PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Direito
DIREITO EMANCIPATÓRIO EM
ROBERTO LYRA FILHO:
UMA REVISÃO EM BUSCA DE SUA EFETIVIDADE
Autora: XÊNIA MACHADO DE OLIVEIRA
Orientador: Dr. ARNALDO SAMPAIO GODOY
XÊNIA MACHADO DE OLIVEIRA
DIREITO EMANCIPATÓRIO EM ROBERTO LYRA FILHO:
UMA REVISÃO EM BUSCA DE SUA EFETIVIDADE
Monografia apresentada ao curso de
graduação em Direito da Universidade
Católica de Brasília, como requisito
parcial para obtenção do Título de
Bacharel em Direito.
Orientador: Dr. Arnaldo Sampaio Godoy
Brasília
2009
Monografia de autoria de Xênia Machado de Oliveira, intitulada “DIREITO
EMANCIPATÓRIO EM ROBERTO LYRA FILHO: UMA REVISÃO EM BUSCA DE
SUA EFETIVIDADE” apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em ______, defendida e
aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:
________________________
Prof. Dr. Arnaldo Sampaio Godoy
Orientador
Direito – UCB
________________________
Prof. (
)
Direito – UCB
________________________
Prof. (
)
Direito – UCB
Brasília
2009
À minha mãe Idê de Oliveira, pela aposta
na construção auspiciosa do meu ser.
AGRADECIMENTO
Esta monografia é fruto de reflexões provocadas por alguns mestres durante
todo o transcorrer da graduação. Portanto, é imperioso lembrar e agradecer as
intervenções dos seguintes: Professor Dr. José de Lima Soares, que além de sua
propriedade intelectual na exposição de temas de Ciência Política, ainda foi fonte
viva para sorver a experiência da ditadura militar; Professor Msc. Nilton Rodrigues
da Paixão Júnior, que em suas incursões filosóficas sempre enfatizava a postura
crítica e desejava aos formandos não uma carreira promissora, mas sim uma „úlcera
no estômago‟ para que expurgássemos o conformismo e fôssemos agentes de
trasnformação social; Professora Msc. Simone Pires Ferreira de Ferreira Batana, por
sua serenidade em desvanecer em sala de aula a postura sadista dos alunos; Reitor
Msc. Pe. José Romualdo Degasperi, que me recebeu em seu gabinete com abraço
fraterno e discursou suavemente acerca da importância de se atentar a temas
sociais; Professor Sérgio Roberto Lema, Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina, que em confiança acadêmica e cordialidade ímpar me
enviou seu livro ainda não publicado sobre a filosofia de Roberto Lyra Filho,
revelando presteza no incentivo à pesquisa para a militância crítica; E finalmente
meu orientador Professor Dr. Arnaldo Sampaio Godoy, que por seu currículo
dispensa apresentação, no entanto é preciso render-lhe o devido enaltecimento e
admiração que lhe cabe por toda sua intelectualidade que o eleva, e estando
elevado se submerge às intempéries mundanas com sua sensibilidade e percepção
que só os críticos e prodígios teriam.
A vossa ideologia
Deixa o povo alienado
Convicto que não há nada
Além das leis do Estado
E que a união dos pobres
É um plano endiabrado.
Antônio Queiroz da França
Cordelista
RESUMO
OLIVEIRA, Xênia Machado de. Direito Emancipatório em Roberto Lyra Filho:
Uma revisão em busca de sua efetividade. Defesa em 2009. 60pg. Monografia no
curso de Direito. – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009.
Esta monografia, em face à patente crise paradigmática perpassada pelo Direito
hodierno, partindo-se de uma análise panorâmica da teoria crítica para chegar ao
delineamento dos fundamentos do pensamento crítico no Direito e seu surgimento e
culminar na análise específica do pensamento de Roberto Lyra Filho e de sua
posição perante o positivismo no direito e o iurisnaturalismo, oportunidade em que
se descortinará as incongruências do Direito brasileiro positivista, que por vezes
pretere a realização da justiça em nome de um dogmatismo, o qual tem se
insculpido, desde a Academia, no arquétipo dos bacharéis em Direito. Então,
procura-se depreender sua viabilidade atual na obtenção de seu objetivo precípuo,
qual seja explicar a conjuntura de dominação ideológica bem como proporcionar a
emancipação e a libertação. Em sequencia, busca-se em pesquisas recentes os
meios e a práxis para a efetividade de seu direito emancipatório com ênfase na
autonomia, no ensino jurídico e no direito em perene devir com vistas à justiça
social.
Palavras-chave: Crise paradimática. Pensamento crítico no Direito. Roberto Lyra
Filho. Direito Emancipatório. Justiça social.
ABSTRACT
This monograph, due to the patent paradigm crisis derives from the present-day law,
starting from an analysis overview of critical theory to get the outlines of the
fundamentals of critical thinking in the law and its appearance, to lead to the specific
analysis of the thought of Roberto Lyra Filho and his position about positivism in the
law and iurisnaturalism, at wich are affected by the inconsistences in the Brazilian
law positivist, sometimes deprecates the achievement of justice in the name of a
dogma, which has to inscribe, from the Academy, the archetype of graduates in law.
Then revive the viability of the current dialectical theory in achieving its main
objective, namely to explain the background of ideological domination, as well as
providing the emancipation and liberation. In sequence, research on recent research
and practice means for the effectiveness of law emancipating Lyriana, with an
emphasis on autonomy in legal education and law in perpetual becoming, with a view
to social justice.
Keywords: Paradigm crises. Critical thinking in the law. Roberto Lyra Filho. Law
emancipating. Social justice.
A aprovação da presente monografia não
significará o endosso do professor
orientador, da banca examinadora e da
UCB à ideologia que a fundamenta ou
que nela é exposta.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
1. O PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO ............................................................ 12
1.1. PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS À INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA
CONTEMPORÂNEA ................................................................................................. 12
1.2. A CRISE DO PARADIGMA ................................................................................ 14
1.2.1. A ORDEM JURÍDICA KELSENIANA ............................................................... 15
1.3. TEORIA CRÍTICA: ORIGENS E DELINEAMENTO ............................................ 17
1.4. TEORIAS CRÍTICAS NO DIREITO .................................................................... 18
1.5. A URGÊNCIA DO PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO ............................... 19
2. A TEORIA DIALÉTICA LYRIANA ........................................................................ 22
2.1. RELATO BIOGRÁFICO ..................................................................................... 22
2.2. DIREITO E SUA DIALÉTICA SOCIAL................................................................ 23
2.2.1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO ............ 31
2.3. KARL, MEU AMIGO: DIÁLOGO COM MARX SOBRE O DIREITO ................... 32
2.4. PARA UM DIREITO SEM DOGMAS .................................................................. 34
3. DIREITO EMANCIPATÓRIO E EFETIVIDADE .................................................... 38
3.1. AUTONOMIA...................................................................................................... 38
3.2. PRÁXIS .............................................................................................................. 42
3.2.1. ROSAMARIA GIATTI CARNEIRO E O TEATRO DO OPRIMIDO .................. 42
3.3. ENSINO JURÍDICO ............................................................................................ 44
3.4. ENGAJAMENTO POLÍTICO .............................................................................. 50
ANEXO ..................................................................................................................... 54
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 56
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.............................................................................. 58
10
INTRODUÇÃO
O presente trabalho monográfico floresceu da contumácia após lutas em face
de desencorajamentos, alternadas com incentivos soerguidores. Sabe-se que a
temática acerca do pensamento crítico e propostas alternativas não é de fácil
abordagem, tanto não o é que, rendeu a Roberto Lyra Filho – cuja teoria é fonte
principal da presente pesquisa – o epíteto de „marginal‟ dentre os pensadores de sua
época. Em virtude de tal postura, é que se inaugura a presente pesquisa com
advertência
acerca dos pressupostos conceituais à
investigação
científica
contemporânea, como a dissociação de preconceito e a relevância de uma
curiosidade crítica.
Em seguida, justifica-se a abordagem temática em face à insofismável crise
que o direito moderno perpassa, decorrente de falta de legitimação, de sua postura
ideológica e opressora e de ambiguidades entre direito natural e direito positivo.
Para tanto, é exposto de forma panorâmica a teoria da ordem jurídica em Kelsen.
Tal crise paradigmática fora que incitou a investigação da teoria dialética
social lyriana, que representa o objeto desta pesquisa, assim como sua revisão para
sua efetividade. Outrossim, em ordem de situal historicamente tal pensamento
lyriano, buscou-se demonstrar como surgiu o pensamento crítico, consubstanciado
na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, para então originar as diversas teorias
críticas no Direito, com seus diversos enfoques, dentre elas o pensamento crítico
dialético social de Roberto Lyra Filho.
Em sequência, demonstrar-se-á as incongruências deflagradas no Direito
brasileiro positivista, que por vezes pretere a realização da justiça em nome de um
dogmatismo, para se reportar à urgência de um pensamento e postura crítica no
Direito.
O breve relato biográfico de Roberto Lyra Filho antecede a exposição de sua
teoria dialética e de suas considerações acerca da relação de Marx com o Direito.
Assim, após ter-se alcançado o âmago de seu pensamento, qual seja a tendência de
explicar a conjuntura de dominação ideológica, bem como de proporcionar a
emancipação e a libertação, teceu-se considerações acerca da teoria lyriana, ao
cotejar com outros teóricos as análises de ocorrências sociais.
11
Por fim, pretendeu-se traçar o caminho já buscado por pesquisadores
contemporâneos progressistas em busca da efetividade do direito emancipatório
lyriano, em busca da libertação e da autonomia do sujeito e da sociedade. Deste
modo, apresentou-se no que tange à práxis, alternativas propostas por Rosamaria
Giatti Carneiro, que vê no teatro do oprimido meio de se construir a autonomia.
Foram expostas também as alternativas no que tange ao ensino jurídico,
oportunidade em que se considerou a distinta crítica de Roberto Lyra Filho ao ensino
jurídico – como reprodutor do dogmatismo, o qual tem se insculpido desde a
Academia no arquétipo dos bacharéis em Direito -, para conceber-se então o ensino
jurídico como possível vetor para a práxis do direito emancipatório.
12
1. O PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO
1.1. PRESSUPOSTOS
CONTEMPORÂNEA
CONCEITUAIS
À
INVESTIGAÇÃO
CIENTÍFICA
Ao adentrar à temática de se investigar a viabilidade de uma teoria científica
do Direito, bem como da possibilidade de sua ruptura pela insurgência de uma nova
teoria de natureza crítica, é preciso antes que se estabeleça alguns conceitos
básicos imprescindíveis à construção científica. Portanto, busca-se por ora definir e
diferenciar senso comum e ciência, bem como delinear algumas abordagens
científicas como o racionalismo, empirismo e construtivismo, bem como seus
respectivos métodos, para que haja assim uma fluida compreensão de fenômenos
como a ruptura epistemológica e revolução científica, no intuito de realçar a
relevância da curiosidade inerente ao investigador, associada ao rigor metodológico
e à dissociação de pré-conceitos que a construção da ciência impõe.
Em ordem para se construir um conhecimento científico, é necessário despirse de conceitos pré-estabelecidos, sem qualquer critério. Tais pré-conceitos
referem-se de forma difusa, ao senso comum, transmitidos pela tradição, não
submetidos à verificação, bem como não questionados, o que por vezes os tornam
retrógrados dogmas.
Concernente ao senso comum, Chauí sintetiza:
[...] por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de
medo e angústia e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas
certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso
grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a
interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos.
(CHAUÍ, 2005, p. 218).
Nesse contexto, a Alegoria da Caverna ilustrada por Platão, consiste em
exemplo clássico do senso comum arraigado e tido como verdade absoluta sendo
superado pela investigação filosófica, descoberta de novas possibilidades e
expansão do conhecimento.
13
A ciência reveste-se de características específicas que lhe conferem
validação universal, ainda que momentânea, até que uma teoria seja refutada ou
superada. Tal credibilidade que goza a ciência se deve ao seu rigor metodológico,
investigações sistemáticas, construções argumentativas baseadas no raciocínio
lógico, a verificação da síntese da problematização ou o estabelecimento de
coordenações coerentes das teorias científicas.
Atinente ao método científico, a Corrente Racionalista, principiada por
Descartes, utiliza-se do critério metodológico hipotético-dedutivo, ou seja, a
inferência de resultados e propriedade por meio de dados e resultados já obtidos
com o objeto definido. Já a Corrente Empirista se vale do método hipotético-indutivo,
referente ao estabelecimento de conjecturas anteriores à experimentação do objeto.
Por fim, a Corrente Construtivista, que segundo Chauí (2005) é o viés metodológico
mais contemporâneo que é calcado na combinação dos métodos do Racionalismo e
do Empirismo para então acrescer o critério de correção, ou seja, segundo Chauí
(2005, p. 221): “ os modelos obtidos pelo Construtivismo podem alterar os modelos
construídos bem como alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a”.
Embora a imaginária linha temporal possa pender ao entendimento de que as
descobertas científicas evoluem, deve-se salientar que com uma análise acurada de
tais atividades científicas, o que deveras se percebe é a coexistência de
conhecimentos científicos dissociados de parâmetros de superioridade/inferioridade,
assim como previu Bachelard, com sua noção de Ruptura Epistemológica, ou seja, a
descontinuidade no conhecimento científico. (BACHELARD apud CHAUÍ, 2005, p.
223).
Deste modo, os cientistas são compelidos naturalmente a elaborar novas
teorias, novos métodos e tecnologias, criando-se assim uma nova concepção
científica.
Nesse diapasão, encontra-se em Kuhn o precursor da idéia de Revolução
Científica, a qual está assente nas rupturas radicais e na criação de novas teorias.
(KUHN apud CHAUÍ, 2005, p. 224).
No que tange à verificação de uma teoria científica, foi segundo Chauí (2005),
Popper que introduz a idéia de refutação, ou seja, à teoria será conferida uma
verdade provisória até que seja refutada, contestada.
14
Pelo exposto, imperativo se faz o desenvolvimento intrínseco da curiosidade
investigativa amalgamado com a absorção da filosofia, ou seja, o amor à sabedoria,
culminando-se assim a uma compreensão maior, confluindo-se à intervenção da
natureza ou do corpo social.
1.2. A CRISE DO PARADIGMA
A existência da crise1 nos fundamentos que respondem aos modelos
estabelecidos na hodierna sociedade, quer sejam modelo culturais ou normativos é
inconteste, pois as verdades que informavam esses modelos – verdades teológicas,
metafísicas e racionais, não mais atendem às intempéries perpassadas pela
sociedade contemporânea, marcada pela expansão do capitalismo exacerbado,
exclusão social, concentração de renda e presença de um mitificado discurso
ideológico do poder com papel opressor.
As incongruências atinentes ao direito moderno, consoante ao professor
Godoy2, decorreram do capitalismo e de um projeto iluminista já insubsistente para o
tempo corrente. Eis o que diz o orientador da presente pesquisa:
O direito moderno fez-se com o desenvolvimento do capitalismo, ao qual
empresta uma hegemonia condicionante de estamentos projetados para a
defesa da propriedade, dos privilégios da burguesia, motivos que subjazem
ao projeto iluminista. O direito moderno radica em termos de aceitação de
representabilidade popular imaginada (SIEYÉS apud GODOY, 2005, p.
118). Fez-se em torno de ambiguidade conceitual entre direito natural e
direito positivo (BOBBIO apud GODOY, 2005, p.118). [...] desdobrou-se em
torno de eixo de codificação, calcado na idéia de legislador onipresente
(ANDRADE apud GODOY, 2005, p.118).
O direito moderno organiza a sociedade do modo de produção capitalista,
que vive a dominação da burguesia dominante, e que mantém as
contradições sociais recorrendo ao aparelho repressivo do Estado
(MIAILLE, apud GODOY, 2005, p. 118). O direito moderno vive a crise da
legitimidade, promovendo ceticismo moral que encoraja o desrespeito para
com a ordem imposta (UNGER apud GODOY, 2005, p.118). A distinção e o
1
“CRISE - (in. Crisis; fr. Crise; al. Krisis; it. Crisis). Termo de origem médica que, na medicina
hipocrática, indicava a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e
orienta o seu curso em sentido favorável ou não (HIPÓCRATES, Prognosticon, 6, 23-4; Epidemias,
I, 8, 22). Em época recente, esse termo foi estendido, passando a significar transformações
decisivas em qualquer aspecto da vida social. (ABBAGNANO, 2007, p. 259, grifo do autor).
2
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Fabris, 2005.
15
distanciamento entre sociedade e direito são tratados de forma coercitiva
(UNGER apud GODOY, 2005, p. 118).
Tal crise, segundo Wolkmer (2002), faz insurgir inexoravelmente padrões
alternativos de fundamentação, ou seja, uma mudança de paradigma.
Atinente ao conceito de paradigma, diz:
„PARADIGMA‟ é um modelo científico de verdade, aceito e
predominantemente [sic] em determinado momento histórico. Trata-se de
„práticas científicas compartilhadas‟ que resultem de avanços
descontinuados, saltos qualitativos e rupturas epistemológicas. (KUNH apud
WOLKMER, 2002, p. 2, grifo do autor).
Então, uma vez que vislumbra-se o esgotamento do atual paradigma da
ciência jurídica tradicional, estruturada pelos modelos do jusnaturalismo e do
positivismo, emergem questionamentos acerca da mantença desses discursos
tradicionais, os quais tem servido, segundo Wolkmer (2002), a reprimir, alienar e
coisificar o homem.
Logo, a mudança de paradigma, ou seja, a edificação de um novo modelo
crítico leva a se considerar a existência de um outro fundamento, que não seja
puramente metafísico ou estritamente racional, mas um fundamento ético político,
que proporcione a libertação do sujeito histórico e da sociedade como um todo.
1.2.1. A ORDEM JURÍDICA KELSENIANA
Para Kelsen (2000), a ordem jurídica pode ser definida como um sistema de
normas válidas. A validade dessas normas remete à um norma pressuposta, de
caráter geral, chamada de „norma fundamental‟.
Há dois tipos de sistemas de normas, o estático e o dinâmico. O primeiro
sistema é formado de normas particulares dedutíveis da norma fundamental e que
também são obteníveis por meio de operação intelectual. Em contraposição o
16
sistema dinâmico possui normas que não podem ser obtidas por operações
intelectuais e a norma fundamental deste sistema apenas estabelece certa
autoridade, suas normas são criadas por indivíduos – autoridades -, que receberam
o poder, a autorização para criar o Direito, criar normas.
A ordem jurídica é um sistema de normas dinâmico, onde as normas jurídicas
podem ter qualquer sorte de conteúdo. O caráter dinâmico desse sistema é definido
por seu processo criador de normas. As normas podem ser criadas através de
costume, estabelecendo o Direito consuetudinário, e também podem ser criadas por
legislação, etc, formando assim o Direito Estatutário.
A formulação da pressuposição de validade da primeira constituição é em
âmbito nacional a norma fundamental da ordem jurídica. Esta por sua vez é uma
norma válida e sua função é autorizar o primeiro legislador a criar Direito. Essa
norma fundamental é válida por ser pressuposta com tal.
A validade de uma norma pode ser limitada e seu termos são determinados
pela ordem a qual pertencem. As normas podem perder sua validade de quatro
maneiras, a saber: a) Da forma que a ordem jurídica estabelecer; b) Em caso de
revolução, onde haja substituição da ordem jurídica; c) Quando a ordem jurídica
permanecer ineficaz; d) Quando a própria norma se demorar na ineficácia, momento
em que será destituída de sua validade por “dessuetude”,que é um efeito jurídico de
costume.
O princípio geral de eficácia reza que uma ordem jurídica deve ser eficaz para
ser válida. Este princípio é uma norma positiva do Direito internacional e norma
fundamental de uma ordem jurídica nacional.
Finalmente ficou claro a percepção do âmbito do sistema de normas que é a
ordem jurídica, de caráter dinâmico, onde o Direito é criado por forma específica
prescrita pela constituição, podendo as normas ter qualquer conteúdo. Entretanto faz
se mister destacar que a norma jurídica é somente aquela que pretende regular a
conduta humana de forma coercitiva.
17
1.3. TEORIA CRÍTICA: ORIGENS E DELINEAMENTO
O pensamento crítico contemporâneo repousa seu nascedouro na Escola de
Frankfurt3, a qual tinha como principais representantes os insignes filósofos a saber,
Max Horkheimer, Theodor Adorno, Hebert Marcuse e Jürgen Habermas. Embora
influenciada pelo criticismo kantiano, pela dialética idealista hegeliana e pelo
subjetivismo psicanalítico freudiano, salienta-se que fora o materialismo histórico
marxista que norteou de forma incisiva e fundamentou a teoria crítica. Tal Escola
pontuou a relevância da insurgência crítica de cunho construtivista da luta pela
transformação social (WOLKMER, 2002, p.5-8).
Atinente ao balizamento da Teoria Crítica, mister se faz pontuar algumas
considerações acerca do que se concebe como „crítica‟. Primeiro destaca-se que
este vocábulo guarda diversos significados, como de forma cautelosa explicita
Wolkmer (2002), que para Kant, a crítica se referia à operação analítica do
pensamento, para Marx, discurso revelador e desmistificador das ideologias
ocultadas, para Paulo Freire, tratava-se de conhecimento não dogmático, para
Habermas, processo histórico utópico, radical e desmistificador, para Popper
compreendia em falsificação de uma hipótese dada por meio de dados empíricos ou
descoberta de erros lógicos na dedução e já para Adorno, a crítica era a aceitação
da contradição e o trabalho da negatividade, presente segundo ele, em qualquer
processo de conhecimento.
Após ter pontuado tal consideração acerca do vocábulo „crítica‟, Wolkmer
assim conceitua Teoria Crítica:
Pode-se conceituar teoria crítica como o instrumento mental pedagógico
operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes e mitificados uma
tomada de consciência, desencadeando processos que conduzem à
formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo
racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora, ( WOLKMER,
2002, p. 5).
3
Escola de Frankfurt – criada em 1023, fechada pelo Nazismo e migrada para os EUA em 1933 até
seu retorno a Alemanha em 1950. (WOLKMER, 2002).
18
Assim, tal corrente teórica busca transpor o engessamento das Teorias
Tradicionais. Concernentes à compreensão do que seja Teoria Tradicional, também
não há uniformidade entre os autores, vez que para Habermas, a Teoria Tradicional
diz respeito às formulações metafísicas, de cunho abstrato e contemplativo, já para
Horkheimer, trata-se de modelo de racionalização cartesiana, sendo o objeto a
natureza, o mundo externo, Para Adorno, a Teoria Tradicional se refere à produção
de cientificismo positivista.
Não obstante a ausência de uniformidade na concepção da Teoria Tradicional
é certo que os objetivos da Teoria Crítica segundo Wolkmer (2002), estão bem
delimitados, quais sejam, a definição de um projeto que viabilize a mudança da
sociedade bem como a emancipação do homem de sua condição de alienado, sua
reconciliação com a natureza e como o processo histórico moldado pelo próprio
homem.
Em ordem para alcançar tais objetivos, sabiamente Stein aponta que para
resolver a problemática do conhecimento posto, é deveras relevante partir de uma
abordagem da produção humana, tais como: discurso, cultura e história. (STEIN
apud WOLKMER, 2002, p.10).
1.4. TEORIAS CRÍTICAS NO DIREITO
O movimento da crítica no âmbito do Direito - que consiste no questionamento
do pensamento juspositivista - surgiu no final da década de 60 por influência de
juristas europeus de idéias provindas do economicismo soviético, da releitura
gramsciana da teoria marxista realizada pelo grupo de Althusser, pela teoria crítica
frankfurtiana e pelas teses arqueológicas de Foucault sobre o poder. (WOLKMER,
2002, p.16).
As investigações de tal movimento pautavam-se na desmistificação da
legalidade dogmática tradicional e nas análises sóciopolíticas do fenômeno jurídico.
A consolidação do movimento se de nos anos 70, na França, Itália, Espanha,
Bélgica, Alemanha, Inglaterra e Portugal, para se estender então à América Latina
19
na década de 80, como na Argentina, México, Chile, Colômbia e no Brasil com os
pioneiros Roberto Lyra Filho, Tércio Sampaio Ferraz Jr., Luis Fernando Coelho e
Luis Alberto Warat.
O movimento de crítica no direito propunha alcançar os seguintes objetivos:
Revisar e romper com o discurso e o conhecimento jurídico tradicionais,
investigar as bases epistemológicas para o conteúdo do novo paradigma no
Direito e definir posturas e diretrizes não mais destinadas a manter a
segurança, a eficiência e a dominação do poder normativo vigente, mas a
executar a prática político-social de uma cultura jurídica inclinada a construir
uma sociedade democrática, cujo pluralismo [...] projete a constante
reinvenção da democracia e priorize, na dialética do processo, a
socialização institucional da justiça. (WOLKMER, 2002, p. 20).
Em face da controvérsia existente acerca da existência ou não de uma teoria
crítica do direito, vez que alguns jusfilósofos como Michel Miaille e Ricardo Entelman
a admitam, em contraposição a pensadores como Leonel Severo Rocha e Luis
Alberto Warat que não aceitam a existência de tal teoria, o professor Wolkmer
(2002) entende ser mais adequado a designação dessas manifestações teóricas de
correntes, tendências e/ ou teorias críticas, as quais por sua vez possuem diversos
enforques tais como a dialética, a semiologia, a psicanálise e a análise sistêmica.
1.5. A URGÊNCIA DO PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO
As incongruências sociais suscitadas por uma relação de dominantes e
dominados suscitaram que a corrente da teoria crítica do direito, surgida em meados
do século XX, discutisse e questionasse o papel ideológico do Direito.
Cerca de duas décadas após os apontamentos filosóficos de Roberto Lyra
Filho, ainda se vislumbra o ultraje aos direitos humanos fundamentais tais como: a)
as constatações de execuções sumárias ou arbitrárias nas favelas do Rio de
20
Janeiro, conforme relatório de 2008 do Relator Especial da ONU, Philip Alston; b) a
propositura da ADPF 1864 que pretende seja declarada a inconstitucionalidade de
ação afirmativa, qual seja cota para negros; c) A função ilusória das normas
programáticas constitucionais. Acerca dessa função diz Marcelo Neves:
Muitas normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, por não
possuírem um mínimo de condições para sua efetivação, servem somente
como ‘álibi’ para criar uma imagem de um Estado que responde
normativamente aos problemas reais da sociedade, desempenhando,
assim, uma função preponderantemente ideológica em constituir uma
forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político com
outras alternativas. (MARCELO NEVES apud KRELL 2002, p.27, grifo
nosso).
Dentre outras questões decorrentes do discurso dogmático do direito como
law, o qual pretere a busca da efetivação do direito como jus.5
O homem é um ser consciente, capaz de modificar a realidade externa 6, deste
modo urge que se debata e se deixe acesa a chama da crítica à postura dogmática
e às incongruências jurídico-político-sociais, para que se perscrute a maneira viável
de se reverter o caos instalado numa linha de quebra de paradigmas como já
preconizava Boaventura de Sousa Santos7: “Porque não se trata de tomar o poder
tal como existe, mas antes de o transformar radicalmente tanto na forma como no
conteúdo [...]”.(Grifo nosso).
Portanto, pela ânsia de se vislumbrar o revés da reprodução do formalismo
que engessa, mormente na formação acadêmica dos operadores do Direito
normativo, é que se faz central e urgente a questão da formação filosófica e crítica
na Academia com vistas a não somente aplicar e operar conjunto de normas, mas a
libertar em nome de um jus, confluindo-se então a uma tangibilidade da justiça social
4
ADPF 186/2008 – Ação de Descumprimento Fundamental ajuizada pelo DEM – Partido Democratas
perante o Supremo Tribunal Federal – ainda pendente de julgamento.
5
Diferenciação da acepção da nomenclatura „Direito‟ – em LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17
ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
6
“O conhecimento humano não tem por objetivo apenas a interpretação do mundo, mas também a
sua transformação” (MIAILLE, Michel. Apud. BARROSO, Luís Roberto. Direito e Paixão. Disponível
em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=168).
7
SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. A crise do paradigma. In: Introdução Crítica ao Direito. Org.
José Geraldo de Souza Jr. 4.ed. – Brasília: UnB, 1993- p. 69)
21
inserta na práxis libertadora. Atinente ao posicionamento analítico em face do
discurso jurídico oficial diz Agostinho R. Marques Neto8:
Entre a Ciência e a Filosofia do Direito opera-se um relacionamento
dialético em que a segunda toma como ponto de partida para as suas
indagações justamente as últimas novidades estabelecidas pela primeira,
questionando-as e criticando-as e, desse modo, contribuindo para dar-lhes
vida, sentido e dinamismo.
Nessa esteira é que Wolkmer (2002) conclama a cooperação científica
entre os juristas críticos com vistas a articular as pesquisas teóricas e práticas para
que o pensamento jurídico crítico cumpra efetivamente seu papel pedagógico de
denúncia da „verdade‟ instituída bem como de instrumento teórico-prático para o
alcance da socialização da justiça, e arremeta o referido professor:
Resta aludir, por fim, à convicção por um projeto jurídico para as estruturas
socioeconômicas
latino-americanas
que,
mediante
seu
espaço
normativo/transformador, possibilite a crítica dessacralizadora, edificadora
da práxis política „ esclarecimento/emancipação‟. Ainda que se venham a
admitir, no primeiro momento, determinados limites em seus pressupostos
epistemológicos, não há que se minimizar e denegar no âmbito da filosofia
jurídica contemporânea as possibilidades reais do „pensamento crítico‟
(representado por „críticos transformadores‟ e „antidogmáticos liberaldemocráticos‟), pensamento que não apenas revele a ineficiência do
formalismo normativista comprometido com os mitos alienantes e as
relações de poder dominante, mas que, sobretudo, materialize o espaço
pedagógico de discussão e de construção da aplicabilidade de um Direito
verdadeiramente justo. (WOLKMER, 2002, p.31).
8
NETO, Agostinho R. Marques apud SANT‟ANNA, Alayde. Por uma teoria jurídica da libertação: in
Introdução Crítica ao Direito. Org. SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. 4.ed. Brasília: UnB, 1993- p.
28.
22
2. A TEORIA DIALÉTICA LYRIANA
Lyra filho foi um homem que não conseguiu a
indiferença – ou foi amado ou foi odiado. E a sua
obra teve o mesmo destino – não há como ficar
indiferente a ela.
Horácio Wanderlei Rodrigues
2.1. RELATO BIOGRÁFICO 9
O pensador marco desta pesquisa, Roberto Lyra Filho, nasceu no Rio de
Janeiro em 13 de outubro de 1926 e faleceu em 11 de junho de 1986.
Concernente à influência de seu pai - também jurista - pontua o professor
Sérgio Roberto Lema10:
Seu pai foi o notável jurista de filiação socialista Roberto Lyra, conhecido na
época pelos seus trabalhos na área do Direito Penal e da Criminologia.
Talvez pela necessidade de auto-afirmação perante o legado paterno, o
jovem Lyra Filho, no início da sua produção, manteve um distanciamento
em relação à obra do pai, atitude esta que, numa fase posterior, foi revista e
se traduziu no encontro maduro entre os dois pensadores.
Vultoso e de notável erudição, poliglota de sete idiomas, possuía os seguintes
títulos: título em proficiência em língua e literatura inglesa – Cambridge, títulos e
experiência docente e de pesquisa em sociologia jurídica, tendo registro profissional
como sociólogo, bacharelado em Direito pela Faculdade de Direito do Rio de
Janeiro, especialização em Criminologia pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro
9
Breve biografia embasada em: LYRA, Doreodó Araújo. Roberto Lyra Filho: Curriculum Vitae
Resumido. In LYRA, Doreodó Araujo; CHAUÍ, Marilena de Sousa (Org.). Desordem e processo:
Estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho na ocasião do seu 60º aniversário
com um posfácio explicativo do homenageado. Porto Alegre: Fabris, 1986, p.11-3; LYRA FILHO,
Roberto. O que é direito. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004; LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra
Filho: Uma introdução ao humanismo dialético na filosofia da práxis jurídica (não publicado).
10
LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao humanismo dialético na filosofia da
práxis jurídica (não publicado).
23
e doutorado – aprovação com distinção com louvor - na área de concentração
Filosofia do Direito e subárea em Criminologia e Direito Criminal, pela Universidade
de Brasília.
Também foi jornalista e escritor e desenvolveu atividades artísticas tais como
obras de crítica literária, dramática e musical, experiências teatrais, poesia e
traduções.
Exerceu a advocacia, bem como a função de conselheiro penitenciário e
dedicou-se à docência, tendo lecionado Direito Penal na Faculdade de Direito do Rio
de Janeiro, Direito Processual Penal na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas e
Filosofia Jurídica e Social, Sociologia Jurídica, Direito Comparado, Direito Criminal,
Direito Processual e Criminologia na Universidade de Brasília. Atuou em instituições
nacionais e estrangeiras como visitante, bem como foi professor visitante da
Universidade do Chile.
Insta registrar que foi examinador em bancas de concursos da magistratura
federal, do DF, do Ministério Público, de diversas universidades do país. Foi membro
da OAB, da Sociedade Brasileira de Filosofia, da Associação dos Sociólogos,
presidente do Conselho Superior do Instituto de Criminologia, dentre outras
atividades.
2.2. DIREITO E SUA DIALÉTICA SOCIAL
Pretende o autor, imbuído de singular coragem científica, discutir as relações
entre Direito e Justiça, para tanto, soergue a missão de descortinamento do véu das
ideologias jurídicas.
De início, é feita abordagem acerca da acepção do termo Direito. Assim, o
autor ao constatar uma identificação entre Direito e Lei, já amalgamada no senso
comum, ressalta que tal identificação pertence ao repertório ideológico do Estado,
vez que a Lei emana do Estado. Então aponta o autor que, ao contrário, a lei
abrange não só o Direito, mas também o Antidireito - correspondente à negação do
Direito.
24
Diante de uma generalizada entronização conceitual de Direito como conjunto
de normas estatais, urge então a necessidade de uma visão dialética 11, no sentido
de expandir tal concepção ao absorver aspectos do processo histórico 12, haja vista
que o Direito não pode restar adstrito à seara legislativa, de outro modo deve indicar
os princípios e normas libertadores. (LYRA FILHO, 2004, p.10). Logo, sugere para o
alcance de tal empreitada uma ontologia dialética, por meio da qual a essência do
Direito será perscrutada como um fenômeno, dinâmico portanto. (LYRA FILHO,
2004, p.12).
Assim, intenta desmontar a identificação entre Direito e Lei, destacando que
esta última se refere a um simples acidente no processo jurídico, e que pode servir
às melhores conquistas ou não, dependendo do regime, se autoritário ou
democrático, adotado no Estado.
Há o grito libertário científico que a ciência não pode fundar-se em dogmas que
divinizam as normas do Estado.
O Professor Roberto Lyra Filho aborda a questão das ideologias jurídicas,
realçando os significados do termo ideologia, o qual a princípio referia-se ao estudo
das idéias, sendo que após, passou a significar o próprio conjunto de idéias. Ocorre
11
DIALÉTICA (gr. διαλεκτική τέχνη; lat. Dialectica; in. Dialectic; fr. Dialectique; al. Dialektik; it.
Dialettica). Esse termo, que deriva de diálogo, não foi empregado, na história da filosofia, com
significado unívoco [...] pode-se dizer, por exemplo, que a D. é o processo em que há um adversário
a ser combatido ou uma tese a ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses
em conflito; (...) 4.º D. como síntese dos opostos. O quarto conceito de D. é formulado pelo
idealismo romântico, em particular por Hegel; (...) A D. consiste: 1.º na colocação de um conceito
„abstrato e limitado‟; 2.º No suprimir-se desse conceito algo „finito‟ e na passagem para o seu oposto;
3.º na síntese das duas determinações precedentes, que conserva „o que há de afirmativo na sua
solução e na sua transposição‟. Hegel dá a esses três momentos os nomes, respectivamente, de
intelectual, dialético e especulativo ou positivo racional. Mas a D. não é só o segundo desses
momentos: é mais o conjunto do movimento, especialmente em seu resultado positivo e em sua
realidade substancial. De fato, pela identidade entre racional e real, a D. é não só a lei do
pensamento, mas a lei da realidade, e seus resultados não são conceitos puros ou conceitos
abstratos, mas „pensamentos concretos‟, ou seja, realidades propriamente ditas, necessárias,
determinações ou categorias eternas. Toda a realidade move-se dialeticamente e, portanto, a filosofia
hegeliana vê em toda parte tríades de teses, antíteses e sínteses, nas quais a antítese
representa a ‘negação’, ‘o oposto’ ou ‘outro’ da tese, e a síntese constitui a unidade e, ao
mesmo tempo, a certificação de ambas (...) a noção de D. foi utilizada por Marx, Engels e seus
discípulos no mesmo sentido atribuído por Hegel, mas sem o significado idealista que recebera no
sistema de Hegel. O que Marx censurava no sistema hegeliano era que a D., para Hegel, é
consciência e permanece na consciência, não alcançando nunca o objeto, a realidade, a natureza, a
não ser no pensamento e como pensamento. Segundo Marx toda a filosofia hegeliana viva na
„abstração‟ e por isso não descreve a realidade ou a história, mas só uma imagem abstrata desta
que, por fim, é colocada como suprema verdade no „Espírito absoluto‟ (...) Marx afirmava, portanto,
a exigência de fazer a D. passar da abstração à realidade, do mundo fechado da ‘consciência’
ao mundo aberto da natureza e da história. (ABBAGNANO, 2007, p.315-319, grifo nosso).
12
Aspectos do processo histórico exemplificados pelo autor: as pressões coletivas e normas não
estatais de classe e grupos de espoliados e oprimidos que emergem na sociedade. (LYRA FILHO,
2004, p.9).
25
que, restara proeminente a não correspondência da imagem mental desse conjunto
de idéias com a exata realidade das coisas. Assim é que, segundo o autor, concebese atualmente o termo ideologia como sendo opiniões que não correspondem à
realidade, pré-concebidas e modeladas conforme o posicionamento classístico, e
mesmo a ciência, está carregada de elementos ideológicos a postos da dominação
social.
Há diversas abordagens de se perscrutar o fenômeno da ideologia, dentre os
quais o autor elenca três, a saber:
A ideologia como crença, sendo crença as opiniões absorvidas pelo meio
desprovidas de senso crítico. Ao considerar que podem existir crenças positivas e
negativas, afirma que a ideologia se apresenta como crença falsa:
A ideologia, portanto, é uma crença falsa, uma „evidência‟ não refletida que
traduz uma deformação inconsciente da realidade [...] ela nos traz a ilusão
duma certeza tal, que nem achamos necessário demonstrá-la.
Raciocinamos a partir dela, mas não sobre ela, de vez que considerá-la
como objeto de reflexão e fazer incidir sobre aquilo o senso crítico já seria o
primeiro passo da direção superadora, isto é, iniciaria o processo da
desideologização. Por isso mesmo, aceitamos de bom grado, a troca de
idéias, mas suportamos com dificuldade um desafio às crenças. (LYRA
FILHO, 2004, p.16).
Já a ideologia como falsa consciência - perspectiva essa surgida a partir das
contribuições marxistas - refere-se, segundo as palavras do autor - à „cegueira
parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a forjaram‟, ou seja, há
um discurso das classes privilegiadas que serve à dominação, que disseminam uma
imagem da realidade que mais lhe aprouver utilizando-se de diversos instrumentos
para tanto, tais como, meios de comunicação, as próprias leis e até mesmo o
ensino.
A contribuição marxista se estendeu também à explicação das origens da
ideologia, ao apontar a divisão de classes como propiciadora às formações
ideológicas, na medida em que as ideologias favorecem uma classe privilegiada, a
qual impõe essa ideologia à classe espoliada. Todavia, ressalta o Professor Lyra
Filho que tal quadro de opressão ilegítima não pode ser constante:
26
Tal dominação, evidentemente, não será eterna, pois as contradições da
estrutura acabam rompendo a pirâmide do poder e, conscientizados, nisto,
os que carregam o peso da opressão, abre-se espaço à contestação da
ideologia „oficial‟. (LYRA FILHO, 2004, p.18).
Quanto a esta abordagem, o autor faz uma ressalva de que não se pode
deixar adstrito o fenômeno ideológico ao fator de organização sócio-econômica, vez
que, como já demonstrado historicamente, há casos de mudança de modos de
produção - para o socialismo por exemplo -, e restar ainda o fenômeno ideológico.
Por último, há a ideologia como instituição que é criada e manifestada na
sociedade. Assim, se apresenta como fato social antes de vir a tornar-se fato
psicológico nos indivíduos. Todavia, as determinações sociais se mostram como
condicionamento, na medida em que podem ser superadas por intermédio da
conscientização.
Logo, quando se deflagra a crise social, por conseguinte desenvolvem-se as
contradições do sistema que fazem emergir as conscientizações, pensamentos de
vanguarda que buscam superar a ideologia e fazer avançar a ciência, ao perseguir
não uma verdade absoluta, mas a verdade mais completa atual que só pode ser
alcançada a partir de uma mudança intrínseca ao indivíduo em ordem para a práxis
libertadora.
Concernente às ideologias jurídicas, à guisa de exemplo é realçado o
princípio jurídico que revela a seguinte crença: „cada um tem seu lugar‟, e de „dar a
cada um o que é seu‟. Tal princípio representa uma ideologia que pretende
demonstrar „justiça‟, mas em verdade expressa a separação social de classes,
deflagrando-se então a crise do Direito Positivo Dogmático13.
Ao analisar os principais modelos de ideologia jurídica, quais sejam o
iurisnaturalismo e o positivismo do direito, o autor em acurada investigação crítica,
demonstra suas debilidades e limitações e aponta como alternativa a teoria dialética
do Direito - a qual mantém os aspectos válidos das teorias tradicionais.
Então revela que o positivismo se reduz á ordem Estatal posta - que reflete os
costumes da classe dominante-, coberto por lei e controle incontrolado gerido por
uma máquina autoritário burocrático estatal, que por sua vez empreende opressões
“[...] desse „direito‟ que ainda aparece nos compêndios, nos tratados, no ensino e na prática de
muitos juristas; no discurso do poder [...]. LYRA FILHO, 2004, p.23.
13
27
a grupos minoritários, ao impor padrões de conduta com ameaça de sanções. De
outro modo, se sobrevierem normas provenientes de classes e grupos dominados,
tais regramentos jamais serão considerados pelo positivismo.
O positivismo, segundo o autor, se apresenta em três facetas, a saber: o
positivismo legalista, no qual a lei se arvora de toda a superioridade, não sendo
admitido jamais invocar costume contra lei; já o positivismo historicista / sociologista
tem a tendência de buscar nos costumes - embora atribuídos ao povo, em verdade
revela os costumes das classes e grupos dominantes - o embasamento do direito.
No entanto, tais costumes são aplicados apenas supletivamente, dando precedência
às leis; Por último tem-se o positivismo psicologista que em nome da busca do
sentimento do direito como sendo o „espírito do povo‟, vai encontrá-lo dentro da
cabeça dos ideólogos - quer seja por „intuição livre‟, quer seja pelo direito criado pela
magistratura -, os quais se abstém da crítica para tão somente assegurar a
mantença da ordem social dominante.
A crítica pontual feita ao positivismo assenta na sua ausência de fundamento
jurídico, vez que, ou o positivismo não é jurídico e deriva do fato de dominação, ou
busca fundamento em princípio que provém do direito natural.
Destarte, o mito da segurança jurídica restou desmascarado, na medida em
que, o positivismo, ao afirmar que assegura a segurança jurídica e se abstém de
demonstrar sua legitimidade, tal falta de fundamentação somente impende na
insegurança, posto que a submissão a um poder que dita normas de comportamento
sem justificação, ou uma justificação errônea, que põe no Estado. Assim irresigna-se
o autor:
Este poder, ao contrário, se presume legítimo, a partir do fato
de que está em exercício e chegou à posição
desempenhada, seguindo os processos que ele próprio
estabelece, altera e, de todas as formas, controla a seu belprazer. (LYRA FILHO, 2004, p.38, grifo do autor).
28
Atinente ao outro modelo de ideologia jurídica, o iurisnaturalismo, este se
apresenta, segundo o autor, em três formas tradicionais, a saber:
O direito natural cosmológico, no qual o direito natural se conecta como o
cosmo, com o universo físico, sendo originado na natureza das coisas. A crítica
apontada nesse viés do iurisnaturalismo é que a natureza da coisas é conclamada
para justificar a ordem social estabelecida14.
Já o direito natural teológico é aquele assente nas leis divinas. Contudo, o
que observou-se no período Medieval foi uma cobertura ideológica para a estrutura
aristocrático-feudal estabelecida.
O terceiro modelo de iurisnaturalismo é o direito natural antropológico,
fundado na razão. O questionamento posto acerca deste modelo pelo autor é que
os princípios oriundos da inteligência do homem favoreciam apenas aos interesses
da classe em ascensão no alvorecer do capitalismo - a burguesia -, a qual ao
alcançar o poder almejado, adotou a tese positivista.
Embora também reconheça um direito natural de combate, o qual visa a luta
de classes e liberação de grupos oprimidos, ainda resta uma limitação, qual seja a
fundamentação em princípios ideais, vez que não logram êxito em fazer a conexão
entre a sua teoria com os grupos, classes, dominações e impulsos libertários,
sistemas de normas estatais e pluralidade de ordenamentos.
Por toda a exposição acerca do positivismo e do iurisnaturalismo, constatouse que resta então uma antítese ideológica entre direito positivo e direito natural.
Portanto, aponta o autor a dialética como único meio possível de unificar a
positividade e a justiça em meio à construção histórica.
Deste modo, vai explanar sua opção teórica, a dialética, a qual embasada na
sociologia jurídica, será referência de uma sociologia dialética e ontologia do direito,
em que as linhas teóricas se fundam no fato social.
Em ordem de clarificar a sua opção teórica, o professor Lyra Filho (2004)
apresenta a relação entre sociologia e Direito. A sociologia é a disciplina que a partir
14
Exemplifica o autor lembrando da atribuição ao direito natural da escravidão nas sociedades em
que o escravagismo era o modo de produção econômica.
29
dos fatos históricos percebe modelos, tais como „revolução‟. Já a sociologia histórica
leva em conta a origem de tais „formas‟ sociais.
Atinente à relação da sociologia com o Direito, há segundo o autor, duas
abordagens, a sociologia do direito, mais atenta à história social do Direito, ou seja,
se refere à base social de um direito específico. Em outra perspectiva há a
sociologia jurídica que examina o Direito como elemento do processo sociológico15.
No âmbito da sociologia - geral e jurídica - pairam dois modelos: Um é a
sociologia „da estabilidade, harmonia e consenso‟, em que há padrões estáveis de
relacionamento e as normas - usos, costumes, folkways, mores - são presumidas
consensuais e as instituições sociais que detém o instrumentos de controle possui
também legitimidade presumida. A crítica deste viés de sociologia é que omite-se a
existência de grupos oprimidos, de classes contrapostas, da base sócio-econômica,
da contestação válida e das normas dos espoliados e oprimidos. O outro é a
sociologia „da mudança, conflito e coação, que se refere ao foco dos grupos em
conflito, com costumes, folkways e mores divergentes. Tais grupos se apresentam
como subcultura que viabilizam contra-instituições e investem em ataques de
anomia - contestação das normas impostas. Todavia observa o autor que revela-se
apenas como uma inquietação de superfície da pequena burguesia, na medida em
que em tal modelo é olvidado elementos essenciais.
Como terceiro modelo surge o marxismo, o qual importará numa visão da
dialética social do Direito. Para proporcionar tal visão, mister se faz o delineamento
de um modelo sociológico dialético exposto pelo professor Roberto Lyra Filho.
A dialética social do direito pauta-se numa abordagem global, pois trata de
todas os enfoques de análise do direito, quer seja o sociológico, o antropológico ou
até mesmo o histórico. Tal modelo engrena-se com o fluxo da luta de classes e
grupos e com as oposições de espoliados e espoliadores, assim como a de
oprimidos e opressores. Deste modo, constitui-se do conjunto dos seguintes dados
em movimento a seguir exposto:
15
Deste modo, a sociologia jurídica estuda o Direito como instrumento de controle e de mudança
sociais. Investiga também a pluralidade de ordens normativas, etc.
30
Primeiro, o Direito tem raiz internacional, implicando numa dialética da
sociedade internacional, uma vez que as sociedades individuais estão sujeitas à
interferência de âmbito externo16. Em consequência, deflagra-se a luta de povos, ou
seja, a dialética dos povos oprimidos e espoliados, em que as nações lutam para
não se subjugarem ao imperialismo alienígena.
No âmbito interno das sociedades nacionais, com seu modo de produção
único o qual implica na divisão de classes, domínio classista e divisões grupais17 étnicos, religiosos e sexuais - irrompe-se também a dialética jurídica na luta de
classes e grupos.
Já a organização social - referente ao conjunto de instituições dominantes apresenta seu viés jurídico em face da ausência de legitimidade18 de sua estrutura
espoliativa e opressora. Esta organização social é garantida por instrumentos de
controle social marcado pelo positivismo, ou seja, que aplicação da lei com vistas a
combater a dispersão.
Em contraposição a esta organização social surge a desorganização social,
soerguida por contra-instituições jurídicas reveladas por subculturas legais. O
reconhecimento de tal práxis como pluralismo jurídico, ou seja, direito paralelo não
inferior ao direito estatal, depende de se adotar a dialética e a socialismo
democrático19 como opções científica e política respectivamente.
Com o pluralismo jurídico surge a atividade anômica de caráter reformista ou
revolucionário, instrumentalizada pela política e fundamentada juridicamente.
16
“O princípio de autodeterminação dos povos e as soberanias nacionais não impedem a atuação,
até, das sanções internacionais, na hipótese das mais graves violações do Direito”. LYRA FILHO,
2004, p.72.
17
Tais grupos tem relevância na dialética do direito, vez que não estão diretamente ligados à
oposição socioeconômica e jurídica das classes.
18
Segundo Lyra Filho, não basta o status quo da dominação, tampouco o „consenso‟ presumido, e
salienta: “A passividade das massas não legitima, por si só, uma organização social, assim como o
estabelecimento duma legalidade não importa, por si só, na legitimidade do poder”. LYRA FILHO,
2004.
19
O socialismo democrático, segundo autor, seria “a „alternativa‟ perante o capitalismo espoliativo e o
socialismo gorado”, quando se refere ao socialismo bem comportado que a burguesia absorve e aos
socialismos burocrático-repressivos. LYRA FILHO, 2004.
31
Por fim, tem-se a síntese jurídica, a qual situa-se dentro do processo mesmo
e apresenta os critérios - embasados no aspecto histórico-social - de avaliação dos
produtos jurídicos contrastantes, culmina na „negação da negação‟ - contradições de
Direito e Antidireito -, tendo por meta o socialismo democrático20, a síntese jurídica é
a sede de onde emergem os direitos humanos.
2.2.1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO
Atinente à insurgência de um direito proveniente do povo e legitimado pelas
experiências populares e não somente por fundamentos metafísicos universais, se
faz imperioso consignar-se que Foucault21 já havia apontado a insurgência do direito
autêntico provindo da massa:
Em seguida, as massas, quando reconhecem em alguém um inimigo,
quando decidem castigar esse inimigo – ou reeducá-lo – não se referem a
uma idéia universal abstrata de justiça; referem-se somente a sua própria
experiência, à dos danos que sofreram, da maneira como foram lesadas,
como foram oprimidas (...) a decisão elas as executam pura e
simplesmente. (FOUCAULT, 2000, p.26).
Em sequencia, Foucault22 cita Engels quando vislumbra na criminalidade uma
forma de manifestação da massa marginalizada e execrada:
Engels dizia que a primeira forma de revolta do proletariado moderno contra
a grande indústria é a criminalidade – os operários que matavam os
patrões. Ele não procurou os pressupostos nem todas as condições de
funcionamento desta criminalidade, não fez a história da idéia penal: falou
do ponto de vista das massas e não do ponto de vista dos aparelhos de
Estado afirmando que a criminalidade pe uma primeira forma de revolta.
(FOUCAULT, 2000, p. 31).
20
A garantia democrática é parte do problema da realização do Direito. LYRA FILHO, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p. 26.
22
Ibid., p.31.
21
32
Nesse diapasão é que se torna possível contextualizar o ocorrido com
episódio do sequestro do ônibus 17423 por Sandro do Nascimento na cidade do Rio
de Janeiro, documentado em película.
Logo, após as incursões acerca da falta de fundamento do positivismo
dogmático exposto por Lyra Filho, e pelo apontamento de Foucault que vislumbra o
crime como uma revolta contra a opressão é que se verifica que legítimo fora o grito
que Sandro dera à sociedade, cabe citar passagem de um depoimento de um
analista no filme: “Sandro foi o grito que emergiu da dor dos meninos de rua
invisíveis”. Uma espécie de pacto fáustico, onde se usa meios violentos, abruptos
para reafirmar sua existência social.
2.3. KARL, MEU AMIGO: DIÁLOGO COM MARX SOBRE O DIREITO
É deveras relevante tecer algumas considerações no tocante ao diálogo de
Roberto Lyra Filho com Karl, haja vista que, como já exposto em capítulo anterior,
sua proposta dialética fundamental baliza em Marx, embora assevere a ausência de
uma teoria do Direito em Marx. Eis o que ressalta o professor Sérgio Roberto
Lema24:
A leitura que Lyra Filho realiza da obra de Marx, e, particularmente, das
implicações jurídicas que dela se depreendem, já que como o próprio autor
salienta, não podemos falar da existência duma teoria do Direito ou até
mesmo do Estado que tenha sido desenvolvida sistematicamente por Marx.
Mas é possível achar a afirmação e a negação do Direito nos diferentes
períodos da sua obra, e até num mesmo trabalho, capítulo ou parágrafo;
sendo possível também, deduzir neste a negação da negação do Direito,
23
O documentário „Ônibus 174‟ noticia uma realidade vivenciada no limiar de um novo século e que
se assemelha mais a um fantasmagórico surrealismo imagético. Trata-se do fato ocorrido no ano
2000, quando Sandro do Nascimento fora frustrado em sua tentativa de assaltar um ônibus na cidade
do Rio de Janeiro ao ser surpreendido por policiais. Então tal fato ilícito toma outra proporção e se
converte em tomada de reféns com horripilante desfecho. A Constituição do Brasil que prima tanto a
dignidade da pessoa humana, não pôde garanti-la a Sandro no ínterim do infortúnio que fora sua
vida. Portanto, a sociedade jamais pode cobrar uma conduta condizente com o que se espera para
um convívio social adequado se a mesma sociedade não lhe proveu de oportunidades e
possibilidades para tanto.
24
LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao humanismo dialético na filosofia da
práxis jurídica (não publicado).
33
que Lyra Filho considera decisiva para elaborar a proposta por ele
desenvolvida.
Ao estabelecer uma relação de Marx com o Direito, Roberto Lyra Filho admite
a princípio os obstáculos interpostos para tal empreitada, tais como:
Obstáculos filológicos – relativos às fontes -, em razão da não fidelidade
integral das traduções de suas obras, assim como há interferência de teorias
marxistas do Direito e do Estado – as quais segundo Lyra Filho25, não correspondem
à vertente teórica de Marx.
Obstáculos lógicos, concernentes à falta de construção sistemática no
tocante à abordagem do Direito por Marx.
Obstáculos em razão de paralogismos de texto e hermenêuticos, ou seja,
raciocínio falsos, decorrentes da ausência de uma teoria do Direito em Marx,
segundo Lyra Filho.
Obstáculos cronológicos, pelos quais tem se dividido a obra de Marx em sua
época juvenil e madura, análoga ao Velho e Novo Testamento, sem permitir sua
revisão ou concepção superadora, o que, consoante à Lyra Filho, contraria a própria
articulação de Marx relativa a Aufhebung26 que cabe, segundo o entendimento
Lyriano, que cabe ao marxismo o próprio mutatis mutandis.
Obstáculos psicológicos, os quais conferem à Marx aspectos maniqueístas
que impende a regresso em seu pensamento jurídico.
E por fim os obstáculos metodológicos, relacionados à postura do
investigador diante da obra Marxiana, que por vezes destoam em um objetivismo
ilusório – que tolhe o diálogo com os textos, e um subjetivismo descarado – que
incide gama de preconceitos na atividade exegética.
No entanto, cumpre esclarecer que Lyra Filho (1986) preferiu se atentar ao
caráter global da obra marxiana, que à recortes e investigações de textos isolados,
25
LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: Diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Fabris,
1983, p. 11.
26
“Aufhebung – negação da negação – superação não destrutiva que (...) incorpora, transmuda e
reenquadra a tradição, para formar novos produtos intelectuais”. (LYRA FILHO, 1983, p. 31).
“superação dialética (Aufhebung), poderíamos identificar os jusnaturalismos com a "afirmação"
(idealista) do Direito e os positivismos com a "negação" do Direito (com maiúscula, isto é na
totalidade e permanente devir)”. LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao
humanismo dialético na filosofia da práxis jurídica (não publicado). (Capítulo I, p.34).
34
assim como adverte: “O que me interessa (...) é o sentido geral, é a curva
marxiana”.
Destarte, Sergio Roberto Lema27 se reporta à busca de Lyra Filho nas obras
de Marx:
O que Lyra Filho procura desvendar nas implicações jurídicas da obra de
Marx é a existência, nas diferentes fases e textos do autor, tanto da
afirmação, negação, como também um esboço da negação da negação do
Direito, isto é, uma superação dialética do impasse ao que se viu submetido
o próprio Marx quando, ora afirmava o Direito de maneira idealista, como no
caso da liberdade de expressão tratada na Gazeta Renana -tendo aqui um
caráter jusnaturalista-, ora o negava rotundamente, por exemplo na
Ideologia Alemã, onde o direito burguês é, em várias passagens, assimilado
a todo Direito, preanunciando sua extinção com o advento da sociedade
comunista.
E acrescenta Lopes28 acerca dessa fonte do professor Lyra filho:
É com essa complexidade que Lyra Filho busca a fusão de dialética e
direito, construindo o difícil caminho que possibilita a superação de um
paradigma que tem sua estrutura fragmentada e que não consegue dar
respostas a uma imensa maioria marginalizada e, por outro lado, a
possibilidade de construção do novo, mas que, embora necessário, tem um
longo caminho a ser pensado e percorrido para a sua efetiva consolidação.
Então, no profícuo trabalho de extipar o embasamento ingênuo na obra
marxiana é que Lyra Filho com rigor e erudição extraiu do materialismo histórico de
Marx sua belíssima dialética para desenvolver sua proposta da dialética social do
direito.
2.4. PARA UM DIREITO SEM DOGMAS
Ao abordar a dogmática jurídica, Lyra Filho (1980) cuida primeiro de buscar a
etimologia do vocábulo „dogma‟ para então perscrutar as raízes histórico-sociais de
onde brotaram segundo ele essa „flor do pântano ideológico‟.
27
28
Ibid., Capítulo II, p.19.
LOPES, Antônio. Teoria Crítica em Roberto Lyra Filho: Uma aproximação dialética e pluralista.
DIssertação de Mestrado na UFSC, 2008.
35
Na etimologia, o dogma corresponde a uma tese ou doutrina, uma regra ou
norma, de cunho inatingíveis. (LYRA FILHO, 1980, p. 11). E então procura concluir
uma definição de dogma / dogmatismo a partir das posições dos seguintes autores:
Dogma e dogmatismo [...] revelam a tendência a enuclear-se em torno das
idéias de teoria assente ou práxis obrigatória, amparadas no argumento de
autoridade ou na determinação do poder, sem qualquer apoio em
experimento ou demonstração. (RUNES apud LYRA FILHO, 1980, p.12).
O dogma [...] atravessa a história das idéias como uma verdade absoluta,
que se pretende erguer acima de qualquer debate; e, assim, captar a
adesão, a pretexto de que não cabe contestá-la ou a ela propor qualquer
alternativa. ( ALAIN, apud LYRA FILHO, 1980, p. 12).
Um dogmatismo é uma tese aceita às cegas, por simples crença, sem
crítica, sem levar em conta as condições de sua aplicação. O dogmatismo é
característico de todos os sistemas que defendem o caduco, o velho, o
reacionário e combatem o novo, o progressista. (ROSENTHAL; IUDIN, apud
LYRA FILHO, 1980, p.12-13).
A seguir Lyra Filho (1980) traça paralelo entre dogma religioso e a dogmática
do direito positivo, lembrando que a ciência idealista do direito já foi chamada de
teologia, que diviniza o poder estatal, correspondente aos padrões impostos pelas
classes dominantes.
Lyra Filho (1980) ao dizer que o poder burguês resguardado por dogmas –
ainda que haja fumaça de flexibilidade realizada pela doutrina, jurisprudência ou lei,
exemplifica com o Direito do Trabalho:
O poder burguês, em nosso tempo, se resguarda pelos dogmas, que,
mesmo quando as contradições da superestrutura levam a doutrina, a
jurisprudência ou até a lei a dar certa flexibilidade ao esquema jurídicopositivo, de toda sorte permanece dentro do marco infra-estrutural do modo
de produção capitalista. Um exemplo bem nítido dessa limitação é destino
do Direito do Trabalho. Sob a capa das conquistas sociais, ele visa
precisamente, na democracia liberal, a manter determinadas ficções
36
conciliatórias, que negam a luta de classes e postulam a composição dos
interesses em conflito, no âmbito da justiça trabalhista, que não é,
entretanto, do trabalhador. Ali as minorias dominantes aparecem como que
em pé de igualdade com a maioria (o que reforça o domínio social
daquelas). As reivindicações dissolvem-se, portanto, em paliativos salariais
e outros expedientes menores, preservando o essencial, que é obviamente
a mais-valia. (LYRA FILHO, 1980, p.24).
Ainda questiona a norma fundamental de Kelsen, que sustenta o
contratualismo, haja vista que, segundo Lyra Filho (1980, p.32), o “ contratualismo é
apenas uma bela metáfora que postula adesão ficta às condições de consenso das
partes supostamente livres e iguais.” Acrescenta ainda Lyra Filho (1980) que o
consenso presumido do contratualismo é ideológico. Logo questiona a teoria do
ordenamento kelseniana e aponta as intempéries decorrentes de um corte
espistemológico dos dogmáticos:
Donde sai o ordenamento? Da cabeça de Júpiter, como Minerva armada?
Os dogmáticos demitem-se, afirmando que o assunto não os concerne e
apontando para os compartimentos, que consideram estanques, dos
sociólogos e politicólogos. É o corte epistemológico, num artifício teórico e
numa saída prática, bastante indecorosa. (LYRA FILHO, 1980, p. 35).
E então Lyra Filho (1980) conclama o empenho crítico para soerguer um
direito que não se preste à dominação:
O empenho crítico há de buscar os interstícios, alargá-los, reivindicar,
protestar: em síntese, engajar-se, em nome de um direito, que não é o
positivo. Porque a questão jurídica, positivisticamente apreciada, se reduz à
dominação e derruba aquelas barreira kantiana entre ser e dever-ser, que é
o seu postulado básico. [...] O sistema jurídico não é nunca abstração
acadêmica. É criação viva, brotando no solo social e sob o impacto do
subsolo em que repousa toda a estrutura. (LYRA FIHO, 1980, p.35).
37
Acerca desse „novo direito‟, verte Lyra Filho (1980):
O novo direito exige que se observe a realidade jurídica, enquando
emanada de uma práxis e a pluralidade dos ordenamentos, em perspectiva
libertadora, engajada e com sentido político bem definido. (SANTOS, apud
LYRA FILHO, 1980, p. 19).
Em desfecho, Lyra Filho (1980) reitera a urgência de uma ontologia dialética
do direito, embasada na pluralidade de ordenamentos conflitivos com vistas à práxis
libertadora.
38
3. DIREITO EMANCIPATÓRIO E EFETIVIDADE
Nosso tempo é simplista, sumário e brutal. Depois
de ter caído na idolatria dos sistemas ideológicos,
nosso século termina na adoração das Coisas.
Que lugar tem o amor num mundo como o nosso?
Octavio Paz
Se o homem apenas percebesse que é desumano
obedecer a leis que são injustas, a tirania de
nenhum homem o escravizaria.
Mahatma Gandhi
Para que o Direito Emancipatório possa tornar-se real, é imprescindível a
autonomia dos sujeitos e da sociedade. Em analogia metafórica, Carneiro (2005) diz
que, alcançar tal efetividade será como „acender o candelabro‟.
Nessa esteira é que há de se tecer doravante relevantes considerações
concernentes a tal chama da efetividade deste direito libertário, qual seja a
autonomia.
3.1. AUTONOMIA
Rosamaria Giatti Carneiro, mestre em Direito pela Universidade de Brasília,
abordou com propriedade em sua dissertação29 acerca da autonomia, configurandoa como um dos pressupostos para a efetividade do Direito Emancipatório. Para a
portentosa tarefa, buscou embasamento em autores tais como o filósofo grego
Cornelius Castoriadis, o filósofo francês Felix Guattari, o psicanalista alemão Erich
Fromm, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman e o nosso pedagogo Paulo Freire,
29
CARNEIRO, Rosamaria Giatti. Em busca do Sol: o direito, o conflito e o teatro do oprimido. 2005.
Dissertação (mestrado) - Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, Brasília, 2005.
39
bem como ressalta que o pensamento lyriano, exposto no capítulo anterior, coaduna
com o posicionamento de todos esses ilustres pensadores.
Assim, para Castoriadis, a autonomia - política de liberdade -, será possível
quando o discurso próprio substitui o discurso do outro, e realça que esta
interposição de discurso somente acontece no coletivo. E ainda aponta a razão da
não ocorrência da autonomia em tempos modernos, eis que se deve ao fato da
subjugação dos sujeitos. (CASTORIADIS apud CARNEIRO, 2005,117). Então, com
a construção da autonomia dos sujeitos é possível, segundo este filósofo grego:
a instauração de uma história onde a sociedade não somente se sabe, mas
se faz como auto-instituinte explicitamente, implica uma destruição radical
da instituição conhecida da sociedade até seus recônditos mais
insuspeitados, que só pode ser como posição/criação não somente de
novas instituições, mas de um novo modo do instituir-se e de uma nova
relação da sociedade e dos homens com a instituição. (CASTORIADIS apud
CARNEIRO, 2005, p.119).
Em Guattari, a autonomia “é a produção da subjetividade singular, decorrente
dos processos de singularização do novo social” (GUATTARI apud CARNEIRO,
2005, p.121). Esclarece o filósofo citado que, o processo de subjetivação transcorre
por duas maneiras distintas: Uma resulta na subjetividade capitalística – repleta de
ideologia -, recebida do imaginário social sem indagação, que por consequência
gera alienação e opressão; A outra forma do processo de subjetivação corresponde
à singularização, ou seja, autonomia, na medida em que impende em dimensões
sociais e agenciamentos coletivos para tal construção, calcado na dialética.
(GUATTARI apud CARNEIRO, 2005, p.120). Nesse sentido, Guattari apresenta
proposta de articulação ético-política que compreende três enfoques, quais sejam, o
da subjetividade humana, das relações sociais e do meio ambiente – que exige
outras relações com a natureza, para que afinal, a subjetividade seriada seja
rompida.
Em Fromm, a união com outros seres vivos é condição sine qua non para a
sanidade mental do homem. Ocorre que a modernidade convergiu ao isolamento e à
insanidade mental social, sendo o amor, segundo o psicanalista, a única paixão que
pode viabilizar a união do homem com o mundo, resultando-se deste modo a
sensação de integridade e de individualidade, o que por conseguinte torna o homem
singular e autônomo. (FROMM apud CARNEIRO, 2005, p.127).
40
Na visão do sociólogo Bauman, a flagrante fragilidade dos laços humanos
decorre da modernidade e realça a relevância da alteridade, pois que, até mesmo o
amor-próprio surge com o outro, vez que há a necessidade de ser amado para
amar-se. Na trilha do resgate de tais laços, o sociólogo elege a „teoria crítica‟ para a
recuperação da cidadania e a retomada do espaço público, convergindo-se assim à
autonomia e a uma sociedade autônoma.
Na mesma vertente, o pedagogo Paulo Freire compreende o ser humano
inconcluso, e para a construção histórica do ser, aponta como indispensáveis a
alteridade e a ética. Eis sua definição de autonomia:
Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante,
transformador, criador, realizador, transformador de sonhos, capaz de ter
raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de
reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a
exclusão dos outros. É outridade do não eu, ou do tu, que me faz assumir a
radicalidade do meu eu. (FREIRE apud CARNEIRO, 2005 p.129, grifo
nosso).
Em sequencia, após a imersão nos pensadores acima, a mestre Carneiro
adverte acerca do imaginário moderno social que não é menos do que uma
compreensão de mundo ideológica referente a uma racionalidade que converge em
arbitrariedade na medida em que concebe o sujeito como objeto. Não obstante,
aponta que, uma vez que este imaginário moderno social é uma produção histórica,
logo admite-se sua reconstrução social intentada por sujeitos autônomos que
construam seu próprio „imaginário‟, e não apenas se subordinem ao discurso
científico que lhes é imposto. Após, sintetiza que há um elo necessário entre
autonomia e a relação social, pois o seu alcance depende do conflito, da contradição
e da ambiguidade, sendo urgente um resgate ético do Direito em contraposição ao
esvaziamento axiológico corrente e expõe sua definição de autonomia:
A autonomia é portanto a manifestação espontânea do sujeito enquanto um
sujeito que pensa, age e ama. Uma manifestação que lhe brota de dentro,
de sua própria norma e de forma original. (CARNEIRO, 2005, p. 125, grifo
nosso).
41
Carneiro (2005) oportunamente faz emergir o pensamento lyriano para
ratificá-lo em face às idéias expostas, na medida em que Lyra Filho concorda com a
constituição multilateral da subjetividade humana, bem como sustenta o movimento
dialético, o contraditório e a superação dos condicionamentos do homem – revelado
pelo encontro entre seu campo íntimo e o seu esforço em sua conscientização.
Na esteira das considerações postas concernente à concepção do sujeito
como objeto, à necessidade de sua singularidade e ao papel do amor para a
autonomia, cabe consignar a seguinte admoestação:
Se fosse permitido partir do pressuposto de que a pobreza é inerente aos
desprovidos de bens materiais, ou de rendimento que assegure a
subsistência e dignidade, teria por conseguinte simplista solução:
estereotipar parcela da sociedade e dar-lhes reparação do desfalque Esmolas? Políticas „pão e circo‟?- Em contraponto, salienta-se que “nem só
de pão vive o homem, mas de toda a justiça”.
Ao invés de políticas assistencialistas, mister se faz a adoção de medidas
que humanizem os „paupérrimos abastados‟, com o escopo de cessar as
mazelas da sociedade em sua origem. Portanto, à guisa de sugestão, citase campanha de humanização, a saber: „Você já abraçou um mendigo
hoje?‟ De certo causaria espanto, mas não maior que a bizarra
desigualdade que assola a sociedade. Assim, somente quando se começar
a combater a pobreza intrínseca, é que a distribuição de renda, de cultura e
de amor se dará com equidade. (OLIVEIRA, 2007, p. 444 - 445).
Freire comenta acerca da insurgência das massas e das práticas
assistencialistas:
As massas [...] começam a exigir e a criar problemas para as elites. Estas
agem torpemente, esmagando as massas e acusando-as de comunismo.
As massas querem participar mais na sociedade. As elites acham que isto é
um absurdo e criam instituições de assistência social para domesticá-las.
Não prestam serviços, atuam paternalisticamente, o que é uma forma de
colonialismo. Procura-se tratá-las como crianças para que continuem sendo
crianças. (FREIRE, 2007, p. 37).
42
3.2. PRÁXIS
Após expor as sinalizações do pensamento emancipatório, imperioso é que
se discuta a sua pragmática. Eis a conclamação de Lyra Filho para a práxis:
Não adianta ver que „o mundo está errado‟ e encolher os ombros, fugindo
para algum „paraíso artificial‟, no porre, no embalo, no sexo obsessivo ou na
transferência de qualquer atuação positiva para mais tarde, noutra vida, no
„além‟. E quando falamos em práxis é evidente que ela pode ser também de
maior ou menor amplitude; mas a atitude modesta, limitada mesmo, já é
uma forma válida de participar pelo discurso, pelo voto, pela
arregimentação, pela ajuda material e moral a espoliados e oprimidos.
(LYRA FILHO, 2004, p.22).
3.2.1. ROSAMARIA GIATTI CARNEIRO E O TEATRO DO OPRIMIDO
Carneiro (2005) revela que a construção gradual da autonomia se efetivará
mediante as seguintes práticas: a ética da solidariedade; a rebeldia para com a
ideologia dominante e o contra-discurso. Para tanto, aponta como veículo para tal
práxis o teatro do oprimido, concebido por Augusto Boal no Rio de Janeiro.
Em precedência no detalhamento da aludida prática teatral, Carneiro (2005)
busca em filósofos como Nietzsche e Foucault parar extrair a relevância da
manifestação artística e então conceber a arte como o “fósforo necessário para
acender o candelabro rumo à saída das sombras e da solidão da caverna moderna”
Carneiro (2005, p. 156) e então busca em Lyra Filho a corroboração ao seu
pensamento:
Isto porque a ciência visa explicar. A arte intui e mostra, sem explicação:
explica, degrada-se como arte, sem chegar à dignidade metódica da
ciência. A arte não é um pensamento analítico, mas celebrante, que
comunga na realidade apreendida, ao invés de desmontá-la e demonstrá-la.
A ciência é a demonstração. A arte é mostração dum conhecimento intuído.
(LYRA FILHO apud CARNEIRO 2005, p. 156).
43
A referida autora, em sua experiência de campo durante seu mestrado, em
oficinas de teatro do oprimido realizadas na cidade-satélite Paranoá, pode observar
detidamente as peculiaridades de tal prática teatral como sendo uma prática da
autonomia, bem como prática pedagógica à efetividade do Direito.
O teatro do oprimido concebido por Boal, abarca a idéia de que todos são
atores, criadores e artistas, bem como tal manifestação teatral revela um potencial
para transformação e libertação, na medida em que não se refere à arte
contemplativa, de outro modo, trata-se de uma construção de visão de mundo e de
uma outra realidade humana possível. Carneiro (2005, p. 157-158). Eis como
explana:
No teatro do oprimido [...] existe sim o incentivo para que os próprios
espectadores tomem o espaço dos personagens, para que assumam um
papel protagônico e transformem a ação dramática inicialmente proposta,
ensaiando-lhe soluções possíveis e realizando o debate sobre o encenado.
(CARNEIRO, 2005 p. 159).
Acrescenta
ainda
a
pesquisadora:
“Dessa
maneira,
compete
aos
espectadores a tomada do espaço do personagem oprimido e a representação de
uma reação diante da opressão” (CARNEIRO, 2005 p. 159), viabilizando-se deste
modo a identificação e a solidariedade.
Ao considerar que o teatro é linguagem, comunicação e conhecimento e urge
que haja sua divulgação, vez que sua prática pode contribuir para a humanização
dos seres humanos, como afirma a mestre em comento:
Concebe-se o teatro do oprimido como uma prática para a autonomia e,
com essa natureza, concebe-se essa poética aliada à construção do Direito
emancipatório. Sustenta-se então a importância da articulação entre a arte e
o campo jurídico, [...] no encalço da efetivação do Direito. (CARNEIRO,
2005 p. 181).
Em remate a autora Carneiro conclui que o teatro do oprimido é uma das
prática que pode efetivar o direito emancipatório lyriano, nestas palavras:
44
Sendo assim, o estético, e mais notadamente o teatro do oprimido, se
coloca como o fósforo do candelabro. Sabe-se ser preciso iluminar a
caverna jurídica moderna. O candelabro existe e está em mãos, sob a forma
da concepção de Direito de Lyra Filho (...), contudo, encontra-se sem luz e
sem utilização, Sem luz, de nada adianta o candelabro, porque não realiza a
sua função. (CARNEIRO, 2005 p. 181).
3.3. ENSINO JURÍDICO
Reino da Bibliothéke
Xênia Machado
Queria eu ter tido na pré-história nascedouro
Neolítica, não contemplaria o contraditório da evolução
Onde humanos brotam como que abruptamente e gozam as
Conquistas de seus antecessores em boçal banalidade
Que corrompe a árdua e paulatina luta da aquisição do progresso
Queria eu ter sentido a brasa das labaredas do fogo medieval
Que transcendeu mártires a postos de uma legítima causa
A luta pela liberdade do corpo social e da alma humana:
A campanha dos „depósitos de livros‟
Queria eu ter percorrido pelos reclusos labirintos dos mosteiros
Imersa na sabedoria do „Canário‟ de Machado de Assis
Que sabia que gaiolas não bastavam para lhe subtrair a liberdade
Queria eu ter permanecido na tradição oral, e não conceber a
Retrógrada inversão da conquista democrática
Que deu acesso ao Poder representado pelas bibliothéke
Queria eu ter estado com os escribas
Adverti-los-ia do vão esforço
Queria eu ter gracejado das alegadas superstições
Que justificaram os livrocídios de outrora
De tão ingênuas seriam passíveis de minha indulgência
Muito mais do que a vil ignorância hodierna
Que converge à inépcia da biblioteca
Queria eu ter sido partícipe na lenta e tida por insana
Tarefa de catalogação dos livros para a praticável consulta Rendo-lhe
admiração Antonio Panizzi!
Após o grito libertário de 1822, adquiriu-se a Biblioteca Real
Hoje a Nacional
Não infiram qualquer correlação contextual
Refuto nexos causais para acolher teses de meras coincidências
No limiar do milênio: portas cerradas
Queria eu não ter de internalizar a recorrência da clausura do intelecto
Que o Iluminismo superara
O ímpeto autônomo da busca do saber
E do voluntário deslocamento ao santuário laico
Não pode ser tolhido por cadeados
Não trancam apenas portas
45
Trancam de forma inconsciente
A predisposição gradual do alcance da infinita evolução
Remontam os arquétipos de milenar subjugação
No inconsciente coletivo.
Revolver o lapso temporal me deixa incólume
Para quê tanto esforço?
Eis meu ápice atemporal:
O retorno à Primitiva Idade.
O ideal seria uma sociedade mais justa, onde
estudar fosse trabalho pago pelo Estado àqueles
que verdadeiramente tivessem vocação para o
estudo e em que não fosse necessário ter a todo
custo o „canudo‟ para se arranjar emprego, obter
promoção ou passar à frente dos outro num
concurso.
Umberto Eco
O ensino jurídico pode e deve ser veículo da práxis libertadora, embora tenha
perpassado por mazelas de cunho dogmático positivista que tendem à mantença do
status quo dominante. Nesse contexto o professor Amaral30 admite que:
Nosso demônio está bem simbolizado na cultura do imediatismo, em
nossa intolerância ao que é longo, discursivo, profundo e erudito: os
clássicos tratados jurídicos são destratados em prol dos opúsculos, dos
resumos, das apostilas, manuais e publicações do gênero. As aulas,
erudito: os clássicos tratados jurídicos são destratados em prol dos
opúsculos, dos resumos, das apostilas, manuais e publicações do gênero.
As aulas, breves tertúlias entre dois recreios mentais, não ensejam mais o
aprofundamento intelectual do „por que’, do „o que é‟, da de-finição (dar
os fins, os limites, os elementos distintivos / essenciais dos objetos em
cognição). Tudo isto „não é mais compatível‟(?!) com nossa civilização do
vídeo-clip, da cultura meramente visual, de mídia, onde o senso histórico,
os ideais, o saber abstrato, a fidelidade aos princípios e à ética vem sendo
substituídos pela vacuidade intelectual, pelo relativismo extremo (não há
valores, só referenciais). Hoje educa-se ensinando não a obra em sua
plenitude, mas tão-só o autor e certos referenciais da obra; é a nossa
modernidade pós-novela. Conhece-se os autores e não suas obras, eis o
„hit‟ deste nosso final de civilização. Que depressão isso provoca no
30
AMARAL, Luiz Otávio de O. Refletindo sobre o ensino e a formação do advogado. In: Âmbito
Jurídico. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0005.htm. Acesso em 09 Ago.
2005
46
professor cônscio e que faz a boa opção de não usar artifícios didáticos
reducionistas da relevância do ensino (catecismo positivista de ensinar só
a norma escrita, antecipação de „5 das 3 questões de prova‟, aceitação da
infiel avaliação do trabalho-xerox, do „eu exijo pouco e vocês cobram-me
pouco!‟... ). (AMARAL, 2001b, grifo do autor).
Então, o mestre da Universidade Católica de Brasília, Amaral31, revolve da
antiguidade a origem grega do termo educação, Paidéia, para demonstrar que os
moldes em que se vislumbra a ensino atual e em especial o jurídico estão
corrompidos, ou ao menos deturpados:
Ensinar pressupõe a crença de que mudanças são possíveis, de que o
discurso da acomodação não melhora as dores do mundo; daí porque o ato
de ensinar é constante exercício da faculdade humana de criticar. É preciso
criticar, discutir, mudar, enfim não parar de buscar a razão de ser de nossa
ação educativa (...) è educação em sentido mais alto, mais que mero
adestramento para o fazer, ou para o ter (...) Como nossa atual educação
(...) tem reagido ao patético quadro social (interferente no individual, é claro)
que nos envolve? Ou na base do „salve-se quem puder‟ (bem ou mal
dissimulado: p. ex. ‘não nos envolvemos em política / cuidamos apenas
de formar profissionais’ (...) (AMARAL, 2001a, grifo nosso).
A seguir, surge em AMARAL32 a arete - virtude como orientadora para sanar o
desvirtuamento da educação: “arete é (...) um atributo da excelência humana, a
beleza de caráter que orienta a práxis (a ação cotidiana) humana para o bem (...)”. E
ilustra a finalidade da educação com passagem literária de Homero: „quando o velho
Fênix, educador do jovem Aquiles, herói-protótipo dos gregos, recorda-o o fim para o
qual foi educado: „proferir palavras e realizar ações‟.
Logo, demonstra Amaral33 sua disponibilidade para uma práxis que impenda à
mudança de paradigma do ensino jurídico dogmático positivista:
31
AMARAL, Luiz Otávio de O. Paidéia. In: Âmbito Jurídico. Ago. 2001. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0006.htm> Acesso em 09 Ago. 2005.
32
Ibid.
33
AMARAL, Luiz Otávio de O. Refletindo sobre o ensino e a formação do advogado. In: Âmbito
Jurídico, ago/2001 [Internet] http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0005.htm
47
Nós, professores de Direito, fugiremos, como temos feito até aqui, da
tentação hodierna de ensinar o aluno a „recitar artigos e parágrafos do
Direito Oficial‟, como já alertara-nos o saudoso mestre e amigo Lyra Filho.
(AMARAL, 2001b).
Em oportunidade de palestra sobre ensino jurídico proferida pelo Dr. José
Geraldo de Souza Jr.34 na Universidade Católica de Brasília no ano de 2005, cabe
salientar aqui, os apontamentos do discípulo de Roberto Lyra Filho:
Segundo o palestrante, o processo do conhecimento, ou seja, o „conhecer‟,
deve ensejar condições de compartilhar. Um dos defeitos da pedagogia que
ele aponta é o ensino errado de Direito, pois não se ensina bem o que se
apreende mal. Destarte, urge ter os olhares vigilantes para um Direito justo
em contraposição às formalidades.
A crise do Direito se assenta na „praga do positivismo que assola as
faculdades de direito‟. A razão científica isolou-se em um formalismo, daí a
distinção entre Direito e Moral, sendo a Moral uma direção autônoma,
subjetiva.
Entretanto José Geraldo de Souza Jr. não incita a negar o paradigma do
positivismo, quando diz que o positivismo não é elemento de
obscurecimento, ele o é quando se torna uma redução. O que então
enfatiza é que não pode haver a perda de subjetividade e solidariedade do
pensador, do operador do Direito.
No enfoque que por ora se atém, acerca do papel de reprodução do
dogmatismo no ensino do Direito, insta aludir sua repercussão pessoal em Marx,
pontuado por Lyra Filho:
Marx era filho de advogado e principiou seu roteiro universitário como
estudante de Direito. Sua desilusão e rompimento com a carreira jurídica
tem muita semelhança com o equívoco de tantos jovens contemporâneos.
Quando chegam aos bancos acadêmicos, no alvoroço de inquietações e
ideais apressados e não isentos de impaciência e sentimentalismo,
defrontam-se com as patacoadas rotineiras, os catedr‟áulicos subservientes,
a dogmática obtusa e alienante, o estômago de avestruz dos positivistas
engulindo qualquer pacote das prepotências estatais, que o famoso „toque
de midas‟ kelseniano transforma em „neutros‟ produtos „jurídicos‟. Diante
34
Relatório da Palestra Ensino Jurídico: Conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção
– constante do Anexo.
48
disto, muitos rapazes e moças progressistas logo se deixam tomar por um
nojo não injustificado, que, porém, injustificadamente, vai tender à
equiparação do lixo legislativo com o íntegro universo jurídico, sem
perceber, sequer, que, dialeticamente, o estrume das estruturas corruptas
serve também de adubo à contestação e florescimento de afirmações
jurídicas para, supra e metalegais, oriundas de classes e grupos espoliados
e oprimidos [...].(LYRA FILHO, 1983, p. 40).
Urge que a práxis emancipatória precipuamente se faça presente no âmbito
do ensino jurídico, na medida em que, o dogmatismo tem se reproduzido e se
imantado nos acadêmicos de Direito, como bem lembra Lyra Filho que, a OAB, em
projeto de reforma do ensino jurídico, definiu o positivismo com uma das pragas
universitárias nacionais‟ (LYRA FILHO, 2004).
Nesse diapasão de tecnicismo, entende Godoy (2005) que os operadores de
direito apenas vertem sobre o direito moderno formal e dogmático:
Esse direito é concreto, se realiza diuturnamente no mundo, e
especialmente no que toca ao hemisfério ocidental, desdobra-se nas
contigências consuetudinárias ou legisladas. É defendido por seus
sequazes, que se nominam bovaristicamente de operadores jurídicos.
(GODOY, 2005, p.119).
E então Godoy busca corroboração no professor Aguiar acerca do tecnicismo
dos juristas:
Os agentes das práticas jurídicas e seus reprodutores pertencem a uma
categoria social que apresenta categorias muito próprias, merecendo, por
isso, um olhar mais atento. O interesse por eles é despertado pela simples
observação empírica: eles aparecem uniformizados, apresentam um mesmo
código lingüístico, tem um entendimento do mundo, do homem e da história
semelhante, vivem adorando o Estado (mesmo quando dele reclamam),
preocupam-se com o controle da sociedade e, mesmo quando discursam
em contrário, agem segundo um dogma: são as leis que modificam o
mundo. (AGUIAR apud GODOY, 2005, p. 119-120).
E então o ilustre orientador dessa monografia professor Godoy (2005), com
base em Aguiar conclui:
49
Para esses operadores do direito moderno, o mundo é harmônico, a
vontade informa o livre arbítrio (de todos), o Estado é perene e benfazejo, a
coação está nas sanções, direito e Estado formam ele indissolúvel, o sujeito
de direitos é abstração, os autos do processo representam a síntese do
mundo, as decisões e orientações são neutras e assépticas, a história é
invenção de filósofos, a sociedade suscita problema que não é jurídico, os
poderes são discutidos em âmbito interno, a técnica deve ser murada contra
a crítica. (GODOY, 2005, p. 120).
Ocorre que, não obstante, o inconteste dogmatismo que engessa no ensino
jurídico, este pode ser um vetor para a práxis da libertação. Para tanto, Lyra Filho
abre o mar do ensino jurídico com sua lucidez corajosa, embora marginal, que será
exposta a seguir.
Lyra Filho entende que para que o ensino do Direito possa ser uma práxis
emancipatória, deve-se rever o que tem se ensinado, já que, como explanado no
capítulo 2 - acerca da teoria dialética lyriana -, há uma errônea concepção do que
vem a ser direito. Deste modo, é primordial que se conceba o direito como
construção histórica, em perspectiva sociológica, para que assim se possa então
ensiná-lo, mas não como conhecimento „dado‟ mas como conhecimento „construído‟.
Logo, para viabilizar tal reforma no ensino jurídico, há que, segundo Lyra
Filh35o, se objetivar:
Desobstruir canais para a maior participação dos setores progressistas da
sociedade civil, num modelo sócio-político e, portanto, jurídico também, de
alargamento das bases democráticas, no controle do poder.
Ao se referir à crítica que Lyra Filho empreende aos compêndios nos Cursos
de Direito, Horácio Wanderlei Rodrigues o cita:
Apreender o que é Direito nas „obras‟ da ideologia dominante só poderia,
evidentemente, servir pra um de dois fins: ou beijar o chicote com que
apanhamos ou vibrá-lo no lombo dos mais pobres, como nos mande
qualquer ditadura. (LYRA FILHO apud RODRIGUES in CERQUEIRA [et al],
2007, p.149).
35
LYRA FILHO, Roberto. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília:Obreira, 1981. p.8.
50
Horácio Wanderlei Rodrigues, adverte que para Lyra Filho o problema do
ensino do Direito não pode se reduzir à revisões curriculares, na medida em que,
para ele, embasado em Luís Warat, currículo e metodologia decorrem do senso
comum dos juristas. Destarte, oferece exemplo prático de Luis Alberto Warat e
Roberto Lyra Filho, que efetivaram críticas dentro das próprias disciplinas jurídicas:
Warat, ainda na Argentina, foi professor de Direito Penal e efetuou sua
crítica de forma intra-sistemática. Lyra Filho, considerado um dos grandes
criminólogos brasileiros, lecionou Direito Penal e Processo Penal, fazendo
também delas o seu ponto de apoio para uma crítica mais efetiva do
fenômeno jurídico. (RODRIGUES in CERQUEIRA [et al], 2007, p.154).
Atinente ao ponto fundamental no enfoque do ensino jurídico para Lyra Filho,
assim sintetiza Horácio Wanderlei Rodrigues:
Para Lyra Filho a questão fundamental do Ensino do Direito é a de que só
se pode pensá-lo a partir da correta visão do Direito. Nenhuma reforma tratá
resultados, se continuar vinculada à idéia positivista que reduz o Direito ao
direito positivado pelo Estado. A reforma didática há que se basear na
revisão do conjunto. Uma reforma válida do ensino do Direito só pode ser
feita a partir de uma revisão global, sociológica e filosófica do que é Direito.
Todo o resto é complemento, opção metodológica, apuro formal.
E o Direito em globo só pode ser apreendido, na sua dinâmica social,
através da dialética. Apenas uma visão sociológico-dialética, que enfatiza o
devir e a totalidade, será capaz de apreender a síntese jurídica – a
positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais,
expressão da justiça social atualizada.
Desta forma ela se caracteriza como uma proposta, concomitantemente
política e epistemológica. (RODRIGUES in CERQUEIRA [et al], 2007,
p.165).
3.4. ENGAJAMENTO POLÍTICO
Haja vista que o engajamento político fora conclamado por Lyra Filho para a
consecução do direito emancipatório e por conseguinte da justiça social, faz se
51
mister tecer algumas considerações - tendo por base, Leo Wolfgang Maar concernentes ao que seja política:
A política está intrinsecamente atrelada ao cotidiano dos homens, e em
permanentemente processo de mudança, revelando a importância da atividade
política como fator de transformação da sociedade.
MAAR (1994) discute as relações entre Estado e governo, as formas para se
manter no controle do Estado, as relações entre política e as classes sociais.
Utilizando-se de exemplos, explica como o Estado se relaciona com a sociedade,
apresentando a coerção e a hegemonia como meios da política para legitimar sua
autoridade, inserindo conceitos como „sociedade política‟ e „sociedade civil‟. Define
a coerção como atributo fundamental do poder, necessário para que se mantenha a
relação entre dominante e dominados. Apresenta à ótica de Weber as três formas
de legitimidade do poder coercitivo: a eficácia, a tradição e o carisma e contrapõem
a visão de Gramsci que acredita que o Estado é uma manifestação consensual
apoiada na coerção.
MAAR (1994) ainda discute a importância da organização e mobilização
pelos agentes políticos como sendo fator responsável para a aquisição de
significado político, quando os movimentos sociais são capazes de dirigir
coletivamente os interesses sociais específicos como objetivos políticos amplos.
Dessa forma ressalta a relevância da atividade política partidária e de instituições da
sociedade civil; Estabelece um paralelo entre os elementos básicos das instituições
da sociedade civil „organização e mobilização‟ e os elementos da atividade política
do Estado „ coerção e hegemonia‟.
Em face do relevante papel da política nos movimentos sociais, os quais se
ocupam de questões cotidianas e da necessidade de transformação diante de uma
política desmoralizada onde a participação nas decisões políticas se restringe ao
voto para a escolha de representantes que se tornam autônomos após esse efêmero
momento, a democracia se faz presente nesses movimentos de base, para
apresentar uma estrutura de participação e representação que se torna fonte do seu
poder político.
As relações entre atividade política e manifestações culturais inserem um
conceito bivalente da cultura, podendo ser fator de interferência e o próprio „fim‟ da
política. A interferência política pode ser imposta pelo Estado no espaço cultural ou
pode ser as manifestações diretas da cultura no plano político. A cultura possui duas
52
funções políticas: o papel da legitimação para as propostas políticas e também a
função de meio organizador, pois a organização política é feita através da
organização cultural que mobiliza e organiza a participação da opinião pública. Por
fim MAAR (1994) retoma o papel da política apresentando sua missão civilizadora
em que consiste mudar a „visão de mundo‟, transformando as condições materiais
da sociedade, pois a ação do nível das idéias no plano cultura, exige uma atuação
de transformação do mundo.
Em remate resta para necessária reflexão o poema „ Ode à Emancipação‟:
Ode à Emancipação
Xênia Machado
Desatemos os nós de nossas gravatas
Despojemo-nos dos blazers de nossos tailleurs
É preciso pensar em conjunto
Na alteridade buscar o seu ser
Judeus e palestinos
Diáspora não deveria haver
Raça ariana: Adolf esquecer
Ao apartheid e a tortura
Jamais retroceder
Propriedade e função social
Moderado consumismo
Respeito ambiental
Liberdade e proteção
Dignidade em dimensão
Escravidão exploração
No Pará nunca mais não
Não só aos aliens
Asilo na Pátria conceder
Mas também aos que daqui nascer
Com educação e respeito
À ética proceder
Remanescentes indígenas
A tradição manter
Não há glória nem sucesso
Ao ver a fome enlouquecer
Avança sobre inquebrantável orgulho
Deixa o ser desfalecer
Aos engomados defere-se respeito
Atenção que não há de quê
53
Ao pobre escorraçado
Mais um chute a desperceber
Invisíveis numa tela de HD
Façamos a nossa parte
Para prescindir jurisdição
Seja interna ou não
Urge conscientização
Humanizar o ser humano
Não somos robôs não
Para um direito emancipatório
Lyra Filho deixou a direção
54
ANEXO
Universidade Católica de Brasília
Palestrante: Dr. José Geraldo de Souza Jr. (11/05/2005)
Aluna: Xênia Machado de Oliveira
Relatório – VIII Semana Jurídica UCB – Direito, Razão e Solidariedade.
Tema:
Ensino Jurídico: Conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção
Segundo o palestrante, o processo do conhecimento, ou seja, o „conhecer‟,
deve ensejar condições de compartilhar. Um dos defeitos da pedagogia que ele
aponta é o ensino errado de Direito, pois não se ensina bem o que se apreende mal.
Destarte, urge ter os olhares vigilantes para um Direito justo em contraposição às
formalidades.
Surge então novos modos de poder que vão de encontro com a dogmática
jurídica para determinar as regras do direito, por exemplo, a corrente do „Direito
achado na rua‟, projeto que surgiu na UnB e que o palestrante é coordenador. Essa
nova corrente do direito procura gerar uma perspectiva teórica para explicar as
condições sociais e suas conseqüências.
Acerca da razão, Dr. José Geraldo de Souza Jr. alerta que a razão não é
fundamento do homem, e sim expressão de sua existência. A razão da ciência é
utilitarista e colonizadora, ou seja, subordina. Então cabe a reflexão: Seria o Direito
dimensão constitutiva da vida ou Ciência? E o questionamento de Kant: “O Direito é
sanção ou liberdade?”.
A crise do Direito se assenta na „praga do positivismo que assola as
faculdades de direito‟. A razão científica isolou-se em um formalismo, daí a distinção
entre Direito e Moral, sendo a Moral uma direção autônoma, subjetiva. Deveras
lembrar que na Antiguidade não se fazia a distinção entre Direito e Moral, época em
que havia práticas contra a centralização do poder. No sistema patriarcal, tinha-se a
família como única instituição capaz de gerar Direito. Devido à pregação de Moisés
55
para a acumulação de excedente, passa-se então a alienação da liberdade,
conferida ao Estado – artificial. Há uma realidade espontânea, natural, e uma
realidade artificial.
Enfim, o palestrante conclui que o Direito é derivado da razão utilitarista, que
distingue o direito como lei e o direito como moral. E que o fenômeno jurídico passou
a ser a norma, bem como o objeto da Ciência do Direito passou a ser a norma. Dr.
José Geraldo de Souza Jr. cita Savigny, que segundo o qual o Direito era o Espírito
do povo, e não a lei, definindo-se assim em uma prática consuetudinária. Entretanto
ele não incita a negar o paradigma do positivismo. O positivismo não é elemento de
obscurecimento, ele o é quando se torna uma redução. O que o palestrante enfatiza
é que não pode haver a perda de subjetividade e solidariedade do pensador, do
operador do Direito.
56
CONCLUSÃO
Do presente trabalho de conclusão de curso depreende-se a importância de
um pensamento crítico no Direito e a urgência de produções acadêmicas nesse
sentido para que sustentem e impulsionem a práxis libertadora.
Não obstante passadas duas décadas do desenvolvimento da teoria lyriana e
de seu falecimento, observa-se que as pesquisas em torno de seu pensamento
continuam a se desenvolver, a exemplo disso tem-se a dissertação de mestrado do
professor Sergio Roberto Lema - „Para uma Teoria Dialética do Direito - Um estudo
da Obra do Professor Roberto Lyra Filho‟ - pela Universidade Federal de Santa
Catarina defendida em 1995 e que originou o livro acerca da filosofia lyriana a ser
publicado em breve; Há também a dissertação de mestrado da Rosamaria Giatti
Carneiro, pela Universidade de Brasília em 2005 assim intitulada: „Em busca do Sol:
o direito, o conflito e o teatro do oprimido‟ que embora não específica sobre Roberto
Lyra Filho, apresenta a filosofia lyriana como norte para o direito emancipatório; E
mais recente tem-se a dissertação de mestrado de Antônio Lopes: „Teoria Crítica em
Roberto Lyra Filho: Uma aproximação dialética e pluralista‟ pela Universidade
Federal de Santa Catarina defendida no ano de 2008, além das produções de seu
discípulo José Geraldo de Souza Jr.
Assim, com pressupostos da investigação científica que exigem a destituição
de conceitos preconcebidos e calcada nas fontes de primeira mão - obras de
Roberto Lyra Filho -, bem como nas de segunda mão - obras acerca de seu
pensamento -, é que foi possível expor toda a sua erudição, lucidez e engajamento
político e pragmático, o que desvaneceu toda uma alcunha de idealista que alguns
dogmáticos poderiam taxá-lo.
Expostos então a crise de paradigma do Direito referentes aos modelos
iurisnaturalista e positivista, que não mais respondem aos conclames da sociedade,
e descortinadas as ideologias jurídicas alienantes, é que veio à tona o direito
emancipatório como decorrente da teoria dialética social lyriana.
Em remate, foi possível identificar alguns meios de se concretizar a práxis
libertadora, seja na proposta de Rosamaria Giatti Carneiro, de aplicação do teatro do
oprimido de Augusto Boal como veículo para a autonomia e conscientização, seja na
57
proposta de Lyra Filho mesmo no que tange à mudança de paradigma no âmbito do
ensino jurídico.
Insta destacar que as propostas aqui servem apenas como exemplo e
estímulo para várias outras práticas a serem produzidas, haja vista que o próprio
direito, segundo Lyra Filho, está em constante devir, e ainda, atinente às práticas,
como bem lembra Lyra Filho, não precisam necessariamente de dimensões
revolucionárias, podem se dar timidamente, desde que cumpra sua função na busca
da emancipação e libertação.
58
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
AMARAL, Luiz Otávio de O. Paidéia. In: Âmbito Jurídico. Ago. 2001. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0006.htm> Acesso em 09 Ago. 2005.
______. Refletindo sobre o ensino e a formação do advogado. In: Âmbito
Jurídico. Ago. 2001. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0005.htm>. Acesso em 09 Ago. 2005.
BARROSO, Luís Roberto. Direito e Paixão. Disponível em:
<http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=168> Acesso em
15 Abr. 2006.
CARNEIRO, Rosamaria Giatti. Em busca do Sol: o direito, o conflito e o teatro do
oprimido. Brasília, 2005. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de
Brasília, Faculdade de Direito, Brasília 2005.
CERQUEIRA, Daniel Torres de; CARLINI, Angélica; ALMEIDA FILHO, José Carlos
de Araújo (Org). 180 anos de ensino jurídico no Brasil. Campinas, SP: Millennium
Editora, 2007.
CHAUÍ. Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2005.
COSTA, Alexandre Araújo. Humanismo dialético: a filosofia de Roberto Lyra Filho.
Brasília:Thesaurus, 2008. E-book disponível em:
< http://www.arcos.org.br/artigos/humanismo-dialetico-a-filosofia-juridica-de-robertolyra-filho> Acesso em 11 Ago. 2009.
ECO, Umberto. Como se faz uma tese; tradução de Gilson César Cardoso de
Souza. 20 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
FARIA, José Eduardo. Crise do direito numa sociedade em mudança. Brasília:
UnB, 1988.(Coleção Roberto Lyra Filho: pensamento crítico no direito).
59
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Tradução de Moacir Gadotti e Lílian Lopes
Martin. 30 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico. Porto Alegre:
Fabris, 2005.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do direito e do Estado. São Paulo, Martins fontes,
2000.
KRELL, Andréas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha:
Os (des)caminhos de um direito constitucional „comparado‟. Porto Alegre, Sergio
Antonio Fabris Editor, 2002.
LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao humanismo
dialético na filosofia da práxis jurídica (não publicado).
LOPES, Antônio. Teoria Crítica em Roberto Lyra Filho: Uma aproximação dialética
e pluralista. Dissertação de Mestrado na UFSC, 2008. Banco de Teses. Disponível
em:<http://www.tede.ufsc.br/tedesimplificado//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=51
4>
LYRA, Doreodó Araujo; CHAUÍ, Marilena de Sousa (Org.). Desordem e processo:
Estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho na ocasião do seu 60º
aniversário com um posfácio explicativo do homenageado. Porto Alegre: Fabris,
1986.
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
______. Karl, meu amigo: Diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Fabris,
1983.
______. Normas jurídicas e outras normas sociais. In :SOUSA JÚNIOR, José
Geraldo de. Introdução Crítica ao Direito, 4 ed. Brasília, UnB, 1993.
______. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Fabris, 1980.
60
______. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília:Obreira, 1981.
______. Razões de Defesa do Direito. Brasília: Obreira, 1981.
______.Pesquisa em que Direito? Brasília: Edições Nair, 1984.
MAAR, Wolfgang Leo. O que é política? São Paulo: Brasiliense, 1994.
MEDEIROS, João Bosco. Redação Científica: a prática de fichamentos, resumos,
resenhas. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
OLIVEIRA, Xênia Machado de. A Deturpação do Conceito Pobreza. In: Como
vencer a Pobreza e a Desigualdade. RJ: UNESCO / FOLHA DIRIGIDA, 2007.
Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf>
Acesso em 06 Set. 2009.
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. (Org). Introdução Crítica ao Direito. 4.ed.
Brasília: UnB, 1993.
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2002.
Download

Xênia Machado De Oliveira - Universidade Católica de Brasília