1 ACIDENTES DE TRABALHO: CONTEXTO SOCIAL, PROCESSO E CULTURA DOS TRIBUNAIS1 2 Albino Mendes Baptista Mestre em Direito Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa I Em 1.º lugar, agradeço ao Supremo Tribunal de Justiça, na pessoa do seu Presidente, o convite formulado, felicitando-o pela realização deste evento. Agradeço, em particular, e de forma sentida, a circunstância de estar aqui pelo 2.º ano consecutivo. Quando se convida alguém para voltar à nossa casa, é porque consideramos essa pessoa, sendo, por isso, uma enorme honra este regresso ao tribunal supremo do país, tanto mais que tenho a consciência profunda, como muitas vezes sublinho junto dos meus alunos, de que os tribunais são um dos redutos fundamentais do Estado de Direito Democrático. Cumprimento os meus colegas de mesa que, na diversidade, nos ajudam a compreender melhor os problemas e a encontrar as soluções jurídicas mais adequadas. Finalmente, cumprimento todos os presentes, manifestando o enorme gosto em me dirigir a um auditório tão qualificado. II 1 Corresponde à Intervenção feita no “Colóquio Anual sobre Direito do Trabalho”, subordinado ao título “O Contrato de Seguro e os Acidentes de Trabalho”, organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que teve lugar no seu Salão Nobre no dia 15 de Outubro de 2008. 2 A análise que aqui se fará é a que se julgou adequada a uma intervenção oral, com naturais limitações de tempo. Procedeu-se a uma selecção de alguns aspectos que se julgaram mais relevantes, que carecem seguramente de desenvolvimentos adequados a um outro contexto. 2 Uma palavra sobre o tema desta mesa-redonda, “Acidentes de Trabalho: Contexto Social, Processo e Cultura dos Tribunais”. Trata-se de uma escolha inteiramente feliz, porquanto a temática dos acidentes de trabalho (como muitas outras) ultrapassa as fronteiras do jurídico e obriga a um estudo multidisciplinar3. Esta abertura a novas áreas do conhecimento aproxima o Direito da vida, potencia o conhecimento das limitações do jurídico e ajuda a encontrar soluções mais ajustadas às mentalidades e à cultura do país. Dir-se-ia mesmo que a inevitável valorização das vertentes sociais e culturais aconselha humildade do legislador, diálogo intenso com os operadores judiciários e prudência e contenção legislativas. III O problema dos acidentes de trabalho é um problema sobretudo de direitos humanos. Como sublinhava Hegel, “Ser pessoa e respeitar os outros como pessoas é a essência do Direito.” Depois, como há mais de 4 décadas escreveu GUILHERME DE VASCONCELOS, a matéria dos acidentes de trabalho, mais do que qualquer outra, “deve corresponder aos critérios e aos ideais de uma superior justiça social.”4 Quem trabalha para viver e para se realizar como pessoa deve viver num ambiente de trabalho seguro. A afirmação é seguramente consensual, mas os números são muito preocupantes. Em 2005, o Bureau Internacional do Trabalho (BIT) da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que 2,2 milhões de 3 Vd., por exemplo, SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, Lisboa, 2008, p. 44. 4 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, Curso de Direito Processual do Trabalho, Lisboa, 1964, p. 154. 3 pessoas em todo o mundo morrem anualmente de acidentes de trabalho e de doenças profissionais. Calcula-se que todos os anos ocorrem 270 milhões de acidentes de trabalho não mortais (resultando em, pelo menos, três dias de falta ao trabalho) e 160 milhões de novos casos de doenças profissionais5. Portugal, como se sabe, é um dos países da União Europeia mais afectados por acidentes de trabalho e que apresenta níveis de sinistralidade laboral mais elevados6. Em 2004 verificaram-se 197 acidentes mortais e em 2007 morreram 163 trabalhadores vítimas de acidente de trabalho (mais seis do que em 2006), o que revela que o número de mortes continua a não diminuir de forma significativa7. O sector da construção civil é o responsável pelo maior número de mortes (cerca de 50%) 8, sendo a principal causa a queda em altura9. Relativamente aos acidentes de trabalho em geral verifica-se uma evolução, no essencial, positiva, mas ainda com resultados muito preocupantes. Registe-se que o número de acidentes de trabalho foi em 1991 de 293.886, em 1997 de 214.326, em 2000 de 222.780 e em 2003 de 229.41010. 5 Vd. o Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, intitulado A Minha Vida. O meu Trabalho. O meu Trabalho em Segurança. Gestão dos Riscos no Ambiente de Trabalho, que pode ser consultado em www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisboa/pdf/28abril_08.pdf. 6 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., pp. 20 e ss. 7 Vd. “Acidentes de Trabalho Mortais Objecto de Inquérito”, ACT, 15 de Setembro de 2008, em www.act.gov.pt. Os acidentes mortais objecto de inquérito em 2005 e 2006 foram, respectivamente, 169 e 157. Segundo dados de 2007, num total de 163, as empresas até 9 trabalhadores registaram 68 acidentes mortais e as empresas com mais de 50 trabalhadores registaram 43 acidentes mortais. Até 15 de Setembro de 2008 tinham sido contabilizados, por referência ao ano em curso, 80 acidentes mortais objecto de inquérito. 8 Vd. “Acidentes de Trabalho Mortais Objecto de Inquérito”, ACT, já citado. 9 Vd. “Acidentes de Trabalho Mortais Objecto de Inquérito”, ACT, já mencionado. 10 “Relatório das Actividades de Segurança e Saúde no Trabalho”, de 2007, da ACT, que pode ser consultado em www.act.gov.pt. 4 O problema da elevada taxa de sinistralidade que existe em Portugal não é um problema dos acidentados. É um problema da comunidade. E certamente de respeito pela lei e pelo Direito. A nossa lei fundamental elenca entre os direitos dos trabalhadores a prestação de trabalho em condições de higiene, segurança e saúde11 e a assistência e justa reparação quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional12. Mas, ter-se-á de levar em linha de conta ainda que a República Portuguesa, nos termos do art.º 1.º da CRP (de que pouco se fala), baseia-se na dignidade da pessoa humana e está empenhada na construção de uma sociedade justa e solidária. Em todo o caso, não subscrevo um discurso que impute toda a responsabilidade em matéria de segurança e saúde no trabalho aos empregadores e às empresas. A segurança e saúde no trabalho exigem um esforço concertado dos governos, dos empregadores, dos trabalhadores e da comunidade em geral. A OIT calculou recentemente que os custos económicos globais dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais perfazem o equivalente a 4% do Produto Interno Bruto mundial – mais de 20 vezes o montante da ajuda oficial ao desenvolvimento13. A ausência de adequados níveis de protecção resulta em absentismo e desmotivação dos trabalhadores e origina incapacidades permanentes, com elevados custos sociais e económicos. 11 Art.º 59.º, n.º 1, alínea c), da CRP. Art.º 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP. 13 Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, cit., p. 5. 12 5 Em Portugal, segundo dados do ano de 2000, os trabalhadores estiveram ausentes durante 840 609 dias devido a acidentes de trabalho (sendo a média de dias perdidos por acidente igual a 23,5)14. Depois, nos termos do art.º 121.º do CT, constituem deveres do trabalhador: - Cooperar, na empresa, estabelecimento ou serviço, para a melhoria do sistema de segurança, higiene e saúde no trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes dos trabalhadores eleitos para esse fim15; - Cumprir as prescrições de segurança, higiene e saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais ou convencionais aplicáveis, bem como as ordens dadas pelo empregador16. BERNARD TEYSSIÉ, destacando as obrigações do trabalhador, afirma, e bem, que a segurança na empresa não releva apenas do empregador17, e FRANÇOIS FAVENNEC-HÉRY dedicou mesmo um estudo desenvolvido à “obrigação de segurança do trabalhador”18. Por sua vez, vincando-se o carácter bilateral das obrigações em matéria de segurança no trabalho, o empregador deve, por força do disposto no art.º 120.º do CT: - Prevenir riscos e doenças profissionais, tendo em conta a protecção da segurança e saúde do trabalhador, devendo 14 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 26. 15 Art.º 121.º, n.º 1, alínea h), do CT. 16 Art.º 121.º, n.º 1, alínea i), do CT. 17 BERNARD TEYSSIÉ, “Sur la sécurité dans l`enterprise", Droit Social, 2007, n.º 6, p. 672. 18 FRANÇOIS FAVENNEC-HÉRY, “L`obligation de sécurité du salarié", Droit Social, 2007, n.º 6, pp. 687 e ss. 6 indemnizá-lo dos prejuízos resultantes de acidentes de trabalho19; - Adoptar, no que se refere à higiene, segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram, para a empresa, estabelecimento ou actividade, da aplicação das prescrições legais e convencionais vigentes20; - Fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente e doença21. Não se ignora que a questão da precariedade laboral, que está associada a uma “cultura de incumprimento”, é fundamental na abordagem desta temática. Vários autores referem a existência de uma forte ligação entre a precariedade e a incidência da sinistralidade laboral22 23 . Efectivamente, as pressões para a produção e o lucro ameaçam a segurança24. Mas também não se ignora que a rigidez da legislação pode potenciar o seu incumprimento25. O discurso jurídico, nesta como noutras matérias, deve ser equilibrado e sensato. IV 19 Art.º 120.º, alínea g), do CT. Art.º 120.º, alínea h), do CT. 21 Art.º 120.º, alínea i), do CT. 22 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 402. 23 Como já tive a oportunidade de escrever, não sou favorável a que as leis do trabalho premeiam um patronato em muitos momentos exclusivamente preocupado com o lucro rápido e fácil, sem respeito mínimo pelos direitos dos trabalhadores e sem quaisquer preocupações de cidadania (ALBINO MENDES BAPTISTA, Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, Lisboa, 2008, p. 28). 24 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 394. 25 “Em sentido amplo – escreve CASIMIRO FERREIRA – considero que a problemática dos riscos profissionais pela sua gravidade e injustiça social constitui uma linha de questionamento da “rigidez” da lei dos despedimentos.” (Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, Coimbra, 2005, p. 376). 20 7 Neste contexto, tem inteira pertinência trazer à discussão o tema dos procedimentos laborais na empresa. B. LOBO XAVIER tem chamado a atenção, com uma mestria singular, para a importância desta tema26 27 . Nas suas palavras, os aspectos relativos à saúde e segurança “são um excelente exemplo da consagração dos métodos do diálogo social.”28. O CT consagra o direito à informação e consulta dos trabalhadores, bem como a existência de representantes dos trabalhadores para a segurança, higiene e saúde do trabalho29 30 , mais estabelecendo que os trabalhadores e seus representantes devem ser informados e receber formação no domínio da segurança e saúde no trabalho31. Por sua vez, o Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, sugere que empresários e trabalhadores reflictam sobre formas de controlar e reduzir os riscos no seu local de trabalho, para prevenir acidentes e proteger a sua segurança e saúde32, alude a “tarefas 26 B. LOBO XAVIER, “Procedimentos laborais na empresa e Direito Comunitário”, Prof. Doutor Galvão Telles: 90 anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, 2007, pp. 163 e ss., e “Procedimentos na empresa (para uma visão procedimental do Direito do Trabalho)”, Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais. Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Coimbra, 2007, pp. 409 e ss. 27 Vd., também, ALBINO MENDES BAPTISTA, Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, cit., p. 28, onde se pode ler: “A relação de trabalho é uma relação de poder (a meu ver, este é um facto assente) e como tal as questões que se terão de discutir são a da procedimentalização dos poderes empresariais e a da participação dos trabalhadores no exercício desses poderes. Aí sim a discussão passa a ser séria e equilibrada.” 28 B. LOBO XAVIER, “Procedimentos laborais na empresa e Direito Comunitário”, cit., p. 186. 29 Estes representantes dos trabalhadores são também trabalhadores protegidos – crédito de horas (art.º 280.º da RCT), faltas (art.º 281.º da RCT), procedimento disciplinar e despedimento (art.º 282.º da RCT), transferência (art.º 283.º da RCT). 30 Arts. 272.º a 280.º. A RCT desenvolve depois a matéria nos arts.º 211.º a 289.º. 31 Art.º 275., n.º 2, art. 272.º, n.º 3, alínea d), art.º 278.º, n.º 1 e n.º 2, todos do CT, e art.º 216.º e art.º 217.º, n.º 1, da RCT. 32 Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, p. 5. 8 partilhadas... trabalhador, entidade patronal, governos e sociedade” e a cooperação dos trabalhadores com as entidades patronais33. Finalmente, um dos objectivos34 da “Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho: 2008-2012”, destinada a melhorar os níveis de saúde e bem-estar no trabalho e reduzir os índices de sinistralidade laboral, e no quadro de uma abordagem tripartida, é “aprofundar o papel dos parceiros sociais e implicar empregadores e trabalhadores na melhoria das condições de trabalho nas empresas”, acrescentando-se que “a participação e o diálogo social afiguram-se fundamentais para a consensualização de políticas de melhoria das condições de trabalho e do bem-estar nos locais de trabalho.”35 Convém, todavia, sublinhar que a introdução de mecanismos de participação dos trabalhadores na melhoria da segurança “pode não ter os resultados pretendidos porque naquela empresa a participação dos trabalhadores nunca foi estimulada e/ou não é valorizada.”36 37. V Um outro ponto pode merecer reflexão. É preciso equacionar a conformidade com a Directiva 89/391/CEE do Conselho, de 12 de Junho de 1989, da atribuição às comissões 33 Relatório do Bureau Internacional do Trabalho da OIT para o Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho – 2008, p. 8. 34 Objectivo n.º 10. 35 E indicando, entre outras medidas, “dinamizar a constituição de comissões paritárias para a promoção da segurança e saúde no trabalho” e “incentivar a introdução de matérias de segurança e saúde na negociação colectiva.” 36 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, Lisboa, cit., p. 402. 37 Como já tive a oportunidade de defender, julgo preocupante, por exemplo, ver as organizações patronais portuguesas defenderem o fim do controlo de gestão das empresas por parte das comissões de trabalhadores (Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, cit., p. 28). 9 de trabalhadores das funções que na lei portuguesa cabem aos representantes dos trabalhadores para a segurança, higiene e saúde do trabalho. É certo que aquelas teriam de ter funções específicas em matéria de protecção da segurança e da saúde dos trabalhadores. Continuo a entender que as comissões de trabalhadores, que têm a mais elevada dignidade constitucional, não têm um tratamento conforme na lei ordinária, existindo nesta matéria aquilo que já designei como um “equívoco histórico”38. Refira-se que na Alemanha cabe ao comité de empresa promover as medidas de protecção frente aos riscos do trabalho e de protecção do ambiente de trabalho39. Também em França se sugere o reagrupamento das instituições representativas, pelo menos nas pequenas e médias empresas40. VI A cultura de prevenção é fundamental no estudo desta problemática41. E releva em matéria de “velhos riscos profissionais” e de “novos riscos profissionais”, onde se incluem o stress e o assédio42. Já em 1994, VÍTOR RIBEIRO (que bom recordá-lo aqui e a este propósito!) aludia a “sábia ideia de PREVENÇÃO”43. 38 ALBINO MENDES BAPTISTA, Estudos sobre o Código do Trabalho, 2.ª ed., Coimbra, 2006, pp. 315 e ss. 39 A solução adoptada na Alemanha é sumariada em JESUS MARTÍNEZ e ALBERTO ARUFE VARELA, Leys Laborales Alemanas. Estúdio Comparado y Traducción Castellana, Corunha, 2007, p. 55. 40 ANTOINE MAZEAUD, “La sécurité dans l`enterprise : rapport de synthèse", Droit Social, 2007, n.º 6, p. 739. 41 Vd. SÍLVIA AGOSTINHO DA SILVA, Culturas de Segurança e Prevenção de Acidentes de Trabalho numa Abordagem Psicossocial: Valores Organizacionais Declarados e em Uso, cit., p. 43. Como nos diz esta autora a comissão que analisou o acidente do vaivém Columbia colocou especificamente a cultura de segurança entre os seus determinantes (p. 387). 42 Onde se incluem ainda os problemas de ordem muscular (dores de costas, nos braços e nas pernas), outros problemas de ordem psicossocial e outras formas de violência no trabalho (A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 374 e p. 375, n. 235). 10 Isto não é incompatível com a afirmação de que quem incumpre a lei deve ser punido, nomeadamente em sede criminal, de que se deve reforçar a actividade fiscalizadora e de que importa combater um certo sentimento de impunidade. O que se pretende apenas dizer é que se impõe dar primazia à prevenção, verdadeira pedra de toque da matéria. É preciso adequar a legislação às mentalidades, numa atitude que assenta também em princípios de concertação e de diálogo. A mera aprovação de legislação e a adopção de políticas estritamente repressivas, a meu ver, não resolvem os problemas associados à segurança e saúde no trabalho. De resto, não é só em Portugal que se discute o problema da efectividade do Direito do Trabalho, em particular o respeito pelas normas de segurança no trabalho44. A “Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho: 2008-2012”45 aponta a promoção de mudanças de comportamento como uma das definições estratégias para diminuir os acidentes de trabalho e alude a cultura partilhada entre empregadores e trabalhadores de prevenção dos riscos profissionais. Pode ler-se neste documento: “Tem-se colocado, enquanto prioridade estratégica, uma maior ênfase na publicação de normas jurídicas do que numa verdadeira concepção de políticas públicas de segurança e 43 VÍTOR RIBEIRO, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais. Colectânea de Legislação Actualizada e Anotada, Lisboa, 1994, p. 7. 44 ANTOINE MAZEAUD, “La sécurité dans l`enterprise : rapport de synthèse", cit., p. 740. 45 Resolução do Conselho de Ministros n.º 59/2008, de 12 de Março de 2008, já mencionada. No Anexo a esta resolução faz-se um importante enquadramento histórico-legislativo da matéria da segurança e saúde no trabalho. Vd., também, com interesse, o Plano de Acção da ACT “Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho”, de 31 de Março de 2008, que pode ser consultado em www.act.gov.pt., onde se faz igualmente menção a “participação tripartida, apanágio dos processos de desenvolvimento das políticas e promoção da segurança e saúde no trabalho.” 11 saúde no trabalho, não se tendo cuidado adequadamente as condições e a capacidade de aplicação das leis por parte de uma importante fatia do tecido empresarial português, nomeadamente as pequenas, médias e micro-empresas.” O objectivo n.º 1 da “Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho: 2008-2012” é mesmo “desenvolver e consolidar uma cultura de prevenção entendida e assimilada pela sociedade”, entendida nos termos da Convenção n.º 187 da OIT (2006)46, com particulares preocupações relativamente às médias, pequenas e micro-empresas. Outro objectivo47 é “incluir, nos sistemas de educação e investigação, abordagens no âmbito da segurança e saúde no trabalho”, lembrando-se que 2,5 milhões de cidadãos portugueses não dispõem de escolaridade obrigatória, “situação que funciona como travão da estratégia de inovação tecnológica e organizacional e não possibilita encarar convenientemente a competitividade da economia portuguesa.” VII Se as leis, por si só, não resolvem os problemas, também não se tem dúvidas de que o combate eficaz à sinistralidade laboral passa pela adopção de um adequado corpo normativo, acompanhado de boas práticas processuais. O Direito dos Acidentes de Trabalho deve constituir parte relevante da ordem pública social, com a consequente característica da indisponibilidade e irrenunciabilidade de direitos48, e exige um 46 Sobre o quadro promocional para a segurança e saúde no trabalho. A convenção não foi ainda ratificada por Portugal. 47 Objectivo n.º 3. 48 Nos termos do art.º 34.º da LAT: 12 desenvolvido conjunto de normas processuais próprias, “sob pena de se ferir e trair o próprio carácter tutelar da lei substantiva”49. A matéria dos acidentes de trabalho assume a maior relevância processual e exige, em particular, “prontidão, simplicidade e rigor”, impostas pela sua própria natureza e finalidade sociais50. Não é, todavia, pela escassez de normas processuais que os índices de sinistralidade laboral não são menos elevados. Lembrese que o Título respeitante ao processo emergente de acidente de trabalho e de doença profissional vai do artigo 99.º ao artigo 155.º, ocupando, por isso, 56 artigos, o que corresponde a mais de 25% da matéria do CPT. E, não obstante, os problemas interpretativos que algumas normas processuais têm levantado, e sobre as quais falaremos mais à frente, julgo que, também aqui, é fundamental avaliar a aplicação prática do Direito. É importante lembrar que alguns magistrados, a propósito justamente da temática em apreciação, se “queixam” da falta de partilha de experiências, da discussão alargada das matérias, afirmando mesmo que existe ainda um elevado número de questões “que na grande generalidade dos casos, acaba por ficar confinada à solução encontrada nos autos respectivos, não conhecendo a devida difusão.”51 Ou na formulação de um outro magistrado: É nula a convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidos na lei dos acidentes de trabalho ou com eles incompatível. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos nessa lei. 49 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, cit., p. 156. 50 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, cit., p. 154. 51 ALBERTINA AVEIRO PEREIRA, “Acidentes de Trabalho (Os exames médicos e a Tabela Nacional de Incapacidades)”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 70, 2005, p. 123. 13 “Desde há muito que sinto necessidade de partilhar dificuldades que, dia a dia, me surgem no âmbito das funções que, no Tribunal do Trabalho, venho desempenhando, há já algum tempo. A vida judiciária (...) é rica de práticas e costumes sedimentados, muitas vezes sem que os operadores se interroguem sobre se estarão a usar os meios mais adequados. E, com o passar do tempo, os resultados vão surgindo mas, muitas vezes, sinto que se actuasse de outra forma, os resultados alcançados poderiam ser diferentes e mais próximos da Justiça, que é o fim de qualquer acto processual.”52 Segue-se que situações como aquela que se vive no Tribunal do Trabalho de Lisboa, em que um sinistrado pode esperar cerca de 1 ano e meio para obter uma decisão reparadora53, podem traduzir-se no esvaziamento de normas adjectivas, particularmente das que consagram a natureza urgente do processo. Quanto à importância desta temática ela exprime-se facilmente com indicação de que cerca de metade dos processos entrados nos tribunais do trabalho são emergentes de acidentes de trabalho. Por referência ao ano de 2002, o maior parte das acções respeitam a acidentes de trabalho – 22.340 e a contratos individuais do trabalho – 14.42454 52 55 , sendo que “o elevado valor dos acidentes de trabalho MANUELA BENTO FIALHO, “Processo de Acidentes de Trabalho – Os incidentes – Ideias para debate”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, 2004, p. 79. 53 Segundo informação colhida no Jornal Público, de 21.7.2008. 54 CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., pp. 258-259. 55 Como escreve A. CASIMIRO FERREIRA, “ (...) o grande aumento das acções de acidentes de trabalho é acompanhada pela diminuição das acções de contrato de trabalho o que significa existirem menos conflitos conexos com os despedimentos.” (Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 376). 14 reflecte-se num acréscimo da actividade dos tribunais do trabalho portugueses”56 57. VIII No momento em que me propus dedicar a atenção a matérias de natureza estritamente processual procedi a uma selecção de dez temas que me parecem ser óptimas pontes para a importante fase de debate. A 1.ª escolha recaiu na nova providência cautelar nominada – a Protecção da Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho58. Como se sabe, as associações sindicais tem um papel da maior importância no acesso ao direito e à justiça por parte dos trabalhadores. O actual CPT alargou a sua legitimidade processual59 e, porventura, deveria até ter ir mais longe. Mas forçoso é também reconhecer que os sindicatos não têm dado a resposta correcta aos novos desafios que lhe são colocados, por vezes por atitude de mera inércia resultante de alguma falta de sensibilidade para novas realidades laborais60. Por exemplo, a “aposta sindical” na concessão de apoio jurídico tem muitas insuficiências61. 56 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 376. 57 “As acções de acidentes de trabalho são um indicador sociológico da articulação existente entre as condições de trabalho e riscos profissionais e a actividade da administração da justiça laboral.” (A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 374). 58 Criada pelo CPT – arts.º 44.º a 46.º. 59 Art.º 5.º do CPT. 60 Pode falar-se de inércia das associações sindicais, por exemplo, também em matéria relativa à discriminação das mulheres e homens no domínio laboral. Neste sentido, igualmente, A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 416. 61 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., pp. 406 e ss., que se refere, nomeadamente, à falta de contratação de juristas. 15 A baixa taxa de sindicalização em Portugal (entre 20% e 30%), que exige também estudo atento e multidisciplinar, contribui seguramente para a pouca efectividade dos direitos laborais. O reforço da intervenção judicial dos sindicatos tem concretização nesta nova providência cautelar, destinada a conferir mais expressiva tutela do direito constitucional à prestação do trabalho em condições de higiene, saúde e segurança62 63. Efectivamente, num país com a taxa de incidência de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, a criação de uma providência cautelar no domínio dos riscos profissionais tem inteira justificação. A legitimidade para requerer este procedimento cautelar cabe aos trabalhadores, individual ou colectivamente, bem como aos seus representantes64. A legitimidade é, assim, estabelecida de forma ampla, o que se julga correcto, tanto mais que os trabalhadores na maior parte dos casos não têm condições para actuar, também por ausência de uma cultura de aceitação do recurso aos tribunais como exercício de cidadania. Apesar de tudo quanto se disse, o recurso a esta nova providência quase não tem expressão, tudo indicando “estar-se perante uma 62 Vd. ALBINO MENDES BAPTISTA, Código de Processo do Trabalho Anotado, 2.ª ed. – reimpressão, Lisboa, 2002, pp. 113 e ss. 63 No preâmbulo do novo CPT referem-se ainda duas motivações para a criação deste novo procedimento cautelar: - 1.ª ser um instrumento de pedagogia individual e social de sensibilização de todos os intervenientes no mundo do trabalho; - constituir um meio expedito e idóneo ao dispor dos trabalhadores para salvaguarda da respectiva saúde, quando não da própria vida. 64 A referência aos representantes dos trabalhadores permite abranger as Comissões de Trabalhadores, o que nos merece destaque e aplauso, já que, como temos insistentemente referido, a dignidade constitucional das comissões de trabalhadores não tem acolhimento na lei ordinária, nomeadamente no domínio do direito processual. Remete-se, a este propósito, para ALBINO MENDES BAPTISTA, Código de Processo do Trabalho Anotado, 2.ª ed. – reimpressão, cit., pp. 42-43. 16 situação de subaproveitamento das potencialidades que a lei encerra.”65 Também neste âmbito cabe-nos a todos encontrar soluções. IX A 2.ª “escolha processual” recaiu sobre a natureza urgente das acções emergentes de acidentes de trabalho. Constitui hoje matéria consensual que a natureza urgente mantémse ao longo das várias fases do processo (conciliatória e contenciosa, que inclui a fase de recurso), correndo durante o período de férias judiciais66. O acórdão do STJ, de 9.1.2008.67, “cortou”, todavia, com o “critério do dano irreparável” 68, entendendo que todos os actos processuais cujos prazos terminem em dias que correspondam às férias judiciais, deverão ser praticados no decurso dessas mesmas férias, não se transferindo o momento da sua prática para o 1.º dia útil subsequente a esse período, jurisprudência que me parece correcta. Mas a matéria não tem a clareza desejável. Estamos a pensar no comando ínsito no art.º 139.º, n.º 1, do CPT, segundo o qual o 65 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 411. 66 Neste sentido, STJ, 24.11.2004. (www.dgsi.pt). Vd. a nota a este acórdão da autoria de MARIA ADELAIDE DOMINGOS em Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, 2004, pp. 48-49. Vd., também, no mesmo sentido, RP, 5.5.2008. (www.dgsi.pt), STJ. 7.2.2007. (www.dgsi.pt), 1.3.2007. (www.dgsi.pt) e 22.3.2007. (www.dgsi.pt). 67 Publicado em www.dgsi.pt. 68 Sobre a matéria, remete-se para JOÃO MONTEIRO, “Fase conciliatória do processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho – notas práticas”, Estudos em Homenagem ao Dr. Vítor Ribeiro, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 76 (no prelo). Aproveita-se para agradecer ao Dr. João Monteiro a amável disponibilização do texto, mesmo antes da respectiva publicação. 17 exame por junta médica, constituída por três peritos69, tem carácter urgente. Mas não resulta já do art.º 26.º, n.º 2, do CPT, o carácter urgente das acções emergentes de acidentes de trabalho? Estou convencido que o legislador quis sublinhar, face à necessidade de intervenção de peritos médicos, que o exame deve ser praticado em férias. Só que, a este propósito, podem colocar-se legítimas interrogações, impostas até pelas dificuldades práticas em marcar juntas médicas particularmente para o mês de Agosto. A matéria exige debate, desde logo em termos de coordenação entre os diversos regimes processuais70 71, e suscita-me, por outro lado, o entendimento de que o processo, em geral, só teria a ganhar com a implementação de mecanismos de flexibilização e com a atribuição ao juiz de um maior poder de gestão processual72. X 69 PEDRO FREITAS PINTO, em intervenção feita no CEJ em Janeiro de 2008 sob o título “Perícias médicas no âmbito do processo de acidentes de trabalho, afirmou: “Parece-me ser útil que na tentativa de conciliação e quando esta se frustra por não haver acordo quanto ao grau de incapacidade, se colha logo da vontade ou não do sinistrado em fazer-se acompanhar de um médico na junta que possa vir a ter lugar”. E acrescenta: “É que por vezes assiste-se a uma verdadeira “dança de cadeirinhas” a que os peritos médicos são naturalmente alheios mas que acarreta a que um perito médico esteja a representar uma companhia de seguros em determinado processo, passados alguns momentos seja nomeado oficiosamente para representar um ou mais sinistrados noutros processos e volte a representar a companhia de seguros noutros processos, tudo na mesma tarde.” Aproveita-se para agradecer ao Dr. Pedro Freitas Pinto a simpática disponibilização do texto escrito da sua intervenção. 70 JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, “Duas questões práticas na aplicação do Direito e Processo dos Acidentes de Trabalho: Urgência e Intervenção de Terceiros”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 70, 2005, p. 110. 71 Como tive a oportunidade de defender a propósito da recente reforma dos recursos: “(...) é altura de se fazer uma reforma processual global e integrada, com ponderação de regras adoptadas e a adoptar em todos os ramos do direito adjectivo.” (Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho, cit., p. 255). 72 Vd. o art.º 2.º do Regime Processual Experimental – Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho. Remete-se, a propósito, para MARIANA FRANÇA GOUVEIA, Regime Processual Experimental, Coimbra, 2006, págs. 31 e ss. 18 Vamos para o 3.º ponto de reflexão, que se centra na relevância do Ministério Público neste âmbito, explicada pelo interesse público subjacente. Essa relevância é atestada, desde logo, pela circunstância, de, entre 1989 e 2001, 90% dos sinistrados e os seus beneficiários legais terem sido representados pelo Ministério Público73, sendo que a situação não se tem alterado nos últimos anos. O processo de acidentes de trabalho começa, como se sabe, por uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público, tendo por base a participação do acidente74, e visa promover o acordo dos interessados quanto à fixação da reparação devida75. Deste modo, o processo só passará à fase contenciosa se a fase conciliatória não resultar em acordo76. Na fase conciliatória, não existem partes, não há litígio, nem formulação de pedido. Como escreve JOÃO RATO, nesta fase o Ministério Público “não defende quaisquer interesses particulares, mas apenas o interesse público da correcta definição dos direitos e deveres resultantes de um acidente de trabalho. Tem, pois, uma função própria de “órgão de justiça” em sentido estrito, supra partes.”77 A meu ver, é de manter e de valorizar nesta sede o papel do Ministério Público. 73 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., pp. 443-444. Em comparação, nos mesmos anos de 1989 e 2001, 70% do patrocínio judiciário nas acções de contrato individual de trabalho foi exercido por advogado, para em 2001 subir para 79,9%, contra 19,8% pelo Ministério Público. 74 Art. 99.º do CPT. 75 Para efeitos de promoção e homologação do acordo, o Ministério Público deve assegurar-se, pelos necessários meios de investigação, da veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes – art.º 104.º, n.º 1, do CPT. 76 Sublinhe-se que os intervenientes não ficam vinculados ao resultado do exame médico realizado na fase conciliatória (art.º 105.º do CPT), podendo, nos termos do art.º 138.º do CPT, requerer exame por junta médica. 77 JOÃO RATO, “Ministério Público e Jurisdição do Trabalho”, Questões Laborais, n.º 11, 1998, p. 44. 19 Com natural respeito pelo patrocínio judiciário exercido por advogado. A título de exemplo refira-se que o n.º 2 do art.º 119.º do CPT permite a prorrogação do prazo, a requerimento do Ministério Público, para obtenção de elementos de facto necessários à elaboração da petição inicial, esquecendo o mandatário judicial, mas a quem tal prorrogação deve ser igualmente concedida78. XI Uma 5.º questão, conexa com a anterior prende-se com a circunstância de também nos processos emergentes de acidentes de trabalho o legislador ter privilegiado a autocomposição dos litígios79. Sublinhe-se que a grande maioria das acções por acidente de trabalho termina por conciliação. No ano 2000, 65,7% dos acidentes participados resolveram-se na fase conciliatória, 27,7% foram resolvidos na fase contenciosa, mas antes do julgamento, sendo apenas 6,6% do total dos processos participados os resolvidos em sede de julgamento80 81 . No essencial mantém-se a mesma tendência em anos mais recentes (em 2006 alude-se a 69% de processos findos na fase conciliatória). 78 A fase contenciosa pode iniciar-se com a petição inicial ou com o requerimento, a que se refere o n.º 2 do art.º 138.º (se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade), devendo ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos – art.º 117.º, n.º 1 e n.º 2 do CPT. O Ministério Público assume então o patrocínio do sinistrado ou dos beneficiários legais. 79 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 329. 80 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 317. 81 Relativamente ao ano de 2001, dos processos que passam à fase contenciosa, 47,2% findam por condenação do réu no pedido (A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 399). 20 Deste modo, como escreve CASIMIRO FERREIRA, o processo funciona como um “redutor da complexidade”82. Normalmente o acordo traduz-se no pagamento de uma indemnização ao trabalhador, a ser suportado pela seguradora. Se os interessados chegarem a acordo este será submetido ao juiz para efeitos de homologação83, por simples despacho84, sem prejuízo do dever de fundamentação, nos termos do art.º 158.º do CPC, não podendo o juiz, substituindo-se às partes, alterar o acordo, corrigindo o montante da pensão por elas acordado85. Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados, entre outras menções expressas, os factos sobre os quais tenha havido acordo86 87. Esta exigência legal visa circunscrever o litígio na fase contenciosa às questões em relação às quais não tenha havido acordo. O interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um desses factos, estando já habilitá-lo a fazê-lo, é, a final, condenado como litigante de má fé88. É, por isso, inadmissível a assumpção de uma “posição negativa ou de omissão absoluta de factos” 89 90. 82 A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 318. 83 Art.º 114.º do CPT. 84 Art.º 114.º, n.º 1, do CPT. 85 RC, 12.6.97. (CJ, 1997, III, 69). 86 É o seguinte o conteúdo do art.º 112.º, n.º 1, do CPT: Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca: - da existência e caracterização do acidente; - do nexo causal entre a lesão e o acidente; - da retribuição do sinistrado; - da entidade responsável e - da natureza e grau da incapacidade atribuída. 87 Refira-se que, findos os articulados, o juiz profere, no prazo de 15 dias, despacho saneador destinado, nomeadamente a considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados – art.º 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT. 88 Art. 112.º, n.º 2, do CPT. 89 GUILHERME DE VASCONCELOS, “O processo especial de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, cit., p. 161. 90 Como se sabe, não havendo acordo – art.º 112.º do CPT ou não sendo homologado – art.º 114.º do CPT, por desconforme com as normas aplicáveis, inicia-se a fase contenciosa. 21 XII A 6.º questão processual que seleccionei foi a da fixação de pensão ou de indemnização provisória91 92. Trata-se de uma providência cautelar específica dos processos emergentes de acidentes de trabalho93. Da decisão que fixar a pensão ou indemnização provisória não há recurso, mas o responsável pode reclamar com o fundamento de se não verificarem as condições da sua atribuição94 95 . Trata-se de uma excepção à regra de que nos processos emergentes de acidentes de trabalho há sempre lugar a recurso96, determinada pela própria natureza da providência. Já a decisão que indefere o requerimento é susceptível de recurso. Julgo dever aplicar-se nesta matéria o regime da caducidade da providência cautelar fixado no art.º 389.º do CPC, que, a meu ver, em nada afecta a existência do direito substantivo subjacente97. A direcção do processo passa a incumbir então ao juiz. 91 Se houver acordo acerca da existência e caracterização do acidente como acidente de trabalho, o juiz, se o autor o requerer ou se assim resultar directamente da lei aplicável, fixa provisoriamente a pensão ou indemnização que for devida pela morte ou pela incapacidade atribuída pelo exame médico, com base na última remuneração auferida pelo sinistrado, se outra não tiver sido reconhecida na tentativa de conciliação – art.º 121.º, n.º 1, do CPT. 92 Quando houver desacordo sobre a existência ou a caracterização do acidente como acidente de trabalho, o juiz, a requerimento da parte interessada ou se assim resultar directamente da lei aplicável, fixa, com base nos elementos fornecidos pelo processo, pensão ou indemnização provisória nos termos do artigo anterior, se considerar tais prestações necessárias ao sinistrado, ou aos beneficiários, se do acidente tiver resultado a morte ou uma incapacidade grave ou se se verificar a situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 102.º - art.º 122.º, n.º 1, do CPT. 93 Assim, também, RL, 10.9.2008. (www.dgsi.pt). 94 Art.º 124.º, n.º 1, do CPT. 95 A decisão que fixe pensão ou indemnização provisória é imediatamente exequível, dispensando-se a prestação de caução – art.º 124.º, n.º 3, do CPT. 96 Art.º 79.º, alínea b), do CPT. 97 Assim, também, RL, 10.9.2008. (www.dgsi.pt). Em sentido diferente, MANUELA BENTO FIALHO, por essa aplicação “contender com o espírito subjacente ao processo emergente de acidente de trabalho no qual, como se sabe, o direito de acção, desde que atempadamente participado o acidente, não caduca.” – Arts.º 32.º, n.º 1, da LAT e 26.º, n.º 3, do CPT (“Processo de Acidentes de Trabalho – Os incidentes – Ideias para debate”, cit., p. 85). 22 XIII A 7.º questão é relativa à intervenção de terceiros. Quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável98, comando que importa distinguir do chamamento de intervenção acessória provocada99, bem como a da intervenção principal provocada 100 , que não são admissíveis em matéria de acidentes de trabalho101. É que o terceiro não é responsável na acção especial emergente de acidente de trabalho102, não devendo ocupar lugar neste processo, por ser entidade alheia à relação laboral, sendo, no entanto, a meu ver seguro que não se pode possuir, em simultâneo, a qualidade de terceiro e de representante relativamente à mesma entidade. XIV O 8.º tema eleito prende-se com a intervenção de junta médica. Como se sabe, quando não se conformar com o resultado do exame realizado na fase conciliatória do processo, a parte requer na petição inicial ou na contestação exame por junta médica103 104. 98 Art.º 127.º, n.º 1, do CPT. Regulado nos arts.º 330.º e ss. do CPC. 100 Regulada nos arts.º 325.º e ss. do CPT. 101 Vd., respectivamente, RP, 28.6.99. (CJ, 1999, III, 258) e RL, 26.1.2000. (CJ, 2000, I, 159). 102 Assim, também, STJ, 30.9.2004. (www.dgsi.pt). Vd. a nota a este acórdão de MARIA ADELAIDE DOMINGOS em Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, 2004, pp. 37-41. Remete-se ainda para JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, “Duas questões práticas na aplicação do Direito e Processo dos Acidentes de Trabalho: Urgência e Intervenção de Terceiros”, cit., pp. 112 e ss., e para JORGE LEAL, “Algumas questões relativas à determinação de quem pode ser parte na acção declarativa, com processo especial, emergente de acidente de trabalho”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 70, 2005, pp. 117 e ss. 103 Art.º 138.º, n.º 1, do CPT. 104 Tendo o sinistrado, na tentativa de conciliação, discordado do grau de I.P.P. (incapacidade permanente parcial) que lhe foi atribuída no exame médico realizado na fase conciliatória do processo, deve requerer a realização de exame por junta médica na petição inicial com que dá início à fase contenciosa do mesmo processo. Se o não faz, o Tribunal terá de rejeitar o pedido 99 23 Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 119.º (20 dias)105 106 . Tal prazo não pode ser prorrogado. Porém, porque se trata de um prazo judicial pode o requerimento, para tal efeito, ser apresentado nos três dias úteis seguintes ao abrigo do disposto no art.º 145.º do CPC. Se, dentro daquele prazo, o sinistrado apresenta requerimento pedindo apenas a prorrogação do prazo para obter relatório médico da especialidade, não pode esse requerimento ser considerado pelo Juiz como pedido de junta médica, por tal contrariar o princípio do dispositivo107. XV Em conexão com o assunto, introduz-se um 9.º tópico. Nos termos do art.º 139.º, n.º 6, do CPT, é facultativa a formulação de quesitos para exames médicos, mas o juiz deve formulá-los, ainda que as partes o não tenham feito, sempre que a dificuldade ou a complexidade do exame o justificarem. As respostas dos peritos médicos deverão ser fundamentadas de forma clara108, e levar em linha de conta de que só assim o julgador, que não é técnico, estará em condições de decidir correctamente. do autor para que lhe seja fixada uma determinada I.P.P. (incapacidade permanente parcial), superior à atribuída pelo perito no exame médico singular – RP, 29.1.96. (CJ, 1996, I, 253). 105 Art.º 138.º, n.º 2, do CPT. 106 Se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de desvalorização e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º. A decisão pode, assim, limitar-se à parte decisória, precedida da identificação das partes e da sucinta fundamentação de facto e de direito do julgado. 107 RP, 29.11.99. (CJ, 1999, V, 247). 108 “Nesta linha, não se encontram devidamente fundamentadas, por exemplo, as respostas que consistem tão só em remeter para os artigos da TNI ou as respostas que se limitem a indicar uma determinada percentagem de incapacidade.” (ALBERTINA AVEIRO PEREIRA, “Acidentes de Trabalho (Os exames médicos e a Tabela Nacional de Incapacidades)”, cit., p. 126). 24 Por outro lado, não devem invadir esferas que revelam do jurídico, como seja a caracterização do acidente como acidente de trabalho ou o nexo de causalidade entre as lesões e o evento109. Tenha-se presente que a principal fonte de conflito respeita à “fixação da incapacidade” do sinistrado, tendo representado, em 2001, 76% dos objectos da acção110. É frequente que o requerimento para fixação de incapacidade se limite a anexar dois ou três quesitos, sem que se alegue perante o juiz qual a razão pela qual se discorda do grau de incapacidade proposto pelo perito médico na fase conciliatória. “Na verdade, o que se impunha, porque é o juiz quem vai decidir – e não os médicos, como, erroneamente, se pressupõe –, é que se adiantassem as razões da discordância de forma a que o juiz que, necessariamente, preside ao exame realizado por junta médica, possa confrontar os peritos com os vários argumentos em discussão.”111 A lei determina que o juiz presida ao exame112 113 , seguramente para vincar a sua posição activa e interveniente, que, aliás, é timbre de todo o processo do trabalho. O juiz, se o considerar necessário, pode determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos114. Pense-se, por exemplo, numa disparidade apreciável 109 Vd. o acórdão da RL, de 24.9.97. (www.dgsi.pt). A. CASIMIRO FERREIRA, Trabalho Procura Justiça. Os Tribunais de Trabalho na Sociedade Portuguesa, cit., p. 337. 111 MANUELA BENTO FIALHO, “Processo de Acidentes de Trabalho – Os incidentes – Ideias para debate”, cit., p. 87. 112 Art. 139.º, n.º 1, do CPT. 113 Solução diferente da que se encontra no domínio do processo civil comum – art.º 582.º, n.º 2, do CPC. 114 Art.º 139.º, n.º 7, do CPT. Vd. o acórdão da RE, de 13.7.2004. (CJ, 2004, I, 267). 110 25 entre o grau de incapacidade fixado pelo perito médico em sede de exame singular e o atribuído pela junta médica115. O exame por junta médica, sendo uma forma de prova pericial116 117 , está sujeito à livre apreciação do Juiz118. Nestes termos, os laudos da junta médica, mesmos os emitidos por unanimidade, enquanto prova pericial, não são vinculativos para o tribunal. Actua aqui o princípio da livre apreciação pelo tribunal, que se baseia na sua prudente convicção sobre a prova produzida, isto é, em regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência119. Em todo o caso, discordando, o juiz tem de apresentar uma sólida fundamentação da discordância120. XVI O 10.º e último ponto, para eventual debate, propõe-se avaliar as consequências da apresentação do requerimento de junta médica. Assim, se as partes se não conciliarem, na fase conciliatória do processo, apenas por divergência quanto ao grau de incapacidade do sinistrado fixado no exame médico singular e se só o acidentado requereu exame por junta médica121, despoletando, deste modo, a fase contenciosa, fixar a incapacidade de acordo com este último exame, onde foi arbitrada uma incapacidade menor do que a não aceite na tentativa de conciliação, não constitui uma reformatio in 115 Vd. ALBERTINA AVEIRO PEREIRA, “Acidentes de Trabalho (Os exames médicos e a Tabela Nacional de Incapacidades)”, cit., pp. 126-127. 116 Relativamente à prova pericial, vd. os arts.º 568.º e ss. do CPC. 117 Sobre a prova pericial, remete-se para o estudo de MARIA ADELAIDE DOMINGOS, “A prova pericial no âmbito dos acidentes de trabalho”, Revista do CEJ, n.º 3, 2005, pp. 269 e ss. 118 Art.º 389.º do CC e art.º 655.º, n.º 1, do CPC. 119 Não há razões objectivas para se discordar dos laudos médicos ou para se formular qualquer pedido de esclarecimento aos peritos médicos, se estes responderem com precisão a todos os quesitos, indicando a lesão da sinistrada e respondendo aos restantes quesitos de forma lógica sem qualquer deficiência, obscuridade ou contradição – RL, 11.10.2000. (CJ, 2000, IV, 167). 120 Vd. RE, de 19.4.2005. (CJ, 2005, II, 276), RE, 30.1.2001. (CJ, 2001, I, 291) e STJ, 22.5.2007. (www.dgsi.pt). 121 Art.º 138.º, n.º 2, do CPT. 26 pejus, sendo, por isso, admissível122. E isto porque a principal consequência processual que decorre da apresentação do requerimento de junta médica é a de remeter para a fase contenciosa a decisão sobre a fixação da incapacidade (a questão do grau de incapacidade está totalmente em aberto, atendendo a que não se obteve acordo dos interessados), assumindo neste contexto particular relevância o exame realizado por junta médica123. Manifestando a minha disponibilidade para a fase de debate, agradeço a atenção que me dispensaram. 122 Neste sentido, RL, 13.11.2002. (CJ, 2002, V, 151), RP, 14.2.2005. (www.dgsi.pt), e STJ, 14.12.2005. (www.dgsi.pt), 27.4.2006. (www.dgsi.pt). Em sentido diferente, RE, 30.1.2001. (CJ, 2001, I, 291) e RE, 30.5.2005 (www.dgsi.pt). Sobre a matéria, remete-se para JOÃO MONTEIRO, “Processo especial emergente de acidente de trabalho. Exame médico singular – Tentativa de conciliação – Exame por junta médica – Fixação de incapacidade”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 72, 2005, pp. 155 e ss., que defende igualmente a posição sustentada no texto (pp. 159-160). 123 Art.º 139.º do CPT.