LÍNGUA PORTUGUESA NA SALA DE AULA: DESENVOLVENDO A ORALIDADE Marinês Andrea Kunz (Universidade Feevale) Maria do Carmo Rosa Pereira (Escola Estadual 31 de Janeiro) Marisa Fernanda Cabral (Escola Estadual 8 de Setembro) Carmen Cecília Bonczynski de Andrade (Escola Borges de Medeiros) 1. A importância da oralidade Ao longo da história, o ensino de língua portuguesa em nosso país caracterizase, em geral, pelo silenciamento, ou seja, está voltado para a variedade padrão escrita do idioma. Assim, deixa de lado a oralidade, habilidade fundamental para o desempenho linguístico dos falantes no mundo atual, já que aquele que não se expressa bem oralmente tende a ficar em desvantagem no processo de inserção social. Com as novas propostas de ensino de língua materna, disseminadas principalmente nos últimos vinte anos, por meio da divulgação dos avanços dos estudos na área da Linguística, a importância da oralidade foi reconhecida. Apesar disso, na maioria das salas de aula, ela ainda não tem o espaço devido, o que pode comprometer o aprimoramento da competência linguística dos alunos. Nesse sentido, este artigo discute a importância da oralidade no ensino de Língua Materna. Existe, pois, a ideia, decorrente de algumas teorias, de que não seria papel da escola ensinar o aluno a falar, uma vez que essa habilidade é – supostamente - aprendida muito antes, principalmente com a família. Essa concepção representa um grande equívoco que reduz a oralidade à fala cotidiana e informal, representada pelos batepapos e pelas conversas do dia a dia. O fato é que, sob a denominação de “linguagem oral”, encontram-se diversos gêneros, tais como: entrevistas, debates, discursos, exposições e dramatizações. Em relação a todos eles, é imprescindível a interferência do professor. De acordo com Schneuwly (2004), cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral nas diversas situações comunicativas, especialmente nas mais formais. O autor defende que os gêneros da fala têm aplicação direta em vários campos da vida social – trabalho, relações interpessoais e política, por exemplo. A afirmação de Schneuwly vai ao encontro dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que apresentam a fala pública como foco da oralidade. Dessa forma, os PCNs afirmam que a escola deve preparar o aluno para utilizar a linguagem oral no planejamento e na realização das apresentações teatrais, por exemplo, propondo situações em que essas atividades façam sentido, envolvendo, além do mais, regras de comportamento social. Ensinar a língua oral significa para a escola possibilitar o acesso a usos da linguagem mais formalizadas e convencionais, que exijam controle mais consciente e voluntário da enunciação, tendo em vista a importância que o domínio da palavra pública tem no exercício da cidadania (PCNs, 1998, p.67). Assim, ensinar a língua na modalidade oral não significa trabalhar a capacidade de falar em geral, mas sim desenvolver o domínio dos gêneros que apoiam a aprendizagem escolar da Língua Portuguesa e de outras áreas. Além dos PCNs, as Matrizes de Referência do SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica, que têm o objetivo de orientar a construção das provas de avaliação de desempenho dos alunos da Educação Básica, relacionando os conteúdos, as competências cognitivas e as habilidades empregadas no processo de construção do conhecimento, também destacam a importância da oralidade: [...] promover o desenvolvimento do aluno para o domínio ativo do discurso, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania. Cabe à escola o papel de planejar e organizar atividades que permitam a esse aluno usar a língua tanto na modalidade oral quanto na escrita, em diferentes situações. Nas Matrizes de Referência faz-se, ainda, referência à competência comunicativa do sujeito, que é essencial para sua inserção social: Um sujeito competente no domínio do uso linguagem é capaz de compreender e produzir textos orais e escritos adequados às situações de comunicação em que atua; de posicionar-se criticamente diante do que lê ou ouve; de ler e escrever produzindo sentido, formulando perguntas e articulando respostas significativas em variadas situações. Marcuschi (1996), por sua vez, parte de quatro premissas para argumentar a favor do trabalho com a língua falada. Primeiramente, afirma que a língua é heterogênea e variável. Dessa forma, o sentido do texto decorre das condições do uso da língua; o usuário tem a ver com textos e discursos (e não com estruturas gramaticais); o foco do ensino é deslocado do código linguístico para o uso da língua ou para a análise de textos e discursos. O sentido é conferido apenas em uma perspectiva discursiva, ou seja, a partir da observância ao contexto sócio-histórico em que surge o discurso, a autoria e suas possíveis intenções, além da mensagem em si. Essas considerações são importantes, pois possibilitam trabalhar as relações entre fala e escrita como duas modalidades de uso dentro de um contínuo de variações, rebatendo, dessa forma, a visão de fala e escrita como dicotômicas. A segunda premissa tratada pelo autor é que a escola deve ocupar-se da fala propondo um paralelo de análise com a escrita. Assim, considera-se a língua falada como ponto de partida e a escrita como ponto de chegada. Nesse sentido, converge para o que propõem os PCNs. A terceira premissa diz respeito à bimodalidade, ou seja, a exploração de textos de diversos gêneros e em ambas as modalidades - escrita e oral -, que torna o aluno bimodal, ou seja, ele passa a dominar a modalidade de uso tanto da língua falada quanto da língua escrita. A quarta e última premissa refere-se ao uso da língua em textos contextualizados. Trata-se, pois, de trabalhar integradamente as várias atividades no uso da língua, isto é, a produção oral, a produção escrita, a leitura e a compreensão. Já para Geraldi (1984), que retoma ideias bakhtinianas, a linguagem é uma forma de inter-ação – mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana. Para o autor, é através da linguagem que o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria praticar a não ser falando; com ela, o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não preexistem antes da fala. Malu Alves de Souza (2005) diz que as dificuldades apresentadas na língua escrita e falada estão relacionadas ao baixo conhecimento da língua materna tanto por parte de educandos como educadores. Os altos índices de analfabetismo, evasão e repetência, aparecem na literatura científica como positivamente correlacionados com o baixo nível sócioeconômico dos indivíduos. Isto sugere que a nossa escola tem se mostrado incompetente para a educação dos alunos pertencentes às camadas populares, acentuando e justificando desigualdades sociais. Entre as principais causas do fracasso escolar dessa população estão os problemas de linguagem: a escola, muitas vezes, desconhece a realidade lingüística do aluno e de seu grupo social. Portanto, falta também a qualificação do profissional responsável por organizar o processo de ensino e o conhecimento, para que o ensino contemple também a variação linguística do aluno. Em outras palavras, deve-se conhecer o linguajar do aluno, tratá-lo sem preconceito, para, a partir daí, promover mudanças no uso da linguagem. Isso é possível se ao aluno forem mostradas e analisadas diferentes situações comunicativas, em que ele deverá atuar, proporcionando-lhe a oportunidade de colocar em prática situações de interação. Certamente, atividades desse tipo contribuiriam para a obtenção de melhores índices de desempenho por parte dos alunos brasileiros. Acredita-se que, não raro, muitos professores não tenham clareza dos conceitos linguísticos, o que constitui empecilho para uma reavaliação do conteúdo programático e para a elaboração de propostas que contemplem o desenvolvimento de habilidades e competências provenientes da leitura, da escrita, da escuta e da fala de textos de diferentes gêneros. Nesse sentido, o desenvolvimento da expressão oral possibilita a interação entre o texto oral e o texto escrito tornando-os únicos. Um serve de apoio para o uso do outro e respeitam às regras de coerência e coesão, clareza, significado e significante, emissor, receptor e assim por diante. Trabalhar o texto escrito é também trabalhar o texto oral e vice-versa. Bezerra (1998) traz as seguintes considerações: Considerando estudos realizados sobre a língua falada e a língua escrita, observamos que essas modalidades são descritas de pontos de vista variados: como discursos não-planejados X planejado (Ochs, 1979), como discurso fragmentado x integrado (Chafe, 1982, 1985), como discurso contextualizado x descontextualizado (Tannen, 1982) e outros. Mais recentemente, tendo em vista a dificuldade de distingui-las de maneira objetiva, a língua falada e a escrita são consideradas como um continuum (Tannen, 1982; Biber, 1988; Marcuschi, 1994, entre outros), em cujos extremos encontramos os textos típicos de cada uma dessas modalidades (o familiar – na oralidade – e o superformal – na escrita), incluindo uma escala gradativa de formalismo, com características ora próprias de cada modalidade (hesitações, correções, pausas, marcadores conversacionais – na língua falada coloquial; frases completas e complexas – na língua escrita formal), ora comuns às duas (grande número de vocábulos da língua). Fica clara a ideia de que é necessário trabalhar paralelamente o texto escrito e o oral em seus diversos gêneros. Os dois processos se influenciam mutuamente, de modo que quem lê mais escreve melhor e também fala melhor e de maneira mais clara, pois o leitor assíduo permeia pelos diferentes universos linguísticos. O texto falado e o escrito devem respeitar a uma ordem lógica, pois “não adianta escrever bonito e conforme as regrinhas gramaticais se a ideia que temos na cabeça não chegar aos outros.”, diz Blikstein (2006, p. 20). Este explica que nossas ideias devem ser compartilhadas com os outros, ou seja, escrever bem é se comunicar bem, portanto tornar a informação comum aos outros para persuadir o leitor ou o receptor da mensagem. Essa regra também pode ser aplicada à, fala. É através da língua falada, oral que se percebe com clareza a evolução da língua. Já é de notório saber que a língua modifica-se de acordo com as necessidades dos falantes e que foi assim a transformação do latim em outras línguas, inclusive em português. Assim, a oralidade transforma a escrita e esta vai se organizando e tornandose padrão e culta. Por fim, Antunes (2003) destaca que “o objetivo é ampliar a competência do aluno para o exercício mais pleno, fluente e interessante da fala, da escrita, da escuta e da leitura. Esse objetivo vai guiar o conteúdo programático: aulas de falar, escrever, ouvir e ler texto em uma distribuição e complexidade gradativos.” E tal perspectiva converge para o que afirma Travaglia, segundo o qual, o conhecimento da língua está diretamente relacionado à vida do sujeito e sua inserção na sociedade: “um falante com tal capacidade tem uma qualidade de vida muito maior, pois consegue se colocar com sujeito nas relações sociais, consegue utilizar a língua para a consecução de seus objetivos”. Cabe, sim, à escola promover o conhecimento e o exercício dos gêneros orais, sob pena de mutilar os alunos em sua competência comunicativa e, por conseguinte, sua qualidade de vida. 2. Oralidade: uma experiência exitosa O PIBID de Letras da Universidade Feevale é desenvolvido em três escolas estaduais: a Escola 31 de Janeiro, em Campo Bom; a Escola Borges de Medeiros, em Novo Hamburgo, e a Escola 8 de Setembro, em Estância Velha, no Rio Grande do Sul. A partir disso, os alunos foram divididos em três equipes, sendo que o planejamento é realizado nas dependências da Universidade. O projeto iniciou em setembro de 2010, sendo que a intervenção na escola ocorreu já em meados do segundo semestre, ou seja, a partir de outubro. Foram desenvolvidas duas oficinas, a de Comunicação Social e o Clube de Leitura. A primeira contemplou, inicialmente, o estudo de jornais impressos, sendo que foram analisados comparativamente exemplares de O Sul, Zero Hora, Folha de São Paulo, Diário Gaúcho e o jornal local, NH, quanto aos seguintes aspectos: linguagem, emprego dos recursos gráficos, seções. Essa análise resultou na criação de um jornal mural, elaborado pelos participantes, com notícias da comunidade escolar. Posteriormente, por solicitação dos próprios alunos, a oficina também abordou noticiários televisivos e programas de entrevista, de modo que foram analisadas a expressão oral, a postura, a gestualidade e a vestimenta dos membros de diferentes programas. A partir disso, foram criados programas de entrevistas e noticiários, que foram filmados e editados pela TV Feevale. Além disso, na oficina de Literatura, foram analisados contos e crônicas, sendo que muitas foram encenadas pelos alunos e filmadas. Nesse sentido, também foi necessário refletir sobre o contexto da narrativa, o clima e a expressão oral e a cênica. Posteriormente, o resultado foi discutido e avaliado pelos integrantes do PIBID de Letras. Essa experiência fascinou tanto os alunos de Letras como os das escolas. Os primeiros, pela certeza da necessidade de desenvolver a habilidade de uso oral da língua, ao lado da escuta, da escrita e da leitura, a fim de se possibilitar um ensino mais amplo e completo aos alunos. Estes, por sua vez, perceberam a importância da expressão oral para suas vidas, já que é determinante em muitas situações de comunicação. Vendo-se em ação, puderam analisar seu desempenho linguístico oral e, assim, refletir sobre o uso adequado do idioma. Essas atividades partem do texto para o texto, ou seja, após analisar gêneros textuais orais, produziram novos textos desses gêneros, contemplando o que preceituam os PCNs e as Matrizes de Referência. Referências ANTUNES, Irandé. Aula de português. Encontro e Interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BEZERRA, Maria Auxiliadora. Univ. Estadual da Paraíba, Univ. Federal de Alagoas. Linguagem & Ensino, Vol. 1, No. 2, 1998 (27-38). Padrões de oralidade presentes na explicação de textos na sala de aula1. Disponível em: http://rle.ucpel.tche.br/php/edicoes/v1n2/Bezerra6.pdf Acesso em 23 de mar. de 2011. BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de comunicação escrita. 22º ed. – São Paulo: Ática, 2006. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1988. GERALDI, J. V. O texto na sala de aula: leitura e produção. 2º ed. Cascavel: Assoeste, 1984. MATRIZES DE REFERÊNCIA DO SAEB 2001. Disponível http://www.inep.gov.br/basica/saeb/matrizes.htm Acesso em 23 de mar. de 2011. em: MARCUSCHI, L. A. A língua falada e o ensino de Português. 6º Congresso de Língua Portuguesa – PUC-SP, 1996. SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. SOUZA, Malu Alves de. Grupo Temático 02: Pesquisas e Práticas Pedagógicas. Oralidade e Aquisição da Linguagem Escrita. Disponível em: http://www.slideshare.net/joaomaria/3-oralidade-eaquisicaodalinguagemescrita TRAVAGLIA, L. C. Gramática: ensino plural. São Paulo: Cortez, 2003. Marines Andrea Kunz: graduada em Letras Português-Alemão pela UNISINOS, mestre em Ciências da Comunicação pela UNISINOS e doutora em Linguística e Letras pela PUC-RS. Atualmente, é professora titular da Universidade Feevale, onde atua nos Cursos de Letras e Pedagogia e no Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, bem como na Especialização Estudos da Linguagem. Coordena o PIBID - Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – LETRAS e é co-coordenadora do Projeto de Extensão Comunitária Ler é Saber. Tem experiência na Educação Básica e é autora de livro e de artigos. Carmen Cecília Bonczynski de Andrade: graduada em Letras Português e Literatura, pela ULBRA – Universidade Luterana do Brasil. É professora da rede estadual desde 2005, tendo experiência no Ensino Fundamental e no Médio. Professora supervisora, na Escola Estadual Borges de Medeiros, em Novo Hamburgo, do projeto PIBID. Maria do Carmo Rosa Pereira: graduada em Letras Português e Literatura pela FACOS - Faculdade de Ciências e Letras de Osório, professora da Rede Estadual de Ensino, Professora supervisora, na Escola Técnica Estadual 31 de Janeiro, em Campo Bom, do projeto PIBID. Marisa Fernanda Cabral: graduada em Letras Português pela UNISINOS e especialista em Educação Especial pela UNISINOS. Atualmente, é professora de Português pela Rede Municipal de Ensino de Ivoti, na E.M.E.F. Concórdia, e atua como Professora Auxiliar de Bibliotecária pela Rede Estadual de Ensino, no Colégio Estadual 8 de Setembro. Também supervisiona o PIBID – Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – LETRAS no Colégio Estadual 8 de Setembro, em Estância Velha.