. 3. FUNDAMENTO PRAGMÁTICO A pesquisa foi realizada no bojo da reforma gerencial do Judiciário6 – complementar à reforma da EC n° 45/2004, vale frisar – no intuito de fazer um diagnóstico dos problemas do Judiciário, para lhe dar maior eficiência. Foi assim que se chegou ao impressionante dado estatístico de que os recursos extraordinários junto 4 A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral, pág. 64, in Reforma do Judiciário, São Paulo, RT, 2005, Coordenação: Teresa Arruda Alvim Wambier Cf. www.stf.gov.br 6 Perfil das maiores demandas do Supremo Tribunal Federal. Relatório final da pesquisa realizada de 1º/1/2002 a 30/6/2004 pela DATAUnB. Disponível em http://www.stf.gov.br/seminario/. Acesso em 13. 01.07 5 aos agravos de instrumento representariam mais de 90% das demandas do Supremo Tribunal Federal. Para melhor se compreender a amplitude dos efeitos da análise da relevância, é válido comparar os Estados Unidos e o Brasil. Nos Estados Unidos7, país com população superior à do Brasil e com alto grau de litigiosidade, cerca de 80% das demandas estancam no primeiro grau e, portanto, apenas 20% sobem aos tribunais de Justiça. Enquanto a Suprema Corte Americana recebe cerca de cinco mil processos por ano e seleciona não mais que cem para julgar, o Supremo julga, em média, um número mil vezes maior de ações. No ano passado, por exemplo, Tribunal recebeu 95.212 processos e realizou 103.700 julgamentos, incluindo decisões monocráticas e colegiadas. Neste diapasão, no que tange à celeridade e ao direito a uma tutela jurisdicional adequada e célere (convém relembrar a histórica frase de Ruy Barbosa “justiça tardia é injustiça qualificada”), o novo requisito de admissibilidade, tal como previsto na referida lei, constitui, a um só tempo, um filtro para obstar a subida de RE’s com variáveis particulares e um instrumento eficaz para garantir a autoridade das decisões proferidas por órgãos hierarquicamente inferiores ao STF. 4 - FUNDAMENTO POLÍTICO E DIREITO COMPARADO Antônio Álvares da Silva8, discorrendo sobre o fundamento político- jurídico dos Recursos extraordinários ensina que: “No Direito Romano, no período da cognitio extraordinária, desenvolveu-se a idéia de que havia certas controvérsias que iam além do direito das partes, tendo repercussão em todo o sistema jurídico e, portanto, em toda a sociedade. Nestas hipóteses se distinguia entre o ius litigator, direito dos litigantes, próprio e restrito às partes, do ius constitucionis, em que a controvérsia afetava a 7 8 André Ramos Tavares Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.p.415 A Transcendência no Recurso de Revista. São Paulo: LTR, 2002. p. 20 constitutio, isto é, a norma posta em vigência pelo imperador através de decreto, edito ou epístola. Havia assim um controle político, e não apenas jurídico, que o juiz exercia sobre os fatos, dando um relevo extra-autos àquelas questões que o transcendiam. A origem recente do instituto se localiza na França (...). Na época da revolução, teve um papel político relevante para preservar a existência da lei e a igualdade de todos perante ela”. A existência de Cortes Judiciárias para preservar o direito objetivo e uniformizar sua aplicação, que vai muito além do interesse subjetivo das partes, é comum nos ordenamentos europeus, como no caso da Corte de Cassazione da Itália, do Bundesgerichthof – Tribunal Superior de Justiça - alemão e da Lê Pourvoir de Cassation do direito francês. De toda sorte, o requisito da relevância, como era chamado pelo RISTF, ou da repercussão geral, na vocação da Emenda Constitucional n. 45/2004, não foi idéia brasileira. A Suprema Corte norte-americana, há muito, orienta-se por ele através do writt de certiorari, que ao julgar o recurso não atua como instância de revisão, mas tem em vista servir interesses maiores da lei e do ordenamento jurídico. Sua regra básica era a de que para seu conhecimento o certiorari deveria trazer repercussão extra-autos do caso decidido. O não-conhecimento deste recurso não importava em aprovação da sentença inferior pela Suprema Corte. Significava apenas que o caso decidido não comportava repercussão geral, não havendo adentramento no mérito da questão. O mesmo ocorre com o ordenamento argentino, no qual, a propósito, "Em 1990, a lei 23.774 reformou parcialmente o procedimento do recurso extraordinário federal. A reforma afetou o art. 280 do Código Processual Civil e Comercial da Nação que dispôs, a partir de então, na parte pertinente: ‘A Corte, segundo sua discrição, e apenas com a invocação desta norma, poderá rechaçar o recurso extraordinário, por falta de gravame federal suficiente ou quando as questões suscitadas resultarem inconsistentes ou carentes de transcendência."9 5 - REPERCUSSÃO GERAL E HISTÓRIA DO DIREITO A repercussão geral não é, outrossim, novidade no Brasil, onde, na década de setenta, desenvolveu-se o instituto da argüição de relevância. A Emenda Constitucional n. 07, de 13 de abril de 1977, deu a seguinte redação ao § 1º do art. 119 da Constituição então vigente, in verbis: "Art. 119. (...) § 1º As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal." O RISTF, por seu turno, nos arts. 325 e seguintes, disciplinou com maiores detalhes tal instituto. A propósito, Evandro Lins e Silva10 anotou que "a relevância é uma pré-condição ou pré-requisito do recurso. Pode haver negativa de vigência da lei ou decisão divergente do próprio STF e a causa não ser considerada relevante, a ponto de exigir a correção extraordinária.” . Cuidava-se de artifício então utilizado pela Corte Suprema na tentativa de reverter a crise que nela se instaurara desde os idos de 1950, ou melhor, a crise do recurso extraordinário, o qual, pela sua ambivalência, instrumento de guarda da Constituição e da legislação federal, multiplicou-se assustadoramente, alastrando-se por toda sorte de causas, de cíveis a criminais, de modo a engrossar as fileiras de processos no Tribunal. 9 LEGARRE, Santiago. Una puesta en matéria de certiorari. In: RIVAS, Adolfo A. et PELLONI, Fernando M. Machado (coord.) Derecho procesal constitucional. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 313, tradução livre, 10 SILVA, Evandro Lins e. O recurso extraordinário e a relevância da questão federal. In: Revista Forense 255/43 Em verdade, Arruda Alvim11 esclarece a real vocação da argüição de relevância, ao tratá-la como um instrumento antagônico e neutralizador do critério de exclusão delineado no RISTF, in verbis: "A argüição de relevância diferentemente das exclusões (que são objeto de disciplina negativa, ‘quase genérica’, em sede regimental, no sentido de que aí já se encontram concretizadas) desempenha, em rigor, função ‘neutralizadora’ das exclusões; vale dizer, o valor da causa, sua espécie, etc., são elementos possíveis para se poder cogitar da exclusão de cabimento de RE, sempre à luz da irrelevância da causa ou da questão, os quais elementos (valor da causa, espécie, etc.), serviram de suportes básicos do RI, precisamente, para sobre eles incidir o critério da relevância ou da irrelevância, quando da elaboração legislativa do elenco constante do art. 325. E, nos RIs anteriores, influíram esses elementos (avaliados pela relevância/irrelevância), gerando outra técnica de legislar, quando se elaboram os ‘elencos’ taxativos de causas e questões, que ficavam excluídas do cabimento de RE. Já diferentemente, a argüição de relevância fornece o caminho adequado para incluir o que tenha sido objeto de exclusão por obra do Regimento Interno, que vale como lei, neste particular." Antônio Álvares da Silva12 noticia que no período que a argüição de relevância vigorou no Brasil houve mais de 30.000 argüições, e que destas, apenas 5% foram acolhidas. Pois bem, o art. 325 do RISTF dispunha que, nas hipóteses das alíneas a e d do inciso III da Constituição de então, caberia recurso extraordinário, entre outros, (a) nos casos de ofensa à Constituição, (b) nos casos de divergência com a súmula do Supremo Tribunal Federal, e (c) nos processos por crime a que fosse cominada pena de reclusão. 11 ALVIM, Arruda. A argüição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1988, p. 27 Ao final de seu rol, no inciso XI, estabelecia também ser cabível o apelo extremo "em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal." Tal argüição tinha lugar em recursos referentes a processos, cuja controvérsia, em princípio, não se achava albergada pelo elenco nominal do art. 325, I a X, do RISTF. Estava-se diante, portanto, de uma cláusula aberta que franqueava o acesso ao Supremo Tribunal Federal a certas causas, que, apesar de não constarem da enumeração regimental, tivessem a respectiva relevância provada. E, nos termos do § 1º do art. 327 do RISTF, considerava-se relevante "a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal." À Suprema Corte, em sessão do Conselho, competia privativamente, o exame da argüição de relevância da questão federal (art. 327, caput, do RISTF). Conforme as palavras do Ministro Sydney Sanches13 em palestra proferida na OAB/SP, em 1987, o "julgamento de relevância de uma questão federal não é atividade jurisdicional, é ato político, no sentido mais nobre do termo. Por ele se deve chegar à conclusão sobre se uma causa, mesmo não se encaixando em qualquer das hipóteses previstas nos incisos I a X do art. 325 do RISTF, deve, apesar disso, ser examinada pelo S.T.F., em recurso extraordinário." E, continuando sua conferência, o referido Ministro narrou a forma de seleção dos temas relevantes, para serem julgados pela Corte, ao lado daqueles descritos exemplificativamente pelo RISTF. O apontamento das questões federais dava-se em sessões administrativas fechadas ao público, pois não se tratava propriamente de julgamentos de casos concretos, mas, sim, de declinação 12 op. cit. p. 46 abstrata da temática que seria apreciada pelo Tribunal, que divulgava o acolhimento ou não das argüições. Para ilustrar, citem-se alguns exemplos: "n. 10. Necessidade de vistoria em quebra de peso de carga em transporte marítimo. Relevância Econômica"; "n. 19. Termo inicial de correção monetária sobre honorários de advogado. Relevância jurídica"; e "n. 37. IPTU. Aumento por decreto. Relevância jurídica." Não se pode confundir, assim, a atual repercussão geral (ou transcendência) com a antiga argüição de relevância. Enquanto esta constituía um mecanismo de atribuição de admissibilidade apenas a recursos que não se encontrassem expressamente previstos na enumeração regimental, aquela é exigida de todo e qualquer apelo extraordinário, ao menos na vocação literal do novo inciso III do art. 102 da Constituição da República. Ao não utilizar o termo relevância, como previsto em nosso sistema constitucional anterior (argüição de relevância) e sim repercussão geral, o legislador deixou evidente que o recurso extraordinário deve possuir importância geral para ser julgado. Uma causa é provida de repercussão geral quando há interesse geral pelo seu desfecho, ou seja, interesse público e não somente dos envolvidos naquele litígio. No momento em que o julgamento daquele recurso deixar de afetar apenas as partes do processo, mas também uma gama de pessoas fora dele, despertando interesse público, tem aquela causa repercussão geral. Numa única palavra, quando houver transcendência. 6 . A TRASCENDÊNCIA DO RECURSO DE REVISTA NO PROCESSO DO TRABALHO A par da revogada argüição de relevância, o ordenamento brasileiro, na atualidade, tem experimentado a polêmica acerca da transcendência do recurso de revista no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho. A respectiva disciplina foi veiculada pela Medida Provisória nº 2.226, de 04 de setembro de 2001, cuja 13 SANCHES, Sydney. Argüição de relevância da questão federal. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1988 constitucionalidade foi questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2527, ainda pendente de julgamento. O mencionado diploma inseriu o art. 896-A na Consolidação das Leis do Trabalho, estabelecendo que, no recurso de revista, a Corte Superior do Trabalho examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. Apenas quando a demanda se revestir de tal caráter será admitida a impugnação. Como na presente pesquisa nos propomos à descobrir o verdadeiro sentido e alcance do significado da “Repercussão Geral”, vamos primeiro ver como a doutrina do direito processual do trabalho lida com o tema, haja vista que a lei nº 11.418/2006 se utilizou dos mesmos parâmetros da legislação trabalhista para definir a referida expressão, no § 1º do artigo 543-A do CPC. Sérgio Pinto Martins14 busca dar sentido aos vocábulos contidos no referido artigo, que são, deveras, conceitos abertos dotados de generosa vaguidão, funcionando como verdadeiros conceitos jurídicos indeterminados: Transcendência parece que terá o sentido de relevância. Reflexos de natureza econômica seriam os que tivessem alguma influência na política econômica do governo, como planos econômicos, reajustes salariais, o valor do processo etc. Critérios jurídicos seriam questões novas. Critério social seria não-discriminação, como em relação a menores, mulheres ou outras pessoas. Reflexos políticos também teriam o sentido dos que tivessem influência na política adotada pelo governo, que não seria apenas econômica. Isso também poderia envolver questões sociais. Antônio Álvares da Silva15, já citado neste ensaio, nos traz as seguintes lições: Transcendência jurídica é "o desrespeito patente aos direitos humanos fundamentais ou aos interesses coletivos indisponíveis, com comprometimento da segurança e estabilidade das relações jurídicas." Transcendência política é "o desrespeito notório ao princípio federativo ou à harmonia dos Poderes constituídos”. A transcendência social é "a existência de situação extraordinária de discriminação, de comprometimento do mercado de trabalho ou de perturbação notável à harmonia entre capital e trabalho”. A transcendência econômica é "a ressonância de vulto da causa em relação a entidade de direito público ou economia mista, ou a grave repercussão da questão na política econômica nacional, no segmento produtivo ou no desenvolvimento regular da atividade empresarial" . Não obstante a elevada categoria dos autores citados, podemos perceber que, em regra, suas definições voltaram atenção específica para o direito laboral. 7. DA REPERCUSSÃO GERAL NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL Em razão disso, corraboraremos com a fiança de Fredie Didier Júnior16 os não menos brilhantes ensinamentos de José Miguel Garcia Medina, Teresa Arruda Alvim Wambier, e Luiz Rodrigues Wambier,17 os quais pedimos vênia para novamente transcrever: (i) repercussão geral jurídica: a definição da noção de um instituto básico do nosso direito, "de molde que aquela 14 Comentários à CLT. São Paulo: Atlas, 2005. p. 988 Op. cit. p. 57 a 59 16 Transformações do Recurso Extraordinário; in Processo e Constituição. São Paulo: RT, 2006. p. 988 17 Breves comentários à nova sistemática processual civil, 3ª ed. São Paulo: RT, 2005. p.104 15 decisão, se subsistisse, pudesse significar perigoso e relevante precedente"; (ii) repercussão geral política: quando "de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais"; (jii) repercussão geral social: quando se discutissem problemas relacionados "à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do Ministério Público para a propositura de certas ações"; (iv) repercussão geral econômica: quando se discutissem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais. O § 3° do art. 543-A incluído pela nova lei, preferiu trazer uma presunção de existência de repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. Daí exsurge uma importante questão: será suficiente apenas indicar que o recurso impugna decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal para se deduzir que há a repercussão geral, ou, mesmo com tal indicação, o recurso se submeterá ao crivo da Corte? Entendemos só ser possível se compreender que a presunção contida no § 3° do art. 543-A deve ser vista cum granus salis, no sentido de que não basta ao recorrente impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal, sob pena de se subverter a natureza de filtro recursal do requisito ora analisado. Destarte, cumpre ao STF, a despeito da argüição de contrariedade a súmula ou jurisprudência do Tribunal, examinar se, de fato, a decisão recorrida incorre nesta contrariedade, a ponto de estar acobertada pela presunção. Com efeito, um recurso fundamentado na aludida contrariedade, em que se verifique uma contradição apenas indireta e reflexa a súmula ou jurisprudência, poderá perfeitamente ter seu seguimento negado pelo STF, ante a ausência da situação que dá ensejo à presunção. É que a súmula, apesar de ser considerada por muitos como a norma em seu estado ótimo, não dispensa a atividade interpretativa. 8. O PAPEL DO STF COMO CORTE CONSTITUCIONAL O art. 543-B parece positivar o que vem comumente sendo denominado na doutrina e jurisprudência de objetivação do recurso extraordinário, a fim de, como se disse acima dar ao Supremo Tribunal Federal sua verdadeira vocação de Corte Constitucional, cujo papel é manter a autoridade da Constituição e das leis substantivas em todo o território nacional. Trata-se da tendência do STF analisar a questão ventilada no RE, de maneira objetiva, projetando os efeitos da decisão proferida a todos os recursos extraordinários que versem sobre matéria idêntica, não ficando seus efeitos restrito entre as partes daquela relação jurídica processual, conforme expõe o Min. Gilmar Mendes18: No recurso extraordinário, alega-se violação aos arts. 59 e 239 da Constituição Federal. (...) apesar de não se vislumbrar no presente caso a violação ao art. 239 da Constituição, diante dos diversos aspectos envolvidos na questão, é possível que o Tribunal analise a matéria com base em fundamento diverso daquele sustentado. A proposta aqui desenvolvida parece consultar a tendência de não-estrita subjetivação ou de maior objetivação do recurso extraordinário, que deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Esse posicionamento foi adotado pelo Plenário no julgamento do AgRSE 5.206. É indispensável, no entanto, cautela, ao se afirmar que tal objetivação traduz-se numa tendência, pois assim só deve ser entendida, no tocante às 18 (...). RE 388.830, voto do Min. Gilmar Mendes, DJ 10/03/06. demandas de natureza previdenciária, tributária, administrativas, ou outras que envolvam o Poder Público e tenham por objeto alguma prestação pecuniária, uma vez que versam sobre relações jurídicas de trato sucessivo semelhantes, homogêneas, e numerosas. Entre os processos de recurso extraordinário, a maior incidência ocorre na área de Direito Tributário (30,8%), e depois no Direito Administrativo (21,9%) [...]". Em seguida, vem o Direito Previdenciário (16,8%)19. É justamente por versarem sobre situações semelhantes que estas causas permitem uma solução homogênea para todos os casos. O exemplo mais representativo disso ocorreu quando o Supremo Tribunal Federal julgou uma multiplicidade de recursos extraordinários, abordando a relação jurídica sujeito-União lato sensu, no atinente à questão dos reajustes de FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). O Ministro Gilmar Mendes20 narrou o acontecimento: Numa estimativa grosseira, podemos dizer que cerca de 6 milhões de pessoas – se estimarmos que 10 pessoas estivessem representadas em cada processo – estavam em juízo contra a CEF, discutindo reajustes. É um número espetacular. E o Supremo acabou decidindo essa matéria em 4 processos, abrangendo todos os processos. A tendência que se observa, então, é mais ampla, no sentido de que o modelo difuso (representado pelo RE) precisa compartilhar algumas características do modelo concentrado, objetivo (representado pelas ações diretas), para garantir a própria operacionalização do sistema. Os precedentes judiciais têm ganhado força vinculante nos ordenamentos de tradição romano-germânico, tal como ocorreu com a aprovação da reforma do Judiciário brasileiro em 200421. 19 Perfil das maiores demandas do Supremo Tribunal Federal. Relatório final da pesquisa realizada de 1º/1/2002 a 30/6/2004 pela DATAUnB. Disponível em http://www.stf.gov.br/seminario/. Acesso em 13.01.07. p.65 20 MENDES, Gilmar Ferreira. Legitimidade e Perspectiva do Controle de Constitucionalidade Concentrado no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite, coord. Crise e Desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.p. 263. 21 Tradições do direito, in ZYLBERSZTAJN, Décio. SZTAJN, Rachel (org.). Direito e Economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p.149 Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart22 bem afirmam que não é possível estabelecer uma noção a priori, abstrata, do que seja questão de repercussão geral, pois essa cláusula depende sempre das circunstâncias do caso concreto. 9. DA REPERCUSSÃO GERAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA Diante dos dados constatados supra, - 30,8% dos recursos extraordinários envolvem matéria tributária, posto que envolve o Poder Público e tem por objeto alguma prestação pecuniária, uma vez que versa sobre relações jurídicas de trato sucessivo semelhantes, homogêneas, e numerosas – podemos prever que decisões que afrontem princípios constitucionais tributários, como o da legalidade estrita, o da anterioridade e capacidade contributiva, apoditicamente, trarão consigo repercussão geral jurídica. Outrossim, matéria de competência tributária ou v.g. a definição de certos itens – que configuram verdadeiras obrigações de dar, para efeitos de incidência de ICMS e de IPI - como sendo serviço, declinados na lista anexa à LC nº 116/2003 ou, em sentido oposto, determinadas “operações” que, em verdade, traduzemse em verdadeiras obrigações de fazer ensejando, assim, a incidência do ISS, e não do ICMS trarão repercussão geral política, posto que um ente federativo poderá estar invadindo esfera de competência alheia e exclusiva. Há repercussão geral política e jurídica também na questão da competência do Município para exigir o ISSQN, pois intimamente ligada ao pacto federativo, ao federalismo de cooperação e à repartição das receitas tributárias. Ademais, definir se o município competente para exigir o ISSQN é aquele onde o exercício é efetivamente prestado ou onde se localiza o estabelecimento prestador do serviço é matéria que merece uma decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, por dizer de perto com um instituto básico do nosso ordenamento jurídico, qual seja, a competência tributária. 22 Manual do processo de conhecimento. 4ª ed. São Paulo: RT, 2005. p. 558 Ademais, dificilmente a matéria tributária repelirá repercussão geral econômica. É o que aconteceu na declaração de inconstitucionalidade da tabela anexa à Lei Municipal 5641/1989, que considerou inconstitucional a progressividade das alíquotas progressivas ali contidas. Ora, tal declaração repercutiria diretamente na arrecadação municipal, colocando em risco a autonomia financeira do Município. Imagine-se, também, se o Tribunal de Justiça declarasse inconstitucional a cobrança taxa de coleta de resíduos sólidos urbanos, por entender ser este serviço público inespecífico e indivisível, ou que a cobrança anual da taxa de fiscalização de anúncios e da taxa de fiscalização de funcionamento e fiscalização fossem indevidas em razão da não configuração do poder de polícia. Aqui, a repercussão geral jurídica estaria umbilicalmente ligada à repercussão geral econômica, visto que a impossibilidade de cobrança das referidas taxas, tendo por espeque aqueles fundamentos, desfalcaria sobremaneira os cofres públicos, quanto mais em razão do iterativo entendimento do Egrégio TJMG de ser a taxa de fiscalização de anúncio devida pelo exercício do poder de polícia bastando, para tanto, existir estrutura administrativa para coibir abusos dos particulares. O Egrégio Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que, no Município de Belo Horizonte, o poder de polícia administrativo é presumido23. De tudo isto o que se conclui? A síntese vulgar do instituto poderia ser expressa numa só frase: o STF determinará o que deve ou não ser julgado, segundo uma política constitucional. Trata-se, realmente, do balizamento da Corte na sua função prístina de exercício de uma jurisdição constitucional. BIBLIOGRAFIA ALVIM, Arruda. A argüição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1988, p. 27. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil, Volume V. 9ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2001. 23 RE 216207/MG, rel. Min. Ilmar Galvão – j. 02/03/99 BERMUDES, Sérgio. A Reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional Nº 45. Rio de Janeiro, Forense, 2005. DA SILVA, Antônio Álvares. A Transcendência no Recurso de Revista. São Paulo: LTR, 2002. p. 20 DIDIER JR, Fredie. Ações Constitucionais. 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