CONSIDERAÇÕES SOBRE A LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA COLETIVA NA PROPOSTA DE CÓDIGO MODELO DE PROCESSOS COLETIVOS PARA IBERO-AMÉRICA Luiz Rodrigues Wambier Doutor em Direito pela PUC/SP Professor do Centro de Extensão Universitária, CEU, Brasil Professor da Universidade de Ribeirão Preto, UNAERP Consultor do ALI The American Law Institute Advogado no Paraná. 1. Condenação genérica e necessidade de liquidação A Proposta de Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América trata de modo bastante interessante da liquidação da sentença coletiva. O enfoque é moderno e, de certo modo, inusitado, se comparado aos mecanismos de liquidação de sentença relacionados às ações em que se debatem direitos individuais. O sistema proposto, consoante se analisará nos itens que seguem, permite o surgimento de diversas questões sobre a liquidação, especialmente no que diz respeito aos direitos difusos, de vez que quanto aos direitos coletivos e aos direitos individuais homogêneos é evidentemente mais fácil a identificação dos beneficiários da sentença de procedência. As questões que surgem, no entanto, são inevitáveis, porquanto é bastante complexa a regulação de mecanismos adequados a tutelar, eficazmente, todas as categorias de direitos coletivos (em sentido amplo). Não bastasse, dentro desta categoria incluem-se direitos de variadas magnitudes, relacionados ao ambiente, ao consumo, à saúde pública, etc. Obviamente, a liquidação da sentença coletiva será realizada em atenção às características e peculiaridades de cada um dos direitos lesados. Esta observação permite-se que se faça, desde já, uma advertência conceitual: embora habitualmente se refira ao instituto da liquidação como tendo por objeto a sentença, www.abdpc.org.br na verdade é o direito reconhecido na sentença que será objeto de liquidação. A sentença, em si mesma considerada, não pode ser ilíquida. O alcance subjetivo da imutabilidade do decisum na coisa julgada coletiva, diante de terceiros, é eventual, no sentido de que é sempre dependente do resultado que se dê ao julgamento do pedido de tutela coletiva dos direitos no plano daqueles que não participaram do processo. Nesse caso ocorre, por assim dizer, o “transporte” da sentença coletiva de procedência do pedido para a esfera de interesses daqueles que estejam na mesma situação em que estão aqueles cujos direitos estão sendo feitos valer, que poderão dessa sentença se servir, com a força da correspondente coisa julgada, para buscar a proteção de seus interesses individuais, mediante a liquidação individual, nos moldes em que se verá a seguir. Deste modo, na procedência da ação coletiva em que se veiculam direitos individuais homogêneos, a imutabilidade da sentença se opera em relação a todos, que dela podem usufruir, mediante o aforamento das liquidações individuais. Os dispositivos apresentados na Proposta regulam mais especificamente os direitos individuais homogêneos, embora esses dispositivos também sejam aplicáveis à liquidação de sentenças que versem direitos coletivos em sentido estrito e direitos difusos, até porque, a nosso ver, a liquidação de sentença e a execução das condenações havidas em ações coletivas sempre serão feitas individualmente, ressalvada apenas a hipótese de reversão para o fundo de direitos difusos, única hipótese em que se pode falar efetivamente de liquidação coletiva. Segundo disposição constante do art. 20 da Proposta, “em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do demandado pelos danos causados e o dever de indenizar”. Isso quer dizer que a condenação sempre será genérica, não havendo qualquer possibilidade, diante da lei posta, de os legitimados obterem sentença que contenha condenação cujo quantum já esteja definido. Na redação do aludido preceito legal realça-se, no entanto, que o sistema proposto preocupa-se com a lesão causada, porque muitas vezes se mostrará difícil, senão impossível, identificar o dano sofrido. Por exemplo, um fornecedor de produtos alimentícios www.abdpc.org.br pode ter comercializado produtos que contenham quantidade inferior à indicada na embalagem, o que causará danos pequenos, às vezes irrisórios, a cada um dos consumidores, se considerados isoladamente. Vista globalmente, no entanto, a lesão causada e o enriquecimento indevido do aludido fornecedor podem ser de montante considerável. Em alguns casos, o quantum poderá ser de fácil liquidação, verificável através de provas produzidas no curso do processo de liquidação. Há situações, no entanto, em que embora demonstrado o dano, será difícil ou até mesmo impossível a sua quantificação exata, hipótese em que a Proposta ora analisada sugere que se empregue o arbitramento (cf. art. 25, par. 1º). Tal circunstância pode ocorrer, por exemplo, no caso em que tenha havido danos ao meio-ambiente, em que se mostre impossível a reparação específica. No caso de eliminação de grande quantidade de animais, por exemplo, o valor da indenização será fixado por arbitramento, mesmo porque não haveria condições, em semelhantes circunstâncias, de se atribuir um valor pecuniário a cada um dos animais atingidos pelo ato ilícito. Nota-se, portanto, que poderá haver, de acordo com a Proposta ora analisada, duas espécies de liquidação, que poderão ou não se cumular. Uma dependente da prova da indenização devida (cf. art. 22), e outra em que o valor da indenização depende de arbitramento (cf. art. 25, par. 1.º). Estes aspectos serão analisados a seguir. 2. Objeto da liquidação da sentença coletiva Antes, no entanto, de se analisarem os problemas decorrentes da liquidação de sentença coletiva, é importante advertir que esta não tem por finalidade apenas a definição do valor da indenização. O procedimento de liquidação é precedido de ação de conhecimento condenatória, em que o ente legitimado (art. 3.º da Proposta) leva a juízo, em nome próprio, as pretensões ainda indeterminadas. Verificado o dano global, a sentença fixará a “responsabilidade do demandado pelos danos causados e o dever de indenizar” (cf. art. 20). Note-se, portanto, que, considerando que não se demonstrou o dano sofrido por cada uma das pessoas lesadas, pode-se não se saber ainda quais serão os beneficiários da www.abdpc.org.br sentença. A qualificação daqueles que, individualmente, terão direito a alguma indenização terá sido feita pela sentença, mas aqueles que proporem a liquidação terão que se ajustar às condições estabelecidas na decisão judicial. Em casos assim, a condição de legitimado para a liquidação constituirá parte do próprio mérito do processo. Se o juiz condenar a empresa X a indenizar todas as pessoas que consumiram um determinado medicamento, determinando que o valor da indenização deverá abranger as despesas com o tratamento necessário para o restabelecimento da saúde de tais pessoas, estas deverão demonstrar que se encontram em tal situação fático-jurídica (isto é, que consumiram o aludido medicamento), e não apenas as despesas médicas e hospitalares. Vê-se, assim, que a liquidação da sentença coletiva pode ter por objeto não apenas a definição do quantum debeatur. A própria condição de detentor de direito deverá, muitas vezes, ser objeto de prova. Assim, o processo de liquidação pode ter por objeto, também, o cui debeatur (isto é, saber a quem se deve). Por mais este motivo, demonstra-se que a liquidação da sentença proferida nas ações coletivas não corresponde, com exatidão, à liquidação de sentença proferida em ações em que se discutem apenas direitos individuais. 3. Legitimados ativos para a liquidação da sentença. Liquidação individual e coletiva Segundo consta do art. 22 da Proposta, tanto a liquidação da sentença quanto a subseqüente execução de título judicial poderão ser feitas pelas vítimas do ato danoso cuja responsabilidade se tenha fixado na sentença genérica, assim como por seus eventuais sucessores e/ou pelos próprios legitimados para a propositura da ação. Tanto a liquidação quanto a execução da sentença pelos legitimados do art. 3.º da Proposta são sempre diferenciadas daquelas promovidas pelas vítimas ou seus sucessores. A nosso ver, isso está claro no texto do art. 25 da Proposta. www.abdpc.org.br Segundo dispõe o art. 25 da Proposta, os legitimados do art. 3.º somente poderão propor a liquidação e a execução da sentença condenatória se houver decorrido o prazo de um ano sem que tenha havido qualquer iniciativa dos interessados. Isso faz com que se possa tratar de duas hipóteses distintas: a primeira, de falta de legitimação para a liquidação e para a execução; já a segunda trata da diferenciação de “objetos”, por assim dizer, da liquidação (e da execução) promovida pelos interessados (individualmente prejudicados pelo dano) e daquela que se possa promover, após um ano, pelos legitimados do art. 3.º da Proposta. Assim, só “nasce” a legitimação para o pedido de liquidação e para a posterior execução, se não tiver ocorrido iniciativa dos interessados. Antes disso, ao que nos parece, o pedido formulado por qualquer dos legitimados do art. 3.º deverá resultar na extinção do processo de liquidação sem julgamento do mérito, porque faltará, na hipótese, uma das condições para o exercício da ação, que é justamente a legitimidade para agir. Vê-se, assim, que os direitos de natureza individual têm primazia sobre os de ordem coletiva, como prevê expressamente o art. 24 da Proposta. O art. 25, de certo modo, proporciona a “coletivização” daqueles direitos à reparação individual que não foram reclamados ou que o foram de forma expressivamente insignificante diante de sua extensão coletiva. 4. Particularidades da liquidação da sentença coletiva decorrentes da finalidade da indenização Pelo que se indicou no item precedente, uma e outra das liquidações (individual e coletiva) têm objetos diferentes: a primeira, promovida pelas vítimas ou seus sucessores, objetiva definir o quantum da reparação devida individualmente a cada uma. Já a segunda liquidação, agora sim efetivamente coletiva e promovida por qualquer dos legitimados do art. 3.º da Proposta, tem em mira a obtenção de um quantum que irá, nos termos do art. 25, par. 2.º da Proposta, integrar o fundo de defesa dos direitos difusos (cf. art. 6.º da Proposta). www.abdpc.org.br Esta última, segundo se pode sustentar, ocorre apenas subsidiariamente, isto é, apenas quando se configure aquela situação específica definida pelo art. 25 da Proposta. Nesta liquidação coletiva há como que um “desvio” da finalidade primeira da decisão sobre direitos individuais (embora homogêneos ou “extraídos” do contexto dos direitos difusos ou coletivos) que seria exatamente a de reparar os danos individualmente sofridos. Subsidiariamente, entretanto, isto é, sem que tenha havido a “cobrança” dos interessados ou se essas liquidações individuais tiverem ocorrido em número inexpressivo diante da gravidade do dano coletivo, os legitimados do art. 3.º da Proposta poderão liquidar a sentença e destinar o quantum que se obtenha na execução para o Fundo. Há, como dissemos, evidente “desvio” de finalidade, embora seja perfeitamente justificável (até pela necessidade de se propiciar efetiva tutela aos direitos coletivos) que esses recursos sejam “destinados à reconstituição dos bens lesados” (cf. art. 6.º da Proposta). É interessante observar que a reconstituição referida pelo art. 6.º nem sempre será possível (basta pensar, por exemplo, no caso de perecimento de diversos animais em virtude de ato ilícito contra o meio-ambiente). Nestes casos, o Fundo deverá ter por finalidade a realização de atividades totalmente desprovidas de índole reparatória, pois os recursos poderão ser empregados em atividades educativas relacionas ao meio-ambiente, por exemplo. Por isso, talvez fosse de bom alvitre constar, no art. 6.º da Proposta, que os recursos serão preferencialmente destinados à reconstituição dos bens lesados ou, não sendo isto possível, na realização de atividades tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que ela se repita. Por exemplo, se em virtude de dano ambiental se destruir determinada quantidade de floresta nativa, os recursos do fundo deverão ser empregados com o fim de se formar, no mesmo local ou em local próximo, outra floresta composta de arvores silvestres da mesma espécie ou espécie similar. Não sendo possível a reconstituição e nem mesmo algo aproximado, poderão ser realizadas atividades tendentes a favorecer o bem jurídico lesado, direta ou indiretamente. Por exemplo, se um produto comercializado como um medicamento é desprovido dos efeitos divulgado em campanhas publicitárias, os recursos arrecadados pelo fundo poderão ser destinados à veiculação de outras campanhas publicitárias que tenham por finalidade alertar a população a respeitos dos riscos da automedicação. www.abdpc.org.br Esclareça-se que o decurso do prazo a que se refere o art. 25 da Proposta não extingue o direito individual abrangido pela sentença. Após um ano não haverá prejuízo para novas habilitações de vítimas (ou seus sucessores) que ainda assim poderão liquidar seus danos individualmente. Na hipótese de existência de liquidações distintas e concomitantes, umas promovidas pelas vítimas do dano ou seus sucessores e outra de iniciativa de qualquer dos legitimados do art. 3.º, incide o disposto no art. 24 da Proposta, cuja redação é a seguinte: “Em caso de concurso de créditos decorrentes de condenação de que trata o art. 6.º e de indenizações pelos prejuízos individuais resultantes do mesmo evento danoso, estas terão preferência no pagamento”. 5. Procedimento da liquidação: prova de fato novo e arbitramento Na liquidação da sentença coletiva, haverá sempre necessidade de prova de fato novo, porque as vítimas ou seus sucessores deverão demonstrar sua vinculação ao conteúdo do decisum, em decorrência da ligação dos fatos descritos no pedido de condenação com a esfera jurídica de cada vítima e a extensão dos danos sofridos em seu patrimônio ideal. Por isso, quanto ao procedimento que se deva utilizar para a liquidação da sentença condenatória genérica relativa a direitos individuais homogêneos defendidos coletivamente, pensamos que necessariamente o autor do pedido de liquidação terá de se servir de modalidade de liquidação que, no direito brasileiro, é chamada “liquidação por artigos”. Sendo esta a hipótese, as vítimas ou seus sucessores deverão provar o nexo de causalidade entre os danos que sofreram e os fatos que estavam na base da pretensão vitoriosa, de modo a detalhar o dano sofrido por cada interessado, titular de direito individual que tenha merecido defesa coletiva. Com efeito, consoante dispõe o art. 22, parágrafo único da Proposta, o autor do pedido de liquidação deverá provar “o dano pessoal, o nexo de causalidade e o montante da indenização”. www.abdpc.org.br A liquidação de sentença que contenha condenação relativa a direitos coletivos stricto sensu e direitos difusos também se vai processar nos mesmos moldes, sempre que houver pretensões individuais que devam percorrer o caminho da liquidação. É claro que a lide, nestes casos, sempre será coletiva lato sensu. Mas o resultado da ação coletiva pode ser aproveitado pelos titulares de direitos individuais que pretendam obter ressarcimento por danos sofridos em razão da mesma conduta lesiva. É o caso, por exemplo, de ação coletiva de direitos difusos relativos à poluição ambiental. A liquidação coletiva se fará visando à obtenção de um quantum que se incorporará ao fundo de direitos difusos, solução parecida com a que se adota no sistema da class action, que é justamente a chamada fluid recovery, em que o quantum obtido acaba revertendo indiretamente em benefício da comunidade, sempre do modo mais aproximado possível da reparação ou da atenuação da lesão operada. Já as eventuais vítimas que sejam titulares de pretensões individuais decorrentes do mesmo dano (por exemplo: direito à reparação de danos causados à saúde) deverão promover a liquidação individualmente, com a prova do dano pessoal, do nexo causal e do montante da indenização. Trata-se, nesse caso, de liquidação que versará a dimensão individual dos direitos difusos. Ocorrerá diferentemente se se tratar de condenação em que os beneficiários são indeterminados ou indetermináveis e os direitos ou interesses são indivisíveis (direitos difusos), caso em que os legitimados do art. 3.º é que deverão propor a liquidação, nos moldes do que dispõe o art. 25 da Proposta, destinando-se o quantum apurado para o fundo de defesa dos direitos difusos previsto pelo art. 6.º da Proposta. Quanto ao procedimento que se deva adotar, na hipótese de liquidação de sentença coletiva de direitos difusos (com destinação para o fundo de defesa dos direitos difusos) entendemos que também deva ser admitida a possibilidade de se provar fatos novos para que se possa definir o quantum da reparação destinada à comunidade. Nada impede, todavia, que se utilize o arbitramento, sempre que o caso concreto assim o exigir. www.abdpc.org.br Assim sendo, pensamos que o art. 25, par. 1.º da Proposta deveria prever a possibilidade de manejo de qualquer um dos mecanismos de liquidação, e não apenas o arbitramento. É que, sendo possível a aferição da lesão causada através de provas, o quantum indenizatório poderá refletir o dano realmente ocasionado e o montante necessário à sua efetiva reparação, algo que nem sempre será possível através do simples arbitramento. Parecenos que seria adequado constar, no referido preceito da Proposta, que o juiz optará pelo arbitramento sempre que esta solução se mostrar mais adequada para a definição do quantum, seja porque a produção de provas será muito custosa ou demorada, seja porque a definição precisa do valor da indenização será difícil ou impossível. Ademais, nem sempre a simples perícia será suficiente para identificar qual o montante necessário à reconstituição dos bens lesados aludida no art. 6.º da Proposta. Em relação aos direitos coletivos stricto sensu entendemos que tanto um quanto outros dos procedimentos são perfeitamente admissíveis, devendo o Juiz optar por um ou outro deles, depois de concluir qual seja mais apropriado em razão do caso concreto. Outra questão interessante é a seguinte: qual o termo a quo do prazo previsto no art. 25 da Proposta? A publicação da sentença ou o trânsito em julgado? Ao autorizar a execução imediata da sentença, mesmo que ainda não tenha transitado em julgado (cf. art. 23, par. 1.º), a Proposta permite que se dê início à liquidação ainda que pendente recurso recebido sem efeito suspensivo. Assim, se o prazo de um ano, ao cabo do qual qualquer dos legitimados do art. 3.º da Proposta está autorizado a promover a liquidação, se escoar, contado da publicação da sentença, sem que se tenha julgado no juízo ad quem recurso recebido sem efeito suspensivo, tanto a liquidação quanto a execução se poderão iniciar. Isto, como se disse, decorre do que consta no art. 23, par. 1.º da Proposta, segundo o qual “a execução coletiva far-se-á com base em certidão das decisões de liquidação, da qual constará a ocorrência, ou não, do trânsito em julgado”. Há outro aspecto, a nosso ver de extrema relevância, e que se pode resumir nas seguintes indagações: o que significa a expressão “interessados em número compatível com a www.abdpc.org.br gravidade do dano”, contida no caput do art. 25 da Proposta ora analisada? Ou, por outro lado, quando se pode considerar ter havido habilitação de interessados em número incompatível com a gravidade do dano? A expressão utilizada em número incompatível com a gravidade do dano efetivamente se consubstancia naquilo que a doutrina designa de conceito vago (ou indeterminado). Trata-se de uma técnica que vem sendo cada vez mais freqüentemente utilizada pelos legisladores da nossa época, na medida em que possibilita a geração de textos legais adaptados à realidade dos nossos dias e à velocidade vertiginosa com que ocorrem as transformações sociais. Sem dúvida essa é uma técnica legislativa primorosa, que indubitavelmente proporciona muito maior flexibilidade à norma propiciando um espaço também maior de “liberdade” ao aplicador da lei. Diante de um texto que contém um conceito vago o papel do Juiz como aplicador da lei se torna evidentemente muito mais importante e significativo, o que responde ao anseio de uma sociedade que se vê mais descrente da idéia de que o direito posto por si só é capaz de realizar as aspirações sociais predominantes. Idéia contrária a essa era a que embasava toda a dogmática jurídica clássica, enraizada no pressuposto, que nasceu com a Revolução Francesa e o conjunto ideológico que a apoiou, no sentido de que a solução para a grande maioria dos problemas sociais estaria no texto da lei, que deveria, portanto, ser claro e minucioso e vincular o Juiz de forma absoluta e direta. O perigo de que a circunstância de haver um conceito vago na lei gere uma decisão arbitrária, fruto exclusivamente da subjetividade do Juiz, evidentemente existe. Considera-se, todavia, que é um risco com o qual o sistema tem que conviver, risco esse contrabalançado com as exigências constitucionais e processuais no sentido de que as decisões judiciais tenham que ser motivadas (motivação racional), o que possibilita indubitavelmente que os jurisdicionados tenham controle sobre a racionalidade das decisões dos magistrados e a correlata possibilidade de sua impugnação através de recurso ou ação autônoma, conforme o caso. www.abdpc.org.br A utilização pelo legislador de conceitos vagos pode ser vista, sob certo aspecto, como algo de bastante positivo, na medida em que proporciona ao Juiz possibilidade de incluir sob o alcance da norma situações que talvez não tivessem sido lembradas pelo legislador, se se tivesse optado pela técnica da enumeração taxativa, se se resolvesse, por exemplo, dizer quais os danos que a lei considera graves, como se o legislador pudesse realizar a priori um juízo de valor sobre toda a realidade, dizendo quais situações seriam graves. Certamente, se colocariam para o Juiz situações que ele consideraria graves e que seriam efetivamente graves e de que a lei, todavia, não tivesse tratado especificamente. Por isso o Magistrado ficaria impedido de aplicar a lei àquela situação. Essas mesmas considerações devem ser feitas no que diz respeito, no caso do art. 25 da Proposta, à possibilidade de que nele se tivesse estabelecido uma quantidade determinada de interessados, relacionando essa quantidade com a gravidade do dano. Acreditamos que a opção realizada pela Proposta é a melhor. Isto porque seria impossível estabelecer hipóteses, minuciosamente descritas e taxativamente enunciadas, em que, depois de decorrido o prazo de um ano, poderiam os legitimados do art. 3.º promover a liquidação e execução da quantia devida. A idéia da Proposta é a seguinte: ainda que tenha havido certa movimentação em torno da sentença de procedência, se não se considerar ter sido restabelecido o equilíbrio que se havia rompido pela perpetração do ilícito, a legitimidade é por assim dizer “devolvida” aos entes coletivos de que fala o art. 3.º da Proposta, para que se faça justiça, com o objetivo de suprir a inatividade dos prejudicados que não pode resultar na liberação do causador do dano. Tanto é essa a idéia, que o critério para se calcular o quantum nessa liquidação é o lucro indevido do causador do dano. Basta concluir no sentido de que, evidentemente, a circunstância em que isto deve ocorrer será muito melhor avaliada, se o for caso a caso, o que só se pode conseguir, se se colocar nas mãos do Juiz o instrumento poderoso dos conceitos vagos. 6. Constituição do fundo de defesa dos direitos difusos www.abdpc.org.br O fundo de defesa dos direitos difusos tem sua finalidade e sua fonte de receitas designadas no art. 6.º e no art. 25, par. 2.º da Proposta. Em relação às suas finalidades, o art. 6.º prevê que os recursos do fundo serão destinados “à reconstituição dos bens lesados”. Consoante comentamos acima, nos casos em que a reconstituição se mostre impossível, os recursos do fundo deverão ser empregados para a realização de atividades que minimizem a lesão causada, ou que beneficiem, mesmo que indiretamente, o bem jurídico lesado. É importante ressaltar que esse produto da indenização prevista no art. 25 da Proposta deverá reverter ao Fundo ressalvando os valores a que tenham direito os autores de execuções movidas a título individual. Esse direito ao recebimento do quantum relativo a cada uma das indenizações individuais não decai com o termo do prazo de um ano, razão pela qual tanto as execuções já em andamento, ainda que em número pequeno, quanto aquelas que venham a ser propostas posteriormente devem chegar satisfatoriamente a seu termo, não podendo ocorrer prejuízo para os autores individuais em benefício do fundo de defesa dos direitos difusos. A esta conclusão se pode chegar, ainda, analisando-se o contido no art. 24 da Proposta, segundo o qual na hipótese de concurso de créditos, as indenizações pelos prejuízos individualmente suportados terão preferência de pagamento. Para que não haja dubiedade de interpretação, contudo, seria de todo aconselhável que se inserisse no art. 25 da Proposta uma advertência, no sentido de que a indenização destinada ao fundo não prejudica o direito individual à indenização. 7. Considerações finais e sugestões Do que se expôs nos itens precedentes, verifica-se o processo de liquidação de sentença regulou de modo distinto a liquidação (e da execução) promovida pelos interessados www.abdpc.org.br (individualmente prejudicados pelo dano) e aquela que se possa promover, após um ano, pelos legitimados do art. 3.º da Proposta. A opção da Proposta pela liquidação por arbitramento para a execução coletiva (art. 25, par. 1.º) não nos parece seja, em todos os casos, a mais adequada, pois poderá haver situações em que o valor da lesão causada possa ser mensurado através da produção de outras provas, além da prova eminentemente pericial. Nestes casos em que o valor possa ser aferido de modo preciso, deveria ser o arbitramento deixado em segundo plano. Com efeito, o arbitramento deve ser manejado nos casos em que a definição exata do quantum indenizatório é difícil ou impossível. Parece-nos, diante disso, que o art. 25, par. 1.º da Proposta deveria ser assim redigido: “O valor da indenização será fixado em atenção ao dano causado, que será demonstrado através de todas as provas em direito admitidas. Sendo difícil ou impossível a produção de provas, em razão da extensão do dano ou sua complexidade, o valor da indenização será fixado por arbitramento”. No que se refere à finalidade do fundo de defesa dos direitos difusos, parecenos, como se mencionou acima, que diante da eventual impossibilidade de reconstituição dos bens lesados, o art. 6.º da Proposta deveria conter, em sua parte final, a seguinte redação: “[...] sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados ou, não sendo isto possível, na realização de atividades tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que ela se repita, dentre outras beneficiem o bem jurídico lesado”. Por fim, embora por interpretação sistemática seja compreensível que a indenização destinada ao fundo não obsta o exercício do direito por aquele que se sinta individualmente lesado, parece-nos conveniente constar, na Proposta, uma observação neste sentido. Assim, poderia ser incluído um par. 3.º art. 25 da Proposta (ou como segunda parte do par. 2.º do art. 25), que poderia ser assim redigido: “A indenização destinada ao fundo não prejudica o direito individual à indenização”. www.abdpc.org.br