edição 1 • ano 1 • março 2012 distribuição gratuita da PUC ao josé eduardo cardozo Ministério entrevista Fábio Ulhoa Coelho e o novo Código Comercial escritório Pinheiro Neto Advogados Sapientia Faça parte da Associação de Alunos e Ex-alunos artigos Crimes de trânsito com motoristas embriagados Dez anos do Código Civil e mais... sumário C a r ta d o e d i t o r P U C e m p a u ta r e t r o s p e c t i va profissão escritório Perfil e n t r e v i s ta áreas do direito caderno de ideias 3 Carta aos puquianos 5 PUC na sua totalidade 9 Inovações jurídicas 14 Ministério Público: essencial à justiça 20 Pinheiro Neto Advogados 28 José Eduardo Cardozo: da PUC ao Ministério 40 Fábio Ulhoa Coelho: Um novo Direito Comercial 50 Mercado financeiro e de capitais 59 Artigos 60 Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – eireli alunos Livros associação sapientia edição 1 • ano 1 • março 2012 Manoel de Queiroz Pereira Calças 68 Moots: ferramentas de desenvolvimento profissional e acadêmico Cláudio Finkelstein | Julia Schulz 72 Os 10 anos do Código Civil sob a óptica civil constitucional Renan Lotufo | André Guimarães Avillés 76 O Supremo Tribunal Federal e o plebiscito para desmembramento de Estado-membro Felipe Penteado Balera 80 Crimes de trânsito com motoristas embriagados: culpa consciente ou dolo eventual? Christiano Jorge Santos 86 Reflexão sobre a questão urbana brasileira Juliana Somekh 90 Um direito penal do inimigo envolto em controvérsias Natália Pincelli 96 O Direito enquanto veículo: a trajetória de uma jornalista 100 Estante Fórum Jurídico 102 PUC além das salas de aula Coordenadora Editorial de Matérias Raquel Arruda Soufen [email protected] Coordenadora Editorial de Artigos Clara Pacce Pinto Serva [email protected] Vice-Coordenadora Editorial de Artigos Isabela Cassará [email protected] Editores de Matérias Editores de Artigos Ana Carolina Di Giacomo [email protected] André Avillés [email protected] Luiz Guilherme Rossi [email protected] Julia Schulz [email protected] Luis Gustavo Dias [email protected] Mylena Pesso de Abreu [email protected] Otávio Bressan [email protected] Rodrigo Yves Favoretto Dias [email protected] Financeiro e Marketing Guilherme Garcia de Oliveira [email protected] Colaboradores Ana Carolina Saad, Bruno Matos Ventura, Paula Sandoval, Sérgio Pinheiro Marçal Projeto gráfico e direção de arte Raquel Matsushita Produção e diagramação Juliana Freitas / Entrelinha Design www.entrelinha.art.br ASSOCIAÇÃO DE ALUNOS E EX-ALUNOS DA FACULDADE DE DIREITO DA PUC-SP Diretor-Presidente Filipe Facchini [email protected] Diretor Financeiro Guilherme Garcia de Oliveira [email protected] Diretor Executivo Luis Gustavo Dias [email protected] Associe-se [email protected] realização Nota aos leitores As opiniões expressas nos textos são de seus autores e não necessariamente da revista Fórum Jurídico ou da Associação Sapientia de Alunos e Ex-alunos da Faculdade de Direito da PUC-SP. Tiragem: 4.000 exemplares Publicação semestral 2 Fórum j urí di co © Todos os direito reservados. É proibida a reprodução ou transmissão de qualquer parte desta publicação em qualquer formato ou através de qualquer meio, seja eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenamento e recuperação de dados, sem autorização prévia por escrito. foto da capa Adriano Machado | Ag. IstoÉ expediente Editor-Chefe Filipe Facchini [email protected] c a r ta d o e d i t o r F i l i p e F a cc h i n i Carta aos puquianos A criação de um vínculo entre alunos e ex-alunos Após 65 anos de história, é inegável a força que a nossa PUC-SP conquistou no mundo jurídico. Ela formou inúmeros juristas renomados e profissionais de destaque em todos os ramos do direito. Independentemente da área que os alunos escolham seguir, a PUC sempre forneceu o diferencial que os distingue dos demais. Confesso que já reclamei muito de algumas coisas aqui dentro, das mais diversas e, durante muito tempo, não percebi a marca que a PUC deixa em cada um dos seus alunos. Ao ingressar na Faculdade, em minha primeira aula de Processo Civil, o professor Roberto Armelin, antes mesmo de se apresentar, nos disse “Parabéns! Vocês estão na melhor Faculdade de Direito do país”. Aquilo me deixou pensativo. Certamente temos professores incríveis e uma excelente avaliação do mercado de trabalho, porém ainda não conseguia enxergar esse diferencial. Hoje, no 5º ano, percebi que essa diferença existe, sim, em todos nós. Alguns podem perceber mais rápido, outros sequer notam até que se formem, mas a verdade é que essa Faculdade nos transforma. Essa mudança, entretanto, acontece de forma distinta em cada um de nós. O grande número de situações a que somos expostos na PUC nos adapta de maneiras diferentes.A única coisa que posso garantir é que sempre será uma mudança para melhor, que nenhu- F ó r u m ju r í di co 3 c a r ta d o e d i t o r Brasão da nossa recém-fundada Associação Sapientia de alunos e ex-alunos da Faculdade de Direito da PUC-SP F i l i p e F a cc h i n i ma outra faculdade pode oferecer. Aos que ainda não conseguiram perceber, podem aguardar, esse diferencial sempre aparece e fará com que você crie um amor pela Pontifícia. A razão da minha certeza se deu quando - trabalhando para criar nossa recém-fundada Associação Sapientia - fui recebido por todos os ex-alunos, com os quais tive o prazer de conversar, com os braços abertos e imensos sorrisos que diziam “Finalmente vou poder retribuir à Faculdade que tanto fez por mim”. A revista Fórum Jurídico, com corpo editorial formado apenas por alunos da graduação, é a primeira das inúmeras contribuições que a Associação Sapientia trará. Aqui, mostraremos à Nação Puquiana o porquê das palavras do professor Armelin: Essa é a melhor Faculdade de Direito do país! Boa leitura! Filipe Facchini Editor-Chefe 4 Fórum j urí di co f a cu l d a d e p a u l i s t a d e d i r e i t o arquivo fórum Jurídico P U C e m pa u ta Pátio da cruz, no centro do "prédio velho" PUC na sua totalidade Esta seção se presta a mostrar ao estudante de direito da PUC-SP como aproveitar os mais diversos aspectos da vida na faculdade. Festas, viagens, esportes, política e estudos Ana Carolina Di Giacomo e Clara Pacce Pinto Serva Fundada em 10 de outubro de 1945, com a denominação de “Faculdade Paulista de Direito”, tem o dia 22 de agosto de 1946 como o marco de sua criação, pois somente nessa data, com a junção com as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento, passou a ser considerada universidade pelo Governo Federal. A titulação “Pontifícia” foi concedida pelo Papa Pio XII somente em 1947, sendo incluída no nome da faculdade. Um ano depois, em 1948, foi instalada a sede da universidade na Rua Monte Alegre, com a doação de um terreno e uma capela pelas Irmãs Carmelitas. A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo tem o histórico de mais de 65 anos de luta pela democracia e pela justiça brasileira. Uma das características da formação profissional do Direito PUC-SP é o estímulo ao pensamento crítico, à curiosidade, ao debate e à luta por um ideal. Desde o início, o curso de Direito foi formador de grandes pensadores políticos, que se destacaram na história brasileira, principalmente durante o período da ditadura militar. F ó r u m ju r í di co 5 P U C e m pa u ta arquivo fórum Jurídico Assim, mais do que profissionais qualificados, o nosso curso busca formar cidadãos que fazem e farão a diferença na sociedade brasileira. Para tanto, a Pontifícia busca incentivar pesquisas, monitorias, iniciações científicas e intercâmbios para os estudantes, e pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) e lato sensu (especialização). Há, ainda, espaços como a Atlética e o Centro Acadêmico, que permitem uma convivência mais intensa do aluno na faculdade. Nesta seção da revista Fórum Jurídico buscaremos informar aos alunos, em cada uma das próximas edições, os detalhes de cada um dos institutos que brevemente descrevemos aqui, com algumas de suas características. f a cu l d a d e p a u l i s t a d e d i r e i t o CENTRO ACADÊMICO Os estudantes de direito da PUC-SP têm como entidade representativa o Centro Acadêmico 22 de Agosto, atuante desde agosto de 1947. Figurou, no período da Ditadura Militar, como grande defensor da democracia em nosso país, zelando pelos Direitos Fundamentais, hoje transcritos na Constituição Federal de 1988. Não obstante, teve papel relevante em movimentos como o Diretas Já e Fora Collor. No âmbito da PUC-SP, visa assegurar os direitos dos alunos, por meio do acesso pleno e igualitário à universidade. Promove, ainda, palestras e outros eventos. Além disso, o CA preza pela chamada Assistência Judiciária 22 de Agosto, que presta serviços gratuitos nas áreas cível e penal, proporcionando a assistência individual e apoiando a organização comunitária na defesa de direitos. Os mandatos do Centro Acadêmico duram um ano, ocorrendo eleições sempre ao final do segundo semestre. À frente da gestão atual está o Grupo Disparada, formado inicialmente para atuar nos Conselhos da Faculdade (leia mais nas próximas edições), mas cuja atuação se estendeu à política acadêmica. 6 Fórum j urí di co ATLÉTICA A nossa Atlética, mais conhecida como AAA, traz uma forma mais descontraída de se envolver com a vida na universidade. Ela planeja algumas das festas mais conhecidas no meio universitário, como a Advogado do Diabo e a Alphorria, além dos tão esperados Jogos Jurídicos Estaduais. A Atlética também é responsável por organizar e viabilizar treinos de todas as modalidades esportivas, que ocorrem semanalmente no período da noite ou nos finais de semana. Para mais informações, entre no site www. aaa22deagosto.com.br ou procure um representante da Atlética. BATERIA 22 Além da participação na Atlética, a vida na universidade pode se tornar ainda mais descontraída com o envolvimento na Bateria. Inicialmente com a famosa “Baronesa”, agora com inúmeras outras músicas cantadas por to- Segundo andar, onde fica quase todo o curso de Direito. Na página ao lado, rampa que leva à saída da Rua Monte Alegre dos os alunos em festas e nos JJEs, a Bateria 22 é a representante da musicalidade da faculdade. Para tanto, são programados ensaios toda semana, oficialmente aos sábados, às 14 horas, no Monumento às Bandeiras. Para fazer parte da Bateria 22, compareçam aos ensaios! Mais do que profissionais qualificados, o nosso curso busca formar cidadãos que fazem e farão a diferença na sociedade brasileira INTERCÂMBIO O intercâmbio possibilita a troca cultural e acadêmica. Em um mundo cada vez mais globalizado e integrado, complementar um curso de graduação no exterior significa uma grande oportunidade para crescer pessoal e profissionalmente. Pensando nisso, a PUC-SP firmou convênios com algumas das melhores instituições de ensino superior (IES) ao redor do mundo, e criou a Divisão de Cooperação Internacional – ARII, que faz a intermediação entre as IES e o aluno. Assim, aquele que tiver interesse em participar de um intercâmbio, depois escolher a instituição que melhor corresponda às suas expectativas, deverá se inscrever na pré-seleção da ARII, observados os requisitos específicos de cada edital. Uma vez aprovado o candidato, os critérios a serem analisados são: um segundo idioma (se a IES for de língua estrangeira), mediante avaliação; rendimento escolar; conclusão de, no mínimo, dois anos de curso; e, por fim, aprovação em uma entrevista. A oportunidade compreende a possibilidade de fazer cursos e estágios no exterior, realizando um estudo comparado e aprendendo outro método de ensino. Para mais informações, acesse o site www. pucsp.br/arii, da Divisão de Cooperação Internacional – ARII. F ó r u m ju r í di co 7 P U C e m pa u ta f a cu l d a d e p a u l i s t a d e d i r e i t o Capela da PUC na Rua Monte Alegre arquivo fórum Jurídico Depois de aprovado o projeto, deve haver a entrega de parte da pesquisa no prazo de seis meses e a iniciação pronta será entregue no prazo de um ano. Depois disso, haverá a apresentação do estudo no dia do Encontro de Iniciação Científica, momento em que ela será apresentada oralmente e por meio de cartazes, e passará pela análise de professores e alunos. Assim como a Monitoria, a Iniciação Científica pode ou não ser remunerada. Dentro da Pontifícia, existem as modalidades PIBIC-CEPE, PIBIC-CNPq e PIBIC (sem fomento). Descubra mais no site da PUC: www.pucsp.br/ iniciacaocientifica. A Monitoria é o primeiro passo para aqueles que desejam lecionar no futuro INICIAÇÃO CIENTÍFICA Para aqueles que se interessam e querem estudar um determinado assunto, a universidade possibilita fazer sua primeira monografia: a Iniciação Científica. O aluno escolhe um tema, não necessariamente de direito, conversa com um professor da PUC para que ele seja seu orientador e apresenta um projeto, que é um resumo da matéria e das diretrizes do que será estudado. 8 Fórum j urí di co MONITORIA A Monitoria é o primeiro passo para aqueles que desejam lecionar no futuro. É uma atividade técnico-didática, na qual o aluno auxilia um professor na correção e elaboração de seminários, além de instruir outros alunos em seus trabalhos e ajudar na resolução de questões práticas complexas propostas em sala de aula. A monitoria pode ser realizada de maneira voluntária, apenas com o consentimento do professor, ou de maneira oficial, podendo, nessa modalidade, ser remunerada. Nesse caso é preciso fazer um requerimento ao final do semestre na Secretaria da Faculdade de Direito, o qual será deferido apenas se o aluno tiver completado os créditos da matéria, com média de, no mínimo, 8,0. Um monitor ganha experiência na sala de aula e na proximidade com o professor, acrescentando um diferencial em seu currículo. Por isto, esse pode ser um passo importante em sua carreira. n retrospectiva Inovações jurídicas Balanço semestral O direito, mais especificamente a lei posta, altera-se constantemente para acompanhar os avanços da sociedade. No último semestre de 2011, muitos foram os fatos que modificaram a forma como tratamos o direito. Assim sendo, como um meio de fazer uma retrospectiva desses fatos, elencamos algumas leis, decisões e acontecimentos que ocorreram de julho até dezembro de 2011 Raquel Soufen Direito Comercial Lei no 12.441, DE 11/7/2011. Alterou o Código Civil, possibilitando a constituição da chamada Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (eireli). Presente em muitos ordenamentos estrangeiros, a eireli surgiu no Brasil para suprir uma lacuna no ordenamento jurídico nacional. Esse novo instituto resume-se à possibilidade de constituição de pessoa jurídica com um único titular, que não poderá ser responsabilizado por dívidas da eireli. Mesmo sem expressa proibição na legislação, a possibilidade de constituição de eireli por pessoa jurídica é controvertida e foi proibida pelo DNRC. Confira mais sobre a eireli na página 60. Direito Administrativo Lei no 12.462, de 4/8/2011. Criada para suprir a necessidade de um procedimento licitatório diferenciado em virtude dos grandes eventos, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Foi instituído e disciplinado o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC. Entre outras inovações, esta lei permitiu a contratação de controladores de tráfego aéreo temporários, bem como alterou a organização da Presidência da República e dos Ministérios, criando a Secretaria de Aviação Civil. Direito Previdenciário Lei no 12.470, de 31/8/2011. Esta Lei modificou o Plano de Custeio da Previdência Social, de modo a instituir alíquota diferenciada de contribuição para o microempreendedor individual e para o segurado facultativo sem renda própria, desde que pertencente a família de baixa renda e com dedicação exclusiva ao trabalho doméstico na sua residência. Foi incluído no rol de dependentes o filho ou o irmão que tenha deficiência intelectual ou mental, e foram alteradas as regras do benefício de prestação continuada de tais indivíduos. Por fim, ficou determinado que o salário-maternidade da empregada do microempreendedor individual será pago pela Previdência Social. F ó r u m ju r í di co 9 retrospectiva Direito Penal 05/09/2011 – Na decisão do Habeas Corpus 149.250, a Quinta Turma do STJ considerou ilegais as investigações da Operação Satiagraha promovida pela Polícia Federal, por abuso de poder na obtenção de provas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Foram, portanto, anulados todos os procedimentos decorrentes dessa operação, inclusive a ação penal contra o banqueiro Daniel Dantas, do grupo Opportunity, inicialmente condenado por corrupção ativa. Foi interposto Recurso Extraordinário, que aguarda julgamento. Inovações jurídicas Direito Comercial 12/09/11 – Publicado no DJE, a Segunda Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.197.929, decidiu que instituições financeiras têm responsabilidade objetiva em caso de fraudes cometidas por terceiros e devem, por conseguinte, indenizar as vítimas dos fatos fraudulentos, como no caso de abertura de contas ou obtenção de empréstimos mediante o uso de identificação falsa. O STJ considerou que as fraudes dessa espécie seriam riscos do empreendimento, e, portanto, fortuitos internos. Direito do Trabalho Lei no 12.506, de 11/10/2011– Esta Lei dispôs sobre novas regras para a contagem do prazo de aviso prévio. Agora, os empregados que tiverem trabalhado por até um ano na mesma empresa terão direito ao aviso prévio de 30 dias, e aqueles que trabalharam por tempo maior do que esse período terão direito ao acréscimo de 3 dias por ano trabalhado, até o limite de 90 dias. Por exemplo, no caso de um empregado que está há 4 anos na mesma empresa, ele terá direito aos 30 dias referentes ao primeiro ano trabalhado, somado aos 9 dias referentes aos outros três anos de serviço prestado, resultando em um período de aviso prévio de 39 dias. Direito Civil e Constitucional 25/10/2011 Data do julgamento – Decisão do REsp 1.183.378 , da Quarta Turma do STJ. Pela primeira vez, foi dado provimento a um recurso que habilitou duas mulheres ao casamento civil. O STJ seguiu, portanto, o entendimento consolidado pelo STF no primeiro semestre de 2011sobre o reconhecimento da união estável homoafetiva. 10 Fórum j urí di co Direito Constitucional 26/10/2011 – O Pleno do STF decidiu, por unanimidade, negar provimento ao Recurso Extraordinário nº. 603.583-RS, ao defender a constitucionalidade do exame da OAB. Assim, foi definido Direito Comercial 04/11/11 – Publicada no DJE. No julgamento do REsp 884.346, o colegiado do STJ determinou que o terceiro de boa-fé que receber e apresentar antes da data combinada cheque pós-datado – conhecido popularmente como pré-datado – não terá a obrigação de indenizar o emitente por danos morais caso este sofra algum prejuízo. O STJ se posicionou nesse sentido, pois entende que a pactuação extracartular da pós-datação tem validade apenas entre as partes da relação jurídica original, não vinculando terceiros estranhos ao pacto. Direito Tributário 28/10/2011 – Dje – O Plenário do STF deferiu o pedido de medida liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4661 MC/DF), para suspender o art. 16 do Decreto 7.567/2011, que conferia vigência imediata às alterações da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (TIPI). As mais impactantes alterações se resumem na majoração das alíquotas do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre operações envolvendo veículos automotores importados e a diminuição das alíquotas do imposto incidente sobre automóveis fabricados no Brasil. O STF decidiu, portanto, que deve ser aplicado o princípio da anterioridade nonagesimal ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). que o exame não é limite ao exercício da profissão, e sim um atestado de conhecimentos jurídicos. Afirmou-se, ainda, que o exame da OAB não viola o princípio da isonomia, e que, apesar de outras profissões não possuírem tal obrigatoriedade, a Constituição não comporta qualquer vedação à aplicação de exames dessa espécie. Direito Constitucional Lei no 12.527, de 18/11/2011. Regulou os procedimentos específicos a serem observados pela Administração Pública sobre o direito básico de acesso à informação previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal, respeitando o princípio da publicidade, mas excetuando o sigilo. Por meio de tais mudanças, qualquer cidadão tem o direito de solicitar informações de interesse público, sem necessidade de prova de interesse específico. Sob pena de responsabilidade, o agente público não poderá ser omisso ou se recusar a prestar as informações. F ó r u m ju r í di co 11 retrospectiva Inovações jurídicas Direito Comercial Lei no 12.529, de 30/11/2011. Essa lei alterou a estrutura do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC, especificamente no que se refere à prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica e a economia sadia. Tal norma ainda reorganizou as competências dos órgãos que integram o SBDC, como, por exemplo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Das várias modificações introduzidas por essa lei, a mais relevante delas é a exigência da análise prévia das fusões e aquisições entre empresas pelo CADE, que, até então, era feita somente após a consumação da fusão. Direito Comercial Lei no 12.543, de 08/12/2011. O Conselho Monetário Nacional, por meio desta lei ordinária, ficou autorizado a estabelecer condições específicas para negociações com contratos derivativos – contratos nos quais são estabelecidos pagamentos futuros através de um valor-base referente à uma variável – com objetivo de administrar a política monetária e cambial. Outra novidade trazida pela Lei 12.543 foi a necessidade de registro desses contratos pelo Banco Central ou pela CVM, como meio de dar maior publicidade à negociação. Por fim, tal lei ainda definiu a incidência do IOF sobre os contratos derivativos. Direito Constitucional Dje 02/12/2011 – O STF, ao julgar procedente a ADI 4274/DF proposta pelo Procurador-Geral da República, interpretou o § 2º do art. 33 da Lei no 11.343/2006 de maneira a restringir o entendimento e excluir os debates públicos e as manifestações que visem à descriminalização do uso de drogas, como a “Marcha da Maconha”, das sanções impostas pela lei. Tal posicionamento foi tomado com base nos direitos constitucionais de reunião e livre expressão do pensamento. Direito Tributário Lei 12.546, de 14/12/2011. Como uma forma de fomentar a exportação, o fisco fornece às empresas exportadoras a possibilidade de obterem créditos tributários pelo pagamento de certos tributos, que poderão ser utilizados na compensação com outros tributos devidos. Contudo, atualmente esse procedimento sofre limitações legais e depende de grande burocracia. Para tentar solucionar esse problema e incentivar as exportações, foi sancionada a Lei no 12.546, de 2011, que criou o Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários (REINTEGRA), com o objetivo de permitir a devolução de créditos tributários às empresas exportadoras de produtos manufaturados no país. 12 Fórum j urí di co Mundo Jurídico 19/12/2011 Posse da nova ministra do STF, Rosa Maria Weber. Ela ocupará a cadeira deixada pela ex-ministra Ellen Gracie, que se aposentou em agosto. Rosa Maria Weber era ministra do Tribunal Superior do Trabalho, onde ingressou em 2005, por indicação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. n profissão P r o cu r a d o r e p r o m o t o r Ministério Público: essencial à Justiça Isabela Cassará e Ana Carolina Di Giacomo Segundo Vidal Serrano Júnior e Luiz Alberto David de Araujo,1 a denominação “Ministério” teria vindo da palavra manus, que era figura representativa da “mão” do rei. Ministério Público (MP) seria, então, por definição, figura relacionada com um apêndice do Estado, que exerceria o poder de representá-lo. Dessa forma, no período colonial, orientado pelo direito português, o Brasil ainda não tinha o Ministério Público como instituição. Assim, em 1521, as Ordenações Manuelinas, que fiscalizavam o cumprimento e a execução da lei juntamente com os Procuradores dos Feitos do Rei, citaram o papel do promotor de justiça, que deveria ser alguém letrado e bem entendido para saber espertar e alegar as causas e razões para lume e clareza da justiça e inteira conservação dela. Assim, após cinco séculos, no período da República, a Constituição Federal de 1988 faz referência expressa ao Ministério Público no capítulo “Das funções essenciais à Justiça”, conceituando-o e definindo as funções institucionais, as garantias e, finalmente, as vedações de seus membros. A Carta Magna, ao conceituar em seu artigo 127 o parquet como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, sendo responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, acabou por ampliar a evidência do referido órgão na sociedade, transformando a instituição em um braço da população brasileira. Fachada do prédio do Ministério Público Federal, em São Paulo 1 ARAUJO, Luiz Alberto David; e NUNES JÚNIOR.Vidal Serrano – Curso de Direito Constitucional, 12 ed., Saraiva. p. 407. arquivo fórum Jurídico O Ministério Público – órgão fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito e da Justiça – apresenta-se como uma das mais brilhantes e instigantes carreiras do direito 14 Fórum j urí di co A instituição Autônoma Dessa forma, a Carta de 88, considerando o Ministério Público como indispensável ao Estado Democrático de Direito, estabeleceu como suas funções institucionais o dever de promover ação penal pública; exercer o controle externo da atividade policial; requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Além dessas, com a Constituição, na área cível, o Ministério Público adquiriu novas funções, destacando a sua atuação na tutela dos interesses difusos e coletivos, como meio ambiente, consumidor, patrimônio histórico; pessoa portadora de deficiência; criança e adolescente; comunidades indígenas e minorias étnico-sociais, atribuições que ampliaram a evidência do parquet na sociedade. Os artigos 127 a 130 da Constituição estabelecem o rol de garantias tanto da instituição como um todo, quanto dos membros do parquet. Por meio delas, o Ministério Público passou a gozar de autonomia funcional, administrativa, financeira e iniciativa legislativa. Assim, o órgão passou a ter autonomia para exercer suas funções sem precisar se reportar a qualquer órgão de qualquer um dos três poderes. No mais, possui a garantia de exclusividade na propositura de ação penal pública. Quantos aos membros do parquet, eles possuem a garantia tríplice, como é conhecida. Em outras palavras: os membros possuem as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Além dessas, possuem também a garantia de serem organizados com exclusividade por carreira, sendo sua promoção voluntária, seja ela por antiguidade ou merecimento. Pela vitaliciedade entende-se que, após os dois anos de estágio probatório, os membros do MP só perderão o cargo por força de sentença judicial transitada em julgado. A inamovibilidade reflete que um integrante do órgão não pode ser movido contra a sua vontade, salvo por virtude de expressa autorização da maioria absoluta do Conselho Superior do Ministério Público. Por fim, a irredutibilidade de subsídios beneficia os membros do MP com a impossibilidade de redução salarial. A CF de 88 também elenca restrições à carreira: fica proibido o exercício da política partidária, da advocacia e do comércio. Todas essas Ministério Público MP da união MP dos estados MP Federal MP do trabalho MP militar MP do DF e Territórios F ó r u m ju r í di co 15 profissão vedações surgiram em decorrência lógica da necessidade de manter a imparcialidade do MP. O art. 127 do mesmo Diploma elencou três princípios institucionais que regem o Ministério Público, quais sejam: a Unidade, a Indivisibilidade e a Independência Funcional. O primeiro determina que os membros do MP integrem esse órgão como um todo, agindo individualmente, sob a direção de um Procurador-Geral. O princípio da indivisibilidade, por sua vez, esclarece que não há vínculo entre seus membros e os processos em que atuam, admitindo, pois, a substituição de um Procurador por outro. Por fim, o princípio da Independência Funcional esclarece que não há hierarquia funcional entre os membros do Ministério Público, sendo ele um órgão independente no exercício de suas funções. Os artigos 127 e 129 da Carta Magna de 88 indicam as duas formas de atuação do Ministério Público: na condição de órgão agente (parte) ou como interveniente (como custus legis). Atuar como parte significa agir na qualidade de autor da ação, o que representa um grande avanço na Justiça Especializada, a fim de exercer a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. P r o cu r a d o r e p r o m o t o r Os direitos difusos são aqueles que ultrapassam a esfera de um único indivíduo, referindo-se a pessoas indeterminadas; quando respeitados, atingem uma coletividade. Os direitos coletivos, por sua vez, são aqueles de natureza indivisível e se referem a um grupo de pessoas conectadas por uma relação jurídica entre si ou com a parte contrária, sendo os sujeitos indeterminados, porém determináveis. Por fim, os direitos individuais homogêneos dizem respeito a pessoas que, embora indeterminadas a priori, poderão ser determinadas posteriormente (e cujos direitos são ligados por um evento de origem comum), em consequência de um direito de origem comum. A fim de dar maior especificidade ao trabalho e de maneira a promover uma melhor administração, o Ministério Público foi divido em dois: o Ministério Público Estadual (MPE) e o Ministério Público da União (MPU). Este último é, por sua vez, subdividido nas seguintes áreas: Federal (MPF), do Trabalho (MPT), Militar, e do Distrito Federal e dos Territórios. Há, ainda, o Ministério Público de Contas, que exerce suas funções junto ao Tribunal de Contas da União. Arquivo Fórum Jurídico ‘ Como essência, o MP é a instituição em defesa da sociedade contra o arbítrio do próprio Estado. Pedro Henrique Demercian Pedro Henrique Demercian é mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), onde atualmente ministra aulas no curso de graduação e pós-graduação lato sensu (COGEAE). Demercian é também Procurador de Justiça Criminal no Ministério Público do Estado de São Paulo, e assessor da Procuradoria-geral de Justiça de São Paulo no Setor de Recursos Extraordinários e Especiais Criminais. 16 Fórum j urí di co Voc Os membros do mpe são divididos, ês abi a? de acordo com o respectivo grau de jurisdição, em promotor de justiça, procurador de justiça e procurador-geral de justiça, como chefe do mp. O MPU tem como chefe o Procurador-Geral da República, que é nomeado pelo Presidente da República escolhido entre os membros da carreira para um mandato de dois anos. Para alcançar tal cargo, o candidato deve ter mais de 35 anos completos e ser aprovado por maioria absoluta no Senado Federal. O Ministério Público Estadual e o do Distrito e Territórios, por sua vez, têm como chefe a figura do Procurador-Geral da Justiça, o qual é nomeado pelo Chefe do Poder Executivo local, que o escolhe com base numa lista tríplice elaborada pelos próprios membros das respectivas instituições. O Ministério Público do Trabalho integra o Ministério Público da União, por força do art. 128 da Constituição Federal de 88, atuando especificamente perante a Justiça do Trabalho, visando à defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. As funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira do MP, com residência na Comarca da respectiva lotação, salvo autorização do Chefe da Instituição, o Procurador-Geral de Justiça ou da República. O ingresso na mencionada carreira far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, Trabalhar no Ministério Público, instituição fundamental a manutenção do Estado Democrático de Direito, da sociedade e da justiça, é um grande atrativo assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do bacharel em direito três anos de atividade jurídica e observando-se, nas nomeações, a ordem da classificação. O requisito As atividades jurídicas consideradas como experiência são computadas a partir da obtenção do diploma em Direito e incluem o exercício da advocacia, inclusive voluntário, com a participação anual mínima em cinco atos privativos de advogado; exercício do cargo, emprego ou função (incluindo magistério superior) em que se utilizem preponderantemente conhecimentos jurídicos; exercício da F ó r u m ju r í di co 17 profissão Você P r o cu r a d o r e p r o m o t o r ? a i b sa Os membros do mpu são divididos, de acordo com o respectivo grau de jurisdição, em procurador da República, procurador regional da República e procurador-geral da República, que é chefe do mp da União. função de conciliador em tribunais judiciais, juizados especiais, varas especiais, anexos de juizados especiais ou de varas judiciais, de mediador ou árbitro em litígios, pelo período mínimo de 16 horas mensais e durante um ano; estágio após a conclusão do curso; cursos de pós-graduação concluídos, com um ano de duração e carga horária de 360 horas-aula; atividade jurídica em cargos, empregos ou funções não privativas de advogado mediante certidão circunstanciada. A título de curiosidade, conforme o edital2 do último concurso do Ministério Público do Estado de São Paulo, o salário inicial para os ingressantes nesta carreira era de R$ 19.643,80 (dezenove mil, seiscentos e quarenta e três reais e oitenta centavos). Destaca-se que os membros do MP podem vir a se tornar Desembargadores ou Ministros 2 http://concursosde2011.com/concurso-ministerio-publico-sp-2011.html 18 Fórum j urí di co do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Isso por conta do chamado “quinto constitucional”, previsto no art. 94 da Constituição Federal, que é assim denominado, pois prevê que um quinto dos membros dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça deverá ser composto por membros do Ministério Público. Para tanto, o candidato deverá ter mais de dez anos de carreira e ser indicado para esses tribunais numa lista com seis outros membros. Diante do exposto, podemos concluir que a instituição do Ministério Público é fundamental tanto para a manutenção da sociedade quanto da Tripartição dos Poderes e, finalmente, do Estado Democrático de Direito. No mais, além das diversas possibilidades de formas de atuação, o Ministério Público acaba por ser uma ótima opção para os bacharéis em direito que desejam seguir carreira pública, pelas garantias e pela remuneração propiciadas aos seus membros. n escritório Pinheiro neto advogados Advocacia de tradição No ano em que completará seu 70o aniversário, o escritório Pinheiro Neto Advogados mantém-se como uma das bancas mais admiradas e respeitadas da América Latina Raquel Soufen Ao lado, chapéu e maleta que pertenciam a J. M. Pinheiro Neto 20 Fórum j urí di co Pinheiro Neto Advogados teve sua origem na moderna concepção de escritório de advocacia que existia nas firmas britânicas. Seu fundador, José Martins Pinheiro Neto, que foi correspondente jornalístico da BBC em Londres durante a Segunda Guerra Mundial, ao retornar ao país, utilizou como base o modelo das firmas na Inglaterra para criar no Brasil o conceito full-service para o setor. Fundado em 1942, Pinheiro Neto Advogados é reconhecido como um dos maiores e mais tradicionais escritórios de advocacia da América Latina, tendo crescido de maneira orgânica, sem fusão ou associação, diferente da maioria dos escritórios de advocacia brasileiros. Com o passar dos anos, o escritório passou a adotar algumas das ideologias de seu fundador, que incorporou ao modelo princípios básicos, tais como o aprimoramento constante dos profissionais, o escritório estar acima de qualquer sócio, o dinheiro não ser o objetivo e o lucro ser só uma consequência.Apesar de ter se afastado do escritório em meados dos anos 2000, os princípios que ele trouxe ainda fazem parte do escritório. Equipe e renovação O escritório conta hoje com uma equipe formada por 78 sócios, 10 consultores, 265 advogados, 103 estagiários e 56 paralegais. Apesar de seu tamanho, não perde a qualidade, seus profissionais estão entre os mais bem qualificados do mercado e são presenças constantes em publica- F ó r u m ju r í di co 21 Fotos: arquivo Pinheiro neto advogados escritório Pinheiro neto advogados Réplica da sala do fundador, localizada no museu do escritório O grande diferencial do Pinheiro Neto é que o nosso crescimento é baseado totalmente na capacidade de crescer organicamente. Um estagiário aqui é visto como um futuro sócio 22 Fórum j urí di co ções jurídicas como Chambers & Partners e Who’s Who Legal. Na opinião do advogado Alexandre Bertoldi - sócio gestor do Pinheiro Neto - existe uma pressão interna para que os advogados constem em publicações desse tipo, pois elas fazem com que haja uma percepção mais realista do profissional. “O importante dessas publicações é que, via de regra, o próprio mercado, isto é, uma percepção externa - e não interna - faz com que você seja ou deixe de ser citado”, opina Bertoldi. Um motivo de orgulho para o escritório é o fato de que não só os sócios são mencionados, mas a cada ano mais associados são citados em publicações assim. O Pinheiro Neto entende que o fato dos associados constarem nessas publicações é um reconhecimento de que está no caminho certo. “Um escritório que não se renova e que fica sempre fossilizado, girando em torno das mesmas pessoas, pode ir muito bem no presente, mas, no longo e médio prazo, ele tende a decair. O fato de ter sempre essa renovação mostra que nós estamos criando o Pinheiro Neto do futuro.” Plano de carreira O plano de carreira do Pinheiro Neto é muito bem de- em dia, 95% dos atuais advogados e sócios do escritório foram estagiários da firma. “O grande diferencial do Pinheiro Neto é que o nosso crescimento é totalmente baseado na capacidade de crescer organicamente, um estagiário aqui é visto como um futuro sócio.” É justamente pelo fato de prezar pela formação do indivíduo que o Pinheiro Neto, no momento da seleção de estagiários, não escolhe apenas os indi- víduos que tenham o currículo recheado de experiências, ou que tenham profundo conhecimento na área em que atuarão. O aprimoramento do estagiário dentro do escritório é o ponto mais importante para o crescimento dele com base nos padrões desejados. Entretanto, o sócio gestor do escritório destaca que se leva em consideração o interesse, curiosidade e dedicação da pessoa: “Serão dois anos Plano de carreira consultores finido e tem por base a meritocracia. Bertoldi relata que “a partir do momento em que a pessoa se torna estagiário aqui, literalmente só dependerá dela, porque nós temos um plano de carreira que é completamente previsível. A pessoa pode ter mais sorte ou mais azar, pode acontecer algo que torne o caminho mais difícil, como a quebra da bolsa de Nova Iorque, mas normalmente o caminho já está traçado”. O escritório possui uma política de não contratar profissionais formados no mercado. “Na verdade, o Pinheiro Neto busca formar o indivíduo.” Esse ideal de investir em seus estagiários é antigo, motivo pelo qual, hoje sócios Categorias de associados seniores Categorias de associados plenos Categorias de associados juniores assistentes jurídicos auxiliares jurídicos Estagiários F ó r u m ju r í di co 23 escritório Pinheiro neto advogados Sede em SP A qualidade dos profissionais é sem dúvida um dos maiores atrativos do escritório, motivo pelo qual ele está rotineiramente presente nas grandes negociações 24 Fórum j urí di co bem interessantes, já que o estagiário terá contato direto com a prática, vai conviver com pessoas que têm bastante experiência, vai trabalhar em casos interessantíssimos e vai ficar eufórico quando aquela operação em que ele está trabalhando aparecer na primeira página da Folha ou do Estado de São Paulo. Basicamente, tem que ser uma pessoa curiosa, que queira e esteja interessada”. A efetivação dos estagiários acontece no início do quinto ano da faculdade, como forma de aliviar os alunos da pressão do final do curso, cumulada com os estudos para a prova da OAB e a luta por uma vaga no local de trabalho. O investimento em formação profissional que a firma tem como política começa dentro do próprio escritório: o Pinheiro Neto oferece inúmeros cursos, e para cada promoção existe um número de créditos que deverão ser cumpridos. Além disso, o escritório oferece bolsas de estudo para pós-graduação no Brasil ou até mesmo LL.M. em universidades do exterior, tais como Harvard, Stanford e Columbia. Aprimoramento profissional O LL.M. é muito incentivado pelo escritório: os advogados costumam ficar dois anos fora do país, no primeiro ano cursando o LL.M. e no segundo trabalhando em um escritório estrangeiro. Com essa experiência, além de se aprimorar profissionalmente, o advogado também agrega valores no as- Deck do escritório no RJ pecto pessoal e passa a saber como lidar com situações com as quais não está acostumado. A qualidade dos profissionais é, sem dúvida, um dos maiores atrativos do escritório, motivo pelo qual ele está rotineiramente presente nas grandes negociações. Algumas das recentes operações foram as fusões das empresas de varejo Casas Bahia e Pão de Açúcar e das empresas aéreas LAN e TAM. Responsabilidade Social Além dos inúmeros casos e da rotina de trabalho o escritório nunca deixou de ajudar a comunidade a que pertence. O escritório sempre teve, ainda na época do fundador, José Martins Pinheiro Neto, instituições que ajudava, quando ainda nem era comumente empregada a denominação ONG. O Pinheiro Neto investe em causas sociais com foco em educação, saúde, cultura, meio ambiente, entre outras, pois acredita que em um país como o Brasil é impossível fugir da responsabilidade social. Dessa forma, foram criados projetos de incentivo socioambiental, entre os quais se destacam a limpeza do rio Pinheiros, com o projeto Pomar, e a revitalização do centro de São Paulo. Hoje o Pinheiro Neto possui uma Comissão de Reponsabilidade Social que lidera tais iniciativas, com Alguns Prêmios do Escritório Who’s Who Legal Chambers & PartnersAnálise AdvocaciaPrêmio DCI •“Firm of the Year” (2006-2010) • “Brazilian Firm of the Year” (2009-2011) •Único escritório brasileiro a figurar na lista dos 70 principais escritórios de advocacia do mundo •“Latin American Firm of the Year” (2009-2010) • Sete vezes •“O mais admirado seguidas eleito escritório de o escritório advocacia do Brasil” de advocacia (2006-2011) mais admirado do Brasil F ó r u m ju r í di co 25 escritório Pinheiro neto advogados Biblioteca localizada no escritório de SP apoio a diversos projetos, entre os quais podemos citar a entidade Alfabetização Solidária, a TUCCA – Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer e a Associação Águas Claras do Rio Pinheiros. Para eles não se trata apenas de doar, mas de conseguir o envolvimento das pessoas. Para conhecer um pouco e entender melhor o funcionamento do Pinheiro Neto, acompanhe nossa entrevista com Alexandre Bertoldi: 1) O Pinheiro Neto ocupa posição de destaque entre os grandes escritórios do Brasil há muitos anos. Geração após geração não se pode dizer que tenha havido desgaste. Qual o segredo para se manter no topo? 26 Fórum j urí di co É mais difícil se manter no topo do que chegar ao topo. Para chegar, se você tem algumas ideias, tem um norte, uma estratégia e coerência na execução da sua estratégia, eu acho que você tem grandes chances de alcançar o topo. Mas manter-se no topo é mais difícil, porque você passar a ser o alvo. Eu acho que o segredo do escritório é ser uma verdadeira sociedade entre iguais. O sócio que entrou ontem e o sócio mais antigo, numa assembleia de sócios, a voz e o voto deles têm o mesmo peso. Eu acho que isso é o que ajuda o escritório a se manter no topo e, ao contrário de outros escritórios, houve poucas cisões. A partir dessa união dos sócios, e também pela filosofia de que o es- critório é mais importante do que cada um dos sócios, conquistamos coisas que não são o interesse individual de cada um, mas que são do interesse da sociedade, e que acabam por manter o escritório em posição de destaque. Eu acho que é a união entre os sócios que faz disso uma verdadeira sociedade. É tudo questão de fazer bem-feito, e o dinheiro é consequência disso. 2) O Pinheiro Neto atua em praticamente todas as áreas do Direito. Quais são as áreas que, na opinião do escritório, devem evoluir? Essa é a pergunta de um milhão de dólares para qualquer escritório que quer se projetar nos próximos anos. O Brasil não é um bom país para fazer exercício de futurologia. É nítido que algumas áreas atingiram uma maturidade. Outras áreas, até pelo momento do país, que devem crescer muito, são as áreas de infraestrutura e financiamento de projetos, Project Finance, nas quais há muita coisa a ser feita. Até hoje o Brasil seguiu o padrão de que ou é o capital privado que faz o investimento direto, ou é o BNDES que faz os gran- Allex Ferreira O advogado Alexandre Bertoldi, sócio gestor do Pinheiro Neto des financiamentos. Eu creio que na próxima fase muitos desses projetos só serão criados com o financiamento do mercado financeiro. Por isso, calculo que a área de financiamento de projetos tende a crescer muito nos próximos anos. Acho que outra área que tende a crescer muito, até pelas vicissitudes do judiciário, é a área de arbitragem, porque você não tem necessariamente um processo mais barato, mas você tem um processo mais célere e existe a percepção de que haverá uma decisão mais bem informada, principalmente no que diz respeito a questões mais sofisticadas. 3) O modelo workaholic das grandes firmas não está na contramão da atual discus- são sobre equilíbrio entre qualidade de vida e vida profissional? Creio que de uma certa maneira está sim. Esse modelo clássico, adotado não só pelos grandes escritórios daqui, mas também pelos de fora, de Nova Iorque, de Londres, é um modelo que precisa ser repensado. Acho que muitas pessoas já não se interessam pela possibilidade de se tornarem sócias, que era o grande atrativo. Muitas pessoas hoje em dia param e pensam “Não sei se quero a vida da minha chefe”, que é uma vida com muito pouco controle sobre o seu horário, sobre sua vida em geral. Por isso, creio que devemos reinventar esse modelo, pensar em alguma forma de fazer a pessoa trabalhar aqui sem ter que se dedicar excessivamente ao escritório. Por outro lado, se você está numa grande operação nesses escritórios empresariais, não existe a possibilidade de você olhar no relógio e dizer “olha, são 18 horas e combinei de ir ao cinema com a minha mulher, vamos parar por aqui, amanhã retomamos”, não é assim. Se você está discutindo centenas de milhões, às vezes bilhões de dólares, o ritmo é intenso mesmo. Talvez tenhamos que criar um modelo em que aqueles que querem e estão dispostos a trabalhar muito possam ter essa vida, e aqueles que não querem e desejam ter uma vida mais previsível também consigam um lugar no escritório, não necessariamente atingindo o mesmo resultado final. 4) Qual conselho o senhor daria para os atuais estudantes de direito e estagiários? É difícil dar conselho, porque cada um é cada um. Mas meu conselho genérico é: sejam curiosos e sejam coerentes na busca do que vocês querem. Um grande erro que uma pessoa faz é dizer que quer uma coisa, mas as atitudes e a maneira como ela se comporta não refletem isso. Então, se você quer ser advogado de um escritório grande, você tem que saber o que o escritório espera de você. Não é pelo dinheiro, você tem que estar realmente convencido do que quer. Da mesma forma, se a pessoa quiser ser um promotor ou um juiz, ela tem que saber que precisará estudar muitas horas. Em resumo, não basta declarar uma intenção, é preciso fazer as escolhas e tomar as atitudes para atingir o seu objetivo. n F ó r u m ju r í di co 27 perfil 28 Fórum j urí di co José eduardo cardoZo José Eduardo Cardozo: da PUC ao o i r é t s i n Mi Luis Gustavo Dias e Ana Carolina di Giacomo / Fotos: Allex Ferreira O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo F ó r u m ju r í di co 29 perfil sde e d s o Tem José eduardo cardoZo a aria t e r c e S SOBRE O MINISTRO O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, é formado em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde é professor de Direito Administrativo. Foi também na Pontifícia que ele iniciou sua carreira política e onde concluiu o mestrado. De 2003 a 2011 foi deputado federal pelo Estado de São Paulo. Desde 1º de janeiro de 2011, ocupa o cargo de Ministro da Justiça. 30 Fórum j urí di co até a ica l b ú P nça Segura o c i m ô on c E o t i l Dire aciona aria t e r c e S de N de Mundo Político Como é sua rotina de Ministro da Justiça? Minha rotina é não ter rotina. Tenho saído muito tarde do Ministério. Houve dia em que saímos às duas e meia da manhã, onze horas, meia-noite. E é normal que seja assim, porque tratamos de muitos assuntos diferentes. O Ministério da Justiça é um dos ministérios mais curiosos. É o primeiro ministério, e, portanto, possui atribuições residuais, o que nos leva a tratar de muitos assuntos diferentes em um mesmo dia. Participamos em todas as relações como o Poder Judiciário, do ponto de vista da nomeação de magistrados, do ponto de vista de política judicial, inovações legislativas etc. Temos “da Toga à Tanga”. A toga dos magistrados e a tanga na Funai. E isso é altamente complexo, temos assuntos cotidianos muito pesados. E tudo isso exige da parte do Ministro ou do Gabinete do Ministério uma atuação dedicada. Quase não se tem rotina, tanto que, pela primeira vez desde que comecei a dar aula na PUC (iniciei em 1982), tive que tirar licença. Permaneço dando aulas no curso de especialização na Escola Paulista de Direito (EPD) ou coordenando. Isso porque, além da questão financeira, gosto de dar aulas e minha profissão é essa. Por que não concorrer à reeleição para o terceiro mandato como Deputado Federal? Fiz uma carta para todos os meus eleitores dizendo que não disputaria eleição naquele ano. Inclusive disse na carta que enalteço e aplaudo aqueles que, pensando como eu, partindo dos mesmos princípios, resolveram permanecer disputando eleições. Depois de dezesseis anos de parlamento e cinco eleições, eu não me sentia mais à vontade para disputar um mandato proporcional em um sistema como o nosso, em que o financiamento de campanhas é caríssimo. A obtenção de recursos em uma campanha para quem se pauta pela ética é cada vez mais constrangedora. Penso: “não é justo; estou me comportando eticamente, com decência, faço uma campanha espartana dentro daquilo que existe” e sou tido muitas vezes como culpado até que provem o contrário? Uma vez minha filha me perguntou se o nosso dinheiro era roubado. “Como roubado?” eu questionei. E ela me respondeu: “Não, papai, é que na escola estão dizendo que você é ladrão”. Na hora eu respondi: “Filha, você vê que eu trabalho, e que a sua mãe trabalha”. Eu sempre fui parlamentar e sempre dei muitas aulas, muitas. Porque gosto e porque ganhava bem fazendo isso. Aí, de repente, você chega em uma fase da vida e fala “e ainda vão me chamar de ladrão?” É complicado. É o que eu digo, se o nosso sistema político não passar por uma reforma, ele não deixará de ser expulsório de pessoas que têm uma preocupação ética. Por isso respeito, admiro e aplaudo as pessoas que permanecem na política pensando como eu penso. Um dos maiores enfoques da sua política é o combate ao tráfico de drogas. Por quê? Umas das preocupações que temos no Ministério da Justiça é a questão da segurança pública, que foi definida pela Presidente Dilma como o objetivo prioritário do Governo no combate à violência, e ao tráfico de drogas. Esse é o eixo central em que temos que intervir. Sem sombra de dúvidas, o tráfico de drogas, além de ser uma mal em si, é um elemento gerador de violência. Por isso, temos de atacá-lo firmemente, e para isso é necessário que se desenvolvam políticas. Então, colocamos tudo isso como uma prioridade e já temos desenvolvido algumas políticas importantes: o plano de fronteiras, que realizamos em paralelo ao Ministério da Defesa; o plano de modernização do sistema prisional brasileiro; e o plano nacional de enfrentamento a drogas, que estamos fazendo junto com o Ministério da Saúde. Serão quatro bilhões investidos até 2014, que envolvem segurança pública e saúde pública. Temos também a campanha do desarmamento, que representa um ponto forte da nossa política de combate à violência, tendo sido feita esse ano com a arrecadação de mais de 35 mil armas, muitas das quais são de ‘ É o que eu digo, se o nosso sistema político não passar por uma reforma, ele não deixará de ser expulsório de pessoas que têm uma preocupação ética. F ó r u m ju r í di co 31 perfil José eduardo cardoZo grosso calibre. Tudo isso, nessa perspectiva, de combate ao tráfico de drogas. ‘ Acredito que todo órgão deva ser fiscalizado. Porque isso é uma premissa da convivência do Estado moderno. 32 Fórum j urí di co Qual sua opinião sobre a polêmica do CNJ? Sou e sempre fui favorável a que todas as atividades funcionais, principalmente as atividades públicas, fossem fiscalizadas. Essa é uma premissa básica do Estado de Direito. É necessário que o Poder tenha limites. A ideia do limite ao poder não é fácil de ser estabelecida. E a fiscalização em relação aos atos de arbítrio, o abuso de poder, a essência desses limites também não é fácil de ser estabelecida. Por isso acredito que todo órgão deva ser fiscalizado. As pessoas do mundo público não podem temer serem fiscalizadas, porque isso é uma premissa da convivência do Estado moderno. Essa é minha premissa. Porque eu não tenho falado dessa questão do CNJ? Pois, como Ministro da Justiça, qualquer referência que faça, neste momento, implicaria uma intromissão de um agente do Poder Executivo no Poder Judiciário. Então, por essa razão, para que não se qualifique nenhuma situação de intromissão do Poder Executivo em assuntos do Poder Judiciário, é que eu não tenho falado, nem posso falar sobre o caso concreto, sobre essa tensão que existe na relação entre o CNJ com entidade de classe da Magistratura ou com outros órgãos jurisdicionais. O senhor é favorável à união estável homoafetiva? Sou absolutamente favorável ao reconhecimento da união estável homoafetiva. Temos que perceber que essas são relações sociais que existem, e são totalmente normais. Os indivíduos não podem fechar os olhos para elas e fingir que não existem por conta de preconceitos e discriminações. O reconhecimento jurídico dessas uniões é de suma relevância. Acredito ser de grande importância para a vida social moderna. Uma das coisas que mais me atinge como ser humano é o preconceito, não há sentimento nem postura pior do que ele. A palavra preconceito é muito rica. Ela fala em pré-conceito, conceito prévio, conceito que vem antes da constatação da realidade. E, por meio desse conceito prévio, pessoas não são tratadas como seres humanos, não são respeitadas em seus direitos, são violentadas em situações mínimas de convivência. Esse tipo de preconceito deve ser superado e uma forma de fazê-lo é justamente perceber que essas relações existem e que devem ter sua eficácia jurídica reconhecida, ou seja, isso, além de correto em si mesmo, tem um elemento pedagógico-social muito importante. Uma vez que induz as pessoas a perceberem que as relações humanas devem ser baseadas, no que diz respeito à liberdade individual, naquilo que, Uma da s cois as que atinge mais m como s e er hum ano é o há sen , não timent o nem pior d postur o que a ele precon ceito obviamente, o indivíduo buscou como sua orientação. Como vai ser a questão financeira e de infraestrutura para a Copa? No Ministério da Justiça temos a Secretaria da Copa e também criamos a Secretaria Especial de Segurança para Grandes Eventos. Normalmente, a política de segurança pública é feita pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, mas os grandes eventos (Copa do Mundo, Olimpíadas, Rio mais 20, Copa das Confederações e a vinda do Papa) têm exigido uma especial atenção.Especialmente a Copa do Mundo em 2014, porque exige muita infraestrutura, aeroportos e uma série de questões que estão sendo desenvolvidas pelas áreas específicas. Mas, da nossa parte, há de ser garantida a segurança nos grandes eventos. Por isso, temos um plano já fechado sobre a segurança nesses casos. O objetivo é dar uma excelente segurança na Copa de 2014, mas também deixar um legado, ou seja, deixar um ganho de segurança pública para a política comum. Por que não foi feito isso no Pan? Esse é um dos grandes problemas. Acho que na questão do Pan faltou uma amarração mais forte com o legado, embora muita coisa tenha ficado. Por exemplo, o centro de Comando e Controle do Rio de Janeiro, que será um dos grandes centros de comando e controle que teremos na Copa do Mundo, já está montado, porque foi feito no Pan. Agora, a Copa do Mundo tem outra característica, são doze cidades-sede, com características bastante diferenciadas. F ó r u m ju r í di co 33 perfil José eduardo cardoZo entar r f n e ifica n g i s esmo r m a n o r a e Gov ta do n o c r muitos ir da u g e s n e co tempo todos e d o recad s a m e l prob Nós aprendemos com os erros e acertos do Pan, e vamos projetar a política para que, além de uma boa segurança, deixemos um legado para a segurança pública. Falou-se na possível suspensão do CDC como exigência da FIFA. Qual a sua opinião sobre o assunto? Há uma série de exigências que acredito que devam ser analisadas com bastante cuidado pelo Congresso Nacional. Existem diversas exigências, desde a criação de regras processuais próprias até admitir a venda de bebidas nos estádios, que nossa legislação não permite. Há uma série de questões que estão sendo discutidas hoje no Congresso Nacional. E algumas delas podemos aceitar. Mas também não podemos mudar toda nossa sistemática por causa de um evento, quando a sistemática dá conta do recado. 34 Fórum j urí di co O dinheiro dos “grandes eventos” poderia ser investido de outra maneira? O ganho é descomunal do ponto de vista turístico e de uma série de questões. Ou seja, a Copa do Mundo é um encontro esportivo com data marcada, que vai obrigar a fazer muitas obras que são necessárias não só para a Copa do Mundo, mas também para a vida da sociedade. A questão da mobilidade urbana, a questão da segurança e uma série de outras questões serão promovidas com data marcada, obrigando União, Estados e Municípios a agirem juntos, o que acho extremamente positivo. Além de ser um evento esportivo que divulga o país, que traz turismo, ele implica gastos que geram construções que ativam o mercado, mas, além disso, deixa um legado fantástico. Serão doze cidades-sede que terão os centros de comando e controle. Isso nos forçará, e já estamos pensando nisso, a colocar pequenos centros de controle em outras cidades. Portanto, a Copa do Mundo é um evento com data marcada, que nos obriga a seguir um cronograma que pode mudar hábitos, que pode mudar rotinas, que pode trazer um resultado não apenas bom para os eventos, mas bom para o país. Acredito que esses eventos esportivos são muito bem-vindos. E, com isso, acabamos deixando um pouquinho as disputas políticas para as horas das eleições, porque senão ninguém sobrevive do ponto de vista dos planos que devem ser feitos. Então, hoje você vê os governadores preocupados com as obras; questões dos transportes sendo enfrentadas em conjunto, coisas que não seriam feitas se não tivéssemos hora marcada para realizá-las. Temos um problema seríssimo nos aeroportos e o que está mobilizando toda a energia pra resolver é a Copa do Mundo. Claro que iríamos resolver o problema, mas sempre com aquelas desarticulações características. Agora, temos que ter aeroporto até 2014. Tem que estar resolvido, não tem meio termo. Então, isso é extremamente interessante do ponto de vista do desenvolvimento de políticas públicas. Não seria melhor investir em educação? Temos que enfrentar a situação da educação. Uma coisa não desobriga a outra. Quando se gera emprego, renda, ativa-se a roda da economia do país e isso reflete também em impostos e em uma série de situações que vamos desenvolver. Educação é fundamental, mas não se pode perder de vista outros lados, outras políticas que também devem ser desenvolvidas. Deve-se enfrentar todas: saúde, segurança pública, entre outras. Por exemplo, nesses eventos internacionais, o Brasil vai ter um despertar político impressionante, que nunca teve. Veja o Rio de Janeiro. Ele foi, em certa medida, transformado pelo Pan. Será transformado pela Copa do Mundo. No que se refere ao investimento em turismo, temos um inves- timento irrisório perto do que países europeus realizam. E podemos oferecer um turismo maravilhoso. Com os grandes eventos somos obrigados a investir em infraestrutura hoteleira, infraestrutura turística, em aprendizado de línguas. Há uma série de questões que são motivadas. Governar significa enfrentar muitos problemas ao mesmo tempo e conseguir dar conta do recado de todos. Essa é a grande questão. O Brasil está em uma era de grande expansão econômica. O Judiciário tem acompanhado o crescimento do país? Nossa estrutura judicial - isso não é culpa dos juízes, é culpa de todo mundo – está muito aquém das nossas necessidades. O Judiciário ainda é moroso, ainda é lento, e há uma série de questões que precisam ser enfrentadas. Ainda temos processos que são costurados com a mesma linha ou algo muito próximo com que Pero Vaz de Caminha amarrou a Carta e mandou para o rei em Portugal. É inacreditável que, enquanto você faz saques bancários pela internet, o cliente tem que ir lá pegar autos todos amarrados com uma linha e pegar um carrinho de su- ‘ A Copa do Mundo é um encontro esportivo com data marcada, que vai obrigar a fazer muitas obras que são necessárias não só para a Copa do Mundo, mas também para a vida da sociedade. F ó r u m ju r í di co 35 perfil ‘ José eduardo cardoZo permercado para transportar os processos. Quer dizer, são coisas inacreditáveis que ainda existem. Estamos muito atrasados. Falta muito. A reforma do judiciário é uma reforma que está muito atrasada, embora tenha andado muito nos últimos tempos. A PUC fez e faz a minha vida. Entrei na PUC em 1977, ano em que foi invadida pelas forças militares. 36 Fórum j urí di co Mundo PUC Resuma a PUC em uma frase: “A PUC fez e faz a minha vida.” Entrei na PUC em 1977, ano em que foi invadida pelas forças militares. Havia um ato na porta do TUCA – de que eu não participei, porque eu tinha uma prova um dia depois, e também pelo receio. No dia seguinte, quando cheguei à faculdade para fazer a prova, a PUC estava totalmente cercada por carros blindados e tropas e as aulas tinham sido suspensas. Quando finalmente entrei na Universidade, vários amigos meus tinham sido presos, o presidente do CA tinha sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional, e as salas de aulas, a biblioteca e o CA haviam sido destruídos. Todo mundo na vida, por mais medo que tenha das coisas, chega num ponto em que não pode ficar quieto. O episódio da ditadura me conduziu ao movimento estudantil. E isso, de certa forma, fez a minha vida e ainda faz. Eu tenho um lado acadêmico, sou professor, gosto de dar aulas, gosto de escrever, de estudar, de fazer pareceres, de produzir textos jurídicos. Isso faz parte da minha essência, mas se soma ao lado da política. Então, aquilo me fez ir para a atividade política. Me tornei vereador, depois deputado. Hoje ministro. Na realidade, a minha vida tem dois lados: o lado acadêmico e o lado político, e foi isso o que a PUC me proporcionou. Seguramente eu não seria a mesma pessoa se não tivesse entrado na PUC, minha vida certamente teria tomado um rumo diferente. Mas, ainda, a PUC me trouxe um outro diferencial que, em geral, os outros cursos não fornecem: o pensamento crítico. Especialmente para quem faz direito, nós estamos muito habituados a pensá-lo como lei, como dogma, é algo muito prevalecente em nossa formação. A PUC me trouxe a ideia da análise crítica do pensamento jurídico, isto é, pensar nos valores e princípios que estão além da lei. Debater a ideia de justiça, de ética, de transformação. O curso que tive na PUC não foi convencional e restrito, e Mas, a inda, a PUC outro me tro uxe um em ger al, os que, outros fornec em: o cursos pensam não ento c rítico difere ncial sim amplo e com preocupação crítica. Embora eu tenha estudado e compreendido a dogmática jurídica, sem sombra de dúvida, a preocupação crítica foi mais importante até do que se eu tivesse só estudado ou só aprendido a refletir o direito sobre o mundo da dogmática. A PUC me fez o que eu sou. Se eu tivesse que refazer situações da minha vida, muitas eu refaria, mas ter entrado na PUC, não. Eu não mudaria um milímetro da oportunidade que a vida me deu ao cursar essa universidade. Os alunos da PUC são mais politizados? Todo mundo se adapta um pouco ao meio em que está. Às vezes você pode encontrar pessoas muito críticas que quando entram em uma universidade são totalmente castradas em sua perspectiva, seja porque têm relações autoritárias com professores, seja porque a metodologia transforma o aluno em objeto e o professor em sujeito. Por outro lado, existem pessoas que são muito reprimidas e quando entram em ambientes que lhes permitem desenvolver a dimensão crítica de seu ser se desenvolvem, desabrocham em uma perspectiva do pensamento não paralisado, do pensamento não “ensimesmado”. As pessoas, por oportunidade de vida, chegam à universidade das formas mais diferentes possíveis, mas a PUC proporciona o espaço de relação e reflexão livres. É evidente que há professores que são mais autoritários e outros menos, mas o espírito da PUC é de grande liberdade. A distância entre professor e aluno não é um abismo, como ocorre em outras instituições de ensino; o professor vive um clima bastante diferenciado. No fundo, ninguém ensina ninguém. O fato é que os professores já percorreram um caminho de conhecimento prévio e são orientadores e semeadores daqueles que vêm depois. A relação entre professor e aluno não pode ser uma relação, como meu querido professor e amigo, o saudoso Paulo Freire, dizia: da “educação bancária”. Esse modo de educar faz com que o professor entre na sala de aula, deposite o conhecimento no aluno e, no final do bimestre, faça o saque por meio de uma prova. Às vezes vem sem fundos. Essa relação da educação bancária pressupõe um sujeito e um objeto, que é a pior das formas de relacionamento pedagógico. O aluno é um sujeito tanto quanto o professor. Eles têm de se inteirar em pé de igualdade, com respeito mútuo, cada um no seu papel. E a PUC permite muito a construção dessa relação pedagógica livre e crítica. F ó r u m ju r í di co 37 perfil José eduardo cardoZo dou u e e qu o é: d o n h e l p e e arr e O cons m o ã ue n q e d e C U P a viva Existe um momento ideal para estagiar? Depende de cada um. Eu comecei no primeiro ano na periferia de São Paulo e fiquei os cinco anos nessa atividade. Comecei a fazer estágio em um escritório de advocacia no meu segundo ano, mas fiquei apenas alguns meses, porque me elegi presidente do CA 22 de Agosto, e tive que sair, já que os horários eram incompatíveis. Mais tarde, no meu quarto ano, fui estagiário da Prefeitura de São Paulo, o que me levou a fazer concurso da Procuradoria do Município, onde entrei logo após ter me formado. Acredito que o estágio é muito importante, mas sem privar dos estudos da faculdade, caso contrário, estagiar no primeiro ano torna-se irrelevante. Contudo, se você conseguir combinar a perspectiva de crescer profissionalmente e aprender, então torna-se conveniente. Isso depende muito de cada um, mas, evidentemente, no 38 Fórum j urí di co quarto ano você tem que estagiar. Se o aluno começar antes, vai depender muito dele. Como seu trabalho social na universidade influiu no seu cargo? Muito. Não seria a mesma pessoa se não tivesse vivido essa experiência. Isso influiu diretamente na minha condição de Ministro, e de deputado, de vereador. É engraçado, quando vamos na periferia, achamos que vamos ensinar alguma coisa. Mas não, acabamos sempre aprendendo. Recebi verdadeiras lições de vida na periferia de São Paulo. E algumas delas não saem mais da minha mente. Você vê pessoas com simplicidade, sem ter o mesmo meio de instrução formal que você tem, te dando verdadeiras aulas de vida. Isso não se perde. Aulas de vida são aquelas que você não esquece, porque você é testado pelas provas da vida diariamente. E eu digo: não seria a mesma Com base na sua experiência, qual a sua recomendação para um aluno da PUC-SP? Viva intensamente a sua universidade. Eu não me arrependo disso, eu vivi intensamente a PUC. No fundo, fiz um excelente curso, estudava muito, fui o melhor aluno da minha turma em notas. Ganhei o prêmio Faculdade Paulista de Direito na época. E, ao mesmo tempo, vivia intensamente a vida política da universidade. Durante muitos anos na PUC eu dei aula de Filosofia do Direito. Essa experiência me fez pensar, foi muito rica. Então o conselho que eu dou e de que não me arrependo é: viva a PUC. Eu vivi intensamente a universidade, praticamente morei nela. E isso foi extremamente enriquecedor. Se há uma coisa de que eu sinto saudade é desse tempo. n ‘ Recebi verdadeiras lições de vida na periferia de São Paulo. E algumas delas não saem mais da minha mente. Reunião extraordinária do Conselho Nacional de Segurança Pública Isaac Amorim pessoa se não estivesse lá. Não desenvolveria minhas atividades ao longo do tempo, seja de professor, seja de advogado, seja a de estudioso de Direito, seja de parlamentar, seja de Ministro. Nenhuma delas eu desenvolveria da mesma forma se eu não tivesse tido essa experiência. F ó r u m ju r í di co 39 e n t r e v i s ta Fábio Ulhoa Coelho Um novo Direito Comercial Reconhecido como um dos grandes nomes da área, Ulhoa busca consertar as imperfeições da legislação empresarial brasileira Filipe Facchini e Otávio Bressan / Fotos: Alex Ferreira Atualmente, não há como se pensar em direito comercial brasileiro sem nos lembrarmos de Fábio Ulhoa Coelho. Professor Titular de Direito Comercial da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP), livre-docente, advogado e parecerista. Com apenas um de seus livros, o Manual de Direito Comercial, editado pela Saraiva, alcançou, no final de 2011, o volume total de vendas de 314.559 unidades. Formado na PUC-SP em 1981, iniciou a sua trajetória em 1982, como assistente nas disciplinas de Direito Comercial e Filosofia do Direito na própria Pontifícia. Feita a opção de se dedicar ao Direito Comercial, concluiu o seu mestrado, doutorado e livre-docência na mesma faculdade. No cenário atual do Direito Comercial Brasileiro, tem a honra de ter a sua minuta do novo Código Comercial utilizada como anteprojeto para a lei. Ulhoa Coelho ocupa lugar de destaque, sendo recorrentemente procurado para esclarecer as controvérsias e demais questões atuais que se relacionam ao cotidiano jurídico de uma empresa. Tido hoje como referência, esse ilustre ícone da PUC-SP, com a didática que lhe é particular, respondeu a algumas perguntas, que vêm a seguir, sobre sua carreira bem como sobre as mais atuais e controversas questões do Direito Comercial. Suas palavras são uma verdadeira aula. 40 Fórum j urí di co Fábio Ulhoa Coelho: professor titular de Direito Comercial da Puc-SP F ó r u m ju r í di co 41 O que levou o senhor a tornar-se doutrinador? Eu sempre tive um lado ligado a comunicações e, por isso, sempre pensei em me dedicar à carreira acadêmica, em me tornar professor. Eu não consigo ver a atividade docente separada da atividade de pesquisa e, sendo professor universitário, tenho que pesquisar constantemente e as pesquisas naturalmente levam à produção de textos, livros e artigos, que servem para divulgar o que o pesquisador está refletindo e descobrindo. São coisas indissociáveis e desde sempre eu pensei que era isso que eu gostaria de fazer. Uma de suas obras – O Futuro do Direito Comercial – é utilizada como minuta para o projeto do novo Código Comercial. Como o senhor se sente a respeito? Eu estou bastante animado com tudo o que está acontecendo. No final de 2010, publiquei esse livro como uma minuta de como eu entendia que seria o melhor código comercial para o Brasil, mas não tinha ideia de que ele seria capaz de desencadear o processo que desencadeou. Imaginei que seria uma contribuição 42 Fórum j urí di co Fábio Ulhoa Coelho acadêmica a mais e que, um dia ou outro, quando alguém fosse, eventualmente, estudar certo assunto, poderia ilustrar com a informação que um autor, em um determinado momento, sugeriu certa solução legislativa para aquele problema. Eu imaginei que a contribuição que o livro daria seria apenas essa: uma contribuição acadêmica. Não é o que está acontecendo: a minuta aperfeiçoada se transformou em projeto de lei e o debate nacional se instalou sobre se é o caso de termos, ou não, um novo Código Comercial e qual código comercial seria esse. Foi, portanto, muito além das minhas expectativas o que ocorreu em decorrência do livro. Algo que escrevi para uma função medivulgação e n t r e v i s ta Capa do livro O Futuro do Direito Comercial (Ed. Saraiva, 2011) ramente acadêmica e desencadeia um debate nacional muito profícuo é algo que me deixa muito feliz. Por que o senhor acha, para a realidade brasileira, que a criação de um novo Código Comercial é importante? Nós precisamos de uma lei que valorize a empresa. Nós temos leis que valorizam o consumidor, o trabalhador, entre outros agentes econômicos, mas a empresa não tem uma lei de valorização. A ordem jurídica precisa valorizar a empresa por diversas razões. A primeira razão é para que ela possa cumprir sua função social, ou seja, gerar empregos, tributos, atender as necessidades dos consumidores, apoiar a comunidade em que ela está instalada com iniciativas culturais e sociais. Só uma empresa forte e lucrativa pode cumprir sua função social. Se estiver faltando dinheiro para a empresa fazer seus investimentos, se ela não estiver conseguindo realizar satisfatoriamente nem mesmo sua função econômica – que é produzir e vender bens e serviços –, ela não terá como cumprir sua função social. Mas não é só isso, precisamos valorizar a empresa no Brasil para atrair novos investimentos. Com a globalização, o investidor e o empresário têm o mundo todo para investir, ou seja, os países competem pelo investidor. O Brasil pode competir melhor pelo investidor se tivermos uma ordem jurídica que crie um ambiente favorável aos negócios. A ordem jurídica que temos hoje não tem sido um bom instrumento nessa competição pelos investimentos. Uma terceira razão, bem ligada a essa segunda, é para reter o investimento. O brasileiro hoje, se não tiver segurança jurídica para fazer o seu investimento aqui, facilmente vai investir em outro lugar. Quem acaba tendo problemas com a deficiência na atração e retenção de investimentos é quem depende da economia funcionando bem para trabalhar e viver. E a quarta razão pela qual a gente precisa de um novo Código Comercial está relacionada aos preços dos produtos e serviços que consumimos aqui no Brasil. Muitos colocam a culpa na carga tributária, mas diversas reportagens mostraram que o mesmo veículo vendido no exterior e no Brasil, des- ‘ Nós precisamos de uma lei que valorize a empresa. Nós temos leis que valorizam o consumidor, o trabalhador, entre outros agentes econômicos, mas a empresa não tem uma lei de valorização. considerando os impostos, aqui continua mais caro. Fala-se que seria o “Custo Brasil”, isto é, as dificuldades de nossa infraestrutura, que contribui para esse encarecimento, mas não é toda a explicação. Muitas vezes temos o mesmo serviço, utilizando a mesma estrutura e, se você compra o serviço aqui, você paga mais caro do que pagaria se comprasse no exterior. Passagens de transportes aéreos, por exemplo. Utilizando o mesmo avião, o mesmo voo, dois passageiros sentados um ao lado do outro. Aquele que comprou a passagem no Brasil pagou 25% mais caro do que aquele que comprou a passagem lá fora, mas é a mesma infraestrutura. Alguns dizem que o que explica essa diferença de preço é o “Lucro Brasil”, que nós estaríamos sustentando as crises dos países centrais, ou seja, é caro aqui para gerar lucro para as matrizes que estão falidas nos Estados Unidos e Europa. Essa explicação também não convence. Primeiro porque os preços são mais caros no Brasil desde antes da crise de 2008, segundo que, se fosse para ajudar, o mais lógico seria reduzir os preços, aumentar as vendas e gerar mais lucros. F ó r u m ju r í di co 43 e n t r e v i s ta Então, na verdade, por que os produtos ou serviços são mais caros no Brasil do que exterior? É uma questão muito fácil de entender, todo empresário pensa da seguinte forma: “O meu retorno tem que ser proporcional ao meu risco”, ou seja, quanto maior o risco, maior o retorno. Então se eu, como empresário, estou fazendo negócio em um país que possui risco jurídico, eu tenho que ter um retorno maior do meu investimento para que o meu lucro não seja comprometido por decisões que se afastam da letra da lei. É esse risco jurídico que o novo Código Comercial vai ajudar a reduzir e que, portanto, possibilitará que os empresários invistam aqui no Brasil atrás de retornos menores e praticando preços mais baixos pelos produtos ou serviços. O projeto tem como uma de suas bases a formalização dos princípios gerais do Direito Comercial. Isso não poderia gerar um engessamento do Direito Comercial? Não. Essa é uma crítica que também foi feita: que o Direito Comercial, sendo um ramo tão dinâmico, não poderia hoje ser codificado. A codificação po44 Fórum j urí di co Fábio Ulhoa Coelho ‘ Um Código Comercial autônomo ajuda a fomentar a lógica própria da relação empresarial, para que, quando o juiz julgar essas questões, esteja ciente de suas características e peculiaridades. deria gerar um engessamento. Essa crítica é infundada, porque o processo legislativo, para mudar qualquer norma legal, é rigorosamente o mesmo, estando a norma em um código ou em uma lei ordinária. Estando em um ou outro e sendo necessário mudar porque a dinâmica dos negócios está exigindo que mude, o processo legislativo será igual; não haverá mais dificuldade de ajustar a norma à realidade porque ela está em um código e não em uma lei não codificada. O senhor acredita que a elaboração do novo Código Comercial pode ajudar o contínuo crescimento do Brasil? Sem dúvida nenhuma. Eu tenho uma reflexão marxista sobre como funciona a sociedade. Eu acho que, com ou sem o novo Código Comercial, o Direito Comercial brasileiro vai mudar por força da realidade econômica diferente que nós estamos vivendo. Com o novo Código Comercial essa mudança será mais rápida e benéfica para todos nós, será uma mudança sob controle, uma mudança administrada. Sem o Código Comercial essa mudança ocorrerá em um prazo maior, a um custo maior, com mais incertezas. O Brasil está inegavelmente reposicionado na economia global e isso demanda um novo Direito Comercial, de modo que o novo Código Comercial ajude a atender as exigências da economia. Nós falamos sobre o crescimento econômico do Brasil. O senhor entende que o Judiciário também está acompanhando esse desenvolvimento? Sem dúvida. Coisas importantíssimas estão acontecendo no âmbito do Poder Judiciário. Em primeiro lugar, eu citaria a criação das Câmaras de Direito Empresarial aqui no Tribunal de Justiça de São Paulo, ou seja, uma especialização no plano do Tribunal de Justiça sobre a matéria de Direito Comercial. A criação das Câmaras foi um passo extremamente importante dado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, capaz de gerar um modelo que pode, eventualmente, ser transposto para outros tribunais. Mas não é só isso. No ano de 2011 o STJ realizou o primeiro curso voltado exclusivamente ao Direito Comercial para magistrados. O juiz está buscando informações porque ele precisa conhecer essa realidade específica da relação entre as empresas; saber que essa relação não obedece à mesma lógica da relação do consumidor, com a qual ele está habituado, familiarizado; até por ser um consumidor. Haverá também outras novidades animadoras em 2012 em relação ao Direito Comercial. Aguardem, pois haverá iniciativas interessantes em torno da revitalização do Direito Comercial, neste ano. Alguns críticos do Código alegam que bastaria uma adequação das leis existentes. Por que o senhor entende ser melhor um novo código? O Direito Comercial está sujeito a princípios próprios, que não são os princípios do Direito Civil. E uma das dificuldades para o Direito Comercial brasileiro cumprir sua função de criar um ambiente favorável aos negócios está exatamente nessa unificação legislativa. Ela não é uma solução universal, porque não são todos os países que adotam o critério de organização do direito privado positivo. Isso porque ele impede a adequada sistematização da disciplina, daquelas regras que são específicas da relação entre os empresários. O Código Comercial não vai mudar nenhuma disposição do Código de Defesa do Consumidor; ele não vai revogar nenhum direito trabalhista, assim como não vai reduzir a responsabilidade dos empresários pela preservação do meio ambiente, nem os deveres deles quanto às matérias de competência do CADE – infrações da ordem econômica – ou mesmo às obrigações tributárias. O Código Comercial vai tratar exclusivamente da relação entre duas empresas. Seus temas são os contratos empresariais, os contratos de fornecimento de insumos, de distribuição de mercadorias, os títulos de crédito, a formação da sociedade, a crise da empresa, as obrigações entre os empresários. A relação entre empresas é uma relação muito particular. Hoje vemos alguns juízes julgando relações entre empresários a partir da lógica do Código de Defesa do Consumidor. Há exceções, mas normalmente a maioria dos magistrados tem como única experiência na economia a experiência pessoal como consumidor. Um Código Comercial autônomo ajuda a fomentar a lógica própria da relação empresarial, para que, quando o juiz julgar essas quesF ó r u m ju r í di co 45 e n t r e v i s ta tões relativas a essa matéria, esteja ciente de suas características, suas peculiaridades. Em muitos aspectos a atual legislação está defasada e é burocrática; por exemplo, a legislação sobre títulos de crédito e sociedades limitadas. O novo Código Comercial busca alterar algumas das disposições existentes? Sem dúvida. Falemos primeiro dos títulos de crédito; o Brasil é hoje o único país no mundo em que temos dois regimes cambiários diferentes: o regime da Lei Uniforme de Genebra, 46 Fórum j urí di co Fábio Ulhoa Coelho aplicável a todos os títulos até 2003, e o do Código Civil, que se aplica aos títulos criados por lei depois de sua entrada em vigor. Os dois regimes têm diferenças substanciais: por exemplo, a questão da responsabilidade do endossante - pela Lei Uniforme de Genebra a solução é uma, pelo Código Civil a solução é outra. Para que essa complexidade? Por que temos dois regimes diferentes para os títulos de crédito? Não faz sentido, só torna mais difícil a aplicação do direito. A sociedade limitada no Código Civil se tornou uma so- ciedade muito complexa e burocrática, desnecessariamente burocrática. Ela é normalmente a sociedade utilizada pela pequena empresa, pela média empresa; não tem por que a sociedade limitada estar sujeita a um regime tão complexo como está hoje. No novo Código Comercial a sociedade limitada volta a ter um regime bastante simples, que era basicamente a disciplina que havia antes de 2003, antes do Código Civil passar a burocratizar, indevidamente, esse tipo societário. Um outro receio que alguns juristas possuem em relação ao novo Código Comercial é a possível alteração da Lei 6.404, que regula as sociedades por ações. Como o novo Código vai tratar o instituto das S.A.? Na minha minuta, estava prevista a atribuição de um poder muito maior para a Comissão de Valores Mobiliários disciplinar a Sociedade Anônima de capital aberto. No meu modo de ver, a Lei deveria tratar da Sociedade Anônima fechada e a CVM, por meio de instruções e orientações dinâmicas, trataria da Sociedade Anônima aberta. Essa proposta, contu- do, não foi bem recebida pelos profissionais que atuam no mercado de capitais. Achavam que a CVM não estaria preparada para esse novo papel. Ademais, eles tinham o receio de que estaríamos mexendo indevidamente em algo que funciona bem – e isso é verdade, o nosso mercado de capitais está funcionando muito bem. Do debate que se instaurou depois do lançamento da ideia do novo Código Comercial, podemos dizer, hoje, que temos já um consenso: o novo Código Comercial não pode, em hipótese alguma, atrapalhar o mercado de Valores Mobiliários. Dessa forma, em vista do consenso construído, o projeto de Código Comercial não incorporou a minha sugestão de ampliação do poder da CVM, mas trouxe alguns dispositivos sobre Sociedade Anônima, que, no meu modo de ver, não mudam a disciplina dessas sociedades, porque tratam de aspectos não regulados na Lei das S.A. Mesmo esses poucos dispositivos, porém, têm despertado preocupação entre os profissionais da área – se poderiam interferir negativamente, ou não, no mercado de capitais. A minha posição sobre isso é muito clara: já ‘ No novo Código Comercial a sociedade limitada volta a ter um regime bastante simples, que era basicamente a disciplina que havia antes de 2003. há consenso de que o Código Comercial não pode atrapalhar esse setor da economia; assim, se há qualquer coisa no projeto do Código Comercial que, eventualmente, pode pôr em risco o setor econômico que está funcionando bem, vamos tirar. O projeto está em tramitação exatamente para que seja aperfeiçoado, retirando o que deve ser retirado e acrescentando o que deve ser acrescido. Se realmente até mesmo esses poucos dispositivos do Código Comercial que falam da S.A. oferecem algum risco de tumultuar o mercado de capitais, vamos eliminá-los; é uma discussão a fazer no âmbito do Congresso Nacional. O Senhor comentou anteriormente que alguns países não adotam um código comercial. Por que o senhor acredita que eles não optaram pela unificação do Direito Comercial? Cada país tem a sua história e sua própria necessidade. Nós aqui no Brasil gostamos de copiar os outros, enquanto os outros países gostam de encontrar seus próprios caminhos. O Brasil não tem que ficar copiando a experiência dos outros. O Brasil, como está F ó r u m ju r í di co 47 e n t r e v i s ta vivendo um novo momento econômico riquíssimo, deixa de ser só um importador de teorias jurídicas, e passa a ser um formulador e exportador de teorias jurídicas. É um aspecto desse reposicionamento na economia. Um exemplo é o conceito de título de crédito que o novo Código Comercial traz. O conceito de título de crédito atual – de Vivante – não se aplica à realidade hoje, porque os títulos são todos eletrônicos; não existe mais título de crédito em papel. Se nós formos pensar no conceito vivanteano, ele menciona um “documento necessário para o exercício do direito”; mas como falar de um documento necessário quando estamos tratando de arquivos eletrônicos? Precisamos de uma nova teoria dos títulos de crédito. Não que a teoria de Vivante esteja errada; ela foi apropriada durante muito tempo; mas agora temos outra realidade a disciplinar e precisamos de outra teoria. Por isso, uma das propostas do novo Código Comercial é trazer novo conceito para os títulos de crédito, que não existe ainda em nenhum lugar do mundo; depois, poderemos exportá-lo. 48 Fórum j urí di co Fábio Ulhoa Coelho ‘ A eireli é o resultado de uma solução de compromisso. O ideal teria sido uma clara referência na lei da sociedade unipessoal, ou seja, uma sociedade constituída por uma única pessoa. Em janeiro deste ano começou a viger a Lei nº 12.441, que instituiu a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. Qual a opinião do senhor a respeito desse instituto? Veja, a eireli é o resultado de uma solução de compromisso. O ideal teria sido uma clara referência na lei da sociedade unipessoal, ou seja, uma sociedade constituída por uma única pessoa; mas essa clara referência esbarrava em dois problemas. Primeiro, algo que eu chamaria de preconceito em relação à sociedade unipessoal. É possível, quando se trata de um contrato de sociedade, haver apenas um único contratante; isso está mais do que assente em todos os direitos. No Brasil havia essa resistência à figura da sociedade unipessoal. O segundo problema era certa resistência por parte do fisco – essa resistência ficou atenuada nos últimos anos, mas durante muito tempo era o fator político que impedia a adoção da chamada “solução societária”, para a limitação da responsabilidade do empresário. O fisco temia que a sociedade unipessoal pudesse, de alguma forma, prejudicar a arrecadação. Então, o passo da eireli foi importante, mas teve que ser um passo cuidadoso, que, sem dúvida, abre as portas para a solução tecnicamente mais adequada, que é a da sociedade unipessoal. No novo Código Comercial há a previsão de que a Sociedade Limitada pode ser constituída por um ou mais sócios. Na sua opinião, o fato de estar estipulado capital social mínimo integralizado para a constituição da eireli não vai acabar afastando algumas pessoas do benefício de constituir uma eireli? Sim. Esse valor mínimo não dá para entender. Corre, inclusive, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade relativamente a essa parte do art. 980-A do Código Civil, perante o Supremo Tribunal Federal. Creio que não há justificativa e me parece de constitucionalidade duvidosa essa limitação. Realmente, o resultado é esse, impede que pessoas que poderiam estar se beneficiando da eireli se beneficiem devido ao valor mínimo do capital. A PUC possuía a fama de ser muito voltada para as áreas de direito público, sem dar prioridade para as áreas de direito privado. Como o senhor vê essa situação hoje? Quando eu era estudante, na década de 1970, a PUC tinha fama de ser boa apenas no Direito Público: Direito Constitucional, Tributário e Administrativo. De fato, grandes nomes da PUC nessa área se destacavam naquele tempo: Geraldo Ataliba, Celso Bastos, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Celso Antonio Bandeira de Mello, Michel Temer e outros. O Direito Privado não possuía, no tempo em que eu era estudante, a mesma fama. Havia clara injustiça nesse ponto, porque nosso corpo docente era integrado também por grandes nomes do Direito Privado, como Maria Helena Diniz, Carlos Alberto Bittar, Carlos Alberto Ferriani, Ronaldo Porto Macedo e outros. Mas, sabe como é, a fama nem sempre é justa. Na minha opinião, ao longo dos anos isso se alterou de modo significativo. Hoje, a PUC é reconhecida também como centro de referência no campo do Direito Priva- do e, especialmente, no Direito Comercial. Temos dado uma contribuição bastante relevante, própria e singular para o desenvolvimento desse ramo jurídico. Podemos dizer que, no processo atual de revitalização do Direito Comercial no Brasil, a PUC é uma das instituições que está à frente. Qual o senhor entende que é o conceito que os alunos do Direito PUC têm no mercado hoje? Eu acho que é muito bom. Os escritórios de advocacia privilegiam, entre as faculdades que se destacam como melhores, a da PUC. A diferença do tempo em que eu era estudante diz respeito à competição, bem menos acirrada. Naquele tempo, os escritórios de advocacia davam preferência a alunos de duas instituições; com o passar dos anos, outras instituições de qualidade apareceram e, hoje em dia, os escritórios preferem estagiários de quatro ou cinco instituições. Aumentou a concorrência, mas a PUC continua sendo uma das escolas que os escritórios de advocacia em geral destacam, na hora de selecionar seus estagiários. n F ó r u m ju r í di co 49 Arquivo Fórum Jurídico Áreas do Direito 50 Fórum j urí di co M e r c a d o f i n a n c e i r o e d e c a p i ta i s Mercado em expansão A economia aquecida, em ampla expansão, traz formas mais sofisticadas de investimentos, gerando a extrema necessidade de um advogado conhecedor das áreas de mercado financeiro e de capitais Otávio Bressan e Raquel Soufen Fachada da Bovespa, no centro de São Paulo Há tempos, na cultura nacional, o advogado deixou de ser apenas o profissional buscado nos momentos de conflito. Com o crescimento da economia brasileira as empresas buscam novas formas de capitalização, que, devido às suas formas sofisticadas, exigem a presença de um profissional do direito qualificado para prestar consultoria. A captação de recursos para uma empresa não se limita mais a empréstimos e financiamentos contratados com o gerente de uma instituição financeira. Agora, a emissão de debêntures, a securitização de recebíveis e outros mecanismos fazem parte do cotidiano de empresas de grande e médio porte. F ó r u m ju r í di co 51 Áreas do Direito A maior parte dessas operações dependem da figura de um advogado experiente, que não conheça somente a regulamentação específica, mas que também esteja ciente das condições e práticas do mercado. Esses profissionais atuam, principalmente, em duas frentes: o direito do mercado financeiro e o do mercado de capitais, que se tocam em diversos pontos, mas que por diversos aspectos são únicos. Mercado Financeiro Do ponto de vista jurídico, o mercado financeiro, grosso modo, A captação dos recursos é intensamente regulada pelos órgãos competentes, e é um dos papéis do profissional do direito atuar e auxiliar o cumprimento de tal regulamentação 52 Fórum j urí di co M e r c a d o f i n a n c e i r o e d e c a p i ta i s se baseia em operações nas quais participam o detentor de um recurso, um beneficiário e um intermediário que desenvolve os meios para que o beneficiário receba tais recursos em troca de uma remuneração. A captação dos recursos é intensamente regulada pelos órgãos competentes, e é um dos papéis do profissional do direito atuar e auxiliar o cumprimento de tal regulamentação. Essa fase se opera, basicamente, por documentos como CDBs e Letras Financeiras, que trazem o recurso ao emissor em troca do pagamento de um valor estabelecido determinado ou determinável, tudo isso devidamente formalizado por um instrumento jurídico. Na outra ponta, temos a realização do negócio com o tomador final, isto é, o cliente, que recebe o recurso conforme as regras definidas em um contrato específico para cada situação. Em todos os casos, há que ser feito um desenvolvimento criterioso e específico do instrumento jurídico adequado para a operação, tendo em vista cumprir as normas aplicáveis e tornar o negócio seguro tanto para o agente financeiro, quanto para o tomador final do produto financeiro. Como exemplos mais clássicos, citaríamos os financiamentos e empréstimos, nos quais o cliente recebe um montante em dinheiro de um agente financeiro, que será remunerado no futuro com o pagamento pelo cliente à instituição financeira do valor tomado acrescido de juros. Nesse momento, é importantíssima a participação de um profissional do direito capacitado a atender as demandas. Destaque-se que tais recursos podem se destinar aos mais variados fins, como o financiamento para a compra de um automóvel por uma pessoa comum, ou ainda, para a construção de uma relevante hidrelétrica com incentivos do governo, a qual gerará riquezas para o país como um todo. Como inicialmente proposto, faremos agora a distinção entre mercado financeiro e mercado de capitais. O mercado de capitais visa ao financiamento das atividades econômicas de maneira segura, evitando riscos de liquidez, operacionais e de mercado, Arquivo Fórum Jurídico e prejuízos que as variáveis econômicas podem acarretar. No entanto, diferentemente do mercado financeiro, a relação entre investidor e beneficiário do investimento ocorre de maneira direta. Isto é, o detentor do recurso o transfere ao beneficiário na forma de investimento direto, por meio da emissão de obrigações primárias, como, por exemplo, a emissão de ações e títulos de dívida, como as debêntures. intermediário necessário Mesmo ocorrendo de maneira direta, na transferência do recurso, na maior parte das vezes, se faz necessária a presença de um intermediário, como um banco de investimento que atue nos procedimentos e trâmites necessários para a realização do negócio. Essa atuação ocorre nas atividades de escrituração e custódia dos títulos emitidos, na sua emissão (garantindo a idoneidade e o respeito às normas), no financiamento e na estruturação das operações. Do ponto de vista jurídico, há a necessidade da organização contratual para tais procedimentos que devem englobar desde a prestação dos serviços pertinentes até o cumprimento da regulamentação. É clássico e atual o exemplo do IPO, do inglês Initial Public Offering, que, em nossos termos, significa a emissão primária das ações de uma so- Bancada e painel no interior do prédio da Bovespa F ó r u m ju r í di co 53 Áreas do Direito O mercado de capitais se destina a tornar as estruturas econômicas e produtivas mais aperfeiçoadas e a atender aos anseios de toda a sociedade ciedade anônima no mercado aberto. Nesse processo estão englobados desde os intensos movimentos societários até os procedimentos de distribuição regulados, basicamente, pela Lei nº 6.404 e pelos atos normativos da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Nesses processos, cada vez mais frequentes entre as grandes companhias do país, participam advogados de escritórios e instituições financeiras e os procuradores dos órgãos públicos, todos alinhados e tendo como objetivo o cumprimento da 54 Fórum j urí di co M e r c a d o f i n a n c e i r o e d e c a p i ta i s regulamentação e a garantia de segurança da operação para todas as partes. De acordo com a regulamentação e com a doutrina, esse processo deve ser pautado pelos princípios da boa fé e da função social. Além disso, há que se observar o impacto econômico da operação e o respeito à livre e leal concorrência. Nesse sentido, as operações do mercado de capitais não são destinadas a formar o controle do mercado, mas se destinam a tornar as estruturas econômicas e produtivas mais aperfeiçoadas e a atender aos anseios de toda a sociedade. Sistema Financeiro Nacional Sobre os aspectos de nosso mercado financeiro, a Constituição Federal, em seu art. 192, chega a falar da regulamentação do “sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”. É claro, portanto, o conceito e o reconhecimento da impor- tância social do mercado financeiro para uma sociedade que visa ao desenvolvimento, como é o caso do Brasil. De acordo com a Lei Federal nº 4.595/64, o Sistema Financeiro Nacional é formado pelo Conselho Monetário Nacional, pelo Banco Central do Brasil, Banco do Brasil, Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social e pelas demais instituições financeiras privadas ou públicas. A cada um desses entes são reservadas funções e poderes para mover a economia nacional diante do contexto internacional, com base nos princípios constitucionais e de direito, visando ao desenvolvimento econômico e social. O Conselho Monetário Nacional (CMN) é um órgão extremamente técnico que, diante da análise do mercado nacional e internacional, traça diretrizes para a economia e emite pareceres e normas com o objetivo de, por exemplo, zelar pela liquidez e solidez das instituições financeiras, manter íntegra a economia nacional diante das oscilações internas e internacionais, controlar a emissão e circulação da moeda nacional e das internacionais. Enfim, esse instrumento fica responsável pela definição da política econômica nacional. Bancos no CMN Estrutura do Sistema Financeiro Nacional O Banco Central do Brasil, ainda de acordo com a Lei nº 4.595, possui personalidade jurídica e patrimônios próprios e tem por incumbência cumprir o que lhe determina a legislação vigente e os instrumentos normativos e legais apropriados emitidos pelo Conselho Monetário Nacional.Tem a capacidade de emitir moeda e outros títulos, controlar e supervisionar o fluxo de recursos nacionais e estrangeiros no país, receber e custodiar depósitos compulsórios (por força de normas competentes) efetuados pelas instituições financeiras. O Banco do Brasil e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) são instituições financeiras de caráter público, com participação do Governo Federal, e têm por função fomentar e estimular a economia por meio de produtos bancários corriqueiros, como empréstimos e financiamentos ao público em geral. Tais produtos são oferecidos com incentivos subsidiados pelo Governo, que se traduzem em custos e juros menores ao tomador. Toda essa estrutura se fundamenta em legislação e outras normas que devem es- Conselho Monetário Nacional Comissão de Valores Mobiliários Banco Central do Brasil Banco do Brasil Banco Nacional de desenvolvimento Econômico e Social Instituições Financeiras Sistema financeiro da habitação Sociedades de Distribuição Bolsa de Valores Sociedades Corretoras Bancos Múltiplos Bancos de desenvolvimento Associação de poupança e empréstimo Sociedade de crédito imobiliário Bancos comerciais Sociedades de Crédito, Financeiras e de Investimento Bancos de Investimento F ó r u m ju r í di co 55 M e r c a d o f i n a n c e i r o e d e c a p i ta i s Arquivo Fórum Jurídico Áreas do Direito Símbolo na fachada da BM&F 56 Fórum j urí di co tar sob a atenção do jurista, que deve observar o cumprimento das metas e o respeito às limitações dos poderes de cada órgão, e garantir o acesso da população aos benefícios, seja de maneira direta, pela contratação dos produtos incentivados, ou de maneira coletiva, pela manutenção de uma economia saudável por meio dos instrumentos legais. Frisa-se que inúmeros são os pontos de encontro entre o mercado financeiro e de capitais; ambos compartilham desafios e exigências do jurista que atua nessas áreas, que deve estar atento ao que ocorre no mundo todo e no ambiente regulatório e econômico em que atua. Todos os dias nos deparamos com um mercado diferente e com novas estruturas de investimento, que permitem maior rentabilidade, segurança ao investir e a confecção de uma trama que concatena recursos internacionais e nacionais. Além das novidades há o constante aperfeiçoamento da estrutura já existente, decorrente da prática e exposição a novos riscos. A regulamentação, por sua vez, é importante instrumento, que é constantemente atualizada e aperfeiçoada, tendo em vista, segurança, e, consequentemente, viabilidade para os investimentos e operações diversas. O Imprescindível jurista É papel do jurista que atua nessa área ponderar as especificidades do caso, o conhecimento e a capacidade de arcar com as obrigações de cada parte, a composição de garantias eficazes para agregar ao negócio a segurança esperada. É grande a ligação entre mercado financeiro e mercado de capitais. Visto que, muitas vezes, instrumentos de um se tornam necessários ao outro. É o caso da captação no mercado financeiro internacional para investimento em capitais de empresas nacionais. Ou as operações financeiras lastrea- das em instrumentos típicos do mercado de capitais. O profissional dessa área pode atuar na área pública, em instituições financeiras custeadas com recursos públicos, com uma rotina muito parecida com a de uma instituição particular, mas aplicando ao seu trabalho os conceitos inerentes aos princípios da administração pública, ou ainda em instituições como a Receita Federal, a CVM ou o Banco Central. Na área privada, o jurista pode atuar em instituições financeiras como corretoras de valores, bancos, entre outras, em escritórios atendendo uma vasta gama de clientes e até mesmo em empresas que, por operarem frequentemente nesses mercados, decidem manter em seu staff um advogado dedicado a essas matérias. A atuação do profissional se atenta ao desenvolvimento de estruturas jurídicas para investimentos, proteção contra riscos e variações de mercado, manutenção das operações consolidadas em conformidade com a regulamentação e diversas outras. A consolidação e o crescimento da economia de nosso país demandará a existência de profissionais do direito que possam lidar com os instru- mentos do mercado financeiro e de capitais. Não se concebe, na atualidade, desenvolvimento econômico sólido sem a atuação responsável desses agentes e, como recorrentemente exposto, é um dos papéis do advogado atuar encontrando a forma adequada e segura de desenvolver a operação. A Força brasileira Conforme dados recentes, atualmente o Brasil representa a maior economia da América do Sul e ocupa a sexta posição entre as maiores economias do mundo. O Ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou recentemente em entrevista que as projeções indicam que poderemos ocupar o posto de quinta maior economia do mundo até o ano de 2015; afirmou, ainda, que o nosso ritmo de crescimento é o dobro das economias europeias. Essas análises acompanham a opinião mundial que enxerga o Brasil como um dos mais promissores locais para se investir. O nosso mercado interno está aquecido e temos ótimas relações com os países para os quais exportamos. Conjuntamente ao crescimento da economia brasileira, a evolução dos instrumentos típicos do mercado financeiro e de capitais é extremamente necessária, visto que deles podemos obter financiamentos, custeio e captação de recursos, planejamento do fluxo de recursos dentro das empresas e alongamento de prazos para cumprimento de obrigações, que ocorreu, inclusive, com a É grande a ligação entre mercado financeiro e mercado de capitais. Visto que, muitas vezes, instrumentos de um se tornam necessários ao outro F ó r u m ju r í di co 57 Áreas do Direito O profissional do direito deverá atuar cobrando, tanto das autoridades competentes, quanto da sociedade, a seriedade e a atenção no tratamento desses assuntos M e r c a d o f i n a n c e i r o e d e c a p i ta i s possibilidade da entrada e saída dos recursos da fronteira, isto é, com a possibilidade do capital estrangeiro ser investido no país e do brasileiro no exterior. Nesse sentido, todo esse crescimento deverá estar acompanhado da atualização e do desenvolvimento de instrumentos jurídicos mais eficazes e refinados, bem como de uma regulamentação que aponte nesse mesmo sentido, criando possibilidades reais de investimento, e coloque os participantes nacionais em pé de igualdade para concorrer com os demais. Para alcançar objetivos Note-se que o ambiente regulatório de um país é importante fator para os investimentos de players nacionais e internacionais. Nesta análise, leva-se em conta a solidez e a eficácia do governo, da integridade do Judiciário, dos meios de recuperação de créditos, dos instrumentos jurídicos de circulação de riquezas, do sistema 58 Fórum j urí di co tributário e de muitos outros fatores intimamente ligados ao universo jurídico. É neste ponto que deverá ocorrer o desenvolvimento e a consolidação da estrutura jurídica posta à disposição dessas operações. Frisa-se que o profissional brasileiro deverá conhecer as estruturas jurídicas de investimentos internacionais, as regras específicas dos países com os quais se deseja operar, além de adequar a nossa estrutura às naturais demandas dessas ocasiões. Para tanto, o profissional do direito deverá atuar cobrando, tanto das autoridades competentes, quanto da sociedade, a seriedade e a atenção no tratamento desses assuntos. A constante observação, o estudo das condições fáticas e a discussão entre os diversos participantes dos mercados financeiro e de capitais, aliados a uma relação saudável com os órgãos públicos e de classe, parecem ser o caminho para que se alcancem os objetivos traçados. Dessa forma, o interesse de investidores estrangeiros se voltará naturalmente ao mercado brasileiro e os recursos locais serão cada vez mais bem empregados, tanto em nossas terras, quanto além das fronteiras. n caderno de ideias artigos Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – eireli Manoel de Queiroz Pereira Calças Moots: ferramentas de desenvolvimento profissional e acadêmico Cláudio Finkelstein | Julia Schulz Os 10 Anos do Código Civil sob a óptica civil constitucional Renan Lotufo | André Guimarães Avillés O Supremo Tribunal Federal e o plebiscito para desmembramento de Estado-membro Felipe Penteado Balera Crimes de trânsito com motoristas embriagados: culpa consciente ou dolo eventual? Christiano Jorge Santos Reflexão sobre a questão urbana brasileira Juliana Somekh Um direito penal do inimigo envolto em controvérsias Natália Pincelli F ó r u m ju r í di co 59 artigo Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – Eireli Manoel de Queiroz Pereira Calças é desembargador da Câmara Reservada à Falência e Recuperação e da Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; e Professor de Direito Comercial na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 60 Fórum j urí di co M a n o e l d e qu e i r o z p e r e i r a c a l ç a s Introdução O Código Civil de 2002, ao revogar a parte primeira do Código Comercial de 1850, promoveu importantes alterações na disciplina do direito comercial, que, até então, inspirava-se no sistema francês, que tinha como conceito fundamental o ato de comércio, preceituando que “ninguém é reputado comerciante para efeito de gozar da proteção que este Código liberaliza em favor do comércio, sem que se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império, e faça da mercancia profissão habitual” (art. 4º). Adota o Código Civil o sistema italiano, centrado na teoria da empresa, conceituando o empresário como a pessoa que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (art. 966). Este empresário, que substitui o antigo comerciante, é a pessoa natural que exerce em nome próprio a atividade empresarial, fazendo-o sob firma constituída por seu nome, completo ou abreviado, com a faculdade de adicionar designação mais precisa de sua pessoa ou do gênero de atividade (art. 1.156). Tal empresário, apesar de equiparado para fins de imposto de renda à pessoa jurídica (art. 150 do Decreto nº 3.000/99), continua a ostentar o status de pessoa natural, podendo possuir patrimônio constituído por todos os seus bens, nele incluídos aqueles aplicados no exercício da atividade empresarial e que, por isso, a teor do art. 391 do Código Civil, respondem por todas as suas obrigações, civis ou empresariais. Constata-se assim que o legislador não cindiu o patrimônio do empresário em “patrimônio civil” e “patrimônio empresarial”, mesmo considerando-se a tutela especial outorgada ao incapaz continuador de empresa individual, cujos bens por ele possuídos antes da sucessão ou da interdição, desde que estranhos ao acer- vo da empresa, não respondem pelas dívidas decorrentes da atividade empresarial judicialmente autorizada (art. 974 e § 2º, CC), bem como a previsão de dispensa da outorga conjugal ao empresário casado para alienar ou onerar imóveis que integrem o patrimônio da empresa (art. 978, CC). Não se instituiu, portanto, um patrimônio separado, distinto, nem tampouco patrimônio de afetação para o empresário responder pelas obrigações contraídas em razão da atividade empresarial, exclusivamente com os bens móveis, imóveis, materiais ou imateriais vinculados ao seu exercício profissional. Em razão de tal disciplina legal, na hipótese de execução singular do empresário, poderá a penhora recair sobre qualquer bem componente de seu patrimônio, independentemente de a dívida ter origem em negócios da órbita civil ou empresarial. Da mesma forma, sendo decretada a falência do empresário, todos os seus bens, com exceção dos absolutamente impenhoráveis, deverão ser arrecadados, a teor do art. 108 da Lei nº 11.101/2005. Por outro lado, mesmo não se repetindo no diploma falimentar atual o que dispunha o art. 23 do Decreto-lei nº 7.661/45 – “ao juízo da falência devem concorrer todos os credores do devedor comum, comerciais ou civis, alegando e provando os seus direitos” –, não há dúvida de que, na falência do empresário, dever-se-ão habilitar todos os seus credores, consoante estabelece o art. 9º, da Lei nº 11.101/2005, que deverão indicar a origem do crédito, vale dizer, civil ou comercial. Não se instituiu um patrimônio separado, nem tampouco patrimônio de afetação para o empresário Em suma, o Código Civil, em sua redação original, não previu a possibilidade de o empresário constituir um patrimônio separado ou afetado para o exercício da atividade empresarial, mantendo-o como titular de um patrimônio único, o qual responde de forma ilimitada pelo adimplemento de todas as suas obrigações, independentemente de serem elas decorrentes de seus negócios civis ou empresariais. A inovação: empresa individual de responsabilidade limitada Debate-se, há muitos anos, notadamente entre aqueles que se dedicam aos estudos do direito comercial, sobre a pertinência de se instituir sociedade unipessoal, visto que, tanto o Código Civil anterior, como o Código Comercial, só regularam as sociedades civis ou sociedades comerciais constituídas, no mínimo, por dois sócios. O art. 1.363 do Código Civil anterior preceituava que celebram contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos para lograr fins comuns. Os artigos 287, 289, 302, incisos 1 e 3, todos do Código Comercial, ao disciplinarem as sociedades comerciais faziam expressa menção à necessidade de “sócios”, no plural, indicando que a pluralidade de sócios era um requisito para a constituição das sociedades. Posteriormente, com a edição da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 – Lei das Sociedades Anônimas –, é instituída no art. 251 a subsidiária integral, companhia que pode ser constituída, mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade brasileira. Salvo essa exceção, persistia como requisito essencial a necessidade de dois acionistas, no mínimo, como se verifica pelo art. 80, inciso I, da Lei nº 6.404/76, que exige para a constituição da companhia o atendimento do requisito preliminar consistente na subscrição, F ó r u m ju r í di co 61 artigo pelo menos por duas pessoas, de todas as ações em que se divide o capital social fixado no estatuto. A reforçar a indispensabilidade da pluralidade de acionistas, o art. 206, inciso I, alínea d, da Lei das S/A, prevê como causa de dissolução da companhia a existência de um único acionista, verificada em assembleia geral ordinária, se o mínimo de dois não for reconstituído até a do ano seguinte. Não é ela (eireli) considerada sociedade unipessoal, a qual (...) continua não prevista na legislação brasileira O Código Civil, editado em 2002, ou seja, após a existência no direito comparado de diversos diplomas legais prevendo a sociedade unipessoal com responsabilidade limitada como, por exemplo, na Alemanha em 1980, na França em 1985, e na XII Diretiva do Conselho, 89/667/ CEE, de 21/12/90, não adotou a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada (art. 982, 997, I, 1033, IV, CC) exigindo dois sócios, no mínimo, para a constituição de sociedade, simples ou empresária, admitida apenas a unipes soalidade incidental ou episódica pelo prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de extinção da sociedade. Inobstante tal situação legislativa, desde o final dos anos setenta do século passado, havia intenso debate sobre a omissão de nosso ordenamento legal no que concerne à instituição de uma forma de exercício individual da atividade empresarial com a possibilidade de limitação da responsabilidade do empresário em face das obrigações daí decorrentes. 62 Fórum j urí di co M a n o e l d e qu e i r o z p e r e i r a c a l ç a s Em 11 de julho de 2011, foi editada em nosso País a Lei nº 12.441, com 180 dias de vacatio legis, que altera o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), para permitir a constituição de empresa individual de responsabilidade limitada, ou “eireli”, na estranha abreviação albergada pela nova lei. Constata-se, assim, que a opção do legislador brasileiro para limitar a responsabilidade do empresário individual não perfilhou o modelo de sociedade unipessoal, pioneiramente adotado pela Alemanha e França, nem seguiu o sistema de Portugal que, em 1986, instituiu o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada (Decreto-lei nº 248, de 25/8/1986). A Lei nº 12.441/2011 altera a redação do art. 44 do Código de 2002, inserindo o incisoVI, para ficar expresso que “são pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades; III – as fundações; IV – as organizações religiosas; V – os partidos políticos; VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada.” (grifei) Em face de tal modificação, o Código Civil passa a albergar duas espécies de empresários individuais: 1) o empresário de responsabilidade ilimitada, que responde com todo o seu patrimônio, exceto os bens impenhoráveis, por suas dívidas de natureza civil e empresarial; 2) o empresário individual de responsabilidade limitada, que titularizará dois patrimônios distintos: a) o patrimônio comum ou civil; b) o patrimônio da empresa, autônomo, constituído por seu acervo e que, a teor do art. 391 do Código Civil, responderá, em tese, exclusivamente, pelas obrigações decorrentes do exercício da atividade da empresa individual. Este configura autêntico patrimônio de afetação ou separado, destinado a limitar a responsabilidade do empresário pelas dívidas contraídas em decorrência da atividade empresarial. De acordo com o art. 980-A, “a empresa individual de responsabilidade limitada será cons- tituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”. Da exegese do referido dispositivo legal, que não prima pela precisão terminológica, em conjunto com o inciso VI do art. 44, constata-se que, ao contrário do empresário de responsabilidade ilimitada, que continua a ser classificado como “pessoa natural”, a empresa individual de responsabilidade limitada é arrolada como pessoa jurídica e, por isso, obrigatoriamente, inscrever-se-á no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica como tal, e não por força da equiparação prevista no Decreto-lei nº 3.000/99. Por outro lado, apesar de a empresa individual de responsabilidade limitada ser classificada como pessoa jurídica, não é ela [eireli] considerada sociedade unipessoal, a qual, salvo a exceção da subsidiária integral, continua não prevista na legislação brasileira. Cumpre ressaltar o equívoco de terminologia detectado no art. 980‑A do Código Civil que faz referência a “capital social”, que, na dicção do art. 997, incisos III e IV, significa a expressão monetária (em moeda corrente nacional) da soma das contribuições em dinheiro ou bens suscetíveis de avaliação pecuniária, que os sócios transmitem à sociedade, a fim de que esta possa atingir o seu objeto social. Por isso, usar a expressão “capital social” para indicar o valor do numerário ou bens transferidos para constituir o patrimônio separado da empresa individual não se mostra tecnicamente correto. O capital da empresa individual de responsabilidade limitada não poderá ser inferior a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País. Apesar de alguma crítica ter sido formulada por considerar elevado o valor do capital mínimo exigido, não compartilho tal posicionamento. Entendo que tal exigência deveria ser estendida para as sociedades limitadas, como ocorre em diversas legislações estrangeiras. Ademais, alvitro que se confira ao Registro Público de Empresas Mercantis e ao Registro Civil de Pessoas Jurídicas poderes para exigir, no momento F ó r u m ju r í di co 63 artigo do registro, a prova da efetiva integralização do capital, ou, sendo proposta integralização a prazo, que, uma vez realizado o capital, seja apresentada prova do cumprimento de tal obrigação. A prova da integralização do capital em pecúnia deveria ser realizada mediante a apresentação de depósito, em conta-corrente, feito em instituição financeira. Outrossim, na hipótese de integralização do capital mediante conferência de bens, dever-se-ia exigir a apresentação de laudo de avaliação feito por profissional ou empresa especializada. Só assim se dará efetivo cumprimento ao princípio da integridade do capital social, outorgando-se aos registradores públicos – civil ou mercantil –, poderes para o exame formal da documentação comprobatória da integralização do capital social. Além disso, 64 Fórum j urí di co M a n o e l d e qu e i r o z p e r e i r a c a l ç a s tratando-se de empresa individual de responsabilidade limitada, não se pode admitir que o capital seja integralizado mediante prestação de serviços, exigindo-se sempre sua formação em dinheiro ou bens que permitam avaliação. A empresa individual de responsabilidade limitada pode ser constituída para o exercício de atividade econômica de natureza intelectual (científica, literária ou artística), e, neste caso, deverá inscrever-se no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Se, porém, a atividade econômica organizada da empresa individual de responsabilidade limitada consistir na produção ou circulação de bens ou serviços não intelectuais, ela deverá se inscrever no Registro Público de Empresas Mercantis (art. 967 e 1.150, CC). A personalidade jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada decorre da inscrição do ato constitutivo no respectivo registro (art. 45, CC). Apenas a pessoa natural poderá ser titular da eireli, exigindo-se a maioridade civil (18 anos) ou a emancipação por uma das formas do art. 5º, parágrafo único, do Código Civil, cumulativamente com a inexistência de impedimentos constitucionais ou legais. Por exemplo: o magistrado, o membro do Ministério Público, o funcionário público, o militar da ativa, o falido, não pode ser titular da eireli. Outrossim, salvo as restrições constitucionais, o estrangeiro legalmente no país poderá constituir empresa individual de responsabilidade limitada. O parágrafo único do art. 980-A cria um impedimento limitativo especial, ao preconizar que a pessoa natural que constituir eireli somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade. Ressalte-se que os profissionais da advocacia não poderão exercer sua atividade mediante a instituição de empresa individual de responsabilidade limitada, haja vista a interpretação do art. 16 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil), que, apesar de fazer expressa referência à sociedade de advogados para proibir a adoção de qualquer forma ou característica mercantil, inegavelmente, a exegese teleológica da norma indica o objetivo de se vedar a limitação da responsabilidade dos advogados no exercício do múnus de sua nobre profissão. Por isso mesmo, os advogados, pessoas naturais ou as sociedades – simples – de advogados, devem registrar-se no Conselho Seccional da OAB em cuja base territorial forem sediados. Nesta linha entendo que as sociedades de advogados, mesmo organizadas como empresas sob o prisma da economia, não estão sujeitas à falência, nem têm direito de pleitear recuperação judicial. A pessoa que exerce atividade rural (agricultura, pecuária, etc.), a teor do art. 971 do Código Civil, poderá adotar a forma de empresa individual de responsabilidade limitada e inscrever-se no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Terá ainda a faculdade de optar pela inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, hipótese em que será equiparada, para todos os efeitos, ao empresário sujeito ao registro obrigatório, mercê do que deverá cumprir todas as obrigações empresariais, sujeitando-se à falência, podendo requerer a recuperação judicial ou a homologação judicial da recuperação extrajudicial, desde que cumpridas as demais exigências da Lei nº 11.101/2005. A administração da eireli poderá ser exercida pelo próprio titular ou por terceiro, desde que observados os impedimentos do art.1.011 do Código Civil, sendo evidente que pessoa jurídica não pode ser nomeada para administrar a empresa individual de responsabilidade limitada (art. 997, VI, CC). No que diz respeito ao nome empresarial, mais uma imperfeição terminológica é pratica- A administração da eireli poderá ser exercida pelo próprio titular ou por terceiro da no § 1º do art. 980-A: “O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão “eireli” após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada”. Obviamente não se trata de firma social, nem de denominação social. A firma só pode ser a individual que é disciplinada pelo art. 1.156 do Código Civil, e deverá ser constituída com o nome da pessoa natural titular da eireli. A denominação, que deverá indicar o objeto da empresa individual, poderá ser constituída com o nome do empresário individual ou expressões de fantasia. Em ambas as hipóteses – firma individual ou denominação –, deverá aditar-se, ao final, a expressão “eireli”. A omissão da palavra “eireli” determina a responsabilidade ilimitada do titular da empresa individual de responsabilidade limitada, visto que a ela se aplica, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas, ou seja, o art. 1.158, § 3º, do Código Civil. A eireli também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração, como, por exemplo, a exclusão, a retirada ou o falecimento de sócios. Em tal caso, não será aplicada a dissolução derivada da unipessoalidade prevista no art. 1.033, inciso IV, do Código Civil. O sócio remanescente poderá requerer a transformação do registro da sociedade para empresa individual de responsabilidade limitada, observando-se, no que couber, os artigos 1.113 a 1.115 do Código Civil. F ó r u m ju r í di co 65 artigo A falência da empresa individual de responsabilidade limitada não acarreta a falência do titular da eireli Faculta o § 5º do art. 980-A, seja atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada que for constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de qualquer detentor titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional. Em rigor, inexiste qualquer inovação, haja vista que, constituída a empresa individual de responsabilidade limitada, surge nova pessoa jurídica dotada de autonomia, mercê do que, poderá ela ser cessionária dos direitos titularizados por outra pessoa jurídica. A desconsideração da personalidade jurídica da Eireli O § 4º do art. 980-A, do Projeto de Lei nº 18, de 2011, do Senado Federal (nº 4.605/09 na Câmara dos Deputados), que deu origem à Lei nº 12.441/2011, tinha a seguinte redação: “Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente”. Esse dispositivo foi vetado pela Presidência da República, mediante as razões a seguir aduzidas: “Não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão ‘em qualquer situa66 Fórum j urí di co M a n o e l d e qu e i r o z p e r e i r a c a l ç a s ção’, que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à eireli as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio”. Com o devido respeito, o veto não se justifica, haja vista que o dispositivo excluído tinha o evidente escopo de ressaltar – já que se trata de importante inovação de nosso ordenamento jurídico – a cisão patrimonial da pessoa natural, permitida apenas por uma vez, alteração legal reclamada há muito tempo, permitida em boa hora para conceder ao empresário a garantia de que poderá organizar e exercer empresa individual, sem colocar em risco, com tal atividade, a integralidade de seu patrimônio pessoal. Obviamente, ao permitir a limitação da responsabilidade da empresa individual, o legislador o fez sob a presunção de que a eireli seja exercida sob o império dos princípios jurídicos e das regras legais. Por isso, na dicção do art. 50 do Código Civil, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos ao patrimônio particular do titular ou do administrador da empresa individual de responsabilidade limitada. A aplicação da disregard doctrine poderá ocorrer incidentalmente em processo de execução ou de falência promovido contra a empresa individual de responsabilidade limitada, desde que sejam observados os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. Na mesma linha, cabível, inclusive, a desconsideração inversa da personalidade jurídica da eireli para que o pa- trimônio autônomo dela responda por obrigações particulares de seu titular, observando-se, da mesma forma, os princípios constitucionais acima declinados. Por fim, cumpre deixar anotado que a falência da empresa individual de responsabilidade limitada não acarreta a falência do titular da eireli, visto que se deverá aplicar, analogicamente, o art. 81 da Lei nº 11.101/2005. Decretada a quebra da eireli, o administrador judicial deverá promover a arrecadação dos bens que integram o patrimônio autônomo da empresa falida. Caso a arrecadação atinja bens integrantes do patrimônio pessoal do titular da empresa falida, este poderá valer-se do pedido de restituição ou dos embargos de terceiro para a liberação dos bens indevidamente arrecadados. Outrossim, a responsabilidade pessoal do titular ou dos administradores da empresa individual de responsabilidade limitada falida será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil (art. 82 da LFR). Conclusão Após esta perfunctória análise da disciplina da empresa individual de responsabilidade limitada, cumpre afirmar que, malgrado algumas imperfeições de natureza terminológica e jurídica, o que é próprio de toda obra humana, não se pode negar que a inovação legislativa deve ser aplaudida por representar inegável avanço, visto que supre uma lacuna de nosso ordenamento jurídico, permitindo, a partir de sua vigência, que os empresários individuais possam exercer sua importante atividade com a segurança decorrente da limitação legal dos riscos a ela inerentes. n F ó r u m ju r í di co 67 artigo Cláudio Finkelstein Ju l i a Sc h u l z Moots: ferramentas de desenvolvimento profissional e acadêmico Cláudio Finkelstein é Livre-Docente em Direito Internacional (2011), Professor de Direito Internacional na PUC-SP, Coordenador do Núcleo de Direito Arbitral Internacional e Coordenador do Curso de Pós-Graduação da PUC-SP. Atua como advogado no escritório Hasson Sayeg, Finkelstein, D’Avila, Santiago Guerra e Nelson Pinto Advogados. Julia Schulz é aluna do 7º semestre do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Recebeu menção honrosa como oradora na Competição Brasileira de Arbitragem, em 2011. Estagiária de Direito no escritório Demarest & Almeida Advogados na área contencioso cível. 68 Fórum j urí di co A Primeira Edição do “Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot”, a mais famosa competição acadêmica jurídica envolvendo arbitragem como forma de solução de controvérsias, ocorreu em 1994, reunindo apenas onze universidades de nove diferentes países. Proposta inicialmente em 1992, no Congresso Internacional de Direito Comercial promovido pela Comissão das Nações Unidas especializada nesse ramo (Uncitral), a Competição tinha como propósito atrair estudantes de Direito a trabalharem com a Comissão, especificamente com a CISG (Convenção de Viena sobre Contratos de Compra eVenda Internacional de Mercadorias) e com arbitragem internacional. Dois secretários da Uncitral, William Vis e Eric Bergsten, levaram a ideia ao Instituto de Direito Comercial da Universidade Pace, em Nova Iorque, a qual adotou a sugestão e formulou o moot “processo simulado” nos moldes em que se desenvolve atualmente. Para mensurar a dimensão do sucesso obtido pelo “Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot”, sua última edição, realizada em 2010/2011, chegou a reunir estudantes de 254 universidades de um total de 63 países participantes . A partir desse exemplo, inúmeras competições do mesmo gênero surgiram ao redor do mundo, desde a China até o Brasil. Atendo-nos aos moots (como tais competições são chamadas) dos quais a PUC-SP participa, pode-se elencar, além do “Willem C.Vis International Commercial Arbitration Moot”, que ocorre em Viena, o “ELSA Moot Court Competition”, o “Concours d’Arbitrage International de Paris” e a Competição Brasileira de Arbitragem, também denominada Competição Petrônio Muniz. O “ELSA Moot Court Competition”, atualmente em sua 10ª Edição, é organizado pela Associação Europeia de Estudantes de Direito (ELSA) e direciona-se a disputas atinentes à Organização Mundial de Comércio. Já o “Concours d’Arbitrage International de Paris” e a Competição Brasileira de Arbitragem, como se depreende dos próprios nomes, envolvem especificamente a arbitragem como método de resolução de conflitos. O primeiro, criado em 2005, é organizado pela Faculdade de Direito da “Sciences Po” e realiza-se em Paris, enquanto a Competição Brasileira de Arbitragem, criada em 2010, resultou de uma iniciativa da Camarb (Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil) e realiza-se em Belo Horizonte - MG, reunindo estudantes de diversos estados brasileiros. Todas essas competições mantêm a estrutura desenhada pela Universidade Pace, contemplando uma fase escrita e outra oral. O “ELSA Moot Court Competition” tem uma fase de qualificação regional, enquanto o “Willem C.Vis International Arbitration Moot” recebe todas as equipes emViena para a fase oral, sem qualquer pré-requisito. Inicialmente, com a entrega do caso às equipes, estas devem elaborar um memorial em nome de cada parte do conflito, requerente e requerido. Neste momento, as equipes se reúnem para discutir o problema, seus anexos e traçar a estratégia a ser esboçada em cada memorial. Para tanto, exige-se intensa pesquisa e foco, uma vez que alcançar um texto satisfatório e coeso em equipe é sempre um desafio. Com a conclusão dos memoriais, inicia-se a preparação para a fase oral. Nesta etapa há uma efetiva simulação de um tribunal arbitral, de modo que duas equipes se enfrentam, expondo oralmente seus argumentos e se sujeitando a perguntas de profissionais que atuam como árbitros no painel. No “Willem C. Vis International Arbitration Moot” atuam como árbitros notáveis professores, assim como os principais árbitros profissionais em atividade na atualidade. No “ELSA Moot Court Competition”, os painéis são presi- didos por árbitros da própria OMC, funcionários desta ou das universidades participantes, isto é, sempre por profissionais especializados na área de contencioso econômico internacional. É neste modelo que reside o diferencial dessas competições. Por terem de elaborar memoriais para as duas partes envolvidas no conflito, as equipes têm a possibilidade de analisar os pontos frágeis dos dois lados e trabalhar com maior profundidade tanto para fortalecê-los, como para identificar as fraquezas do discurso da equipe concorrente. Arguir o caso de ambas as partes é um exercício que normalmente o aluno de direito não exercita durante seus estudos acadêmicos e auxilia no desenvolvimento de uma lógica e de um raciocínio que se mostram valiosos na vida profissional do advogado. Todas essas competições mantêm a estrutura desenhada pela Universidade Pace, contemplando uma fase escrita e outra oral Como se não bastasse, há ainda a oportunidade de desenvolver o debate oral, que é muito pouco estimulado nas universidades. O debate é interessante, pois além de envolver equipes que dominam profundamente o caso e suas minúcias, conta com a presença de profissionais atuantes na área, que por conhecerem a fundo as matérias abordadas, podem avaliar com extremo rigor a atuação das equipes. Sem prejuízo dos aspectos mencionados, outro ponto importante é a assessoria dada por advogados formados, normalmente atuantes no ramo de arbitragem, defesa comercial ou comércio exterior, que atuam como coordenadores das equipes. Estes profissionais se propõem a analisar o problema com os estudantes, debater os pontos e auxiliar com material para pesquisa e com o preparo para a competição. F ó r u m ju r í di co 69 artigo Cláudio Finkelstein Ju l i a Sc h u l z Apesar de ser um ramo em notável crescimento no Brasil, a maioria dos estudantes ainda não tem acesso à arbitragem em sua grade curricular ou início de vida profissional Eu, Julia Schulz, coautora do presente artigo e aluna do 7º semestre da PUC-SP, tive a oportunidade de participar da Competição Brasileira de Arbitragem, em 2011. A competição é recente, mas os organizadores já atribuem a ela a importante missão de difundir a Lei Brasileira de Arbitragem (Lei 9.307/1996). Por tal razão, conquanto seja sempre de suma importância pesquisar e conhecer as legislações pioneiras sobre o assunto, a competição vem exigindo um aprofundamento maior na legislação pátria e em obras de doutrinadores locais que estudem a arbitragem sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro e de suas particularidades. Apesar de ser um ramo em notável crescimento no Brasil, a maioria dos estudantes ainda não tem acesso à arbitragem em sua grade curricular ou início de vida profissional. Nesse sentido, os moots propiciam a aproximação do estudante de Direito a esta realidade, conforme observa Ilan Jadoul, aluno da PUC-SP, atualmente em intercâmbio no King’s College de Londres, que participou em 2010 do “Willem C.Vis International Arbitration Moot” e do “Concours d’Arbitrage International de Paris”: “Considerava a arbitragem um ramo bastante distante e restrito, do qual apenas advogados com anos de profissão podiam fazer parte. Não via essa disciplina como uma disciplina acadêmica. Isso mudou totalmente com a experiência de mooting, ao ver alunos de até 2º ano de Direito debatendo questões de grande complexidade jurídica de maneira altamente profissional.” 70 Fórum j urí di co Com efeito, como bem apontado por Eric E. Bergsten em artigo de sua autoria, o ensino jurídico infelizmente não acompanhou o desenvolvimento do Direito Comercial Internacional, incluindo a arbitragem. O atraso se mostra compreensível, uma vez que os programas das universidades já estão extremamente sobrecarregados com as matérias do direito nacional. É essa, inclusive, a percepção de diversos alunos do Curso de Direito, como Daniel Shil Szriber, cursando o 9º semestre de Direito na PUC-SP, que participou do “Willem C.Vis International Commercial International Arbitration Moot” em 2009/2010 e 2010/2011: “Quando comecei a frequentar as reuniões da equipe da PUC-SP, não fazia a menor ideia do que era arbitragem, já que nunca havia ouvido falar sobre este instituto antes. No começo, achava que não havia muitas diferenças entre a resolução de conflitos por meio de arbitragem e da jurisdição estatal. Contudo, ao me aprofundar nos estudos durante a preparação para a competição, comecei a descobrir que existem inúmeras discussões e especificidades sobre a arbitragem, tão ou mais complexas que aquelas que circundam o processo civil.” Da mesma forma, ao decidir participar da Competição Brasileira de Arbitragem, deparei-me com um instituto completamente novo. Apesar de ter sido mencionada superficialmente em aulas de Direito Civil e Direito Constitucional, a arbitragem não fazia parte de minha realidade ou de qualquer perspectiva para o meu futuro. Neste aspecto reside o primeiro de muitos desafios enfrentados nos moots. Inúmeros estudantes, ao menos brasileiros, somente têm a oportunidade de estudar o instituto da arbitragem, ainda que em termos gerais, ao entrarem na competição. Logicamente, isso afeta o estudo dos casos apresentados, que, por abordarem questões extremamente técnicas, pressupõem o conhecimento básico do tema. Vale ressaltar que, entre as matérias opcionais oferecidas pela própria Puc-sp, há um curso de arbitragem e também uma matéria de arbitragem internacional, ministrada em língua inglesa. Destaca-se, contudo, que para participar das competições ora descritas não é necessário cursar quaisquer dessas matérias. Ademais, os moots demandam extrema dedicação dos competidores. Os problemas são complexos e bem elaborados. Exigem, portanto, um nível de pesquisa que a maioria dos estudantes não está habituada a realizar, rigorosa e disciplinada, abrangendo tanto doutrina como jurisprudência. A dedicação também é necessária no que tange ao tempo despendido. São meses de muito esforço, sacrifício, estudo profundo e discussões em grupo. Isto tudo, é claro, para que se mantenha o nível altamente profissional das equipes, como já foi evidenciado. Outro desafio é o de trabalhar com a pressão, principalmente durante a fase oral, na qual é preciso manter postura e calma perante a equipe contrária e os árbitros. Para tanto, é essencial dominar o caso e as matérias por ele abordadas, bem como se familiarizar com os termos técnicos, muitas vezes em outros idiomas, como em competições em que o idioma oficial é o inglês ou francês. O percurso é árduo, mas permite a vivência de uma das mais ricas experiências que a vida acadêmica pode oferecer. De acordo com Marina Amaral Egydio de Carvalho, professora de Direito Internacional na PUC-SP, que desde 2009 coordena a equipe do “Elsa Moot Court Competition”: “A participação no moot foi fundamental em termos pessoais e profissionais. Pessoalmente, porque a competição revela e sedimenta capacidades e habilidades que muitas vezes você desconhece sobre si mesmo. Profissionalmente, há o desenvolvimento de técnicas argumentativas colocadas oralmente e por escrito.” Não obstante, ao final, muitos descobrem a área com a qual se identificam profissionalmente, podendo vivenciar, ainda que de maneira um pouco ilusória, o dia a dia dos que nela atuam. Os moots também propiciam a convivência com a diversidade, na medida em que permitem a interação com algumas das melhores universidades do Brasil e do mundo. Assim, como em poucas oportunidades, nos moots é possível debater questões altamente controversas com acadêmicos de Direito que tenham estratégias e opiniões completamente diversas. A ideia que inicialmente somente pretendia atrair estudantes de Direito para trabalhar na Uncitral, acabou por se tornar uma ferramenta diferenciada de desenvolvimento e preparo dos estudantes que procuram trabalhar no ramo do Direito Comercial Internacional e Arbitragem. Além disso, ainda que não optem por trabalhar nessas áreas ou em setores correlatos, não há dúvidas de que o engajamento em uma proposta deste gênero, por si só, auxilia o aluno a aprimorar-se tanto sob um aspecto acadêmico, como em variadas atividades profissionais. n Bibliografia BERGSTEN, Eric. Teaching about International Commercial Law and Arbitration: the Eighth Annual Willem C.Vis International Commercial Arbitration Moot, 18º Journal of International Arbitration (August 2001), p. 481-486. FRADERA,Vera; NEVES, Flavia Bittar; PESSÔA, Fernando José Breda, e outros. Participação das faculdades Brasileiras na 16ª Edição da Willem C.Vis Arbitration Moot. Revista Brasileira de Arbitragem, nº 22, Abr/Jun 2009, p. 211-228. http://www.cisg.law.pace.edu/vis.html http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/biblio/bergsten1.html http://www.law.northwestern.edu/academics/mootcourt/vis.html http://www.elsamootcourt.org/ http://master.sciences-po.fr/droit/fr/contenu/concours-darbitrage-international-de-paris http://competicao.camarb.com.br F ó r u m ju r í di co 71 artigo R e n a n L o t uf o A n d r é Gu i m a r ã e s A v i l l é s Os 10 anos do Código Civil Sob a Óptica Civil Constitucional Renan Lotufo é advogado e Consultor Jurídico. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) regendo Direito Civil no Mestrado e Doutorado; Professor do Centro de Extensão Universitária (CEU). Coordenador e Professor de Cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista da Magistratura. Membro do IASP. Presidente do Instituto de Direito Privado (IDP) até a data de 29 de março de 2010. Ex-presidente da Câmara de Mediação e Arbitragem do CIESP. Coordenador da coleção Agostinho Alvim, com vinte obras já publicadas, Cadernos de Teoria Geral do Direito, Cadernos de Direito Civil Constitucional. André Guimarães Avillés é aluno do 9º semestre do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Participa do projeto de iniciação científica pela PIBIC CEPE nas áreas de Arbitragem e Direito Societário, com a tese “A Extensão dos Efeitos da Cláusula Arbitral Estatutária nas Sociedades Anônimas”, sob a orientação do Professor Doutor Giovanni Ettore Nanni. Estagiário das áreas contenciosa e consultiva cível do escritório Renan Lotufo Advogados Associados. 72 Fórum j urí di co Introdução A sociedade vive em mudança constante, fruto do dinamismo que se impõe nas relações políticas, econômicas e sociais. Foi neste compasso que, sob a coordenação do professor Miguel Reale, grandes nomes do direito, entre os quais o mestre da PUC Agostinho Alvim, já no último quarto do século que passou, redigiram e edificaram os pilares do que viria a ser a Lei nº 10.406/2002, revogando o Código de 1916 e dando azo a um novo Diploma Civil, moderno e harmônico com a época atual. A principal premissa do anteprojeto foi, em síntese, atualizar o Código então vigente, não só para superar os pressupostos individualistas que condicionaram a sua elaboração, mas também para dotá-lo de novos institutos, reclamados pela sociedade atual, buscando configurar os modelos jurídicos à luz do princípio de realizabilidade, em função das forças sociais operantes, para atuarem como instrumentos de paz social e de desenvolvimento.1 Passados dez anos desde sua promulgação, as relações civis passaram a ter um aspecto mais paritário, uma vez que o Código de 2002 exprime, genericamente, os impulsos vitais, formados na era contemporânea, tendo por parâmetro os valores constitucionais da justiça, solidariedade social e o respeito da dignidade da pessoa humana.2 O Direito Civil Constitucional O fato de se tratar de uma legislação cuja entrada em vigor se deu após a promulgação da Constituição Federal de 1988 facilitou o entrosamento com as novas perspectivas e valores trazidos pelo Código. Houve uma concatenação da 1 Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil, Mensagem 160. 2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro,Vol. I, 26ª ed. Saraiva, São Paulo, 2011. p. 97. legislação civil com os novos preceitos constitucionais, campo que o Código de 1916 não podia almejar, dado o caráter restrito à organização do Estado da Constituição da época da promulgação da ordenação civil. A essa época os códigos civis eram o centro do direito positivo, em grande parte por influência do Código Civil Francês. O direito civil, portanto, deixou de ter apenas como figura central o Código Civil, que passou a não mais ser o único texto ordenador das relações privadas, as quais receberam o enfoque da Constituição, de modo unificado e sistemático, desempenhando o papel de ligação do sistema jurídico.3 Desse modo, um dos grandes méritos do Código Civil, após uma década de sua promulgação, é o fortalecimento e a sedimentação do direito Civil Constitucional na doutrina e na jurisprudência brasileira. Nesse sentido, conforme afirma Paulo Lobo: “A Constitucionalização do Direito Civil não é episódica ou circunstancial. É consequên cia inevitável da natureza do Estado social, que é a etapa que a humanidade vive contemporaneamente do Estado moderno, apesar de suas crises, das frustrações de suas promessas e dos prenúncios de retorno ao modelo liberal, apregoados pelo neoliberalismo, que pretende afastar qualquer intervenção estatal ou consideração de interesse social das relações privadas. A Constituição Brasileira de 1988 consagra o Estado social, que tem como objetivos fundamentais (art. 3º) ‘constituir uma sociedade livre, justa e solidária’, com redução das desigualdades sociais. A ordem jurídica infraconstitucional deve concretizar a organização social e a economia eleita pela Constituição, não podendo os juristas desconsiderá-la, como se os 3 NANNI, Giovanni Ettore in LOTUFO, Renan, Caderno de Direito Civil Constitucional,Vol. 2, 1ª Ed, Editora Juruá, São Paulo, 2001. p. 164. fundamentos do direito civil permanecessem ancorados no modelo liberal do século XIX”.4 É nítido que o Código Civil de 2002 abarcou os princípios do Estado Social. Pode-se perceber, por exemplo, a alta carga principiológica contida no direito contratual, uma vez que o reconhecimento à liberdade e autonomia das pessoas sofre maior resistência dos interesses sociais. Tido por autores como o dispositivo mais importante do Código, o art. 421, ao imprimir ao contrato função social – e não apenas um meio de autorregulação entre as partes –, deixou de ter centro na autonomia da vontade, passando a adotar a autonomia privada, conformada pelo ordenamento, e a justiça social, que constitucionalmente deve estar presente em todas as relações econômicas.5 Entretanto, mais do que olhar para trás e nos deleitarmos com o sucesso e a evolução que o Código de 2002 trouxe para o ordenamento jurídico pátrio, é preciso que nos debrucemos sobre as perspectivas futuras e sobre os perigos que uma equivocada interpretação pode trazer. Novas Perspectivas A boa técnica civil constitucionalista arrazoa que cada norma infraconstitucional há de ser aplicada conjuntamente com os princípios constitucionais.A Constituição deve incidir como um foco de iluminação do todo do sistema. Pietro Perlingieri alerta sobre o “perigo de se conceber um sistema jurídico mediante modelos binários, considerando-se o ordenamento jurídico como um conjunto de normas jurídicas apartadas da realidade e de sua aplicação jurisdicional, idealizando-se, dessa forma, dois sistemas distintos: aquele concebido pelo legislador e ou4 LOBO, PAULO in TEPEDINO, Gustavo (coord.), Direito Civil Contemporâneo – Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional, Editora Atlas, São Paulo, 2008. p. 20. 5 Idem. p. 25. F ó r u m ju r í di co 73 artigo R e n a n L o t uf o A n d r é Gu i m a r ã e s A v i l l é s tro resultante dos fatos, nos quais incidirão em concreto as normas jurídicas”. 6 Nessa linha, Gustavo Tepedino afirma que, “este modelo binário de interpretação espraia-se em classificações falaciosas, ora segundo os destinatários das normas jurídicas – legislador e sujeitos de direito; ora segundo a produção normativa – legislativa e jurisdicional; ora de acordo com os campos de conhecimento – direito público e direito privado; ora conforme os diversos setores de produção normativa – os microssistemas; e assim por diante. Apoiado em Pietro Perlingieri, que se insurge contra essa concepção, demonstrando que somente se afigura possível falar em ordenamento jurídico se este for concebido em sua unidade: ou bem o ordenamento é uno ou não é ordenamento”.7 Aqui é importante observar que parte da doutrina fala em “civilização do Direito Cons6 Ibidem. p. 361. 7 Ibidem. p. 361. 74 Fórum j urí di co titucional”, pretendendo manter o Código Civil como centro. As normas constitucionais não são interpretáveis a partir das infraconstitucionais. A interpretação normativa deve ser axiológica, com os preceitos constitucionais consolidados na jurisprudência, na doutrina e em todos os dispositivos legais. Do contrário, teríamos uma técnica hermenêutica de interpretação às avessas, invertendo-se a casta dos valores no ordenamento jurídico. Com vistas a evitar esta aberração hermenêutica, é cogente que se tenha a pessoa humana no núcleo do ordenamento jurídico. Há a necessidade de uma harmonização dos valores no ordenamento como um todo, levando-se em conta mais do que aspectos formais da norma, mas também superando a interpretação exclusiva com o método de subsunção. A interpretação deve, deste modo, fundamentar-se na hierarquia das fontes do direito e dos seus preceitos, de modo a criar uma dimensão necessariamente sistemática e valorativa. Nesta esteira, em busca de maior segurança jurídica na aplicação normativa, deve o intérprete assumir um compromisso metodológico de aplicação das normas civis constitucionais no qual haja coerência durante o processo de interpretação, bem como procurar a unicidade de critérios interpretativos, de modo claro e objetivo, a fim de limitar as possibilidades interpretativas de caráter personalíssimo, devendo manter a uniformização de valores dentro do ordenamento. Cada aplicação normativa, cada decisão judicial proferida deve levar em conta o ordenamento jurídico como sistema. Pietro Perlingieri salienta que “a solução para cada simples controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento jurídico e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam”.8 Conclusões A vigência por quase uma década do Código Civil de 2002 deixou claro que o referido diploma foi amplamente acolhido pela doutrina e pela jurisprudência. Trata-se de um diploma legal que não teve a pretensão de ser o centro das relações jurídicas, mas sim parte de um corpo normativo com cláusulas abertas para servir e viabilizar a atuação do Direito Privado como um todo. Neste sentido: “Este Código, pelas suas próprias raízes metodológicas e filosóficas (eticidade-sociabilidade-praticidade), não tem a aspiração de ser um Código fechado. É um Código que está permeado por valores que vão de encontro ao puro liberalismo e ao individualismo exacerbado. É um Código que está imbuído do que o Prof. Reale chamou de princípio da sociabilidade, ou seja, todos os valores do Código encontram um balanço entre o valor do indivíduo e o valor da sociedade não exacerba o social e, ao mesmo tempo, procura em todas as regras não exacerbar o individualismo”.9 Disto extrai-se que o Código busca que o sujeito de direito tenha uma posição ativa para a 8 Ibidem. p. 370. 9 LOTUFO, Renan in NANNI, Giovanni Ettore e LOTUFO, Renan (coords.), Teoria Geral do Direto Civil, 1ª ed. Atlas, São Paulo, 2008. p. 99 A interpretação normativa deve ser axiológica, com os preceitos constitucionais consolidados na jurisprudência, na doutrina e em todos os dispositivos legais preservação dos seus direitos, de modo a repugnar a inércia e o comodismo que antes impregnavam o Código Civil de 1916. Há uma procura constante em favor do equilíbrio individual com o interesse social, sempre mirando a condição de manutenção da dignidade da pessoa humana nas relações privadas. Contudo, esta condição deve ser preservada independentemente da atuação estatal. Conforme bem vislumbrado por Gustavo Tepedino, subsistem ainda três preocupações no âmbito do direito civil, quais sejam (i) a compreensão atual da metodologia do direito civil constitucional; (ii) a construção de uma nova dogmática do direito privado, com coerência axiológica em torno da unidade do ordenamento; (iii) a fidelidade ao compromisso metodológico.10 Superadas tais barreiras, estaremos diante de um ordenamento jurídico unitário, o qual preza pela paz social em busca de um direito mais humano e justo. n 10 TEPEDINO, Gustavo (coord.), ob. cit. p. 371. Bibliografia DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro,Vol. I, 26ª ed. Saraiva, São Paulo, 2011. Fontes Bibliográficas LOBO, PAULO in TEPEDINO, Gustavo (coord.), Direito Civil Contemporâneo – Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional, Editora Atlas, São Paulo, 2008. LOTUFO, Renan in NANNI, Giovanni Ettore e LOTUFO, Renan (coords.),Teoria Geral do Direto Civil, 1ª ed. Atlas, São Paulo, 2008. NANNI, Giovanni Ettore in LOTUFO, Renan, Caderno de Direito Civil Constitucional,Vol. 2, 1ª ed. Juruá, São Paulo, 2001. TEPEDINO, Gustavo (coord.), Direito Civil Contemporâneo – Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional, Editora Atlas, São Paulo, 2008. F ó r u m ju r í di co 75 artigo O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O PLEBISCITO PARA DESMEMBRAMENTO DE ESTADO-MEMBRO Felipe Penteado Balera é mestrando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com a tese “Federalismo e as possíveis alterações no território dos Estados Federados”. Graduado pela mesma instituição. Autor do artigo acadêmico “Medida Provisória: o controle dos requisitos constitucionais de relevância e urgência pelo Congresso Nacional e pelo STF”, publicada na Revista Brasileira de Direito Constitucional (v. 14, p. 25-52, 2009). 76 Fórum j urí di co F ELI P E P ENTEADO BALERA APRESENTAÇÃO DO TEMA O tema da consulta popular obrigatória, nas propostas de desmembramento de Estados ou de Municípios, voltou a ser discutido com grande ênfase no ano de 2011, em virtude dos decretos legislativos 136 e 137 aprovados pelo Congresso Nacional. Tais decretos convocaram plebiscito para a população paraense opinar sobre a criação de dois novos Estados – Tapajós e Carajás – por desmembramento do Estado do Pará. Uma questão de relevância jurídica sobre a consulta popular para o desmembramento de um Estado-membro, que ficou em evidência por conta do plebiscito no Estado do Pará e chegou a ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2650/GO, diz respeito a quem deve votar em tais pleitos indispensáveis às alterações nos territórios dos Estados e dos Municípios. A questão ganha contornos suscetíveis de divergência porque a Constituição Federal de 1988, ao incluir o plebiscito como requisito essencial para as alterações territoriais nos Estados, não definiu com clareza qual população deve votar em tais casos, utilizando apenas a expressão “população diretamente interessada”.1 Desta forma, podem surgir diversas interpretações acerca da expressão. Este artigo procurará identificar as interpretações para a referida expressão conferidas pelo legislador e pela jurisprudência do STF, desde a promulgação da Constituição Federal, verificando se o sentido atualmente compreendido atende ao propósito do constituinte. 1 Art. 18, § 3º – Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar. A definição da população que será consultada é de fundamental importância, pois é evidente que o resultado pode ser diverso de acordo com os detentores do direito de votar. A título de exemplificação, alcançar-se-ia resultado oposto no plebiscito do Pará, caso fosse aplicada outra interpretação à expressão, conforme se nota a seguir. A consulta realizada em 11 de dezembro de 2011 contou com a participação de toda a população do Estado do Pará e a maioria (cerca de 66%2) da população paraense rejeitou a criação das duas novas unidades federativas. Certamente, alcançar-se-ia resultado oposto no referido plebiscito, caso fosse aplicada outra interpretação à expressão, ou seja, se a consulta popular se restringisse à população da área que se pretende desmembrar, o resultado seria outro. Isso porque tanto a população da região do Tapajós quanto a do Carajás votaram em sua grande maioria a favor da cisão,3 conforme dados do Tribunal Eleitoral do Pará. A Constituição Federal exige plebiscito tanto para o caso de desmembramento de Estados Federados, quanto de Municípios, em que pese o procedimento para que ocorram tais divisões seja diverso, sendo no primeiro caso exigível lei complementar federal, enquanto que no segundo lei estadual. Ao delimitar o alcance destas manifestações populares, a Magna Carta utilizava expressões bastante similares: “população diretamente interessada” para as consultas sobre alterações nos territórios dos Estados e “populações diretamente interessadas” para as consultas acerca das alterações nos territórios dos Municípios. Até 1998, não existia lei federal definindo o objeto da expressão “população diretamente interessada”. Por outro lado, leis estaduais procuravam delimitar o alcance do plebiscito exigível para que houvesse desmembramento de Município, estendendo a consulta tão somente à população da área que pretendia se desmembrar e não à do Município inteiro.4 Naquele ano, porém, foi editada a Lei Federal nº 9.709/98, que dava sentido diverso à sobredita expressão. Assim, na forma do art. 7º 5 da referida lei, no plebiscito para eventual desmembramento de Estado ou Município, deveriam opinar tanto a população do território a ser desmembrado, quanto da área sobejada. No caso dos Municípios, o próprio texto constitucional já havia sido alterado, pela Emenda Constitucional nº 15 de 1996. Esta alterou a expressão “populações diretamente interessadas” por “populações dos municípios envolvidos”, o que acarretou a incompatibi- 2 Conforme dados do Tribunal Regional Eleitoral do Pará, disponíveis em http://www.tre-pa.jus.br/eleicoes/plebiscito-2011/relatorios-da-votacao-dos-plebiscitos-2011, acesso em 9 de janeiro de 2012. 3 Na região que seria desmembrada para a criação do novo Estado do Carajás, a população de todos os municípios foi favorável ao desmembramento (em 34 dos 39 municípios da região, o voto favorável superou o percentual de 90%). Na região que seria desmembrada para a criação do novo Estado do Tapajós, o voto a favor do desmembramento também ganhou com larga vantagem. O voto a favor só perdeu em 4 dos 25 municípios do pretenso Estado, sendo que no Município mais populoso da região, Santarém, a votação a favor do desmembramento superou 98% dos votos (Conforme dados do Tribunal Regional Eleitoral do Pará). 4 Neste sentido, foram expressas as seguintes leis complementares estaduais, entre outras: Lei Complementar do Estado do Rio Grande do Sul nº 9070/90, Lei Complementar do Estado do Paraná nº 56/91, Lei Complementar do Estado de São Paulo nº 651/90 e Lei Complementar do Estado de Pernambuco nº 01/90. 5 Art. 7o – Nas consultas plebiscitárias previstas nos arts. 4º e 5o entende-se por população diretamente interessada tanto a do território que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá desmembramento; em caso de fusão ou anexação, tanto a população da área que se quer anexar quanto a da que receberá o acréscimo; e a vontade popular se aferirá pelo percentual que se manifestar em relação ao total da população consultada. Quem é população diretamente interessada para o legislador F ó r u m ju r í di co 77 artigo lidade das leis estaduais com a Constituição Federal no que tange à população participante do plebiscito. Todavia, quanto às alterações territoriais nos Estados, a redação permaneceu, e permanece até hoje, inalterada, mantendo a expressão “população diretamente interessada”, suscetível a diversas interpretações, o que faz com que a posição adotada pela Lei nº 9.709/98 possa ter sua constitucionalidade questionada por aqueles que entendem ser diversa a intenção do Constituinte. Consequentemente, cabe à mais alta Corte de Justiça analisar se a Lei em tela, ao definir quem é população diretamente interessada, atendeu ao propósito da Constituição Federal. Quem é população diretamente interessada para o Supremo Tribunal Federal O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, tem a competência para controlar a constitucionalidade das leis e atos normativos federais ou estaduais que a violem. Assim, se a lei ou o ato normativo não estiverem de acordo com a Carta Magna brasileira, caberá ao órgão máximo da Justiça, quando provocado por ação direta de inconstitucionalidade, declarar sua incompatibilidade com texto constitucional, tornando a lei inaplicável. No exercício desta competência, o STF exerce papel interpretativo, ou seja, antes de decidir se a lei ou o ato normativo são contrários à Magna Carta, deve interpretar o sentido de seu texto, estabelecendo a conotação adequada a vocábulos passíveis de vários significados. É o caso do termo ora discutido, que delimita o campo de abrangência do plebiscito necessário ao desmembramento de um Estado. O Supremo Tribunal Federal já julgou ações diretas de inconstitucionalidade contra leis complementares estaduais que procuravam de78 Fórum j urí di co F ELI P E P ENTEADO BALERA finir o campo de abrangência dos plebiscitos para o desmembramento de Municípios. Recentemente, julgou a ADI nº 2.650, proposta pela Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, na qual se questionava a interpretação da Lei nº 9.709/98 para a expressão “população diretamente interessada” com relação ao desmembramento do Estado. As leis complementares estaduais, que regulamentavam o tema do desmembramento e a criação de novos municípios antes da edição da Emenda Constitucional nº 15 de 1996, indicavam que a consulta deveria ser realizada apenas com a população da área a ser desmembrada. Assim, as ADIs pretendiam declarar a inconstitucionalidade de tais normas, sob o fundamento de que no plebiscito deveria opinar toda a população do Município objeto do desmembramento. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar tais ações – como a ADI 733/MG, entre outras –, considerou constitucionais as leis complementares estaduais. Logo, delimitou a abrangência da expressão “populações diretamente interessadas” como sendo apenas a população da área a ser desmembrada. No entanto, como anteriormente mencionado, após a EC nº 15/96, passou-se a exigir o plebiscito com a população de todo o Município como requisito para que haja seu desmembramento. Com relação aos Estados-Membros permaneceu no texto constitucional a expressão “população diretamente interessada”. Nesse sentido, foi promulgada a Lei Federal nº 9.709 em 1998, que estendeu a interpretação da expressão referente aos Municípios ao caso dos Estados, isto é, devendo toda a população do Estado votar em tais pleitos. A ADI 2.650/GO, julgada em 2011, questionou essa interpretação da Lei Federal nº 9.709/98, alegando que população diretamente interessada deveria ser apenas a da área que seria desmembrada. Portanto, se o STF mantivesse o seu antigo entendimento, qual seja, a de que a população diretamente interessada no caso de desmembramento é a da área desmembrada, deveria julgar procedente a ação. Contudo, modificou seu entendimento, julgando improcedente a ação. Desta forma, permanece válida a interpretação legal, que define população diretamente interessada no caso do Estado como a população tanto da área a ser desmembrada quanto da remanescente. Decidiu-se por unanimidade pela improcedência da ADI 2650/GO. Entretanto, o Ministro Marco Aurélio fez uma ressalva quanto ao sentido da expressão “população diretamente interessada”, sustentando que em tais plebiscitos deveria ser consultada toda a população nacional. Esta tese, à qual se filiam outros ilustres juristas,6 tem como fundamento os seguintes argumentos: a criação de novo Estado por desmembramento traria custos adicionais à União e diminuição das receitas dos Estados no Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal e, portanto, toda a população nacional arcaria com tais despesas, o que demonstraria o interesse nacional na questão; e a criação de novo Criação de novo Estado diminuiria a representação proporcional dos outros Estados no Senado 6 Além do Ministro Marco Aurélio, por ocasião do plebiscito realizado no Estado do Pará em 12 de dezembro de 2011, outros ilustres juristas, como Dalmo de Abreu Dallari, sustentaram que o plebiscito deveria reunir todos os eleitores do Brasil e não apenas a população do Pará. Dalmo Dallari inclusive entrou com requerimento administrativo pedindo que o Tribunal Superior Eleitoral ampliasse a consulta para todo o país. Estado diminuiria a representação proporcional dos outros Estados no Senado, uma vez que o novo Estado elegeria mais três Senadores. Assim, com o aumento do número de Senadores para a mesma quantidade de eleitores, os direitos políticos dos cidadãos de outros Estados seriam afetados. Quem deve ser considerada como população diretamente interessada no plebiscito para o desmembramento de Estado Como visto, prevalece atualmente o entendimento de que a população diretamente interessada no plebiscito para desmembramento de Estado é toda a sua população, englobando a população da área desmembrada e a da remanescente. Todavia, existem duas posições divergentes. A primeira entende que se deva consultar apenas e tão somente a população da área desmembrada – esta posição é a que prevalecia no Supremo Tribunal Federal até o julgamento da ADI 2.650/GO. Já a segunda, manifestada no voto do Ministro Marco Aurélio neste controle concentrado, entende que se deva considerar “população diretamente interessada” toda a população nacional. Parece que a posição expressa na Lei nº 9.709/98, prevalecente na mais alta Corte após o julgamento da referida ADI, é a que melhor interpreta a expressão. Por um lado, a restrição do plebiscito para abranger apenas a população da área a ser desmembrada não atenderia ao mandamento constitucional, pois a população da área remanescente do Estado tem evidente interesse na manutenção da integridade territorial do ente federativo do qual faz parte. Por outro lado, não há interesse direto que torne plausível a intervenção eleitoral da população de Estados alheios àquele que sofrerá desmembramento. n F ó r u m ju r í di co 79 artigo CRIMES DE TRÂNSITO COM MOTORISTAS EMBRIAGADOS: CULPA CONSCIENTE OU DOLO EVENTUAL? Christiano Jorge Santos é professor de Direito Penal na Faculdade de Direito da PUC-SP, Mestre e Doutor pela mesma instituição de ensino (Direito das Relações Sociais – Direito Penal). Leciona Direito Penal e Direito Processual Penal em vários cursos de pós-graduação lato sensu. É Promotor de Justiça em São Paulo/SP e autor dos livros Crimes de Preconceito e de Discriminação (2ª edição – editora Saraiva); Direito Penal: Parte Geral e Prescrição Penal e Imprescritibilidade (estes últimos pela editora Campus/Elsevier), além de autor e coautor de diversos artigos jurídicos. 80 Fórum j urí di co Christiano Jorge santos Introdução Discute-se, há muito, a diferença entre culpa consciente e dolo eventual no âmbito acadêmico e doutrinário, no Direito Penal. O tema, que conta com divergências entre os especialistas, portanto complexo em termos dogmáticos, ressurgiu com força recentemente, ante a impunidade promovida pela branda legislação criminal brasileira e diante das consequências gravíssimas advindas dos acidentes de trânsito (especialmente aqueles que resultam em mortes e ferimentos graves das vítimas). Soma-se a tudo, para justificar o maior clamor social, a atenta cobertura pela imprensa de trágicos atropelamentos e colisões verificados em todo o país, inclusive por motoristas embriagados. De todos os fatores acima expostos, advêm diversas consequências: a população (aqui falando da parcela leiga em direito penal) passa a clamar por Justiça e os agentes públicos, seja com a sincera intenção de evitar a impunidade, seja por influência ou não da vox populi, às vezes de maneira precipitada, passam a classificar como “assassinos” (autores de homicídios dolosos – por dolo eventual) motoristas que agem com culpa stricto sensu. Como resultado da rigorosa interpretação (indevida, se for possível verificar prontamente os indícios), autua-se o motorista em flagrante e não se possibilita, num primeiro momento, a concessão da liberdade provisória. Encaminha-se o caso ao Tribunal do Júri e não a uma das Varas Criminais comuns. Daí, se denunciado pelo Ministério Público e pronunciado pelo juiz da Vara do Júri for, por fim, deixa-se o destino do responsável pelo acidente nas mãos de sete jurados leigos. Em suma, sete cidadãos que não conhecem o direito penal (via de regra, nem o direito) decidirão se o agente agiu com dolo eventual ou com culpa consciente. Parênteses: não se pretende aqui discutir a validade ou não do Tribunal do Júri (de cuja existência, aliás, sou defensor), mas ressaltar um dado inequívoco: não será o critério técnico-penal o principal norteador da decisão no plenário do júri (o que não significa que não se faça “justiça”, ali, por tal critério nem que o juiz togado não possa promover “injustiças”), ou seja, o que se pretende acentuar é a possibilidade efetiva de ser praticamente irrelevante o que diz ou deixa de dizer a doutrina sobre o dolo eventual ou sobre a culpa consciente para aqueles que se comovem pelas lágrimas (justas e sinceras, no mais das vezes) da viúva sentada na assistência da sessão de julgamento ou àqueles que se revoltam porque o motorista da Ferrari que se encontrava bêbado no momento do acidente não se mostrava comovido nem arrependido, nas imagens da TV. Mas, se assim é, qual a relevância de tal distinção (culpa consciente de dolo eventual), na prática? Apenas a definição de quem julgará o acusado? Evidentemente que não. O trato legal da questão e a “impunidade” O causador de um acidente de trânsito que venha a ser condenado pela prática de homicídio culposo na condução de veículo automotor (art. 302 da Lei nº 9503/97, o Código de Trânsito Brasileiro) sujeita-se a penas de 2 a 4 anos de detenção e mais a suspensão ou proibição do direito de dirigir. Gera espanto que o causador de acidente semelhante, julgado como autor de homicídio por dolo eventual, poderá, se for considerado culpado, cumprir de 6 a 20 anos de reclusão (homicídio simples – art. 121, caput, do Código Penal) ou poderá mesmo se sujeitar a arcar com 12 a 30 anos de reclusão se o homicídio for tido como qualificado (art. 121, § 2º, do mesmo Código – normalmente incorre na qualificadora do motivo fútil, crime hediondo, este último, aliás). Acresça-se que o condenado por crime culposo, se for primário e tiver bons antecedentes, “cumprirá” sua pena no regime aberto (o que hoje significa dizer, em termos práticos, que deverá ficar recolhido em sua própria casa, durante parte do dia – normalmente – sem fiscalização alguma). Como se não bastasse, caberá a substi- Sou contra a impunidade hoje resultante da aplicação legal, mas não defendo que se altere o conceito de dolo eventual para “obter Justiça” tuição da pena detentiva por penas restritivas de direitos, que poderão ser prestação de serviços à comunidade (por exemplo, em creches, hospitais ou órgãos públicos, durante algumas horas na semana) ou até mesmo uma quase simbólica limitação de final de semana (art. 43 e 44 do Código Penal). Não obstante, prevê o art. 301 do Código de Trânsito Brasileiro que o motorista não será preso nem precisará recolher fiança se prestar pronto e integral socorro à vítima. A esta altura deve o leitor estar a se questionar: o autor do texto é a favor ou contra a utilização da aplicação do dolo eventual aos causadores de acidentes automobilísticos fatais? É favorável ou contrário à impunidade? A resposta é muito simples. Sou contra a impunidade hoje resultante da aplicação legal, mas não defendo que se altere o conceito de dolo eventual para “obter Justiça”. Ou seja, não pode decorrer da falha legislativa e da consequente impunidade a equiparaF ó r u m ju r í di co 81 artigo Faz-se necessário, portanto, um aperfeiçoamento legislativo voltado à correção da situação hoje imperante ção de uma conduta culposa a outra dolosa (por dolo eventual), para efeito de punição. Faz-se necessário, portanto, um aperfeiçoamento legislativo voltado à correção da situação hoje imperante, sem que se distorçam os conceitos doutrinários e sem que sejam situações semelhantes julgadas de formas distintas. Vale dizer, sem que alguns motoristas sejam condenados a cumprir 12 anos de reclusão em regime inicial fechado (efetivamente presos) e outros a “cumprir” dois anos de detenção, em regime aberto, substituída a sanção por “limitação de final de semana”, a talante dos intérpretes da lei (sejam o Delegado de Polícia, o Promotor de Justiça, o Juiz de Direito ou os jurados). Da diferença técnica entre dolo eventual e culpa consciente Feitas as considerações acima, incumbe distinguir dolo eventual de culpa consciente. Como é sabido, o comportamento doloso é aquele intencional. Dolo equipara-se a intenção, vontade de produzir o resultado. Todavia, o Código Penal brasileiro, em seu art. 18, inciso I, estabelece ser doloso o crime “(...) quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. A primeira parte da norma (“quando o agente quis o resultado”) corresponde ao dolo direto. Como exemplo, pode-se referir o motorista de uma caminhonete que vê um inimigo, distraidamente atravessando a rua à sua frente e 82 Fórum j urí di co Christiano Jorge santos resolve matá-lo. Acelera e o atropela. Sobrevindo o óbito do pedestre, responderá por homicídio doloso (art. 121, caput, do Código Penal ou, se considerada alguma qualificadora do delito, art. 121, § 2º do mesmo código). Com o dolo eventual não é tão simples assim a questão. Isto porque, “assumir o risco de produzir o resultado” não corresponde apenas a antever o resultado e, mesmo assim, agir, como alguns, indevidamente, propagam. Na lição de Nelson Hungria, Assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente a ocorrer.1 Para Bitencourt, nosso Código adotou a teo ria da vontade, em relação ao dolo direto, e a teoria do consentimento, em relação ao dolo eventual. Esta última, para o autor, prevê ser também dolo a vontade que, embora não dirigida diretamente ao resultado previsto como provável ou possível, consente na sua ocorrência ou, o que dá no mesmo, assume o risco de produzi-lo.2 Não cabendo quanto ao dolo, nos estreitos limites deste trabalho, tecer distinções entre as teorias da vontade, da representação, do consentimento ou do risco, reproduzo, em parte, o conceito antes já exposto: Verifica-se o dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir o resultado. Ele não quer sua produção (pois se o desejasse estaríamos frente ao dolo direto), mas o antevê e mesmo assim age, assumindo o risco de sua produção, ou seja, ele aceita a produção do resultado, mesmo não o querendo realizado, necessariamente, como um inconsequente que atira uma pesada pedra para o alto em local onde passam pedestres e diz ‘na cabeça de quem cair, caiu’. Entre desistir da conduta e correr o risco de produzir o dano, 1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. I, tomo II, 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 122. 2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v. 1, 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 316/317. ele prossegue na conduta e assume o risco. Exemplo: ‘A’, fugindo da polícia em um veículo roubado, em alta velocidade, percebe que logo à frente há um policial a pé dando sinal de parada. Ao invés de diminuir a velocidade do veículo, mantém-na e, mesmo não desejando atropelar o agente público (pois atropelar pode significar a perda do controle do carro, o atraso de sua marcha e, consequentemente sua prisão), pensa em passar a seu lado numa pequena brecha do bloqueio, como o raciocínio do tipo: ‘se matar, azar dele’. Acaba por atropelá-lo vindo o policial a falecer.3 Em outras palavras, quem age com dolo eventual pratica a “teoria do ‘dane-se’ ”. Ou seja, “não quero matar, mas se alguém morrer em razão do meu comportamento, dane-se, azar o dele, ou pouco me importa”. Já a culpa em sentido estrito significa a produção de um resultado previsto na lei como crime, mas praticado pelo autor sem intenção (sem dolo direto nem dolo eventual). Ou seja, decorre o resultado de imperícia, negligência ou imprudência. É, no mais das vezes, o descomedimento, o comportamento do inconsequente. A culpa pode ser dividida em culpa inconsciente (quando o agente do delito não antevê a possibilidade do resultado) e em culpa consciente (hipótese em que o autor do crime antevê a possibilidade de produzir o resultado, mas sinceramente não deseja produzi-lo de modo algum). Tratando especificamente desta última, cabe lembrar que o indivíduo embriagado que deixa o bar despedindo-se dos amigos que insistem em levá-lo para casa e o alertam que pode ele, naquele estado, provocar um acidente fatal, será ou não autor de um crime doloso (por dolo eventual) ou culposo (por culpa consciente), a depender da situação verificada instantes antes do acidente, a partir de um critério puramente subjetivo, ou seja, a diferenciação se dará pelo 3 SANTOS, Christiano Jorge. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Campus Elsevier. p. 61-62. que passa na mente do sujeito (a assunção da “teoria do dane-se” ou não). Nada mais equivocado, em termos dogmáticos, por conseguinte, que afirmar ter o motorista, “ao dirigir em alta velocidade, embriagado, assumido o risco de produzir o resultado morte”. Não é possível afirmar-se isso pelo resultado objetivamente verificado. Pode-se imaginar um recém-casado apaixonado pela esposa que se embriaga para comemorar sua gravidez. Ao levar a mulher e seu futuro filho, inadvertida e imprudentemente, do restaurante para casa, acelera o veículo mais do que o devido, sobe na calçada, atropela um pedestre mortalmente, choca-se contra um muro e mata esposa e feto. Dolo eventual? Passou por sua mente a ideia de “se morrer alguém, dane-se?”. Evidentemente que não. O caso é de culpa F ó r u m ju r í di co 83 artigo (consciente, se antevira – como é provável - o risco de dirigir sob o efeito de etílicos) e não de dolo eventual. Como se vê, embora não seja tarefa tão simples, em termos teóricos, é possível distinguir-se o dolo eventual da culpa consciente. Árdua pode ser a tarefa, entretanto, de se estabelecer a distinção em termos práticos, ou seja, difícil é a produção da prova (e falar de prova envolve o Direito Processual Penal e não o Direito Penal) do dolo eventual ou da culpa consciente. Nada obstante, esta distinção deve se dar com base nos preceitos teóricos e sempre alicerçada no bom senso, aliado à coleta das circunstâncias todas que envolvem o evento danoso, tais como ter o motorista freado bruscamente antes do embate, ter acionado por diversas vezes o farol alto, acionado a buzina, entre tantos outros elementos. Nesta toada, parece muito difícil que um motorista, embriagado ou não, que cause mortes no trânsito, aja com dolo eventual. Até mesmo por egoístico e deplorável interesse material, a 84 Fórum j urí di co Christiano Jorge santos lógica “não quero colidir meu carro esportivo importado porque ele custa caro”, não veria como resultado “aceitável” a produção de uma colisão ou um atropelamento. Nunca é demais repetir: mesmo a culpa consciente ou a mais intensa culpa não se equiparam ao dolo eventual. O dolo eventual não guarda relação com graus de culpa, tampouco corresponde à irresponsabilidade extremada. Trata-se de questão subjetiva, de aferição da intenção ou da ausência de intenção do agente. Conclusões Como não se confunde dolo eventual com a culpa consciente e, comumente, nos casos de acidentes automobilísticos (envolvendo motoristas embriagados ou não), não há elementos indiciários claros de ter o agente agido com dolo eventual, não podem os agentes públicos agir com rigor excessivo, seja a pretexto de “fazer justiça”, seja porque estão sob a pressão da opinião pública. É certo caber à Justiça dar uma resposta à sociedade, sua destinatária, mas também igualmente correto que aos juízes “não é dado fugir à responsabilidade de um julgamento, atirando-a aos jurados, lavando suas mãos na pia do conflito emocional”, como bem dito por Pierangeli.4 Se assim é, cabe ao motorista embriagado que provoca mortes no trânsito (evidentemente excetuadas as hipóteses de dolo direto), ser indiciado, no inquérito policial, como incurso no Código de Trânsito Brasileiro, quando não houver indícios claros de que tenha agido com dolo eventual.5 Transformá-lo em réu perante o júri e não a justiça comum, pese o princípio in dubio pro societate inerente à vestibular fase do processo e à pronúncia, ante os mesmos indícios acima descritos, não corresponde ao mais abalizado dogmatismo penal nem à medida socialmente mais adequada. Igualmente, ao final, se não houver prova clara do dolo eventual, com base na aplicação do princípio in dubio pro reo, deverá o autor ser responsabilizado pela prática de homicídio culposo, devendo o juiz de direito atentar para as circunstâncias do art. 59 do Código Penal para elevar as penas, se caso for. Ademais, de lege ferenda, cabe ao Poder Legislativo, ante o clamor popular e o aumento da violência no trânsito, debruçar-se sobre a questão, com urgência, mas sem precipitação, para que se altere o quadro atual, na busca de uma solução de não se equiparar a um frio assassino o motorista embriagado que mata. Mas, ao mesmo tempo, candente a necessidade de se encontrar uma fórmula legal para que aquele que age com tamanha irresponsabi4 PIERANGELI, José Henrique. Morte no Trânsito: culpa consciente ou dolo eventual? São Paulo: Revista Justitia, 2007 – volume 197. p. 47-63. 5 Remeta-se ao item 2: o causador de acidentes de trânsito condenado pela prática de homicídio culposo, na condição de veículo automotor, incorre no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Por fim, nunca é demais recordar não ser o direito penal o único modo de enfrentamento da questão lidade também não se sinta impune e, assim, incentivado a comportar-se indevidamente na condução de veículos automotores. Talvez a criação de uma nova causa de aumento de pena, a proibição de determinadas penas alternativas (como fez a Lei “Maria da Penha”, Lei nº 11.340/2006) ou então a obrigatoriedade de cumprimento de determinadas sanções possam fazer frente às necessidades sociais. Também convém não olvidar a necessidade de aperfeiçoamento do tipo penal do crime de perigo de dirigir sob efeito de substâncias embriagantes (e sua punição efetiva) e a revisão do entendimento jurisprudencial e doutrinário sobre o “direito” de não ser colhida prova da embriaguez ante a recusa do motorista a soprar o etilômetro (apelidado “bafômetro”) ou a fornecer sangue, como importantes fatores preventivos. Por fim, nunca é demais recordar não ser o direito penal o único modo de enfrentamento da questão. Neste caso específico, o aumento da fiscalização administrativa e, acima de tudo, a educação, surtirão efeitos benéficos a todos e, quiçá, com a somatória de todas as providências, deixe o Brasil de figurar como um dos países com trânsito mais violentos do mundo,6 evitando-se tantas internações, aposentadorias precoces, gastos de toda ordem e, principalmente poupando-se milhares de vidas. n 6 Informe sobre la situación mundial de la seguridad vial: es hora de pasar a la acción. Organização Mundial de Saúde, 2009. p. 12 e 240-247. F ó r u m ju r í di co 85 artigo REFLEXÃO SOBRE A QUESTÃO URBANA BRASILEIRA Juliana Somekh1 é estudante do 7º semestre do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; participou, em 2010, do curso de Regularização Fundiária de Assentamentos Informais, no Instituto Pólis; atual pesquisadora do PIBIC-CEPE com a tese “Direito à propriedade e as políticas urbanas brasileiras: limites e possibilidades”, sob orientação da Professora Doutora Silvia Carlos da Silva Pimentel. 1 “Art. 1º, Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Art. 2o. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.” Lei nº 10.257 de 2001(Estatuto da Cidade). 86 Fórum j urí di co Ju l i a n a S o m e k h Os instrumentos de políticas urbanas existentes no ordenamento jurídico brasileiro são consequência de uma longa luta da população, iniciada na década de 1960, devido ao surgimento dos problemas urbanos no Brasil.Aproximadamente quarenta anos depois, foi promulgada a Lei nº 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, fruto de muita negociação e pressão sobre o Congresso Nacional e o Governo Federal. Esse diploma, regulamentando o disposto no art. 1821 da nossa Constituição, traça diretrizes jurídicas visando consolidar o direito urbanístico; obter uma gestão democrática das cidades; instrumentalizar a regularização fundiária dos assentamentos informais em áreas urbanas municipais; e estabelecer uma ordem urbana mais justa e inclusiva nas cidades brasileiras. Concebe-se, sob a perspectiva filosófica rous seauniana,2 que a propriedade privada, assim como as próprias leis, surge em um momento histórico no qual o homem se vê obrigado a inventar mecanismos para sobreviver em comunidade, rompendo com a igualdade e liberdade natural, inerente a todos os indivíduos. Em tal momento, a autonomia em relação aos seus semelhantes se desfaz e o homem passa a evoluir em situação de dependência em relação a outro homem. Isto é, ao produzir em um pedaço de terra, que na teoria seria um espaço pertencente à sociedade, o homem começa a adquirir frutos e, na intenção de preservar a sua produção dos demais indivíduos, toma para si aquele espaço físico. Dessa forma, nasce a necessidade de limitar o que seria de um e o que seria do outro, não cabendo mais a possibilidade de existir espaços sociais de produção, uma vez que o trabalho individual traz o sen1 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Art. 182, Constituição Federal de 1988. 2 Perspectiva extraída, entre outras obras, de: ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Trad. Pietro Nasseti. Revisado por Antonio Carlos Marquês. 20ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 128. timento de posse. Para viabilizar esta limitação em uma sociedade que objetiva o estado de paz, e não de guerra, criam-se leis e estrutura-se um governo. Em virtude disso, a relação do homem e da propriedade se concretiza pela produção para provisão e pela habitação, enquanto o Direito, ante sua função de organizador da sociedade por meio de leis, legitima a propriedade privada e respalda as desigualdades existentes. No mesmo sentido da concepção de Rousseau,3 historicamente entende-se que o surgimento da propriedade urbana precisou ser regulado pelo direito para que se estabelecesse a organização social. O desenvolvimento das cidades, na Europa e no mundo, se deu pela industrialização, uma vez que a comercialização ocorria de forma mais eficaz nos polos urbanos. A propriedade urbana aparece, neste momento, como um ambiente fabril, em que se objetiva apenas a produção. Os trabalhadores da época originalmente moravam no campo e se deslocavam para a cidade somente para trabalhar. No entanto, a distância de um local para o outro se tornou inviável enquanto percurso diário, obrigando os trabalhadores, com suas famílias, a se mudarem para os polos urbanos. Foi então que as propriedades urbanas, além de servirem para produção, passaram a convir também para o fim habitacional. No Brasil, a questão da propriedade seguiu lógica semelhante. No período colonial, a divisão das sesmarias possibilitou a criação de grandes latifúndios. Contudo, a não demarcação de tais terrenos obrigou a Coroa Portuguesa a criar uma legislação que estabelecesse e delimitasse os territórios e seus respectivos proprietários. Como resultado, surgiu a Lei de Terras, em 1850, a primeira lei a disciplinar a questão da propriedade em nosso país, a qual inaugurou a relação entre Direito e propriedade, até então inexistente na região. 3 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Em 1930, inicia-se um período de industrialização e desenvolvimento dos polos urbanos nacionais e, consequentemente, a necessidade de uma legislação que regulasse o domínio das propriedades urbanas . Durante os 30 anos que se seguiram, o Estado foi omisso, não afetando, porém, o ritmo do desenvolvimento industrial, de modo que o fluxo de trabalhadores para as cidades continuava, como forma de aproximação dos locais de trabalho, lazer, estudo e saúde. No início da década de 1960, setores sociais passaram a se mobilizar na tentativa de mudar a realidade das cidades brasileiras. Em 1963, o Instituto dos Arquitetos do Brasil propôs ao Congresso Nacional uma reforma urbana, que, no entanto, foi temporariamente inviabilizada, devido ao golpe militar em 1964. (...) Enquanto o Direito, ante sua função de organizador da sociedade por meio de leis, legitima a propriedade privada e respalda as desigualdades existentes Em virtude do desenvolvimento econômico, houve exponencial crescimento populacional nas cidades, o que acarretou o surgimento de favelas, assentamentos urbanos, cortiços, conjuntos habitacionais e loteamentos periféricos, degradando o meio ambiente e deteriorando a qualidade de vida nas cidades. Na década de 1980, diante da abertura política lenta e gradual, os temas da reforma urbana ressurgiram, com o intuito de modificar o perfil excludente que se configurava nas cidades brasileiras, clarividente pela precariedade na habitação, no transporte, na ocupação do solo urbano e F ó r u m ju r í di co 87 artigo saneamento básico, consequência clara da omissão do Poder Público. O Poder Constituinte Originário de 1988, tomando por base, enfim, a noção da função social da propriedade, cria o capítulo “Da Política Urbana”, da Constituição Federal, visando assegurar a valorização imobiliária; proteger, recuperar e preservar o meio ambiente; dar acesso à moradia para todos; distribuir de forma justa os ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização; e promover a regularização fundiária e a urbanização das áreas ocupadas por população de baixa renda. Muitos não entendem a dimensão dos problemas urbanos ou mesmo as possibilidades que o Direito oferece para a resolução deste ponto O art. 182, desse capítulo, reza a necessidade de diretrizes fixadas em lei para a execução da política de desenvolvimento urbano, tendo por escopo “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.4 Assim, sob a vigência da Constituição Cidadã, organizou-se o Fórum Nacional da Reforma Urbana, visando dar continuidade ao debate com o Congresso Nacional e regulamentar o capítulo das políticas urbanas mediante legislação competente. Doze anos depois, em 2001, a Lei nº 10.257 é promulgada, mais conhecida como Estatuto da Cidade. Trata-se da lei que regula o capítulo referente às políticas urbanas da Carta Suprema, 4 Art. 182, CF/88. 88 Fórum j urí di co Ju l i a n a S o m e k h determinando as diretrizes para o seu desenvolvimento no que tange à União, aos Estados e aos Municípios, objetivando, com isso, a garantia da função social da propriedade urbana e da cidade. Além disso, disciplina o desenvolvimento de gestões democráticas nas cidades e o direito a cidades sustentáveis, com o fito de assegurar o bem-estar dos cidadãos, a segurança e o bem coletivo.5 5 Art. 2º da Lei 10.257 de 2001. Estatuto da Cidade: “Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar (...);VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.” Desde a promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, tem-se priorizado a popularização das políticas urbanas, buscando concretizar o que se encontra previsto na legislação, de modo a inserir a população no processo de efetivação. O problema é que as questões urbanas, sociais e ambientais, que afetam a vida da maioria dos brasileiros que vivem em cidades, não foram supridas com o surgimento normativo de instrumentos e políticas urbanas em nossa Constituição, ou mesmo com a criação do Estatuto da Cidade e programas do Poder Executivo, tais como o “Minha Casa, Minha Vida”. Segundo publicação de estatística do IBGE, 6% (seis por cento) da população brasileira vive em ocupações irregulares, sendo as cidades brasileiras da região Sul e Sudeste as que mais concentram domicílios nesta condição. Assim, tem-se que as metrópoles brasileiras, em sua maioria, permanecem cercadas por habitações irregulares, que degradam o meio ambiente e, ainda, colocam a vida de pessoas em perigo por serem construídas em áreas de risco.6 O Poder Público não tem apenas o dever de regulamentar as normas de relevância social, como deve, também, atuar de forma a cumprir o que essas normas propõem, tendo em vista que a política urbana perde sua razão de ser se não é adimplida. Os fenômenos contemporâneos da globalização, do crescimento populacional e do desenvolvimento urbano mundial nos levam à inevitável reflexão acerca da necessidade de uma reforma urbana no Brasil. É realmente importante entender o Estatuto da Cidade e as políticas urbanas brasileiras para que o Direito Urbanístico se desenvolva e promova o bem-estar social. Ainda que tenha ganhado espaço no ordenamento jurídico brasileiro, a questão urbana precisa 6 Site consultado: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/ noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2057&id_pagina=1 Acesso em 12 de fevereiro de 2012. ser ainda muito estudada e trabalhada, para que a parcela da população em condições habitacionais subumanas, em áreas de proteção ambiental e de risco social, seja amparada por nossa legislação e tenha garantido seu direito fundamental. Uma das formas de se trabalhar esta questão seria com a inclusão de tal disciplina na grade obrigatória das faculdades de Direito do nosso país, já que muitos não entendem a dimensão dos problemas urbanos ou mesmo as possibilidades que o Direito oferece para a resolução deste ponto. As dificuldades existentes não impedem que profissionais das mais diversas áreas atuem de forma a concretizar a legislação vigente para assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, conferindo sentido sociológico ao Direito Urbanístico.7 A luta para que o Poder Público deixe de ser omisso não cessou e muito menos as ações sociais.A esperança de mudanças e inclusão social continuará, bem como a de mobilização da coletividade. “Mas ele diz:‘Livre-se desses pensamentos sombrios’, E se livra desses pensamentos sombrios. E o que poderia dizer, E o que poderia fazer De melhor?” Robert Desnos. n 7 Ferdinand LASSALLE. O que é uma Constituição? F ó r u m ju r í di co 89 artigo Um Direito Penal do Inimigo envolto em controvérsias Natália Pincelli é estudante do 5º semestre do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Monitora em Direito Penal do Professor Doutor Gustavo Octaviano Diniz Junqueira 90 Fórum j urí di co N at á l i a P i n c e l l i Entre as inúmeras ramificações proporcionadas pelo ordenamento jurídico, o Direito Penal é aquela que interfere de maneira mais agressiva na regulação da vida em sociedade – nas palavras de Rogério Greco, “com o direito penal, objetiva-se tutelar os bens que, por serem extremamente valiosos, não do ponto de vista econômico, mas sim político, não podem ser suficientemente protegidos pelos demais ramos do Direito”.1 Assim, o conceito moderno de direito penal representa, acima de tudo, um escudo de direitos do indivíduo contra o Estado. Pode-se exemplificar a relevância desse escudo protetivo através do Código Penal Brasileiro, que, logo em seu art. 1º, não traz o conceito de crime, mas limita o poder do Estado ao determinar que “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. A Constituição Federal do Brasil de 1988 faz esta mesma previsão no art. 5°, XXXIX. Duas das principais correntes na evolução do Direito Penal são as escolas Clássica e Positiva. Se, por um lado, a escola Clássica possui inspiração iluminista (o que abrange, inclusive, a existência de um contrato social) e analisa a pena enquanto uma resposta da ordem jurídica ao ato do criminoso, por outro lado, a escola Positiva faz do Direito uma ciência, interpreta a pena como um instrumento de defesa social, além de ser responsável pelo desenvolvimento da criminologia, disciplina que estuda, a partir de um enfoque no criminoso, o crime, o delinquente, a vítima e o controle social dos delitos – conforme define Zaffaroni, a “criminologia é a disciplina que estuda a questão criminal do ponto de vista biopsicossocial”.2 Da tensão en1 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2011. p. 2. 2 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro,Volume 1 – Parte Geral. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.144. tre essas duas escolas, surgiram diversos movimentos da política criminal, entre eles o Direito Penal do Inimigo. A origem do Direito Penal do Inimigo é incerta. Contudo,Thomas Hobbes pode ser considerado como um dos principais precursores deste movimento. Em sua obra consagrada, Leviatã, Hobbes traçou o perfil do inimigo como sendo aquele que desrespeita o soberano.3 Dessa forma, quem atenta contra o governante coloca-se fora do pacto social firmado e, em decorrência disso, não se fala em penas, mas em uma completa submissão dos considerados inimigos. Além da definição elaborada por Hobbes, outros autores propuseram-se, ao longo da história, a demarcar com clareza o conceito de inimigo – citam-se Immanuel Kant4 e Carl Schmitt.5 Todavia, destaca-se, entre eles, Günther Jakobs,6 a quem se pode atribuir a principal tese sobre o conceito de Direito Penal do Inimigo. Para desenvolver sua teoria, Jakobs parte da diferenciação entre cidadão e inimigo.7 Trata-se de duas esferas distintas dentro de uma mesma realidade penal, as quais dificilmente se manifestam em seu estado puro. Em linhas gerais, cidadão é o indivíduo considerado como parte integrante de um contrato social firmado. O inimigo, por sua vez, é aquele que se coloca às margens do Di3 HOBBES, Thomas. Leviatã ou a Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 1ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003. p. 260. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007. p. 128.Vide, também, o capítulo Alguns esboços jusfilosóficos do livro Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007. p. 136 e 137. 6 Ao longo da obra Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas, Jakobs discorre, juntamente com Meliá, sobre os pormenores da teoria do Direito Penal do Inimigo. 7 Desde o início de sua obra Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas, Jakobs atenta para a diferenciação, inclusive terminológica, entre cidadãos e inimigos, explicitando, entre outras coisas, a existência de dois Direitos Penais distintos voltados para cada um deles. reito e não oferece garantias de que obedecerá às normas do contrato. Para Jakobs, são inimigos, por exemplo, os terroristas, os autores de crimes sexuais e os delinquentes organizados. Por se encontrar fora da esfera dos cidadãos, o inimigo não é juridicamente tratado enquanto pessoa, mas sim como fonte de perigo – “Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho”.8 A justificativa para tal premissa é o fato de que o inimigo não oferece qualquer segurança de que conduzirá seus comportamentos pessoais em coerência com o Direito e, consequentemente, “não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas”.9 O inimigo não é juridicamente tratado enquanto pessoa, mas sim como fonte de perigo Três grandes características podem ser apontadas no tocante ao Direito Penal do inimigo. Em primeiro lugar, cita-se a possibilidade de adiantamento da punibilidade, o que é incomum, tendo em vista que, geralmente, o Direito Penal recai sobre ato já provocado pelo sujeito. Em segundo lugar, tem-se a desproporcionalidade das penas. Finalmente, o terceiro viés do movimento é a relativização e, até mesmo, a supressão de garantias processuais. Desse modo, o Direito Penal do Inimigo constitui-se de elevadas penas e mínimas garantias individuais. 8 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007. p. 18. 9 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 40. F ó r u m ju r í di co 91 artigo Ao contrário do que ocorre com o Direito Penal destinado ao cidadão, o qual deve ser respeitado e a quem devem ser disponibilizadas todas as garantias processuais, o Direito Penal do Inimigo é destinado apenas aos que atentam permanentemente contra o Estado e que, por isso, serão expostos à coação física. Justamente por pregar uma forte intervenção penal em favor do cidadão, que faz parte do con- O Direito Penal de periculosidade sustenta que o homem não é livre para realizar suas escolhas: ele é determinado trato social, o Direito Penal do Inimigo enseja inúmeras controvérsias, a começar pela própria denominação do movimento, a qual, segundo as palavras de Luis Gracia Martín, “suscita ya en cuanto se pronuncia determinados prejuicios motivados por la indudable carga ideológica y emocional del término enemigo”.10 11 Jakobs categoricamente afirma logo no início de Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas que a denominação utilizada não pretende, sempre que citada, soar pejorativa;12 entretanto, o termo inimigo por si só já conduz a uma rejeição emocional por parte da sociedade no tocante aos excluídos da esfera cidadã. 10 MARTÍN, Luis Gracia. Consideraciones Críticas Sobre el Actualmente Denominado “Derecho Penal del Enemigo”. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, 2005. p. 3. 11 Tradução livre: “Suscita já quando se pronuncia determinados preconceitos motivados pela indubitável carga ideológica e emocional do termo inimigo”. 12 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 21. 92 Fórum j urí di co N at á l i a P i n c e l l i Faz-se notório ressaltar que o verdadeiro Direito Penal encontra-se vinculado à Constituição Democrática de cada Estado,13 uma vez que se propõe a proteger os bens jurídicos de maior relevância para a convivência em sociedade. Assim sendo, as críticas relativas ao Direito Penal do Inimigo somente podem ser observadas em Estados que admitam, no texto constitucional, a associação entre Direito Penal e defesa de garantias individuais. Isso porque, nos governos ditos totalitários, a legislação como um todo já é articulada com base na guerra contra os inimigos – meramente são reconhecidos possíveis dispositivos de coação. Os regimes democráticos, por sua vez, são formados, também, por direitos e garantias fundamentais, de modo que a denominação “Direito Penal do Cidadão” torna-se um pleonasmo. No contexto de um Estado Democrático, o Direito Penal do Inimigo pode, então, ser visto como contraditório, porque representa um “não direito”, contrapondo-se, portanto, às garantias fundamentais existentes em um regime não totalitário.14 Em relação às características principais do Direito Penal do Inimigo, podem-se atribuir críticas severas, quando analisadas sob o prisma da proteção de direitos individuais e da proporcionalidade entre pena e delito. O Direito Penal do Inimigo não rejeita a ideia de penas desproporcionais. Ao inimigo, identificado “mediante a atribuição de perversidade, me13 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (ou Inimigos do Direito Penal). Revista Jurídica Unicoc, Ano II, nº 2, 2005. p. 3. 14 Ao contrário do que ocorre em regimes totalitários, nos Estados Democráticos de Direito, caracterizados, também, por serem regulados por uma Constituição, os cidadãos são titulares de direitos individuais, inclusive políticos, oponíveis ao próprio Estado (SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed., 10ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 49-54). Assim sendo, o Direito Penal do Inimigo, enquanto movimento que relativiza certos direitos individuais, só fará sentido dentro de um Estado que não só preveja como, também, resguarde tais direitos. diante sua demonização”,15 aplica-se uma pena cujo significado não resulta apenas de uma contradição fática, mas, também, de guerra a fim de garantir a segurança diante dos inimigos. Nesse sentido, é estabelecida uma polêmica entre o Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal do Estado de Direito. Enquanto este prega a proporção entre a aplicação da pena e o delito praticado, aquele se caracteriza pela defesa de penas desproporcionais, com base no perigo apresentado pelo indivíduo. O Direito Penal do Estado de Direito, corretamente, propõe seja feita uma ponderação entre o bem lesionado e o bem de que alguém possa ser privado a fim de que o delito cometido tenha, efetivamente, uma relação valorativa com a pena. Deve-se, portanto, buscar a proporcionalidade, o que não é almejado pelo Direito Penal do Inimigo. No âmbito da defesa de direitos fundamentais ao indivíduo, ressalta-se que ao inimigo não se reconhecem garantias penais e processuais – principalmente o direito ao devido processo legal. Trata-se o inimigo com inferioridade e desvaloriza-se a dignidade da pessoa humana. “Pessoa humana”, a princípio, pode soar como uma expressão pleonástica, porém, acaba por expressar com clareza o fato de cada ser humano carregar consigo a dignidade da humanidade inteira. Nega-se, ao inimigo, a condição de pessoa, negando-lhe, por conseguinte, sua dignidade. O Direito Penal do Inimigo é posto sob questionamento, ademais, pelo fato de que, nele, as penas surgem como solução/remédio para aniquilar o inimigo. A imputação do cidadão será feita com base no princípio acusatório a partir de todas as garantias processuais, enquanto a imputação do inimigo será feita com base no princípio inquisi15 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 97. tório.16 Nesse sentido: “O duplo sistema de imputação de Jakobs17 suprime seculares garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito, como expressamente propõe: o processo contra o inimigo não precisa ter forma de justiça”.18 Cabe, neste momento, tecer algumas considerações sobre a distinção entre Direito Penal do autor e Direito Penal de ato, devido à sua notória relevância para a compreensão do Direito Penal do Inimigo. Para isso, convém aprofundar a distinção entre o Direito Penal de culpabilidade e o Direito Penal de periculosidade. A culpabilidade representa a reprovabilidade de uma conduta. Trata-se de um conceito graduável segundo o qual a pena é uma espécie de pagamento. De acordo com essa concepção de Direito Penal, o sujeito tem liberdade de escolha e, portanto, o limite da pena é o grau da culpabilidade – “O direito penal de culpabilidade é aquele que concebe o homem como pessoa”.19 O Direito Penal de periculosidade, por sua vez, sustenta que o homem não é livre para realizar suas escolhas: ele é determinado e, nessa hipótese, não se fala em culpabilidade. Para a determinação 16 O princípio inquisitório é aquele marcado pela presença de variadas formas de coação. Assim sendo, com base nesse princípio “o Estado elimina direitos de modo juridicamente ordenado” (JAKOBS, Günther; MELIÁ, Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 38). 17 O duplo sistema de imputação descrito por Jakobs se caracteriza por uma polarização no Direito Processual Penal. Tem-se, de um lado, uma espécie de imputado, comumente referido como sujeito processual, permeado por todas as garantias processuais. Em contrapartida, há outro tipo de imputado, o qual estará sujeito à coação e a quem serão relativizadas e, até mesmo, derrogadas certas garantias processuais – cita-se, como exemplo, a supressão do direito de um preso contatar seu defensor (JAKOBS, Günther; MELIÁ, Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 38). 18 DOS SANTOS, Juarez Cirino. O Direito Penal do Inimigo – ou O Discurso do Direito Penal Desigual, pesquisado no site www.cirino.com.br, acesso em 30 de dezembro de 2011. p. 11. 19 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro,Volume 1 – Parte Geral. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 108. F ó r u m ju r í di co 93 artigo da pena, que, nesse caso, significa ressocialização,20 considerar-se-á, apenas, o grau de determinação do sujeito na prática do delito ou, em outras palavras, o grau de periculosidade. Embora não haja uma definição incontestável, pode-se dizer que o Direito Penal do autor, em oposição ao Direito Penal de ato, o qual pune o autor por aquilo que ele faz, “é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma ‘forma de ser’ do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva”.21 Conforme previu a escola Positiva, o autor é um ser inferior e seu delito, apenas fruto de sua má condução de vida. A punição dos inimigos por antecipação, de acordo com sua periculosidade, retoma a ideia de criminalização com base na análise do perigo que o inimigo pode representar. Tem-se uma “aplicação antecipada de pena como segurança para impedir fatos futuros”.22 Argumenta-se que esse Direito Penal prospectivo, em substituição ao retrospectivo, fere o princípio da culpabilidade. Tal princípio apresenta, ao menos, três significados. O primeiro deles diz respeito à análise da possibilidade de censura quanto ao fato praticado; o segundo refere-se à medição da sanção penal; finalmente, o terceiro representa uma imposição da subjetividade da responsabilidade penal, ou seja, não há conduta sem que haja dolo ou culpa por parte do agente. Ao se optar pela aplicação antecipada da pena, não há como analisar a possibilidade de censura 20 Conforme explica Zaffaroni, no Direito Penal de periculosidade “a pena ressocializa neutralizando a periculosidade” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro,Volume 1 – Parte Geral. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 108 (tabela comparativa). 21 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro,Volume 1 – Parte Geral. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 110. 22 DOS SANTOS, Juarez Cirino. O Direito Penal do Inimigo – ou O Discurso do Direito Penal Desigual, pesquisado no site www.cirino.com.br, acesso em 30 de dezembro de 2011. p. 8. 94 Fórum j urí di co N at á l i a P i n c e l l i do ato praticado, visto que este ato sequer foi consumado. Dessa forma, tanto a medição da sanção quanto a imposição da subjetividade da responsabilidade se tornam impossibilitadas. Em decorrência de não se punir a culpabilidade do agente, pena e medida de segurança deixam de ser realidades distintas e passam a se confundir. O Direito Penal do Inimigo é, portanto, um Direito Penal de periculosidade e, consequentemente, manifestação do direito penal do autor. Daí, o questionamento da legitimidade desse movimento da política criminal atual. A partir da punição com base na personalidade do agente, permite-se uma nova demonização, reproduzindo Manuel Cancio Meliá,23 de determinados grupos de delinquentes. Condena-se, primeiramente, a atitude interna corrompida do agente, sendo o delito apenas um espelho, um reflexo da pessoa do infrator. Há, dessa forma, a possibilidade de criminalização de determinado modo de vida sem a necessidade de ocorrência de um delito. Ao substituir o grau de culpabilidade pelo grau de periculosidade, esse movimento, difundido por Jakobs, não só afronta o princípio da legalidade (ao permitir a punição de atos anteriores alheios ao delito) como, também, contamina o princípio da dignidade da pessoa humana, já que é negada ao inimigo a própria condição de pessoa. O Direito Penal do Inimigo, sem dúvida, admite a possibilidade de condutas arbitrárias e imprevisíveis por parte dos Poderes Executivo e Judiciário, visto que apenas o modo de condução de vida de um sujeito pode levar a punições sem a necessidade de que haja ocorrido, de fato, um delito que ensejasse a condenação do agente.Vale dizer, condutas de natureza arbitrária e imprevisível podem ser consideradas, também, irracionais, no sentido de que deve prevalecer a definição tripartida de 23 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 97. crime, segundo a qual apenas é crime o fato típico, antijurídico e culpável.24 Assim, a punição com a ausência de delito é capaz de acarretar uma incriminação vaga e indeterminada, colocando em risco o Estado Democrático de Direito, de forma a regredirmos ao Estado-Polícia. Das acentuadas controvérsias sobre o Direito Penal do Inimigo aqui expostas, conclui-se que as polêmicas acerca do tema ainda não se finalizaram. Jakobs sustenta a institucionalização desse movimento, resguardando a divisão entre cidadãos e inimigos a fim de que estes últimos possam ser impedidos, mediante coação, de destruir o ordenamento jurídico.25 Em contrapartida, muitas são as alegações no sentido de que “nesse modelo processual penal inexiste atividade cognitiva de um julgador imparcial, consubstanciada na verificação empírica de fatos concretos”,26 de modo que se determinadas garantias ao devido processo legal são limitadas e, até mesmo, suprimidas para o 24 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2011. p. 141. 25 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 40. 26 MALAN, Diogo Rudge. Processo Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 59, 2006. p. 26. Cabe aos magistrados o papel de controlar a seletividade arbitrária do processo penal para que o Direito Penal do autor não se manifeste em sua plenitude inimigo,“então o Estado Democrático de Direito está sendo deslocado pelo estado policial”.27 Cabe, então, aos magistrados o papel de controlar a seletividade arbitrária do processo penal para que o Direito Penal do autor não se manifeste em sua plenitude. Sabe-se que, na prática, o Direito Penal de ato também não se realiza de maneira completa em nenhum lugar. Espera-se, porém, que os operadores do direito tenham discernimento para limitar ao máximo, mediante aplicação da racionalidade, a punição baseada no modo de ser do agente a fim de que não se enxovalhe o valor da dignidade humana. n 27 DOS SANTOS, Juarez Cirino. O Direito Penal do Inimigo – ou O Discurso do Direito Penal Desigual, pesquisado no site www.cirino.com.br, acesso em 30 de dezembro de 2011. p. 20. Referências bibliográficas BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª ed., 1ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1994. BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Parte Geral. 2ª ed., Tomo 1º. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1959. DOS SANTOS, Juarez Cirino. O Direito Penal do Inimigo – ou O Discurso do Direito Penal Desigual, pesquisado no site www. cirino.com.br, acesso em 30 de dezembro de 2011. GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (ou Inimigos do Direito Penal). Revista Jurídica Unicoc, Ano II, nº 2, 2005. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2011. HOBBES,Thomas. Leviatã ou a Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 1ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003. JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. 4ª ed. 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F ó r u m ju r í di co 95 alunos B e a t r i z Bu l l a O Direito enquanto veículo: a trajetória de uma jornalista Isabela Oliva Cassará e Clara Proce Pinto Serva A questão multidisciplinar da Faculdade de Direito revela a dispensabilidade do bacharel estar adstrito a togas e gravatas 96 Fórum j urí di co É notório que grandes juristas são objeto de admiração dos estudantes de Direito. Contudo, essa não é a trilha de todos os futuros bacharéis, uma vez que o curso abre um leque de possibilidades. Estudante do 7º semestre de Direito da PUC-SP, Beatriz Bulla é uma das poucas de sua sala que não têm o Exame de Ordem da OAB como grande meta. A jornalista recém-formada pela Faculdade Cásper Líbero vê relação entre os princípios básicos do Direito e o mundo do jornalismo. Mais do que profissionalmente, pretende usar seus conhecimentos jurídicos como cidadã. Esta seção pretende mostrar a atuação de alunos da gradua ção na formação de suas carreiras, relatando seus caminhos e motivações ao se iniciar profissionalmente. Beatriz, personagem desta primeira edição, esbarrou no Direito no meio de sua carrei- ra como jornalista. A jovem de 21 anos estagiou por um ano no site jurídico Última Instância e, com mais três colegas do portal, escreveu o livro Justiça no Trabalho – 70 anos de direitos, obra publicada pela Alameda Casa Editorial em dezembro de 2011. No mesmo mês, ela terminou a faculdade de Jornalismo, o 6º semestre de Direito e o Curso Intensivo de Jornalismo Aplicado do jornal O Estado de São Paulo – um misto de extensão universitária e treinamento profissional. O dia a dia A rotina, como é de se supor, não era das mais tranquilas. “Acho que só fui capaz de continuar porque eu sentia prazer em tudo o que fazia”, relata. Relembrando o cansaço, conta que conciliar o treinamento no Estadão com as duas faculdades e o trabalho de conclusão do curso de Beatriz Bulla: estudante do 7º semestre de Direito da PUC-SP Jornalismo – um documentário de 50 minutos – foi “quase um atestado de insanidade”. “Prometi para mim mesma nunca mais assumir tanta coisa em pouco tempo. Mas sei que isso dura só até o próximo desafio”, confessa. Beatriz Bulla iniciou a faculdade de Direito quando entrava no segundo ano de Jornalismo. “Comecei a cursar Jornalismo com 17 anos e me encontrei. E me encantei. Sabia que aquela era a minha profissão, mas achava que a faculdade de Jornalismo seria muito genérica”. Unindo a vontade de se aprofundar em algum assunto com o interesse por política, decidiu estudar Direito. “Continuei com as duas faculdades porque entendo a relação dos ensinamentos de Direito com a política e passei a ver nos jornais matérias que, de alguma forma, passavam pelo Direito Administrativo, Penal, Constitucional”, diz. O Direito não só supriu seu anseio por aprofundamento, como também ampliou suas opções de arquivo fórum Jurídico Dois mundos trabalho. Bia, como gosta de ser chamada, acredita que a segunda faculdade ajudaria na construção de sua carreira em qualquer área, enriquecendo sua formação como cidadã. “O Direito ajuda a relativizar e refletir as questões humanas, equilibrando pontos de vista”, afirma. Ela relata que as duas áreas se assemelham no que se refere ao instrumento de trabalho (o “poder da palavra”, como gosta de chamar) e na relação com pessoas. Destaca ainda a necessidade em ambos de sempre haver contraditório. Contudo, mesmo com as relações existentes, Bia enfrenta a conciliação de dois univer- ‘ O Direito ajuda a relativizar e refletir as questões humanas, equilibrando pontos de vista. F ó r u m ju r í di co 97 alunos O livro Justiça no Trabalho – 70 anos de direitos, obra publicada com mais três colegas, em dezembro de 2011 ‘ 98 Fórum j urí di co B e a t r i z Bu l l a sos distintos. “Às vezes brinco que são mundos diferentes”, e explica: “O volume de trabalho no Jornalismo é grande, a exigência também, mas o ambiente é mais leve. As pessoas não usam terno e gravata, o vocabulário é menos formal. Todos podem (e devem, muitas vezes) trabalhar com páginas de redes sociais abertas. Precisam estar antenados com o que acontece na internet, na música, na cidade. Tudo pode virar uma pauta. Em troca, passam finais de semana de plantão e podem perder uma festa porque algo aconteceu na última hora e precisa sair no jornal do dia seguinte. No Direito, as coisas, comparativamente, são mais planejadas, às vezes mais burocráticas, mas os salários são maiores”. Sobre as diferenças acadêmicas, expõe: “a relação dos alunos com a faculdade também é diferente. As aulas de Jornalismo exigem, sim, técnica e conteúdo, mas pedem muito repertório pessoal. Se você deixar de ler o texto de um teórico da comunicação para tirar o atraso da sua coleção de Piauís ou de New Yorkers, você pode não ir tão bem na prova, mas isso não será uma grande falha na sua vida profissional. Pelo contrário. No Direito não é bem assim. Se você não estudar o livro de Direito Processual Civil vai ter problemas”. Para a estudante, o desafio em lidar com as diferenças e conviver nesses dois ambientes é um exercício enriquecedor. Direito, Jornalismo e trabalho O curso de Direito servirá a cada um de acordo com suas ambições. Especada em sua dupla formação, Beatriz estagiou no site Última Instância, importante difusor de notícias jurídicas. Neste cenário, reconhece que o curso da PUC-SP a auxilia em seu discernimento quanto ‘ às informações que transmite, de modo a identificar conceitos, entender a linguagem dos juristas e interpretar acórdãos e decisões judiciais. Outro aspecto facilitador é a acessibilidade no meio acadêmico dos professores de Direito, facilitando o agendamento de entrevistas. Diferentemente do que seria de se imaginar, Beatriz explica que, apesar da faculdade lhe servir de amparo, até os seus colegas com formação exclusiva em Jornalismo têm elevado conhecimento jurídico. “Eles são quase bacharéis em Direito, de tanto que pesquisam e lidam com o tema. E são jornalistas competentes o suficiente para ligar para um advogado e tirar alguma dúvida quando é preciso.” Há um dito popular que diz que, para ter uma existência completa, uma pessoa deve escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Beatriz, mesmo com apenas 21 anos, já quitou o primeiro requisito. Inicialmente o projeto consistia em produzir um especial comemorativo dos 70 anos de O livro Justiça do Trabalho é um exemplo concreto de como o Direito pode me ajudar no envolvimento com projetos interessantes. criação da Justiça do Trabalho para o Última Instância, cujo lançamento veio a ocorrer em 1º de maio de 2011. “Tudo foi feito com antecedência, com muito trabalho e em equipe”, diz. Ela chegou a viajar para o Rio de Janeiro a fim de realizar uma entrevista com Arnaldo Sussekind, único jurista ainda vivo entre os que participaram da elaboração da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). A obra “O resultado de todo o especial ficou tão legal que se pensou em fazer um livro partindo daquele material”, explica. As matérias já existentes serviram de pontapé para a realização de novas entrevistas e apurações maiores. Beatriz foi incumbida de reeditar algumas entrevistas e realizar novas, tendo como entrevistadas pessoas relevantes na construção da Justiça do Trabalho no país ou representativas do desenvolvimento desse setor, além de elaborar a descrição do perfil de cada entrevistado. Beatriz enfatiza que o trabalho foi coletivo e que “houve muita orientação, muita conversa, todas as dúvidas eram discutidas. Tudo na equipe do Última Instância funcionava assim, e na Alameda, editora responsável pela publicação, também”. Assinam a obra Beatriz Bulla, Fabiana Barreto Nunes, Mariana Ghirello e William Maia, com reportagens também de Daniella Dolme e Thassio Borges. “O livro Justiça do Trabalho é um exemplo concreto de como o Direito pode me ajudar no envolvimento com projetos interessantes”, observa. A história da jovem jornalista ilustra a efetiva possibilidade de um aluno da gradua ção buscar uma formação completa, adequando suas atividades às suas metas de médio a longo prazo. A estudante mostra que o curso de Direito servirá a cada um de acordo com suas ambições, não se restringindo a togas e leis. E mais: com determinação, é possível fugir da mediocridade e ganhar destaque na área de atuação que se ambiciona. n F ó r u m ju r í di co 99 livros e m d e s t a qu e Um livro é um mundo mágico cheio de pequenos símbolos que podem ressuscitar os mortos e dar vida eterna aos vivos. Leia. Pense. Discuta* Luis Gustavo Dias e Raquel Soufen Justiça O que é fazer a coisa certa Michael J. S andel Tradução: Heloísa Matias e Maria Alice Máximo 349 páginas / Editora: Civilização Brasileira Com base nas aulas ministradas na Universidade de Harvard, Michael J. Sandel, em seu livro Justiça – O que é fazer a coisa certa busca, em uma linguagem simples e atual, analisar os dilemas enfrentados por nossa sociedade a partir da aplicação prática do pensamento filosófico clássico. “Aristóteles, Immanuel Kant, John Stuart Mill e John Rawls figuram, todos eles, nestas páginas.” Muito mais que simplesmente ensinar a importância do Mito da Caverna, de Platão, ou do Utilitarismo, de Jeremy Bentham, Michel Sandel procura demonstrar ao leitor que a filosofia clássica continua presente em nossos pensamentos e influencia tanto governos como as pessoas em suas mais diversas atitudes. Assim, os diversos temas abordados pelo livro vão desde a crise financeira nos Estados Unidos, o pagamento de benefícios aos executivos com dinheiro público, a influência do Estado na economia, a escolha de quem deve viver ou morrer em determinadas situações, até o preço da felicidade.Todos esses tópicos vêm tratados sob a perspectiva da justiça. 100 Fórum j urí di co Este livro não é uma história das ideias, e sim uma jornada de reflexão moral e política É por essa abrangência e conteúdo reflexivo que o livro Justiça deve fazer parte da leitura obrigatória de quem quer compreender melhor o que é justiça e, consequentemente, a vida. Porque, nas palavras de Michel, “É profunda a convicção de que justiça envolve virtude e escolha: meditar sobre justiça parece levar-nos inevitavelmente a meditar sobre a melhor maneira de viver”. Quem quiser conhecer mais sobre o autor, seu curso em Harvard e sobre o livro pode acessar o site www.justiceharvard.org/about/ michael-sandel/. No site é possível ler sobre o autor, conhecer seu curso e, o mais interessante, assistir a doze aulas (em inglês) em que o autor trata dos mais diversos temas atuais, com essa visão filosófica e crítica, que são suas principais características. Michael J. Sandel, influente filósofo, professor de Filosofia Política na Universidade de Harvard, desde 1980, onde leciona o concorrido curso “Justiça”, que já foi visto por mais de 15 mil alunos. *Fonte da citação: A Biblioteca Mágica de Bibbi Broken - Hagerup, Klaus; Gaarder, Jostein; Ed. Cia. das Letras Estante Fórum Jurídico Código da Vida Grandes Advogados S aulo Ramos Pierre More au (organização) 467 páginas Editora: Planeta 351 páginas Editora: Casa do Saber O livro Código da Vida tem como história principal um caso verídico em que o jurista advogou com maestria. No caso, Saulo Ramos defende um homem que foi acusado pela ex-mulher de ter abusado sexualmente dos próprios filhos.Tido pela consciência popular como “culpado” antes do julgamento, o homem entra no escritório do jurista implorando por sua defesa. A partir deste momento, a história gravita entre questões sobre a possibilidade de defesa de qualquer indivíduo e a dúvida acerca da inocência. Além do suspense trazido pelo caso, o leitor se prende às curiosíssimas experiências de vida de Saulo Ramos, as quais ele conta no decorrer do livro. Sua infância no interior de São Paulo, o seu papel no governo de Jânio Quadros, os cargos de Ministro da Justiça e Consultor-Geral da República no governo Sarney, e sua atuação na promulgação da atual Constituição Federal, são exemplos dos fatos narrados na obra. Elaborado como um livro de memórias e polêmico pela exteriorização de alguns pensamentos do jurista, Código da Vida leva o leitor para o mundo do direito vivido por este influente advogado brasileiro. Envolvente e cheio de suspense, a obra certamente irá prender o leitor até a última página. Saulo Ramos é advogado, foi oficial de gabinete do governo de Jânio Quadros e Ministro da Justiça de 1989 a 1990, no governo de José Sarney. No presente livro, o advogado Pierre Monreau busca, por meio de uma série de entrevistas, aproximar o leitor da história dos mais influentes advogados do Brasil, como Márcio Thomaz Bastos, Priscila Corrêa da Fonseca, Modesto Carvalhosa, Miguel Reale Júnior, Eros Grau, Ary Oswaldo Mattos Filho, Alexandre Bertoldi e Antonio Meyer, todos respondendo a perguntas sobre a descoberta da apaixonante arte do Direito, de acordo com os sonhos e conquistas de cada um. Lições de quem ensina e aprende em exercício permanente A série de entrevistas cativa o leitor mostrando que acima do estudo, do poder de convencimento, e da habilidade com a palavra, está a paixão pela ciência do Direito, a qual, em alguns casos, demora para aflorar no indivíduo. Este é, sem dúvida, um livro que todos os profissionais ligados à área do direito devem ler. Não só aqueles que almejam a carreira de advocacia, mas sim todos aqueles que desejam se inspirar nas grandes figuras que se destacam hoje na história do direito. Pierre Moreau, ilustre advogado, formado pela PUC-SP em 1991, mestre e doutor pela mesma instituição, membro do Conselho do Insper – SP, é sócio-fundador da Casa do Saber – SP e presidente do Ideabank. F ó r u m ju r í di co 101 associação Sapientia alunos e ex-alunos | direito PUC-sp PUC além das salas de aula Atividades culturais, palestras e bolsa de estudos são algumas das metas da Associação, que promove a integração entre aluno e professor A Associação Sapientia de Alunos e Ex-Alunos da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada com o objetivo de (i) promover e estimular a integração entre alunos, ex-alunos e professores da Graduação e Pós-Graduação do curso de Direito da PUC-SP, (ii) colaborar com a comunidade puquiana na busca de uma faculdade mais completa por meio da promoção de atividades culturais, tais como palestras, cursos, simpósios, bolsas de estudo e aquisição de livros. Além disso, queremos reacender as chamas de orgulho, união, perseverança e justiça social, que sempre foram características de nossos alunos, para tornar nossa “Gloriosa” e nossa sociedade um lugar melhor. Dessa forma, devemos elevar nossa faculdade de Direito a um patamar que ela realmente merece, colocando-a à frente de qualquer outro ideal. Não basta ser 5 estrelas no MEC, tem que ser completa para os alunos, com oportunidades de desenvolvimento intelectual, social e profissional. Nesse sentido, recém-nascida, nossa Associação já lançou a revista Fórum Jurídico, inovadora, de conteúdo abrangente, com matérias e artigos visando incentivar os novos alunos a se apaixonarem pela história da PUC-SP e atrair os antigos alunos para mais perto de nossa faculdade. E não vai parar aqui! Temos grandes planos para nossa “Gloriosa”. Entre os projetos da Associação, destacamos os seguintes: • Revista Fórum Jurídico – Revista discente da Faculdade de Direito da PUC-SP. Com o corpo editorial formado apenas por alunos da graduação, a revista Fórum Jurídico busca incentivar o desenvolvimento profissional 102 Fórum j urí di co e pessoal dos discentes, com a possibilidade de publicação de artigos jurídicos, aprendizado com o conteúdo e contato direto com grandes ex-alunos do Direito PUC. • Palestras e Cursos – A Associação Sapientia realizará palestras e cursos para os alunos, buscando diversificar os temas de interesse e trazer profissionais das mais diversas áreas para que os estudantes possam ter contato direto e tirar dúvidas com especialistas formados pela PUC. • Doação de Livros – Efetuaremos doações de livros à faculdade para que os estudantes tenham acesso a acervos mais novos e atualizados. • Banco de Currículos – Para os alunos que estiverem procurando estágio, a Associação formará um banco de currículos em que os alunos poderão incluir seus dados, experiências e a área onde desejam estagiar. Esse banco de currículos ficará à disposição e em contato direto com escritórios, empresas e órgãos públicos para que estes possam procurar estagiários que combinem com o perfil do local de trabalho. Além dos mencionados, temos diversos outros projetos, mas, para isso, precisaremos de todo o apoio dos puquianos. Assim, convidamos você a fazer parte da nossa Associação. Para isso, destaque e preencha o formulário que consta na página ao lado e entregue para um de nossos representantes, juntamente com o comprovante de pagamento do plano selecionado ou, se preferir, envie a documentação para [email protected]. Vamos, juntos, continuar a construir a história do ”Direito PUC”, história de resistência, de luta pela Democracia, de superação e de justiça, só que agora repleta de oportunidades para o desenvolvimento intelectual, social e profissional. Esperamos por você! FICHA DE INSCRIÇÃO ASSOCIAÇÃO SAPIENTIA DE ALUNOS E EX-ALUNOS DA FACULDADE DE DIREITO DA PUC-SP Dados Pessoais Nome do associado Data de nascimento Sexo Estado civilNacionalidade Documentos CPFNº OAB RG Seção Endereço para Correspondência Endereço Complemento Bairro CEP CidadeEstado Dados para Contato Telefone 1 Telefone 2 E-mail Fax Dados Profissionais Local de trabalho Posição atual Ano de graduação na PUC Local de pós-graduação Plano de associação Aluno da graduação Ex-aluno da graduação, aluno ou ex-aluno R$ 40,00 por ano pagos à vista do mestrado/doutorado R$ 60,00 por ano pagos à vista Dados para depósito bancário Associação de Alunos e Ex-Alunos da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Banco Santander (033) Agência 3004 Conta 13-005685-9 CNPJ 14.671.140/0001-04 r e v i s ta pat r o c í n i o apoio