PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Direito DIREITO EMANCIPATÓRIO EM ROBERTO LYRA FILHO: UMA REVISÃO EM BUSCA DE SUA EFETIVIDADE Autora: XÊNIA MACHADO DE OLIVEIRA Orientador: Dr. ARNALDO SAMPAIO GODOY XÊNIA MACHADO DE OLIVEIRA DIREITO EMANCIPATÓRIO EM ROBERTO LYRA FILHO: UMA REVISÃO EM BUSCA DE SUA EFETIVIDADE Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Dr. Arnaldo Sampaio Godoy Brasília 2009 Monografia de autoria de Xênia Machado de Oliveira, intitulada “DIREITO EMANCIPATÓRIO EM ROBERTO LYRA FILHO: UMA REVISÃO EM BUSCA DE SUA EFETIVIDADE” apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em ______, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: ________________________ Prof. Dr. Arnaldo Sampaio Godoy Orientador Direito – UCB ________________________ Prof. ( ) Direito – UCB ________________________ Prof. ( ) Direito – UCB Brasília 2009 À minha mãe Idê de Oliveira, pela aposta na construção auspiciosa do meu ser. AGRADECIMENTO Esta monografia é fruto de reflexões provocadas por alguns mestres durante todo o transcorrer da graduação. Portanto, é imperioso lembrar e agradecer as intervenções dos seguintes: Professor Dr. José de Lima Soares, que além de sua propriedade intelectual na exposição de temas de Ciência Política, ainda foi fonte viva para sorver a experiência da ditadura militar; Professor Msc. Nilton Rodrigues da Paixão Júnior, que em suas incursões filosóficas sempre enfatizava a postura crítica e desejava aos formandos não uma carreira promissora, mas sim uma „úlcera no estômago‟ para que expurgássemos o conformismo e fôssemos agentes de trasnformação social; Professora Msc. Simone Pires Ferreira de Ferreira Batana, por sua serenidade em desvanecer em sala de aula a postura sadista dos alunos; Reitor Msc. Pe. José Romualdo Degasperi, que me recebeu em seu gabinete com abraço fraterno e discursou suavemente acerca da importância de se atentar a temas sociais; Professor Sérgio Roberto Lema, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, que em confiança acadêmica e cordialidade ímpar me enviou seu livro ainda não publicado sobre a filosofia de Roberto Lyra Filho, revelando presteza no incentivo à pesquisa para a militância crítica; E finalmente meu orientador Professor Dr. Arnaldo Sampaio Godoy, que por seu currículo dispensa apresentação, no entanto é preciso render-lhe o devido enaltecimento e admiração que lhe cabe por toda sua intelectualidade que o eleva, e estando elevado se submerge às intempéries mundanas com sua sensibilidade e percepção que só os críticos e prodígios teriam. A vossa ideologia Deixa o povo alienado Convicto que não há nada Além das leis do Estado E que a união dos pobres É um plano endiabrado. Antônio Queiroz da França Cordelista RESUMO OLIVEIRA, Xênia Machado de. Direito Emancipatório em Roberto Lyra Filho: Uma revisão em busca de sua efetividade. Defesa em 2009. 60pg. Monografia no curso de Direito. – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009. Esta monografia, em face à patente crise paradigmática perpassada pelo Direito hodierno, partindo-se de uma análise panorâmica da teoria crítica para chegar ao delineamento dos fundamentos do pensamento crítico no Direito e seu surgimento e culminar na análise específica do pensamento de Roberto Lyra Filho e de sua posição perante o positivismo no direito e o iurisnaturalismo, oportunidade em que se descortinará as incongruências do Direito brasileiro positivista, que por vezes pretere a realização da justiça em nome de um dogmatismo, o qual tem se insculpido, desde a Academia, no arquétipo dos bacharéis em Direito. Então, procura-se depreender sua viabilidade atual na obtenção de seu objetivo precípuo, qual seja explicar a conjuntura de dominação ideológica bem como proporcionar a emancipação e a libertação. Em sequencia, busca-se em pesquisas recentes os meios e a práxis para a efetividade de seu direito emancipatório com ênfase na autonomia, no ensino jurídico e no direito em perene devir com vistas à justiça social. Palavras-chave: Crise paradimática. Pensamento crítico no Direito. Roberto Lyra Filho. Direito Emancipatório. Justiça social. ABSTRACT This monograph, due to the patent paradigm crisis derives from the present-day law, starting from an analysis overview of critical theory to get the outlines of the fundamentals of critical thinking in the law and its appearance, to lead to the specific analysis of the thought of Roberto Lyra Filho and his position about positivism in the law and iurisnaturalism, at wich are affected by the inconsistences in the Brazilian law positivist, sometimes deprecates the achievement of justice in the name of a dogma, which has to inscribe, from the Academy, the archetype of graduates in law. Then revive the viability of the current dialectical theory in achieving its main objective, namely to explain the background of ideological domination, as well as providing the emancipation and liberation. In sequence, research on recent research and practice means for the effectiveness of law emancipating Lyriana, with an emphasis on autonomy in legal education and law in perpetual becoming, with a view to social justice. Keywords: Paradigm crises. Critical thinking in the law. Roberto Lyra Filho. Law emancipating. Social justice. A aprovação da presente monografia não significará o endosso do professor orientador, da banca examinadora e da UCB à ideologia que a fundamenta ou que nela é exposta. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1. O PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO ............................................................ 12 1.1. PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS À INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA CONTEMPORÂNEA ................................................................................................. 12 1.2. A CRISE DO PARADIGMA ................................................................................ 14 1.2.1. A ORDEM JURÍDICA KELSENIANA ............................................................... 15 1.3. TEORIA CRÍTICA: ORIGENS E DELINEAMENTO ............................................ 17 1.4. TEORIAS CRÍTICAS NO DIREITO .................................................................... 18 1.5. A URGÊNCIA DO PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO ............................... 19 2. A TEORIA DIALÉTICA LYRIANA ........................................................................ 22 2.1. RELATO BIOGRÁFICO ..................................................................................... 22 2.2. DIREITO E SUA DIALÉTICA SOCIAL................................................................ 23 2.2.1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO ............ 31 2.3. KARL, MEU AMIGO: DIÁLOGO COM MARX SOBRE O DIREITO ................... 32 2.4. PARA UM DIREITO SEM DOGMAS .................................................................. 34 3. DIREITO EMANCIPATÓRIO E EFETIVIDADE .................................................... 38 3.1. AUTONOMIA...................................................................................................... 38 3.2. PRÁXIS .............................................................................................................. 42 3.2.1. ROSAMARIA GIATTI CARNEIRO E O TEATRO DO OPRIMIDO .................. 42 3.3. ENSINO JURÍDICO ............................................................................................ 44 3.4. ENGAJAMENTO POLÍTICO .............................................................................. 50 ANEXO ..................................................................................................................... 54 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 56 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.............................................................................. 58 10 INTRODUÇÃO O presente trabalho monográfico floresceu da contumácia após lutas em face de desencorajamentos, alternadas com incentivos soerguidores. Sabe-se que a temática acerca do pensamento crítico e propostas alternativas não é de fácil abordagem, tanto não o é que, rendeu a Roberto Lyra Filho – cuja teoria é fonte principal da presente pesquisa – o epíteto de „marginal‟ dentre os pensadores de sua época. Em virtude de tal postura, é que se inaugura a presente pesquisa com advertência acerca dos pressupostos conceituais à investigação científica contemporânea, como a dissociação de preconceito e a relevância de uma curiosidade crítica. Em seguida, justifica-se a abordagem temática em face à insofismável crise que o direito moderno perpassa, decorrente de falta de legitimação, de sua postura ideológica e opressora e de ambiguidades entre direito natural e direito positivo. Para tanto, é exposto de forma panorâmica a teoria da ordem jurídica em Kelsen. Tal crise paradigmática fora que incitou a investigação da teoria dialética social lyriana, que representa o objeto desta pesquisa, assim como sua revisão para sua efetividade. Outrossim, em ordem de situal historicamente tal pensamento lyriano, buscou-se demonstrar como surgiu o pensamento crítico, consubstanciado na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, para então originar as diversas teorias críticas no Direito, com seus diversos enfoques, dentre elas o pensamento crítico dialético social de Roberto Lyra Filho. Em sequência, demonstrar-se-á as incongruências deflagradas no Direito brasileiro positivista, que por vezes pretere a realização da justiça em nome de um dogmatismo, para se reportar à urgência de um pensamento e postura crítica no Direito. O breve relato biográfico de Roberto Lyra Filho antecede a exposição de sua teoria dialética e de suas considerações acerca da relação de Marx com o Direito. Assim, após ter-se alcançado o âmago de seu pensamento, qual seja a tendência de explicar a conjuntura de dominação ideológica, bem como de proporcionar a emancipação e a libertação, teceu-se considerações acerca da teoria lyriana, ao cotejar com outros teóricos as análises de ocorrências sociais. 11 Por fim, pretendeu-se traçar o caminho já buscado por pesquisadores contemporâneos progressistas em busca da efetividade do direito emancipatório lyriano, em busca da libertação e da autonomia do sujeito e da sociedade. Deste modo, apresentou-se no que tange à práxis, alternativas propostas por Rosamaria Giatti Carneiro, que vê no teatro do oprimido meio de se construir a autonomia. Foram expostas também as alternativas no que tange ao ensino jurídico, oportunidade em que se considerou a distinta crítica de Roberto Lyra Filho ao ensino jurídico – como reprodutor do dogmatismo, o qual tem se insculpido desde a Academia no arquétipo dos bacharéis em Direito -, para conceber-se então o ensino jurídico como possível vetor para a práxis do direito emancipatório. 12 1. O PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO 1.1. PRESSUPOSTOS CONTEMPORÂNEA CONCEITUAIS À INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA Ao adentrar à temática de se investigar a viabilidade de uma teoria científica do Direito, bem como da possibilidade de sua ruptura pela insurgência de uma nova teoria de natureza crítica, é preciso antes que se estabeleça alguns conceitos básicos imprescindíveis à construção científica. Portanto, busca-se por ora definir e diferenciar senso comum e ciência, bem como delinear algumas abordagens científicas como o racionalismo, empirismo e construtivismo, bem como seus respectivos métodos, para que haja assim uma fluida compreensão de fenômenos como a ruptura epistemológica e revolução científica, no intuito de realçar a relevância da curiosidade inerente ao investigador, associada ao rigor metodológico e à dissociação de pré-conceitos que a construção da ciência impõe. Em ordem para se construir um conhecimento científico, é necessário despirse de conceitos pré-estabelecidos, sem qualquer critério. Tais pré-conceitos referem-se de forma difusa, ao senso comum, transmitidos pela tradição, não submetidos à verificação, bem como não questionados, o que por vezes os tornam retrógrados dogmas. Concernente ao senso comum, Chauí sintetiza: [...] por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos. (CHAUÍ, 2005, p. 218). Nesse contexto, a Alegoria da Caverna ilustrada por Platão, consiste em exemplo clássico do senso comum arraigado e tido como verdade absoluta sendo superado pela investigação filosófica, descoberta de novas possibilidades e expansão do conhecimento. 13 A ciência reveste-se de características específicas que lhe conferem validação universal, ainda que momentânea, até que uma teoria seja refutada ou superada. Tal credibilidade que goza a ciência se deve ao seu rigor metodológico, investigações sistemáticas, construções argumentativas baseadas no raciocínio lógico, a verificação da síntese da problematização ou o estabelecimento de coordenações coerentes das teorias científicas. Atinente ao método científico, a Corrente Racionalista, principiada por Descartes, utiliza-se do critério metodológico hipotético-dedutivo, ou seja, a inferência de resultados e propriedade por meio de dados e resultados já obtidos com o objeto definido. Já a Corrente Empirista se vale do método hipotético-indutivo, referente ao estabelecimento de conjecturas anteriores à experimentação do objeto. Por fim, a Corrente Construtivista, que segundo Chauí (2005) é o viés metodológico mais contemporâneo que é calcado na combinação dos métodos do Racionalismo e do Empirismo para então acrescer o critério de correção, ou seja, segundo Chauí (2005, p. 221): “ os modelos obtidos pelo Construtivismo podem alterar os modelos construídos bem como alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a”. Embora a imaginária linha temporal possa pender ao entendimento de que as descobertas científicas evoluem, deve-se salientar que com uma análise acurada de tais atividades científicas, o que deveras se percebe é a coexistência de conhecimentos científicos dissociados de parâmetros de superioridade/inferioridade, assim como previu Bachelard, com sua noção de Ruptura Epistemológica, ou seja, a descontinuidade no conhecimento científico. (BACHELARD apud CHAUÍ, 2005, p. 223). Deste modo, os cientistas são compelidos naturalmente a elaborar novas teorias, novos métodos e tecnologias, criando-se assim uma nova concepção científica. Nesse diapasão, encontra-se em Kuhn o precursor da idéia de Revolução Científica, a qual está assente nas rupturas radicais e na criação de novas teorias. (KUHN apud CHAUÍ, 2005, p. 224). No que tange à verificação de uma teoria científica, foi segundo Chauí (2005), Popper que introduz a idéia de refutação, ou seja, à teoria será conferida uma verdade provisória até que seja refutada, contestada. 14 Pelo exposto, imperativo se faz o desenvolvimento intrínseco da curiosidade investigativa amalgamado com a absorção da filosofia, ou seja, o amor à sabedoria, culminando-se assim a uma compreensão maior, confluindo-se à intervenção da natureza ou do corpo social. 1.2. A CRISE DO PARADIGMA A existência da crise1 nos fundamentos que respondem aos modelos estabelecidos na hodierna sociedade, quer sejam modelo culturais ou normativos é inconteste, pois as verdades que informavam esses modelos – verdades teológicas, metafísicas e racionais, não mais atendem às intempéries perpassadas pela sociedade contemporânea, marcada pela expansão do capitalismo exacerbado, exclusão social, concentração de renda e presença de um mitificado discurso ideológico do poder com papel opressor. As incongruências atinentes ao direito moderno, consoante ao professor Godoy2, decorreram do capitalismo e de um projeto iluminista já insubsistente para o tempo corrente. Eis o que diz o orientador da presente pesquisa: O direito moderno fez-se com o desenvolvimento do capitalismo, ao qual empresta uma hegemonia condicionante de estamentos projetados para a defesa da propriedade, dos privilégios da burguesia, motivos que subjazem ao projeto iluminista. O direito moderno radica em termos de aceitação de representabilidade popular imaginada (SIEYÉS apud GODOY, 2005, p. 118). Fez-se em torno de ambiguidade conceitual entre direito natural e direito positivo (BOBBIO apud GODOY, 2005, p.118). [...] desdobrou-se em torno de eixo de codificação, calcado na idéia de legislador onipresente (ANDRADE apud GODOY, 2005, p.118). O direito moderno organiza a sociedade do modo de produção capitalista, que vive a dominação da burguesia dominante, e que mantém as contradições sociais recorrendo ao aparelho repressivo do Estado (MIAILLE, apud GODOY, 2005, p. 118). O direito moderno vive a crise da legitimidade, promovendo ceticismo moral que encoraja o desrespeito para com a ordem imposta (UNGER apud GODOY, 2005, p.118). A distinção e o 1 “CRISE - (in. Crisis; fr. Crise; al. Krisis; it. Crisis). Termo de origem médica que, na medicina hipocrática, indicava a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso em sentido favorável ou não (HIPÓCRATES, Prognosticon, 6, 23-4; Epidemias, I, 8, 22). Em época recente, esse termo foi estendido, passando a significar transformações decisivas em qualquer aspecto da vida social. (ABBAGNANO, 2007, p. 259, grifo do autor). 2 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Fabris, 2005. 15 distanciamento entre sociedade e direito são tratados de forma coercitiva (UNGER apud GODOY, 2005, p. 118). Tal crise, segundo Wolkmer (2002), faz insurgir inexoravelmente padrões alternativos de fundamentação, ou seja, uma mudança de paradigma. Atinente ao conceito de paradigma, diz: „PARADIGMA‟ é um modelo científico de verdade, aceito e predominantemente [sic] em determinado momento histórico. Trata-se de „práticas científicas compartilhadas‟ que resultem de avanços descontinuados, saltos qualitativos e rupturas epistemológicas. (KUNH apud WOLKMER, 2002, p. 2, grifo do autor). Então, uma vez que vislumbra-se o esgotamento do atual paradigma da ciência jurídica tradicional, estruturada pelos modelos do jusnaturalismo e do positivismo, emergem questionamentos acerca da mantença desses discursos tradicionais, os quais tem servido, segundo Wolkmer (2002), a reprimir, alienar e coisificar o homem. Logo, a mudança de paradigma, ou seja, a edificação de um novo modelo crítico leva a se considerar a existência de um outro fundamento, que não seja puramente metafísico ou estritamente racional, mas um fundamento ético político, que proporcione a libertação do sujeito histórico e da sociedade como um todo. 1.2.1. A ORDEM JURÍDICA KELSENIANA Para Kelsen (2000), a ordem jurídica pode ser definida como um sistema de normas válidas. A validade dessas normas remete à um norma pressuposta, de caráter geral, chamada de „norma fundamental‟. Há dois tipos de sistemas de normas, o estático e o dinâmico. O primeiro sistema é formado de normas particulares dedutíveis da norma fundamental e que também são obteníveis por meio de operação intelectual. Em contraposição o 16 sistema dinâmico possui normas que não podem ser obtidas por operações intelectuais e a norma fundamental deste sistema apenas estabelece certa autoridade, suas normas são criadas por indivíduos – autoridades -, que receberam o poder, a autorização para criar o Direito, criar normas. A ordem jurídica é um sistema de normas dinâmico, onde as normas jurídicas podem ter qualquer sorte de conteúdo. O caráter dinâmico desse sistema é definido por seu processo criador de normas. As normas podem ser criadas através de costume, estabelecendo o Direito consuetudinário, e também podem ser criadas por legislação, etc, formando assim o Direito Estatutário. A formulação da pressuposição de validade da primeira constituição é em âmbito nacional a norma fundamental da ordem jurídica. Esta por sua vez é uma norma válida e sua função é autorizar o primeiro legislador a criar Direito. Essa norma fundamental é válida por ser pressuposta com tal. A validade de uma norma pode ser limitada e seu termos são determinados pela ordem a qual pertencem. As normas podem perder sua validade de quatro maneiras, a saber: a) Da forma que a ordem jurídica estabelecer; b) Em caso de revolução, onde haja substituição da ordem jurídica; c) Quando a ordem jurídica permanecer ineficaz; d) Quando a própria norma se demorar na ineficácia, momento em que será destituída de sua validade por “dessuetude”,que é um efeito jurídico de costume. O princípio geral de eficácia reza que uma ordem jurídica deve ser eficaz para ser válida. Este princípio é uma norma positiva do Direito internacional e norma fundamental de uma ordem jurídica nacional. Finalmente ficou claro a percepção do âmbito do sistema de normas que é a ordem jurídica, de caráter dinâmico, onde o Direito é criado por forma específica prescrita pela constituição, podendo as normas ter qualquer conteúdo. Entretanto faz se mister destacar que a norma jurídica é somente aquela que pretende regular a conduta humana de forma coercitiva. 17 1.3. TEORIA CRÍTICA: ORIGENS E DELINEAMENTO O pensamento crítico contemporâneo repousa seu nascedouro na Escola de Frankfurt3, a qual tinha como principais representantes os insignes filósofos a saber, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Hebert Marcuse e Jürgen Habermas. Embora influenciada pelo criticismo kantiano, pela dialética idealista hegeliana e pelo subjetivismo psicanalítico freudiano, salienta-se que fora o materialismo histórico marxista que norteou de forma incisiva e fundamentou a teoria crítica. Tal Escola pontuou a relevância da insurgência crítica de cunho construtivista da luta pela transformação social (WOLKMER, 2002, p.5-8). Atinente ao balizamento da Teoria Crítica, mister se faz pontuar algumas considerações acerca do que se concebe como „crítica‟. Primeiro destaca-se que este vocábulo guarda diversos significados, como de forma cautelosa explicita Wolkmer (2002), que para Kant, a crítica se referia à operação analítica do pensamento, para Marx, discurso revelador e desmistificador das ideologias ocultadas, para Paulo Freire, tratava-se de conhecimento não dogmático, para Habermas, processo histórico utópico, radical e desmistificador, para Popper compreendia em falsificação de uma hipótese dada por meio de dados empíricos ou descoberta de erros lógicos na dedução e já para Adorno, a crítica era a aceitação da contradição e o trabalho da negatividade, presente segundo ele, em qualquer processo de conhecimento. Após ter pontuado tal consideração acerca do vocábulo „crítica‟, Wolkmer assim conceitua Teoria Crítica: Pode-se conceituar teoria crítica como o instrumento mental pedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes e mitificados uma tomada de consciência, desencadeando processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora, ( WOLKMER, 2002, p. 5). 3 Escola de Frankfurt – criada em 1023, fechada pelo Nazismo e migrada para os EUA em 1933 até seu retorno a Alemanha em 1950. (WOLKMER, 2002). 18 Assim, tal corrente teórica busca transpor o engessamento das Teorias Tradicionais. Concernentes à compreensão do que seja Teoria Tradicional, também não há uniformidade entre os autores, vez que para Habermas, a Teoria Tradicional diz respeito às formulações metafísicas, de cunho abstrato e contemplativo, já para Horkheimer, trata-se de modelo de racionalização cartesiana, sendo o objeto a natureza, o mundo externo, Para Adorno, a Teoria Tradicional se refere à produção de cientificismo positivista. Não obstante a ausência de uniformidade na concepção da Teoria Tradicional é certo que os objetivos da Teoria Crítica segundo Wolkmer (2002), estão bem delimitados, quais sejam, a definição de um projeto que viabilize a mudança da sociedade bem como a emancipação do homem de sua condição de alienado, sua reconciliação com a natureza e como o processo histórico moldado pelo próprio homem. Em ordem para alcançar tais objetivos, sabiamente Stein aponta que para resolver a problemática do conhecimento posto, é deveras relevante partir de uma abordagem da produção humana, tais como: discurso, cultura e história. (STEIN apud WOLKMER, 2002, p.10). 1.4. TEORIAS CRÍTICAS NO DIREITO O movimento da crítica no âmbito do Direito - que consiste no questionamento do pensamento juspositivista - surgiu no final da década de 60 por influência de juristas europeus de idéias provindas do economicismo soviético, da releitura gramsciana da teoria marxista realizada pelo grupo de Althusser, pela teoria crítica frankfurtiana e pelas teses arqueológicas de Foucault sobre o poder. (WOLKMER, 2002, p.16). As investigações de tal movimento pautavam-se na desmistificação da legalidade dogmática tradicional e nas análises sóciopolíticas do fenômeno jurídico. A consolidação do movimento se de nos anos 70, na França, Itália, Espanha, Bélgica, Alemanha, Inglaterra e Portugal, para se estender então à América Latina 19 na década de 80, como na Argentina, México, Chile, Colômbia e no Brasil com os pioneiros Roberto Lyra Filho, Tércio Sampaio Ferraz Jr., Luis Fernando Coelho e Luis Alberto Warat. O movimento de crítica no direito propunha alcançar os seguintes objetivos: Revisar e romper com o discurso e o conhecimento jurídico tradicionais, investigar as bases epistemológicas para o conteúdo do novo paradigma no Direito e definir posturas e diretrizes não mais destinadas a manter a segurança, a eficiência e a dominação do poder normativo vigente, mas a executar a prática político-social de uma cultura jurídica inclinada a construir uma sociedade democrática, cujo pluralismo [...] projete a constante reinvenção da democracia e priorize, na dialética do processo, a socialização institucional da justiça. (WOLKMER, 2002, p. 20). Em face da controvérsia existente acerca da existência ou não de uma teoria crítica do direito, vez que alguns jusfilósofos como Michel Miaille e Ricardo Entelman a admitam, em contraposição a pensadores como Leonel Severo Rocha e Luis Alberto Warat que não aceitam a existência de tal teoria, o professor Wolkmer (2002) entende ser mais adequado a designação dessas manifestações teóricas de correntes, tendências e/ ou teorias críticas, as quais por sua vez possuem diversos enforques tais como a dialética, a semiologia, a psicanálise e a análise sistêmica. 1.5. A URGÊNCIA DO PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO As incongruências sociais suscitadas por uma relação de dominantes e dominados suscitaram que a corrente da teoria crítica do direito, surgida em meados do século XX, discutisse e questionasse o papel ideológico do Direito. Cerca de duas décadas após os apontamentos filosóficos de Roberto Lyra Filho, ainda se vislumbra o ultraje aos direitos humanos fundamentais tais como: a) as constatações de execuções sumárias ou arbitrárias nas favelas do Rio de 20 Janeiro, conforme relatório de 2008 do Relator Especial da ONU, Philip Alston; b) a propositura da ADPF 1864 que pretende seja declarada a inconstitucionalidade de ação afirmativa, qual seja cota para negros; c) A função ilusória das normas programáticas constitucionais. Acerca dessa função diz Marcelo Neves: Muitas normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, por não possuírem um mínimo de condições para sua efetivação, servem somente como ‘álibi’ para criar uma imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, desempenhando, assim, uma função preponderantemente ideológica em constituir uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político com outras alternativas. (MARCELO NEVES apud KRELL 2002, p.27, grifo nosso). Dentre outras questões decorrentes do discurso dogmático do direito como law, o qual pretere a busca da efetivação do direito como jus.5 O homem é um ser consciente, capaz de modificar a realidade externa 6, deste modo urge que se debata e se deixe acesa a chama da crítica à postura dogmática e às incongruências jurídico-político-sociais, para que se perscrute a maneira viável de se reverter o caos instalado numa linha de quebra de paradigmas como já preconizava Boaventura de Sousa Santos7: “Porque não se trata de tomar o poder tal como existe, mas antes de o transformar radicalmente tanto na forma como no conteúdo [...]”.(Grifo nosso). Portanto, pela ânsia de se vislumbrar o revés da reprodução do formalismo que engessa, mormente na formação acadêmica dos operadores do Direito normativo, é que se faz central e urgente a questão da formação filosófica e crítica na Academia com vistas a não somente aplicar e operar conjunto de normas, mas a libertar em nome de um jus, confluindo-se então a uma tangibilidade da justiça social 4 ADPF 186/2008 – Ação de Descumprimento Fundamental ajuizada pelo DEM – Partido Democratas perante o Supremo Tribunal Federal – ainda pendente de julgamento. 5 Diferenciação da acepção da nomenclatura „Direito‟ – em LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. 6 “O conhecimento humano não tem por objetivo apenas a interpretação do mundo, mas também a sua transformação” (MIAILLE, Michel. Apud. BARROSO, Luís Roberto. Direito e Paixão. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=168). 7 SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. A crise do paradigma. In: Introdução Crítica ao Direito. Org. José Geraldo de Souza Jr. 4.ed. – Brasília: UnB, 1993- p. 69) 21 inserta na práxis libertadora. Atinente ao posicionamento analítico em face do discurso jurídico oficial diz Agostinho R. Marques Neto8: Entre a Ciência e a Filosofia do Direito opera-se um relacionamento dialético em que a segunda toma como ponto de partida para as suas indagações justamente as últimas novidades estabelecidas pela primeira, questionando-as e criticando-as e, desse modo, contribuindo para dar-lhes vida, sentido e dinamismo. Nessa esteira é que Wolkmer (2002) conclama a cooperação científica entre os juristas críticos com vistas a articular as pesquisas teóricas e práticas para que o pensamento jurídico crítico cumpra efetivamente seu papel pedagógico de denúncia da „verdade‟ instituída bem como de instrumento teórico-prático para o alcance da socialização da justiça, e arremeta o referido professor: Resta aludir, por fim, à convicção por um projeto jurídico para as estruturas socioeconômicas latino-americanas que, mediante seu espaço normativo/transformador, possibilite a crítica dessacralizadora, edificadora da práxis política „ esclarecimento/emancipação‟. Ainda que se venham a admitir, no primeiro momento, determinados limites em seus pressupostos epistemológicos, não há que se minimizar e denegar no âmbito da filosofia jurídica contemporânea as possibilidades reais do „pensamento crítico‟ (representado por „críticos transformadores‟ e „antidogmáticos liberaldemocráticos‟), pensamento que não apenas revele a ineficiência do formalismo normativista comprometido com os mitos alienantes e as relações de poder dominante, mas que, sobretudo, materialize o espaço pedagógico de discussão e de construção da aplicabilidade de um Direito verdadeiramente justo. (WOLKMER, 2002, p.31). 8 NETO, Agostinho R. Marques apud SANT‟ANNA, Alayde. Por uma teoria jurídica da libertação: in Introdução Crítica ao Direito. Org. SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. 4.ed. Brasília: UnB, 1993- p. 28. 22 2. A TEORIA DIALÉTICA LYRIANA Lyra filho foi um homem que não conseguiu a indiferença – ou foi amado ou foi odiado. E a sua obra teve o mesmo destino – não há como ficar indiferente a ela. Horácio Wanderlei Rodrigues 2.1. RELATO BIOGRÁFICO 9 O pensador marco desta pesquisa, Roberto Lyra Filho, nasceu no Rio de Janeiro em 13 de outubro de 1926 e faleceu em 11 de junho de 1986. Concernente à influência de seu pai - também jurista - pontua o professor Sérgio Roberto Lema10: Seu pai foi o notável jurista de filiação socialista Roberto Lyra, conhecido na época pelos seus trabalhos na área do Direito Penal e da Criminologia. Talvez pela necessidade de auto-afirmação perante o legado paterno, o jovem Lyra Filho, no início da sua produção, manteve um distanciamento em relação à obra do pai, atitude esta que, numa fase posterior, foi revista e se traduziu no encontro maduro entre os dois pensadores. Vultoso e de notável erudição, poliglota de sete idiomas, possuía os seguintes títulos: título em proficiência em língua e literatura inglesa – Cambridge, títulos e experiência docente e de pesquisa em sociologia jurídica, tendo registro profissional como sociólogo, bacharelado em Direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, especialização em Criminologia pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro 9 Breve biografia embasada em: LYRA, Doreodó Araújo. Roberto Lyra Filho: Curriculum Vitae Resumido. In LYRA, Doreodó Araujo; CHAUÍ, Marilena de Sousa (Org.). Desordem e processo: Estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho na ocasião do seu 60º aniversário com um posfácio explicativo do homenageado. Porto Alegre: Fabris, 1986, p.11-3; LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004; LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao humanismo dialético na filosofia da práxis jurídica (não publicado). 10 LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao humanismo dialético na filosofia da práxis jurídica (não publicado). 23 e doutorado – aprovação com distinção com louvor - na área de concentração Filosofia do Direito e subárea em Criminologia e Direito Criminal, pela Universidade de Brasília. Também foi jornalista e escritor e desenvolveu atividades artísticas tais como obras de crítica literária, dramática e musical, experiências teatrais, poesia e traduções. Exerceu a advocacia, bem como a função de conselheiro penitenciário e dedicou-se à docência, tendo lecionado Direito Penal na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, Direito Processual Penal na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas e Filosofia Jurídica e Social, Sociologia Jurídica, Direito Comparado, Direito Criminal, Direito Processual e Criminologia na Universidade de Brasília. Atuou em instituições nacionais e estrangeiras como visitante, bem como foi professor visitante da Universidade do Chile. Insta registrar que foi examinador em bancas de concursos da magistratura federal, do DF, do Ministério Público, de diversas universidades do país. Foi membro da OAB, da Sociedade Brasileira de Filosofia, da Associação dos Sociólogos, presidente do Conselho Superior do Instituto de Criminologia, dentre outras atividades. 2.2. DIREITO E SUA DIALÉTICA SOCIAL Pretende o autor, imbuído de singular coragem científica, discutir as relações entre Direito e Justiça, para tanto, soergue a missão de descortinamento do véu das ideologias jurídicas. De início, é feita abordagem acerca da acepção do termo Direito. Assim, o autor ao constatar uma identificação entre Direito e Lei, já amalgamada no senso comum, ressalta que tal identificação pertence ao repertório ideológico do Estado, vez que a Lei emana do Estado. Então aponta o autor que, ao contrário, a lei abrange não só o Direito, mas também o Antidireito - correspondente à negação do Direito. 24 Diante de uma generalizada entronização conceitual de Direito como conjunto de normas estatais, urge então a necessidade de uma visão dialética 11, no sentido de expandir tal concepção ao absorver aspectos do processo histórico 12, haja vista que o Direito não pode restar adstrito à seara legislativa, de outro modo deve indicar os princípios e normas libertadores. (LYRA FILHO, 2004, p.10). Logo, sugere para o alcance de tal empreitada uma ontologia dialética, por meio da qual a essência do Direito será perscrutada como um fenômeno, dinâmico portanto. (LYRA FILHO, 2004, p.12). Assim, intenta desmontar a identificação entre Direito e Lei, destacando que esta última se refere a um simples acidente no processo jurídico, e que pode servir às melhores conquistas ou não, dependendo do regime, se autoritário ou democrático, adotado no Estado. Há o grito libertário científico que a ciência não pode fundar-se em dogmas que divinizam as normas do Estado. O Professor Roberto Lyra Filho aborda a questão das ideologias jurídicas, realçando os significados do termo ideologia, o qual a princípio referia-se ao estudo das idéias, sendo que após, passou a significar o próprio conjunto de idéias. Ocorre 11 DIALÉTICA (gr. διαλεκτική τέχνη; lat. Dialectica; in. Dialectic; fr. Dialectique; al. Dialektik; it. Dialettica). Esse termo, que deriva de diálogo, não foi empregado, na história da filosofia, com significado unívoco [...] pode-se dizer, por exemplo, que a D. é o processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito; (...) 4.º D. como síntese dos opostos. O quarto conceito de D. é formulado pelo idealismo romântico, em particular por Hegel; (...) A D. consiste: 1.º na colocação de um conceito „abstrato e limitado‟; 2.º No suprimir-se desse conceito algo „finito‟ e na passagem para o seu oposto; 3.º na síntese das duas determinações precedentes, que conserva „o que há de afirmativo na sua solução e na sua transposição‟. Hegel dá a esses três momentos os nomes, respectivamente, de intelectual, dialético e especulativo ou positivo racional. Mas a D. não é só o segundo desses momentos: é mais o conjunto do movimento, especialmente em seu resultado positivo e em sua realidade substancial. De fato, pela identidade entre racional e real, a D. é não só a lei do pensamento, mas a lei da realidade, e seus resultados não são conceitos puros ou conceitos abstratos, mas „pensamentos concretos‟, ou seja, realidades propriamente ditas, necessárias, determinações ou categorias eternas. Toda a realidade move-se dialeticamente e, portanto, a filosofia hegeliana vê em toda parte tríades de teses, antíteses e sínteses, nas quais a antítese representa a ‘negação’, ‘o oposto’ ou ‘outro’ da tese, e a síntese constitui a unidade e, ao mesmo tempo, a certificação de ambas (...) a noção de D. foi utilizada por Marx, Engels e seus discípulos no mesmo sentido atribuído por Hegel, mas sem o significado idealista que recebera no sistema de Hegel. O que Marx censurava no sistema hegeliano era que a D., para Hegel, é consciência e permanece na consciência, não alcançando nunca o objeto, a realidade, a natureza, a não ser no pensamento e como pensamento. Segundo Marx toda a filosofia hegeliana viva na „abstração‟ e por isso não descreve a realidade ou a história, mas só uma imagem abstrata desta que, por fim, é colocada como suprema verdade no „Espírito absoluto‟ (...) Marx afirmava, portanto, a exigência de fazer a D. passar da abstração à realidade, do mundo fechado da ‘consciência’ ao mundo aberto da natureza e da história. (ABBAGNANO, 2007, p.315-319, grifo nosso). 12 Aspectos do processo histórico exemplificados pelo autor: as pressões coletivas e normas não estatais de classe e grupos de espoliados e oprimidos que emergem na sociedade. (LYRA FILHO, 2004, p.9). 25 que, restara proeminente a não correspondência da imagem mental desse conjunto de idéias com a exata realidade das coisas. Assim é que, segundo o autor, concebese atualmente o termo ideologia como sendo opiniões que não correspondem à realidade, pré-concebidas e modeladas conforme o posicionamento classístico, e mesmo a ciência, está carregada de elementos ideológicos a postos da dominação social. Há diversas abordagens de se perscrutar o fenômeno da ideologia, dentre os quais o autor elenca três, a saber: A ideologia como crença, sendo crença as opiniões absorvidas pelo meio desprovidas de senso crítico. Ao considerar que podem existir crenças positivas e negativas, afirma que a ideologia se apresenta como crença falsa: A ideologia, portanto, é uma crença falsa, uma „evidência‟ não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade [...] ela nos traz a ilusão duma certeza tal, que nem achamos necessário demonstrá-la. Raciocinamos a partir dela, mas não sobre ela, de vez que considerá-la como objeto de reflexão e fazer incidir sobre aquilo o senso crítico já seria o primeiro passo da direção superadora, isto é, iniciaria o processo da desideologização. Por isso mesmo, aceitamos de bom grado, a troca de idéias, mas suportamos com dificuldade um desafio às crenças. (LYRA FILHO, 2004, p.16). Já a ideologia como falsa consciência - perspectiva essa surgida a partir das contribuições marxistas - refere-se, segundo as palavras do autor - à „cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a forjaram‟, ou seja, há um discurso das classes privilegiadas que serve à dominação, que disseminam uma imagem da realidade que mais lhe aprouver utilizando-se de diversos instrumentos para tanto, tais como, meios de comunicação, as próprias leis e até mesmo o ensino. A contribuição marxista se estendeu também à explicação das origens da ideologia, ao apontar a divisão de classes como propiciadora às formações ideológicas, na medida em que as ideologias favorecem uma classe privilegiada, a qual impõe essa ideologia à classe espoliada. Todavia, ressalta o Professor Lyra Filho que tal quadro de opressão ilegítima não pode ser constante: 26 Tal dominação, evidentemente, não será eterna, pois as contradições da estrutura acabam rompendo a pirâmide do poder e, conscientizados, nisto, os que carregam o peso da opressão, abre-se espaço à contestação da ideologia „oficial‟. (LYRA FILHO, 2004, p.18). Quanto a esta abordagem, o autor faz uma ressalva de que não se pode deixar adstrito o fenômeno ideológico ao fator de organização sócio-econômica, vez que, como já demonstrado historicamente, há casos de mudança de modos de produção - para o socialismo por exemplo -, e restar ainda o fenômeno ideológico. Por último, há a ideologia como instituição que é criada e manifestada na sociedade. Assim, se apresenta como fato social antes de vir a tornar-se fato psicológico nos indivíduos. Todavia, as determinações sociais se mostram como condicionamento, na medida em que podem ser superadas por intermédio da conscientização. Logo, quando se deflagra a crise social, por conseguinte desenvolvem-se as contradições do sistema que fazem emergir as conscientizações, pensamentos de vanguarda que buscam superar a ideologia e fazer avançar a ciência, ao perseguir não uma verdade absoluta, mas a verdade mais completa atual que só pode ser alcançada a partir de uma mudança intrínseca ao indivíduo em ordem para a práxis libertadora. Concernente às ideologias jurídicas, à guisa de exemplo é realçado o princípio jurídico que revela a seguinte crença: „cada um tem seu lugar‟, e de „dar a cada um o que é seu‟. Tal princípio representa uma ideologia que pretende demonstrar „justiça‟, mas em verdade expressa a separação social de classes, deflagrando-se então a crise do Direito Positivo Dogmático13. Ao analisar os principais modelos de ideologia jurídica, quais sejam o iurisnaturalismo e o positivismo do direito, o autor em acurada investigação crítica, demonstra suas debilidades e limitações e aponta como alternativa a teoria dialética do Direito - a qual mantém os aspectos válidos das teorias tradicionais. Então revela que o positivismo se reduz á ordem Estatal posta - que reflete os costumes da classe dominante-, coberto por lei e controle incontrolado gerido por uma máquina autoritário burocrático estatal, que por sua vez empreende opressões “[...] desse „direito‟ que ainda aparece nos compêndios, nos tratados, no ensino e na prática de muitos juristas; no discurso do poder [...]. LYRA FILHO, 2004, p.23. 13 27 a grupos minoritários, ao impor padrões de conduta com ameaça de sanções. De outro modo, se sobrevierem normas provenientes de classes e grupos dominados, tais regramentos jamais serão considerados pelo positivismo. O positivismo, segundo o autor, se apresenta em três facetas, a saber: o positivismo legalista, no qual a lei se arvora de toda a superioridade, não sendo admitido jamais invocar costume contra lei; já o positivismo historicista / sociologista tem a tendência de buscar nos costumes - embora atribuídos ao povo, em verdade revela os costumes das classes e grupos dominantes - o embasamento do direito. No entanto, tais costumes são aplicados apenas supletivamente, dando precedência às leis; Por último tem-se o positivismo psicologista que em nome da busca do sentimento do direito como sendo o „espírito do povo‟, vai encontrá-lo dentro da cabeça dos ideólogos - quer seja por „intuição livre‟, quer seja pelo direito criado pela magistratura -, os quais se abstém da crítica para tão somente assegurar a mantença da ordem social dominante. A crítica pontual feita ao positivismo assenta na sua ausência de fundamento jurídico, vez que, ou o positivismo não é jurídico e deriva do fato de dominação, ou busca fundamento em princípio que provém do direito natural. Destarte, o mito da segurança jurídica restou desmascarado, na medida em que, o positivismo, ao afirmar que assegura a segurança jurídica e se abstém de demonstrar sua legitimidade, tal falta de fundamentação somente impende na insegurança, posto que a submissão a um poder que dita normas de comportamento sem justificação, ou uma justificação errônea, que põe no Estado. Assim irresigna-se o autor: Este poder, ao contrário, se presume legítimo, a partir do fato de que está em exercício e chegou à posição desempenhada, seguindo os processos que ele próprio estabelece, altera e, de todas as formas, controla a seu belprazer. (LYRA FILHO, 2004, p.38, grifo do autor). 28 Atinente ao outro modelo de ideologia jurídica, o iurisnaturalismo, este se apresenta, segundo o autor, em três formas tradicionais, a saber: O direito natural cosmológico, no qual o direito natural se conecta como o cosmo, com o universo físico, sendo originado na natureza das coisas. A crítica apontada nesse viés do iurisnaturalismo é que a natureza da coisas é conclamada para justificar a ordem social estabelecida14. Já o direito natural teológico é aquele assente nas leis divinas. Contudo, o que observou-se no período Medieval foi uma cobertura ideológica para a estrutura aristocrático-feudal estabelecida. O terceiro modelo de iurisnaturalismo é o direito natural antropológico, fundado na razão. O questionamento posto acerca deste modelo pelo autor é que os princípios oriundos da inteligência do homem favoreciam apenas aos interesses da classe em ascensão no alvorecer do capitalismo - a burguesia -, a qual ao alcançar o poder almejado, adotou a tese positivista. Embora também reconheça um direito natural de combate, o qual visa a luta de classes e liberação de grupos oprimidos, ainda resta uma limitação, qual seja a fundamentação em princípios ideais, vez que não logram êxito em fazer a conexão entre a sua teoria com os grupos, classes, dominações e impulsos libertários, sistemas de normas estatais e pluralidade de ordenamentos. Por toda a exposição acerca do positivismo e do iurisnaturalismo, constatouse que resta então uma antítese ideológica entre direito positivo e direito natural. Portanto, aponta o autor a dialética como único meio possível de unificar a positividade e a justiça em meio à construção histórica. Deste modo, vai explanar sua opção teórica, a dialética, a qual embasada na sociologia jurídica, será referência de uma sociologia dialética e ontologia do direito, em que as linhas teóricas se fundam no fato social. Em ordem de clarificar a sua opção teórica, o professor Lyra Filho (2004) apresenta a relação entre sociologia e Direito. A sociologia é a disciplina que a partir 14 Exemplifica o autor lembrando da atribuição ao direito natural da escravidão nas sociedades em que o escravagismo era o modo de produção econômica. 29 dos fatos históricos percebe modelos, tais como „revolução‟. Já a sociologia histórica leva em conta a origem de tais „formas‟ sociais. Atinente à relação da sociologia com o Direito, há segundo o autor, duas abordagens, a sociologia do direito, mais atenta à história social do Direito, ou seja, se refere à base social de um direito específico. Em outra perspectiva há a sociologia jurídica que examina o Direito como elemento do processo sociológico15. No âmbito da sociologia - geral e jurídica - pairam dois modelos: Um é a sociologia „da estabilidade, harmonia e consenso‟, em que há padrões estáveis de relacionamento e as normas - usos, costumes, folkways, mores - são presumidas consensuais e as instituições sociais que detém o instrumentos de controle possui também legitimidade presumida. A crítica deste viés de sociologia é que omite-se a existência de grupos oprimidos, de classes contrapostas, da base sócio-econômica, da contestação válida e das normas dos espoliados e oprimidos. O outro é a sociologia „da mudança, conflito e coação, que se refere ao foco dos grupos em conflito, com costumes, folkways e mores divergentes. Tais grupos se apresentam como subcultura que viabilizam contra-instituições e investem em ataques de anomia - contestação das normas impostas. Todavia observa o autor que revela-se apenas como uma inquietação de superfície da pequena burguesia, na medida em que em tal modelo é olvidado elementos essenciais. Como terceiro modelo surge o marxismo, o qual importará numa visão da dialética social do Direito. Para proporcionar tal visão, mister se faz o delineamento de um modelo sociológico dialético exposto pelo professor Roberto Lyra Filho. A dialética social do direito pauta-se numa abordagem global, pois trata de todas os enfoques de análise do direito, quer seja o sociológico, o antropológico ou até mesmo o histórico. Tal modelo engrena-se com o fluxo da luta de classes e grupos e com as oposições de espoliados e espoliadores, assim como a de oprimidos e opressores. Deste modo, constitui-se do conjunto dos seguintes dados em movimento a seguir exposto: 15 Deste modo, a sociologia jurídica estuda o Direito como instrumento de controle e de mudança sociais. Investiga também a pluralidade de ordens normativas, etc. 30 Primeiro, o Direito tem raiz internacional, implicando numa dialética da sociedade internacional, uma vez que as sociedades individuais estão sujeitas à interferência de âmbito externo16. Em consequência, deflagra-se a luta de povos, ou seja, a dialética dos povos oprimidos e espoliados, em que as nações lutam para não se subjugarem ao imperialismo alienígena. No âmbito interno das sociedades nacionais, com seu modo de produção único o qual implica na divisão de classes, domínio classista e divisões grupais17 étnicos, religiosos e sexuais - irrompe-se também a dialética jurídica na luta de classes e grupos. Já a organização social - referente ao conjunto de instituições dominantes apresenta seu viés jurídico em face da ausência de legitimidade18 de sua estrutura espoliativa e opressora. Esta organização social é garantida por instrumentos de controle social marcado pelo positivismo, ou seja, que aplicação da lei com vistas a combater a dispersão. Em contraposição a esta organização social surge a desorganização social, soerguida por contra-instituições jurídicas reveladas por subculturas legais. O reconhecimento de tal práxis como pluralismo jurídico, ou seja, direito paralelo não inferior ao direito estatal, depende de se adotar a dialética e a socialismo democrático19 como opções científica e política respectivamente. Com o pluralismo jurídico surge a atividade anômica de caráter reformista ou revolucionário, instrumentalizada pela política e fundamentada juridicamente. 16 “O princípio de autodeterminação dos povos e as soberanias nacionais não impedem a atuação, até, das sanções internacionais, na hipótese das mais graves violações do Direito”. LYRA FILHO, 2004, p.72. 17 Tais grupos tem relevância na dialética do direito, vez que não estão diretamente ligados à oposição socioeconômica e jurídica das classes. 18 Segundo Lyra Filho, não basta o status quo da dominação, tampouco o „consenso‟ presumido, e salienta: “A passividade das massas não legitima, por si só, uma organização social, assim como o estabelecimento duma legalidade não importa, por si só, na legitimidade do poder”. LYRA FILHO, 2004. 19 O socialismo democrático, segundo autor, seria “a „alternativa‟ perante o capitalismo espoliativo e o socialismo gorado”, quando se refere ao socialismo bem comportado que a burguesia absorve e aos socialismos burocrático-repressivos. LYRA FILHO, 2004. 31 Por fim, tem-se a síntese jurídica, a qual situa-se dentro do processo mesmo e apresenta os critérios - embasados no aspecto histórico-social - de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, culmina na „negação da negação‟ - contradições de Direito e Antidireito -, tendo por meta o socialismo democrático20, a síntese jurídica é a sede de onde emergem os direitos humanos. 2.2.1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO Atinente à insurgência de um direito proveniente do povo e legitimado pelas experiências populares e não somente por fundamentos metafísicos universais, se faz imperioso consignar-se que Foucault21 já havia apontado a insurgência do direito autêntico provindo da massa: Em seguida, as massas, quando reconhecem em alguém um inimigo, quando decidem castigar esse inimigo – ou reeducá-lo – não se referem a uma idéia universal abstrata de justiça; referem-se somente a sua própria experiência, à dos danos que sofreram, da maneira como foram lesadas, como foram oprimidas (...) a decisão elas as executam pura e simplesmente. (FOUCAULT, 2000, p.26). Em sequencia, Foucault22 cita Engels quando vislumbra na criminalidade uma forma de manifestação da massa marginalizada e execrada: Engels dizia que a primeira forma de revolta do proletariado moderno contra a grande indústria é a criminalidade – os operários que matavam os patrões. Ele não procurou os pressupostos nem todas as condições de funcionamento desta criminalidade, não fez a história da idéia penal: falou do ponto de vista das massas e não do ponto de vista dos aparelhos de Estado afirmando que a criminalidade pe uma primeira forma de revolta. (FOUCAULT, 2000, p. 31). 20 A garantia democrática é parte do problema da realização do Direito. LYRA FILHO, 2004. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p. 26. 22 Ibid., p.31. 21 32 Nesse diapasão é que se torna possível contextualizar o ocorrido com episódio do sequestro do ônibus 17423 por Sandro do Nascimento na cidade do Rio de Janeiro, documentado em película. Logo, após as incursões acerca da falta de fundamento do positivismo dogmático exposto por Lyra Filho, e pelo apontamento de Foucault que vislumbra o crime como uma revolta contra a opressão é que se verifica que legítimo fora o grito que Sandro dera à sociedade, cabe citar passagem de um depoimento de um analista no filme: “Sandro foi o grito que emergiu da dor dos meninos de rua invisíveis”. Uma espécie de pacto fáustico, onde se usa meios violentos, abruptos para reafirmar sua existência social. 2.3. KARL, MEU AMIGO: DIÁLOGO COM MARX SOBRE O DIREITO É deveras relevante tecer algumas considerações no tocante ao diálogo de Roberto Lyra Filho com Karl, haja vista que, como já exposto em capítulo anterior, sua proposta dialética fundamental baliza em Marx, embora assevere a ausência de uma teoria do Direito em Marx. Eis o que ressalta o professor Sérgio Roberto Lema24: A leitura que Lyra Filho realiza da obra de Marx, e, particularmente, das implicações jurídicas que dela se depreendem, já que como o próprio autor salienta, não podemos falar da existência duma teoria do Direito ou até mesmo do Estado que tenha sido desenvolvida sistematicamente por Marx. Mas é possível achar a afirmação e a negação do Direito nos diferentes períodos da sua obra, e até num mesmo trabalho, capítulo ou parágrafo; sendo possível também, deduzir neste a negação da negação do Direito, 23 O documentário „Ônibus 174‟ noticia uma realidade vivenciada no limiar de um novo século e que se assemelha mais a um fantasmagórico surrealismo imagético. Trata-se do fato ocorrido no ano 2000, quando Sandro do Nascimento fora frustrado em sua tentativa de assaltar um ônibus na cidade do Rio de Janeiro ao ser surpreendido por policiais. Então tal fato ilícito toma outra proporção e se converte em tomada de reféns com horripilante desfecho. A Constituição do Brasil que prima tanto a dignidade da pessoa humana, não pôde garanti-la a Sandro no ínterim do infortúnio que fora sua vida. Portanto, a sociedade jamais pode cobrar uma conduta condizente com o que se espera para um convívio social adequado se a mesma sociedade não lhe proveu de oportunidades e possibilidades para tanto. 24 LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao humanismo dialético na filosofia da práxis jurídica (não publicado). 33 que Lyra Filho considera decisiva para elaborar a proposta por ele desenvolvida. Ao estabelecer uma relação de Marx com o Direito, Roberto Lyra Filho admite a princípio os obstáculos interpostos para tal empreitada, tais como: Obstáculos filológicos – relativos às fontes -, em razão da não fidelidade integral das traduções de suas obras, assim como há interferência de teorias marxistas do Direito e do Estado – as quais segundo Lyra Filho25, não correspondem à vertente teórica de Marx. Obstáculos lógicos, concernentes à falta de construção sistemática no tocante à abordagem do Direito por Marx. Obstáculos em razão de paralogismos de texto e hermenêuticos, ou seja, raciocínio falsos, decorrentes da ausência de uma teoria do Direito em Marx, segundo Lyra Filho. Obstáculos cronológicos, pelos quais tem se dividido a obra de Marx em sua época juvenil e madura, análoga ao Velho e Novo Testamento, sem permitir sua revisão ou concepção superadora, o que, consoante à Lyra Filho, contraria a própria articulação de Marx relativa a Aufhebung26 que cabe, segundo o entendimento Lyriano, que cabe ao marxismo o próprio mutatis mutandis. Obstáculos psicológicos, os quais conferem à Marx aspectos maniqueístas que impende a regresso em seu pensamento jurídico. E por fim os obstáculos metodológicos, relacionados à postura do investigador diante da obra Marxiana, que por vezes destoam em um objetivismo ilusório – que tolhe o diálogo com os textos, e um subjetivismo descarado – que incide gama de preconceitos na atividade exegética. No entanto, cumpre esclarecer que Lyra Filho (1986) preferiu se atentar ao caráter global da obra marxiana, que à recortes e investigações de textos isolados, 25 LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: Diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Fabris, 1983, p. 11. 26 “Aufhebung – negação da negação – superação não destrutiva que (...) incorpora, transmuda e reenquadra a tradição, para formar novos produtos intelectuais”. (LYRA FILHO, 1983, p. 31). “superação dialética (Aufhebung), poderíamos identificar os jusnaturalismos com a "afirmação" (idealista) do Direito e os positivismos com a "negação" do Direito (com maiúscula, isto é na totalidade e permanente devir)”. LEMA, Sérgio Roberto. Roberto Lyra Filho: Uma introdução ao humanismo dialético na filosofia da práxis jurídica (não publicado). (Capítulo I, p.34). 34 assim como adverte: “O que me interessa (...) é o sentido geral, é a curva marxiana”. Destarte, Sergio Roberto Lema27 se reporta à busca de Lyra Filho nas obras de Marx: O que Lyra Filho procura desvendar nas implicações jurídicas da obra de Marx é a existência, nas diferentes fases e textos do autor, tanto da afirmação, negação, como também um esboço da negação da negação do Direito, isto é, uma superação dialética do impasse ao que se viu submetido o próprio Marx quando, ora afirmava o Direito de maneira idealista, como no caso da liberdade de expressão tratada na Gazeta Renana -tendo aqui um caráter jusnaturalista-, ora o negava rotundamente, por exemplo na Ideologia Alemã, onde o direito burguês é, em várias passagens, assimilado a todo Direito, preanunciando sua extinção com o advento da sociedade comunista. E acrescenta Lopes28 acerca dessa fonte do professor Lyra filho: É com essa complexidade que Lyra Filho busca a fusão de dialética e direito, construindo o difícil caminho que possibilita a superação de um paradigma que tem sua estrutura fragmentada e que não consegue dar respostas a uma imensa maioria marginalizada e, por outro lado, a possibilidade de construção do novo, mas que, embora necessário, tem um longo caminho a ser pensado e percorrido para a sua efetiva consolidação. Então, no profícuo trabalho de extipar o embasamento ingênuo na obra marxiana é que Lyra Filho com rigor e erudição extraiu do materialismo histórico de Marx sua belíssima dialética para desenvolver sua proposta da dialética social do direito. 2.4. PARA UM DIREITO SEM DOGMAS Ao abordar a dogmática jurídica, Lyra Filho (1980) cuida primeiro de buscar a etimologia do vocábulo „dogma‟ para então perscrutar as raízes histórico-sociais de onde brotaram segundo ele essa „flor do pântano ideológico‟. 27 28 Ibid., Capítulo II, p.19. LOPES, Antônio. Teoria Crítica em Roberto Lyra Filho: Uma aproximação dialética e pluralista. DIssertação de Mestrado na UFSC, 2008. 35 Na etimologia, o dogma corresponde a uma tese ou doutrina, uma regra ou norma, de cunho inatingíveis. (LYRA FILHO, 1980, p. 11). E então procura concluir uma definição de dogma / dogmatismo a partir das posições dos seguintes autores: Dogma e dogmatismo [...] revelam a tendência a enuclear-se em torno das idéias de teoria assente ou práxis obrigatória, amparadas no argumento de autoridade ou na determinação do poder, sem qualquer apoio em experimento ou demonstração. (RUNES apud LYRA FILHO, 1980, p.12). O dogma [...] atravessa a história das idéias como uma verdade absoluta, que se pretende erguer acima de qualquer debate; e, assim, captar a adesão, a pretexto de que não cabe contestá-la ou a ela propor qualquer alternativa. ( ALAIN, apud LYRA FILHO, 1980, p. 12). Um dogmatismo é uma tese aceita às cegas, por simples crença, sem crítica, sem levar em conta as condições de sua aplicação. O dogmatismo é característico de todos os sistemas que defendem o caduco, o velho, o reacionário e combatem o novo, o progressista. (ROSENTHAL; IUDIN, apud LYRA FILHO, 1980, p.12-13). A seguir Lyra Filho (1980) traça paralelo entre dogma religioso e a dogmática do direito positivo, lembrando que a ciência idealista do direito já foi chamada de teologia, que diviniza o poder estatal, correspondente aos padrões impostos pelas classes dominantes. Lyra Filho (1980) ao dizer que o poder burguês resguardado por dogmas – ainda que haja fumaça de flexibilidade realizada pela doutrina, jurisprudência ou lei, exemplifica com o Direito do Trabalho: O poder burguês, em nosso tempo, se resguarda pelos dogmas, que, mesmo quando as contradições da superestrutura levam a doutrina, a jurisprudência ou até a lei a dar certa flexibilidade ao esquema jurídicopositivo, de toda sorte permanece dentro do marco infra-estrutural do modo de produção capitalista. Um exemplo bem nítido dessa limitação é destino do Direito do Trabalho. Sob a capa das conquistas sociais, ele visa precisamente, na democracia liberal, a manter determinadas ficções 36 conciliatórias, que negam a luta de classes e postulam a composição dos interesses em conflito, no âmbito da justiça trabalhista, que não é, entretanto, do trabalhador. Ali as minorias dominantes aparecem como que em pé de igualdade com a maioria (o que reforça o domínio social daquelas). As reivindicações dissolvem-se, portanto, em paliativos salariais e outros expedientes menores, preservando o essencial, que é obviamente a mais-valia. (LYRA FILHO, 1980, p.24). Ainda questiona a norma fundamental de Kelsen, que sustenta o contratualismo, haja vista que, segundo Lyra Filho (1980, p.32), o “ contratualismo é apenas uma bela metáfora que postula adesão ficta às condições de consenso das partes supostamente livres e iguais.” Acrescenta ainda Lyra Filho (1980) que o consenso presumido do contratualismo é ideológico. Logo questiona a teoria do ordenamento kelseniana e aponta as intempéries decorrentes de um corte espistemológico dos dogmáticos: Donde sai o ordenamento? Da cabeça de Júpiter, como Minerva armada? Os dogmáticos demitem-se, afirmando que o assunto não os concerne e apontando para os compartimentos, que consideram estanques, dos sociólogos e politicólogos. É o corte epistemológico, num artifício teórico e numa saída prática, bastante indecorosa. (LYRA FILHO, 1980, p. 35). E então Lyra Filho (1980) conclama o empenho crítico para soerguer um direito que não se preste à dominação: O empenho crítico há de buscar os interstícios, alargá-los, reivindicar, protestar: em síntese, engajar-se, em nome de um direito, que não é o positivo. Porque a questão jurídica, positivisticamente apreciada, se reduz à dominação e derruba aquelas barreira kantiana entre ser e dever-ser, que é o seu postulado básico. [...] O sistema jurídico não é nunca abstração acadêmica. É criação viva, brotando no solo social e sob o impacto do subsolo em que repousa toda a estrutura. (LYRA FIHO, 1980, p.35). 37 Acerca desse „novo direito‟, verte Lyra Filho (1980): O novo direito exige que se observe a realidade jurídica, enquando emanada de uma práxis e a pluralidade dos ordenamentos, em perspectiva libertadora, engajada e com sentido político bem definido. (SANTOS, apud LYRA FILHO, 1980, p. 19). Em desfecho, Lyra Filho (1980) reitera a urgência de uma ontologia dialética do direito, embasada na pluralidade de ordenamentos conflitivos com vistas à práxis libertadora. 38 3. DIREITO EMANCIPATÓRIO E EFETIVIDADE Nosso tempo é simplista, sumário e brutal. Depois de ter caído na idolatria dos sistemas ideológicos, nosso século termina na adoração das Coisas. Que lugar tem o amor num mundo como o nosso? Octavio Paz Se o homem apenas percebesse que é desumano obedecer a leis que são injustas, a tirania de nenhum homem o escravizaria. Mahatma Gandhi Para que o Direito Emancipatório possa tornar-se real, é imprescindível a autonomia dos sujeitos e da sociedade. Em analogia metafórica, Carneiro (2005) diz que, alcançar tal efetividade será como „acender o candelabro‟. Nessa esteira é que há de se tecer doravante relevantes considerações concernentes a tal chama da efetividade deste direito libertário, qual seja a autonomia. 3.1. AUTONOMIA Rosamaria Giatti Carneiro, mestre em Direito pela Universidade de Brasília, abordou com propriedade em sua dissertação29 acerca da autonomia, configurandoa como um dos pressupostos para a efetividade do Direito Emancipatório. Para a portentosa tarefa, buscou embasamento em autores tais como o filósofo grego Cornelius Castoriadis, o filósofo francês Felix Guattari, o psicanalista alemão Erich Fromm, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman e o nosso pedagogo Paulo Freire, 29 CARNEIRO, Rosamaria Giatti. Em busca do Sol: o direito, o conflito e o teatro do oprimido. 2005. Dissertação (mestrado) - Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, Brasília, 2005. 39 bem como ressalta que o pensamento lyriano, exposto no capítulo anterior, coaduna com o posicionamento de todos esses ilustres pensadores. Assim, para Castoriadis, a autonomia - política de liberdade -, será possível quando o discurso próprio substitui o discurso do outro, e realça que esta interposição de discurso somente acontece no coletivo. E ainda aponta a razão da não ocorrência da autonomia em tempos modernos, eis que se deve ao fato da subjugação dos sujeitos. (CASTORIADIS apud CARNEIRO, 2005,117). Então, com a construção da autonomia dos sujeitos é possível, segundo este filósofo grego: a instauração de uma história onde a sociedade não somente se sabe, mas se faz como auto-instituinte explicitamente, implica uma destruição radical da instituição conhecida da sociedade até seus recônditos mais insuspeitados, que só pode ser como posição/criação não somente de novas instituições, mas de um novo modo do instituir-se e de uma nova relação da sociedade e dos homens com a instituição. (CASTORIADIS apud CARNEIRO, 2005, p.119). Em Guattari, a autonomia “é a produção da subjetividade singular, decorrente dos processos de singularização do novo social” (GUATTARI apud CARNEIRO, 2005, p.121). Esclarece o filósofo citado que, o processo de subjetivação transcorre por duas maneiras distintas: Uma resulta na subjetividade capitalística – repleta de ideologia -, recebida do imaginário social sem indagação, que por consequência gera alienação e opressão; A outra forma do processo de subjetivação corresponde à singularização, ou seja, autonomia, na medida em que impende em dimensões sociais e agenciamentos coletivos para tal construção, calcado na dialética. (GUATTARI apud CARNEIRO, 2005, p.120). Nesse sentido, Guattari apresenta proposta de articulação ético-política que compreende três enfoques, quais sejam, o da subjetividade humana, das relações sociais e do meio ambiente – que exige outras relações com a natureza, para que afinal, a subjetividade seriada seja rompida. Em Fromm, a união com outros seres vivos é condição sine qua non para a sanidade mental do homem. Ocorre que a modernidade convergiu ao isolamento e à insanidade mental social, sendo o amor, segundo o psicanalista, a única paixão que pode viabilizar a união do homem com o mundo, resultando-se deste modo a sensação de integridade e de individualidade, o que por conseguinte torna o homem singular e autônomo. (FROMM apud CARNEIRO, 2005, p.127). 40 Na visão do sociólogo Bauman, a flagrante fragilidade dos laços humanos decorre da modernidade e realça a relevância da alteridade, pois que, até mesmo o amor-próprio surge com o outro, vez que há a necessidade de ser amado para amar-se. Na trilha do resgate de tais laços, o sociólogo elege a „teoria crítica‟ para a recuperação da cidadania e a retomada do espaço público, convergindo-se assim à autonomia e a uma sociedade autônoma. Na mesma vertente, o pedagogo Paulo Freire compreende o ser humano inconcluso, e para a construção histórica do ser, aponta como indispensáveis a alteridade e a ética. Eis sua definição de autonomia: Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador, transformador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É outridade do não eu, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu. (FREIRE apud CARNEIRO, 2005 p.129, grifo nosso). Em sequencia, após a imersão nos pensadores acima, a mestre Carneiro adverte acerca do imaginário moderno social que não é menos do que uma compreensão de mundo ideológica referente a uma racionalidade que converge em arbitrariedade na medida em que concebe o sujeito como objeto. Não obstante, aponta que, uma vez que este imaginário moderno social é uma produção histórica, logo admite-se sua reconstrução social intentada por sujeitos autônomos que construam seu próprio „imaginário‟, e não apenas se subordinem ao discurso científico que lhes é imposto. Após, sintetiza que há um elo necessário entre autonomia e a relação social, pois o seu alcance depende do conflito, da contradição e da ambiguidade, sendo urgente um resgate ético do Direito em contraposição ao esvaziamento axiológico corrente e expõe sua definição de autonomia: A autonomia é portanto a manifestação espontânea do sujeito enquanto um sujeito que pensa, age e ama. Uma manifestação que lhe brota de dentro, de sua própria norma e de forma original. (CARNEIRO, 2005, p. 125, grifo nosso). 41 Carneiro (2005) oportunamente faz emergir o pensamento lyriano para ratificá-lo em face às idéias expostas, na medida em que Lyra Filho concorda com a constituição multilateral da subjetividade humana, bem como sustenta o movimento dialético, o contraditório e a superação dos condicionamentos do homem – revelado pelo encontro entre seu campo íntimo e o seu esforço em sua conscientização. Na esteira das considerações postas concernente à concepção do sujeito como objeto, à necessidade de sua singularidade e ao papel do amor para a autonomia, cabe consignar a seguinte admoestação: Se fosse permitido partir do pressuposto de que a pobreza é inerente aos desprovidos de bens materiais, ou de rendimento que assegure a subsistência e dignidade, teria por conseguinte simplista solução: estereotipar parcela da sociedade e dar-lhes reparação do desfalque Esmolas? Políticas „pão e circo‟?- Em contraponto, salienta-se que “nem só de pão vive o homem, mas de toda a justiça”. Ao invés de políticas assistencialistas, mister se faz a adoção de medidas que humanizem os „paupérrimos abastados‟, com o escopo de cessar as mazelas da sociedade em sua origem. Portanto, à guisa de sugestão, citase campanha de humanização, a saber: „Você já abraçou um mendigo hoje?‟ De certo causaria espanto, mas não maior que a bizarra desigualdade que assola a sociedade. Assim, somente quando se começar a combater a pobreza intrínseca, é que a distribuição de renda, de cultura e de amor se dará com equidade. (OLIVEIRA, 2007, p. 444 - 445). Freire comenta acerca da insurgência das massas e das práticas assistencialistas: As massas [...] começam a exigir e a criar problemas para as elites. Estas agem torpemente, esmagando as massas e acusando-as de comunismo. As massas querem participar mais na sociedade. As elites acham que isto é um absurdo e criam instituições de assistência social para domesticá-las. Não prestam serviços, atuam paternalisticamente, o que é uma forma de colonialismo. Procura-se tratá-las como crianças para que continuem sendo crianças. (FREIRE, 2007, p. 37). 42 3.2. PRÁXIS Após expor as sinalizações do pensamento emancipatório, imperioso é que se discuta a sua pragmática. Eis a conclamação de Lyra Filho para a práxis: Não adianta ver que „o mundo está errado‟ e encolher os ombros, fugindo para algum „paraíso artificial‟, no porre, no embalo, no sexo obsessivo ou na transferência de qualquer atuação positiva para mais tarde, noutra vida, no „além‟. E quando falamos em práxis é evidente que ela pode ser também de maior ou menor amplitude; mas a atitude modesta, limitada mesmo, já é uma forma válida de participar pelo discurso, pelo voto, pela arregimentação, pela ajuda material e moral a espoliados e oprimidos. (LYRA FILHO, 2004, p.22). 3.2.1. ROSAMARIA GIATTI CARNEIRO E O TEATRO DO OPRIMIDO Carneiro (2005) revela que a construção gradual da autonomia se efetivará mediante as seguintes práticas: a ética da solidariedade; a rebeldia para com a ideologia dominante e o contra-discurso. Para tanto, aponta como veículo para tal práxis o teatro do oprimido, concebido por Augusto Boal no Rio de Janeiro. Em precedência no detalhamento da aludida prática teatral, Carneiro (2005) busca em filósofos como Nietzsche e Foucault parar extrair a relevância da manifestação artística e então conceber a arte como o “fósforo necessário para acender o candelabro rumo à saída das sombras e da solidão da caverna moderna” Carneiro (2005, p. 156) e então busca em Lyra Filho a corroboração ao seu pensamento: Isto porque a ciência visa explicar. A arte intui e mostra, sem explicação: explica, degrada-se como arte, sem chegar à dignidade metódica da ciência. A arte não é um pensamento analítico, mas celebrante, que comunga na realidade apreendida, ao invés de desmontá-la e demonstrá-la. A ciência é a demonstração. A arte é mostração dum conhecimento intuído. (LYRA FILHO apud CARNEIRO 2005, p. 156). 43 A referida autora, em sua experiência de campo durante seu mestrado, em oficinas de teatro do oprimido realizadas na cidade-satélite Paranoá, pode observar detidamente as peculiaridades de tal prática teatral como sendo uma prática da autonomia, bem como prática pedagógica à efetividade do Direito. O teatro do oprimido concebido por Boal, abarca a idéia de que todos são atores, criadores e artistas, bem como tal manifestação teatral revela um potencial para transformação e libertação, na medida em que não se refere à arte contemplativa, de outro modo, trata-se de uma construção de visão de mundo e de uma outra realidade humana possível. Carneiro (2005, p. 157-158). Eis como explana: No teatro do oprimido [...] existe sim o incentivo para que os próprios espectadores tomem o espaço dos personagens, para que assumam um papel protagônico e transformem a ação dramática inicialmente proposta, ensaiando-lhe soluções possíveis e realizando o debate sobre o encenado. (CARNEIRO, 2005 p. 159). Acrescenta ainda a pesquisadora: “Dessa maneira, compete aos espectadores a tomada do espaço do personagem oprimido e a representação de uma reação diante da opressão” (CARNEIRO, 2005 p. 159), viabilizando-se deste modo a identificação e a solidariedade. Ao considerar que o teatro é linguagem, comunicação e conhecimento e urge que haja sua divulgação, vez que sua prática pode contribuir para a humanização dos seres humanos, como afirma a mestre em comento: Concebe-se o teatro do oprimido como uma prática para a autonomia e, com essa natureza, concebe-se essa poética aliada à construção do Direito emancipatório. Sustenta-se então a importância da articulação entre a arte e o campo jurídico, [...] no encalço da efetivação do Direito. (CARNEIRO, 2005 p. 181). Em remate a autora Carneiro conclui que o teatro do oprimido é uma das prática que pode efetivar o direito emancipatório lyriano, nestas palavras: 44 Sendo assim, o estético, e mais notadamente o teatro do oprimido, se coloca como o fósforo do candelabro. Sabe-se ser preciso iluminar a caverna jurídica moderna. O candelabro existe e está em mãos, sob a forma da concepção de Direito de Lyra Filho (...), contudo, encontra-se sem luz e sem utilização, Sem luz, de nada adianta o candelabro, porque não realiza a sua função. (CARNEIRO, 2005 p. 181). 3.3. ENSINO JURÍDICO Reino da Bibliothéke Xênia Machado Queria eu ter tido na pré-história nascedouro Neolítica, não contemplaria o contraditório da evolução Onde humanos brotam como que abruptamente e gozam as Conquistas de seus antecessores em boçal banalidade Que corrompe a árdua e paulatina luta da aquisição do progresso Queria eu ter sentido a brasa das labaredas do fogo medieval Que transcendeu mártires a postos de uma legítima causa A luta pela liberdade do corpo social e da alma humana: A campanha dos „depósitos de livros‟ Queria eu ter percorrido pelos reclusos labirintos dos mosteiros Imersa na sabedoria do „Canário‟ de Machado de Assis Que sabia que gaiolas não bastavam para lhe subtrair a liberdade Queria eu ter permanecido na tradição oral, e não conceber a Retrógrada inversão da conquista democrática Que deu acesso ao Poder representado pelas bibliothéke Queria eu ter estado com os escribas Adverti-los-ia do vão esforço Queria eu ter gracejado das alegadas superstições Que justificaram os livrocídios de outrora De tão ingênuas seriam passíveis de minha indulgência Muito mais do que a vil ignorância hodierna Que converge à inépcia da biblioteca Queria eu ter sido partícipe na lenta e tida por insana Tarefa de catalogação dos livros para a praticável consulta Rendo-lhe admiração Antonio Panizzi! Após o grito libertário de 1822, adquiriu-se a Biblioteca Real Hoje a Nacional Não infiram qualquer correlação contextual Refuto nexos causais para acolher teses de meras coincidências No limiar do milênio: portas cerradas Queria eu não ter de internalizar a recorrência da clausura do intelecto Que o Iluminismo superara O ímpeto autônomo da busca do saber E do voluntário deslocamento ao santuário laico Não pode ser tolhido por cadeados Não trancam apenas portas 45 Trancam de forma inconsciente A predisposição gradual do alcance da infinita evolução Remontam os arquétipos de milenar subjugação No inconsciente coletivo. Revolver o lapso temporal me deixa incólume Para quê tanto esforço? Eis meu ápice atemporal: O retorno à Primitiva Idade. O ideal seria uma sociedade mais justa, onde estudar fosse trabalho pago pelo Estado àqueles que verdadeiramente tivessem vocação para o estudo e em que não fosse necessário ter a todo custo o „canudo‟ para se arranjar emprego, obter promoção ou passar à frente dos outro num concurso. Umberto Eco O ensino jurídico pode e deve ser veículo da práxis libertadora, embora tenha perpassado por mazelas de cunho dogmático positivista que tendem à mantença do status quo dominante. Nesse contexto o professor Amaral30 admite que: Nosso demônio está bem simbolizado na cultura do imediatismo, em nossa intolerância ao que é longo, discursivo, profundo e erudito: os clássicos tratados jurídicos são destratados em prol dos opúsculos, dos resumos, das apostilas, manuais e publicações do gênero. As aulas, erudito: os clássicos tratados jurídicos são destratados em prol dos opúsculos, dos resumos, das apostilas, manuais e publicações do gênero. As aulas, breves tertúlias entre dois recreios mentais, não ensejam mais o aprofundamento intelectual do „por que’, do „o que é‟, da de-finição (dar os fins, os limites, os elementos distintivos / essenciais dos objetos em cognição). Tudo isto „não é mais compatível‟(?!) com nossa civilização do vídeo-clip, da cultura meramente visual, de mídia, onde o senso histórico, os ideais, o saber abstrato, a fidelidade aos princípios e à ética vem sendo substituídos pela vacuidade intelectual, pelo relativismo extremo (não há valores, só referenciais). Hoje educa-se ensinando não a obra em sua plenitude, mas tão-só o autor e certos referenciais da obra; é a nossa modernidade pós-novela. Conhece-se os autores e não suas obras, eis o „hit‟ deste nosso final de civilização. Que depressão isso provoca no 30 AMARAL, Luiz Otávio de O. Refletindo sobre o ensino e a formação do advogado. In: Âmbito Jurídico. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0005.htm. Acesso em 09 Ago. 2005 46 professor cônscio e que faz a boa opção de não usar artifícios didáticos reducionistas da relevância do ensino (catecismo positivista de ensinar só a norma escrita, antecipação de „5 das 3 questões de prova‟, aceitação da infiel avaliação do trabalho-xerox, do „eu exijo pouco e vocês cobram-me pouco!‟... ). (AMARAL, 2001b, grifo do autor). Então, o mestre da Universidade Católica de Brasília, Amaral31, revolve da antiguidade a origem grega do termo educação, Paidéia, para demonstrar que os moldes em que se vislumbra a ensino atual e em especial o jurídico estão corrompidos, ou ao menos deturpados: Ensinar pressupõe a crença de que mudanças são possíveis, de que o discurso da acomodação não melhora as dores do mundo; daí porque o ato de ensinar é constante exercício da faculdade humana de criticar. É preciso criticar, discutir, mudar, enfim não parar de buscar a razão de ser de nossa ação educativa (...) è educação em sentido mais alto, mais que mero adestramento para o fazer, ou para o ter (...) Como nossa atual educação (...) tem reagido ao patético quadro social (interferente no individual, é claro) que nos envolve? Ou na base do „salve-se quem puder‟ (bem ou mal dissimulado: p. ex. ‘não nos envolvemos em política / cuidamos apenas de formar profissionais’ (...) (AMARAL, 2001a, grifo nosso). A seguir, surge em AMARAL32 a arete - virtude como orientadora para sanar o desvirtuamento da educação: “arete é (...) um atributo da excelência humana, a beleza de caráter que orienta a práxis (a ação cotidiana) humana para o bem (...)”. E ilustra a finalidade da educação com passagem literária de Homero: „quando o velho Fênix, educador do jovem Aquiles, herói-protótipo dos gregos, recorda-o o fim para o qual foi educado: „proferir palavras e realizar ações‟. Logo, demonstra Amaral33 sua disponibilidade para uma práxis que impenda à mudança de paradigma do ensino jurídico dogmático positivista: 31 AMARAL, Luiz Otávio de O. Paidéia. In: Âmbito Jurídico. Ago. 2001. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0006.htm> Acesso em 09 Ago. 2005. 32 Ibid. 33 AMARAL, Luiz Otávio de O. Refletindo sobre o ensino e a formação do advogado. In: Âmbito Jurídico, ago/2001 [Internet] http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0005.htm 47 Nós, professores de Direito, fugiremos, como temos feito até aqui, da tentação hodierna de ensinar o aluno a „recitar artigos e parágrafos do Direito Oficial‟, como já alertara-nos o saudoso mestre e amigo Lyra Filho. (AMARAL, 2001b). Em oportunidade de palestra sobre ensino jurídico proferida pelo Dr. José Geraldo de Souza Jr.34 na Universidade Católica de Brasília no ano de 2005, cabe salientar aqui, os apontamentos do discípulo de Roberto Lyra Filho: Segundo o palestrante, o processo do conhecimento, ou seja, o „conhecer‟, deve ensejar condições de compartilhar. Um dos defeitos da pedagogia que ele aponta é o ensino errado de Direito, pois não se ensina bem o que se apreende mal. Destarte, urge ter os olhares vigilantes para um Direito justo em contraposição às formalidades. A crise do Direito se assenta na „praga do positivismo que assola as faculdades de direito‟. A razão científica isolou-se em um formalismo, daí a distinção entre Direito e Moral, sendo a Moral uma direção autônoma, subjetiva. Entretanto José Geraldo de Souza Jr. não incita a negar o paradigma do positivismo, quando diz que o positivismo não é elemento de obscurecimento, ele o é quando se torna uma redução. O que então enfatiza é que não pode haver a perda de subjetividade e solidariedade do pensador, do operador do Direito. No enfoque que por ora se atém, acerca do papel de reprodução do dogmatismo no ensino do Direito, insta aludir sua repercussão pessoal em Marx, pontuado por Lyra Filho: Marx era filho de advogado e principiou seu roteiro universitário como estudante de Direito. Sua desilusão e rompimento com a carreira jurídica tem muita semelhança com o equívoco de tantos jovens contemporâneos. Quando chegam aos bancos acadêmicos, no alvoroço de inquietações e ideais apressados e não isentos de impaciência e sentimentalismo, defrontam-se com as patacoadas rotineiras, os catedr‟áulicos subservientes, a dogmática obtusa e alienante, o estômago de avestruz dos positivistas engulindo qualquer pacote das prepotências estatais, que o famoso „toque de midas‟ kelseniano transforma em „neutros‟ produtos „jurídicos‟. Diante 34 Relatório da Palestra Ensino Jurídico: Conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção – constante do Anexo. 48 disto, muitos rapazes e moças progressistas logo se deixam tomar por um nojo não injustificado, que, porém, injustificadamente, vai tender à equiparação do lixo legislativo com o íntegro universo jurídico, sem perceber, sequer, que, dialeticamente, o estrume das estruturas corruptas serve também de adubo à contestação e florescimento de afirmações jurídicas para, supra e metalegais, oriundas de classes e grupos espoliados e oprimidos [...].(LYRA FILHO, 1983, p. 40). Urge que a práxis emancipatória precipuamente se faça presente no âmbito do ensino jurídico, na medida em que, o dogmatismo tem se reproduzido e se imantado nos acadêmicos de Direito, como bem lembra Lyra Filho que, a OAB, em projeto de reforma do ensino jurídico, definiu o positivismo com uma das pragas universitárias nacionais‟ (LYRA FILHO, 2004). Nesse diapasão de tecnicismo, entende Godoy (2005) que os operadores de direito apenas vertem sobre o direito moderno formal e dogmático: Esse direito é concreto, se realiza diuturnamente no mundo, e especialmente no que toca ao hemisfério ocidental, desdobra-se nas contigências consuetudinárias ou legisladas. É defendido por seus sequazes, que se nominam bovaristicamente de operadores jurídicos. (GODOY, 2005, p.119). E então Godoy busca corroboração no professor Aguiar acerca do tecnicismo dos juristas: Os agentes das práticas jurídicas e seus reprodutores pertencem a uma categoria social que apresenta categorias muito próprias, merecendo, por isso, um olhar mais atento. O interesse por eles é despertado pela simples observação empírica: eles aparecem uniformizados, apresentam um mesmo código lingüístico, tem um entendimento do mundo, do homem e da história semelhante, vivem adorando o Estado (mesmo quando dele reclamam), preocupam-se com o controle da sociedade e, mesmo quando discursam em contrário, agem segundo um dogma: são as leis que modificam o mundo. (AGUIAR apud GODOY, 2005, p. 119-120). E então o ilustre orientador dessa monografia professor Godoy (2005), com base em Aguiar conclui: 49 Para esses operadores do direito moderno, o mundo é harmônico, a vontade informa o livre arbítrio (de todos), o Estado é perene e benfazejo, a coação está nas sanções, direito e Estado formam ele indissolúvel, o sujeito de direitos é abstração, os autos do processo representam a síntese do mundo, as decisões e orientações são neutras e assépticas, a história é invenção de filósofos, a sociedade suscita problema que não é jurídico, os poderes são discutidos em âmbito interno, a técnica deve ser murada contra a crítica. (GODOY, 2005, p. 120). Ocorre que, não obstante, o inconteste dogmatismo que engessa no ensino jurídico, este pode ser um vetor para a práxis da libertação. Para tanto, Lyra Filho abre o mar do ensino jurídico com sua lucidez corajosa, embora marginal, que será exposta a seguir. Lyra Filho entende que para que o ensino do Direito possa ser uma práxis emancipatória, deve-se rever o que tem se ensinado, já que, como explanado no capítulo 2 - acerca da teoria dialética lyriana -, há uma errônea concepção do que vem a ser direito. Deste modo, é primordial que se conceba o direito como construção histórica, em perspectiva sociológica, para que assim se possa então ensiná-lo, mas não como conhecimento „dado‟ mas como conhecimento „construído‟. Logo, para viabilizar tal reforma no ensino jurídico, há que, segundo Lyra Filh35o, se objetivar: Desobstruir canais para a maior participação dos setores progressistas da sociedade civil, num modelo sócio-político e, portanto, jurídico também, de alargamento das bases democráticas, no controle do poder. Ao se referir à crítica que Lyra Filho empreende aos compêndios nos Cursos de Direito, Horácio Wanderlei Rodrigues o cita: Apreender o que é Direito nas „obras‟ da ideologia dominante só poderia, evidentemente, servir pra um de dois fins: ou beijar o chicote com que apanhamos ou vibrá-lo no lombo dos mais pobres, como nos mande qualquer ditadura. (LYRA FILHO apud RODRIGUES in CERQUEIRA [et al], 2007, p.149). 35 LYRA FILHO, Roberto. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília:Obreira, 1981. p.8. 50 Horácio Wanderlei Rodrigues, adverte que para Lyra Filho o problema do ensino do Direito não pode se reduzir à revisões curriculares, na medida em que, para ele, embasado em Luís Warat, currículo e metodologia decorrem do senso comum dos juristas. Destarte, oferece exemplo prático de Luis Alberto Warat e Roberto Lyra Filho, que efetivaram críticas dentro das próprias disciplinas jurídicas: Warat, ainda na Argentina, foi professor de Direito Penal e efetuou sua crítica de forma intra-sistemática. Lyra Filho, considerado um dos grandes criminólogos brasileiros, lecionou Direito Penal e Processo Penal, fazendo também delas o seu ponto de apoio para uma crítica mais efetiva do fenômeno jurídico. (RODRIGUES in CERQUEIRA [et al], 2007, p.154). Atinente ao ponto fundamental no enfoque do ensino jurídico para Lyra Filho, assim sintetiza Horácio Wanderlei Rodrigues: Para Lyra Filho a questão fundamental do Ensino do Direito é a de que só se pode pensá-lo a partir da correta visão do Direito. Nenhuma reforma tratá resultados, se continuar vinculada à idéia positivista que reduz o Direito ao direito positivado pelo Estado. A reforma didática há que se basear na revisão do conjunto. Uma reforma válida do ensino do Direito só pode ser feita a partir de uma revisão global, sociológica e filosófica do que é Direito. Todo o resto é complemento, opção metodológica, apuro formal. E o Direito em globo só pode ser apreendido, na sua dinâmica social, através da dialética. Apenas uma visão sociológico-dialética, que enfatiza o devir e a totalidade, será capaz de apreender a síntese jurídica – a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais, expressão da justiça social atualizada. Desta forma ela se caracteriza como uma proposta, concomitantemente política e epistemológica. (RODRIGUES in CERQUEIRA [et al], 2007, p.165). 3.4. ENGAJAMENTO POLÍTICO Haja vista que o engajamento político fora conclamado por Lyra Filho para a consecução do direito emancipatório e por conseguinte da justiça social, faz se 51 mister tecer algumas considerações - tendo por base, Leo Wolfgang Maar concernentes ao que seja política: A política está intrinsecamente atrelada ao cotidiano dos homens, e em permanentemente processo de mudança, revelando a importância da atividade política como fator de transformação da sociedade. MAAR (1994) discute as relações entre Estado e governo, as formas para se manter no controle do Estado, as relações entre política e as classes sociais. Utilizando-se de exemplos, explica como o Estado se relaciona com a sociedade, apresentando a coerção e a hegemonia como meios da política para legitimar sua autoridade, inserindo conceitos como „sociedade política‟ e „sociedade civil‟. Define a coerção como atributo fundamental do poder, necessário para que se mantenha a relação entre dominante e dominados. Apresenta à ótica de Weber as três formas de legitimidade do poder coercitivo: a eficácia, a tradição e o carisma e contrapõem a visão de Gramsci que acredita que o Estado é uma manifestação consensual apoiada na coerção. MAAR (1994) ainda discute a importância da organização e mobilização pelos agentes políticos como sendo fator responsável para a aquisição de significado político, quando os movimentos sociais são capazes de dirigir coletivamente os interesses sociais específicos como objetivos políticos amplos. Dessa forma ressalta a relevância da atividade política partidária e de instituições da sociedade civil; Estabelece um paralelo entre os elementos básicos das instituições da sociedade civil „organização e mobilização‟ e os elementos da atividade política do Estado „ coerção e hegemonia‟. Em face do relevante papel da política nos movimentos sociais, os quais se ocupam de questões cotidianas e da necessidade de transformação diante de uma política desmoralizada onde a participação nas decisões políticas se restringe ao voto para a escolha de representantes que se tornam autônomos após esse efêmero momento, a democracia se faz presente nesses movimentos de base, para apresentar uma estrutura de participação e representação que se torna fonte do seu poder político. As relações entre atividade política e manifestações culturais inserem um conceito bivalente da cultura, podendo ser fator de interferência e o próprio „fim‟ da política. A interferência política pode ser imposta pelo Estado no espaço cultural ou pode ser as manifestações diretas da cultura no plano político. A cultura possui duas 52 funções políticas: o papel da legitimação para as propostas políticas e também a função de meio organizador, pois a organização política é feita através da organização cultural que mobiliza e organiza a participação da opinião pública. Por fim MAAR (1994) retoma o papel da política apresentando sua missão civilizadora em que consiste mudar a „visão de mundo‟, transformando as condições materiais da sociedade, pois a ação do nível das idéias no plano cultura, exige uma atuação de transformação do mundo. Em remate resta para necessária reflexão o poema „ Ode à Emancipação‟: Ode à Emancipação Xênia Machado Desatemos os nós de nossas gravatas Despojemo-nos dos blazers de nossos tailleurs É preciso pensar em conjunto Na alteridade buscar o seu ser Judeus e palestinos Diáspora não deveria haver Raça ariana: Adolf esquecer Ao apartheid e a tortura Jamais retroceder Propriedade e função social Moderado consumismo Respeito ambiental Liberdade e proteção Dignidade em dimensão Escravidão exploração No Pará nunca mais não Não só aos aliens Asilo na Pátria conceder Mas também aos que daqui nascer Com educação e respeito À ética proceder Remanescentes indígenas A tradição manter Não há glória nem sucesso Ao ver a fome enlouquecer Avança sobre inquebrantável orgulho Deixa o ser desfalecer Aos engomados defere-se respeito Atenção que não há de quê 53 Ao pobre escorraçado Mais um chute a desperceber Invisíveis numa tela de HD Façamos a nossa parte Para prescindir jurisdição Seja interna ou não Urge conscientização Humanizar o ser humano Não somos robôs não Para um direito emancipatório Lyra Filho deixou a direção 54 ANEXO Universidade Católica de Brasília Palestrante: Dr. José Geraldo de Souza Jr. (11/05/2005) Aluna: Xênia Machado de Oliveira Relatório – VIII Semana Jurídica UCB – Direito, Razão e Solidariedade. Tema: Ensino Jurídico: Conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção Segundo o palestrante, o processo do conhecimento, ou seja, o „conhecer‟, deve ensejar condições de compartilhar. Um dos defeitos da pedagogia que ele aponta é o ensino errado de Direito, pois não se ensina bem o que se apreende mal. Destarte, urge ter os olhares vigilantes para um Direito justo em contraposição às formalidades. Surge então novos modos de poder que vão de encontro com a dogmática jurídica para determinar as regras do direito, por exemplo, a corrente do „Direito achado na rua‟, projeto que surgiu na UnB e que o palestrante é coordenador. Essa nova corrente do direito procura gerar uma perspectiva teórica para explicar as condições sociais e suas conseqüências. Acerca da razão, Dr. José Geraldo de Souza Jr. alerta que a razão não é fundamento do homem, e sim expressão de sua existência. A razão da ciência é utilitarista e colonizadora, ou seja, subordina. Então cabe a reflexão: Seria o Direito dimensão constitutiva da vida ou Ciência? E o questionamento de Kant: “O Direito é sanção ou liberdade?”. A crise do Direito se assenta na „praga do positivismo que assola as faculdades de direito‟. A razão científica isolou-se em um formalismo, daí a distinção entre Direito e Moral, sendo a Moral uma direção autônoma, subjetiva. Deveras lembrar que na Antiguidade não se fazia a distinção entre Direito e Moral, época em que havia práticas contra a centralização do poder. No sistema patriarcal, tinha-se a família como única instituição capaz de gerar Direito. Devido à pregação de Moisés 55 para a acumulação de excedente, passa-se então a alienação da liberdade, conferida ao Estado – artificial. Há uma realidade espontânea, natural, e uma realidade artificial. Enfim, o palestrante conclui que o Direito é derivado da razão utilitarista, que distingue o direito como lei e o direito como moral. E que o fenômeno jurídico passou a ser a norma, bem como o objeto da Ciência do Direito passou a ser a norma. Dr. José Geraldo de Souza Jr. cita Savigny, que segundo o qual o Direito era o Espírito do povo, e não a lei, definindo-se assim em uma prática consuetudinária. Entretanto ele não incita a negar o paradigma do positivismo. O positivismo não é elemento de obscurecimento, ele o é quando se torna uma redução. O que o palestrante enfatiza é que não pode haver a perda de subjetividade e solidariedade do pensador, do operador do Direito. 56 CONCLUSÃO Do presente trabalho de conclusão de curso depreende-se a importância de um pensamento crítico no Direito e a urgência de produções acadêmicas nesse sentido para que sustentem e impulsionem a práxis libertadora. Não obstante passadas duas décadas do desenvolvimento da teoria lyriana e de seu falecimento, observa-se que as pesquisas em torno de seu pensamento continuam a se desenvolver, a exemplo disso tem-se a dissertação de mestrado do professor Sergio Roberto Lema - „Para uma Teoria Dialética do Direito - Um estudo da Obra do Professor Roberto Lyra Filho‟ - pela Universidade Federal de Santa Catarina defendida em 1995 e que originou o livro acerca da filosofia lyriana a ser publicado em breve; Há também a dissertação de mestrado da Rosamaria Giatti Carneiro, pela Universidade de Brasília em 2005 assim intitulada: „Em busca do Sol: o direito, o conflito e o teatro do oprimido‟ que embora não específica sobre Roberto Lyra Filho, apresenta a filosofia lyriana como norte para o direito emancipatório; E mais recente tem-se a dissertação de mestrado de Antônio Lopes: „Teoria Crítica em Roberto Lyra Filho: Uma aproximação dialética e pluralista‟ pela Universidade Federal de Santa Catarina defendida no ano de 2008, além das produções de seu discípulo José Geraldo de Souza Jr. Assim, com pressupostos da investigação científica que exigem a destituição de conceitos preconcebidos e calcada nas fontes de primeira mão - obras de Roberto Lyra Filho -, bem como nas de segunda mão - obras acerca de seu pensamento -, é que foi possível expor toda a sua erudição, lucidez e engajamento político e pragmático, o que desvaneceu toda uma alcunha de idealista que alguns dogmáticos poderiam taxá-lo. Expostos então a crise de paradigma do Direito referentes aos modelos iurisnaturalista e positivista, que não mais respondem aos conclames da sociedade, e descortinadas as ideologias jurídicas alienantes, é que veio à tona o direito emancipatório como decorrente da teoria dialética social lyriana. Em remate, foi possível identificar alguns meios de se concretizar a práxis libertadora, seja na proposta de Rosamaria Giatti Carneiro, de aplicação do teatro do oprimido de Augusto Boal como veículo para a autonomia e conscientização, seja na 57 proposta de Lyra Filho mesmo no que tange à mudança de paradigma no âmbito do ensino jurídico. Insta destacar que as propostas aqui servem apenas como exemplo e estímulo para várias outras práticas a serem produzidas, haja vista que o próprio direito, segundo Lyra Filho, está em constante devir, e ainda, atinente às práticas, como bem lembra Lyra Filho, não precisam necessariamente de dimensões revolucionárias, podem se dar timidamente, desde que cumpra sua função na busca da emancipação e libertação. 58 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. AMARAL, Luiz Otávio de O. Paidéia. In: Âmbito Jurídico. Ago. 2001. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0006.htm> Acesso em 09 Ago. 2005. ______. Refletindo sobre o ensino e a formação do advogado. In: Âmbito Jurídico. Ago. 2001. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0005.htm>. Acesso em 09 Ago. 2005. BARROSO, Luís Roberto. Direito e Paixão. 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