LEITURA LITERÁRIA E LIVRO DIDÁTICO: UMA PARCERIA POSSÌVEL? TEIXEIRA, Rosane de Fátima Batista – UFPR [email protected] ROTERS, Geni Alberini – UFPR [email protected] Área Temática: Educação: Currículo e Saberes Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo É inegável o valor do texto literário na promoção e no desenvolvimento da intelectualidade do ser humano, na medida em que o horizonte de quem lê é ampliado aos olhos de quem escreve. Sendo a escola o lugar privilegiado de acesso à leitura e a escrita, cabe refletir se o que está sendo oferecido nas aulas de Língua Portuguesa, por meio dos textos contidos nos livros didáticos, dos exercícios, das atividades de leitura ou livros de literatura trabalhados é suficiente para tornar o aluno um verdadeiro leitor, que dialoga com o autor e consegue entender a intenção do texto. A partir destas indagações este trabalho relaciona o contexto sócio-histórico de construção da leitura literária, a organização da disciplina de Língua Portuguesa no Brasil com as exigências impostas ao professor em seu processo de formação acadêmico enquanto formador de leitores. Discute o valor e a função do texto literário e o papel da escola no processo de formação do leitor. Considera o livro didático elemento material da cultura escolar, presente em todos os níveis de ensino e garantido às escolas públicas por meio de programas oficiais de governo, questionando a forma como o texto literário apresenta-se no livro didático Esta investigação realizou-se a partir de uma análise de conteúdo de um volume da Coleção Projeto Araribá para a Língua Portuguesa que seguiu as fases de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados e também de reflexões teóricas fundamentadas em Bakhthin. Nesse estudo são evidenciados elementos que caracterizam uma preocupação excessiva com aspectos formais da língua em detrimento à formação do leitor. Palavras-chave: Leitura literária; Livro didático; Saberes docentes. Introdução Hoje, a realidade brasileira em relação à leitura é desoladora, basta verificar o último resultado da Prova Brasil dando conta de que um aluno pode concluir o Ensino Fundamental como candidato a analfabeto funcional, ou seja, um indivíduo que não será capaz de utilizar a leitura e a escrita para enfrentar as necessidades do seu contexto social e nem terá condições de continuar aprendendo durante a sua vida. 4137 Embora não caiba só à escola, ela é muitas vezes, o único recurso das classes populares desfavorecidas em ter algum contato com a cultura letrada. É neste ponto que há um paradoxo, pois se por um lado é ela que orienta o ato de ler, também é verdade que não está dando conta de formar leitores e, muitas vezes, vem até dificultando o processo de apropriação da leitura pelo aluno através de rituais mecânicos e sem significado, apenas para cumprir uma obrigação, “vacinando-o” contra a leitura para o resto de sua vida. Agindo assim, de forma paradoxal ao invés de facilitar o educando a partilhar do mundo da leitura, apenas divide, perversamente, a sociedade em letrada a quem pertencem todas as oportunidades e a iletrada, que necessita que alguém, conforme Yunes (2000) “esclareça” as “mensagens” mais corriqueiras como os avisos nos postos de atendimento público ou na utilização de um cartão magnético no banco. Devido a esta forma singular com que os estabelecimentos de ensino recebem e repassam a cultura escolar, argumenta Forquin (1993, p.167), este se constitui um “mundo social”, que tem características próprias, seus ritmos e ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de “símbolos” instituindo-se assim o que se chama cultura da escola e é nessa cultura própria que a escola, basicamente utiliza o texto impresso para veicular conhecimento e que deixou de valorizar a leitura como atividade principal para transformá-la somente em atividade meio, ou seja, o ato de ler tornou-se meio para fazer outra coisa, um resumo, um exemplo. Entregar o resumo solicitado transformou-se em atividade principal, deixando-se de dar a devida importância da leitura em si mesma. Como as práticas leitoras na escola invariavelmente passam por um professor, é evidente que ele ocupa papel fundamental na prática e no uso do conhecimento no processo ensino-aprendizagem, Tardiff (2000) reflete que os saberes profissionais dos professores provêm de diversas fontes, pois ao dar aulas eles se servem de sua cultura pessoal que adquiriram em sua história de vida e principalmente de sua cultura escolar anterior. O autor argumenta também, que essa experiência escolar se manifesta através da bagagem de conhecimentos, de representações e de certezas que os professores possuem da prática docente. Neste sentido Bakhtin (1992, p.315) observa que a palavra é expressiva, mas no momento em que se profere a palavra esta expressividade não pertence a própria palavra proferida , mas sim nasce do ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva e expressa 4138 o juízo de valor de um homem individual que está inserido em sua época, no seu meio social, no micromundo da família e daqueles que o rodeiam, das leituras e vivências que teve, dando forma a experiência verbal individual do homem num processo de ‘assimilação’ . Se essas práticas docentes se espelham principalmente nas experiências pessoais anteriores, torna-se importante aqui duas reflexões: a primeira sobre o papel desempenhado pelo livro didático (elemento importante da cultura escolar) no processo de escolarização e no uso deste recurso em sala de aula para desenvolver o trabalho com a leitura literária e a segunda reflexão remete a um breve resgate da trajetória da leitura literária no ambiente escolar para melhor compreensão das raízes históricas e sociais que contribuíram para a configuração atual do ensino de Língua Portuguesa. LEITURA E ESCOLA: ELEMENTOS PARA UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÒRICA Utilizar a literatura com um enfoque pedagógico, não é invenção da modernidade, já na Grécia literatura era sinônimo de poesia e antes mesmo de utilizarem a escrita para fins literários, os gregos já faziam poesia para ser cantada ou recitada. Até o século XVIII a literatura foi vista como educativa, porém com o advindo da Renascença perdeu seu caráter humanitário. Na escola moderna, porém, a sua aprendizagem tornou-se obrigatória, primeiramente a literatura integrou-se ao currículo dissolvendo-se entre a Gramática, a Lógica e a Retórica. Depois disso serviu de modelo para o estudo das línguas grega e latina e após a Revolução Francesa foi introduzida como literatura nacional, estudada sobre a perspectiva de História Literária, nesta época a escola utilizava a literatura como veículo de difusão da língua, da cultura e da identidade nacional (Zilberman, 1990). No Brasil até o início do século XVIII o ensino da língua materna se restringia à alfabetização, após a qual os alunos eram introduzidos na aprendizagem da Língua Latina, ou mais especificamente, na gramática da Língua Latina (Soares, 2004), sendo importante lembrar que os jesuítas mantiveram uma hegemonia de um pouco mais de dois séculos na educação brasileira, hegemonia esta que se encerra com a sanção da Reforma Pombalina, em 1759, numa tentativa de Portugal em tomar as rédeas da educação da colônia, com essa 4139 reforma tornou-se obrigatório o ensino da Língua Portuguesa, tanto no Brasil como também em Portugal (Cunha, 1985). Razzini (2000) dá conta de que o ensino da língua e da literatura nacional, nesta época era pautado pelo ensino das línguas clássicas, evidenciando-se o Latim. A literatura nacional era dividida por gêneros e sua apresentação feita segundo critérios da Retórica e da Poética. E também de que até 1869 o ensino de Língua Portuguesa no currículo da escola secundária era pífio, e predominavam nesta época as disciplinas clássicas, com destaque para o Latim. Já em 1895 evidenciou-se a publicação da Antologia Nacional que marcou a leitura de várias gerações ao atingir 43 edições em 1969. Soares (2007) reflete que o ensino de Língua Portuguesa nesta época era ensinar “a respeito” da língua, isto é, ensinava-se somente a gramática da língua a uma camada privilegiada da população que já tinha acesso à norma culta através da família. Com relação aos professores eram pertencentes à classe burguesa, bem versados e bem preparados. Já as camadas populares não tinham acesso aos bancos escolares devido ao fato destes serem ofertados em número reduzido. No início do século XX oficializaram-se e legalizaram-se um número muito grande de normas e reformas, entre elas a reforma ortográfica. (Souza; Mariani, 1996). Já em meados dos anos sessenta, porém, o panorama educacional começa a transformar-se devido a condições sociais e políticas, pois se verifica um êxodo rural e uma grande expansão industrial, politicamente há o advento da ditadura militar. Nesta época houve um aumento de demanda nas escolas e o alunado mudou. Onde antes predominava a burguesia, havia agora alunos de classes populares, este fato evidenciou o despreparo dos professores em lidar com um outro tipo de linguagem e cultura (Soares, 2007). Houve também um desinteresse da classe burguesa em lecionar, buscando outras atividades, já que a profissão de professor não tinha o mesmo prestígio social e também já não era tão bem remunerada. Outro fator a ser mencionado foi de que as escolas necessitavam de um grande número de profissionais para dar conta da demanda de alunos, as vagas foram ocupadas então por profissionais advindos de meios pouco letrados (Soares, 2007), menos exigidos em sua formação pedagógica. Para suprir esta carência, os livros didáticos foram produzidos em escala industrial passando a ser um guia para o professor, muitas vezes tirando-lhe a autonomia de trabalho e desobrigando-o de refletir sobre suas práticas pedagógicas. 4140 Diante de tantas transformações, uma mudança na legislação fez-se necessária, foi assim que a lei 5.692/71 foi promulgada no início dos anos setenta, tentando atender a um novo tipo de aluno, procurando oportunizar meios para que pudessem inserir-se no mercado de trabalho. A partir de então, buscando novas perspectivas rumo à modernidade, pautou-se o enfoque da disciplina Língua Portuguesa na Teoria da Comunicação baseando-se principalmente nos estudos de Jakobson, a disciplina passa então a chamar-se de Comunicação e Expressão de 1ª a 4ª, Comunicação e Expressão em Língua Portuguesa para 5ª a 8ª série e Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no Ensino Médio e na esteira da pedagogia tecnicista e do advento do ensino profissionalizante, a literatura virou um produto de consumo, onde foram introduzidos os resumos de romances para o vestibular, as provas de múltipla escolha e o ensino de elementos de comunicação e funções da linguagem bem como as antologias foram substituídas por textos ilustrados. Nesta época houve também, segundo Lajolo (2006, p.70), uma espécie de simplificação de análise literária, onde se fazia um escrutínio estrutural do texto e questionários para identificação de personagens principais, tempo e espaço das narrativas, este modelo persiste até hoje, com pequenas alterações. O uso do livro didático para o ensino da Língua Portuguesa e da Literatura, desde aquela época é fruto de reflexão e polêmica entre os estudiosos, pois se para uns o livro didático é um “meio e não um fim em si mesmo” (Silva, 2007), para outros é fonte de alienação, gerando a unificação do educando sob um único material, sendo que os mesmos possuem inúmeras variantes e mereceriam um tratamento diferenciado. PRÁTICAS DE LEITURA E LIVRO DIDÁTICO Um fator importante apontado por Colomer e Camps (2002) nas práticas pedagógicas que remetem à leitura literária é o da ambigüidade na definição dos objetivos dados aos textos literários pela escola que, por um lado insiste para que os alunos adquiram “prazer” na atividade de leitura e de outro a converte em ponto de partida para exercícios e trabalhos escolares. De fato a leitura literária escolarizada é sempre marcada por exigências dos professores que querem mensurá-la de todas as formas seja através de fichas de leitura, seja através de resumos ou análises de obras lidas, servindo de pretexto para memorização de 4141 regras gramaticais ou conteúdos fragmentados, reproduzindo apenas superficialmente a intenção do autor. Há também um outro tipo de leitura muito utilizada nas práticas escolares ,apontada como igualmente ineficaz: aquela com data marcada, antes de um exame de vestibular ou ainda em datas comemorativas, há ainda aquela leitura quantitativa, na qual o aluno deve demonstrar que leu uma quantidade x de livros para que o professor possa considerá-lo leitor. Este procedimento só cumpre o papel do retorno de leitura dado ao professor, pois dificilmente o aluno achará prazer em responder perguntas e mais perguntas sobre o que leu, ou ler somente para mostrar ao professor que leu. Este conceito equivocado da escola leva o educando muitas vezes a sentir-se fracassado nessa atividade, pois não consegue converter-se em um leitor entusiasta. Como ressalta Silva (1981), o conhecimento nas escolas públicas chega primordialmente via leitura de material impresso, e se o aluno não for capaz de compreender o que lê estará comprometendo toda a sua aprendizagem formal, o grande problema que impede a aquisição de uma leitura crítica e emancipadora é a de que o trabalho com a leitura está centrado somente em habilidade mecânica de decodificação da escrita, muitas vezes não levando o aluno a refletir criticamente sobre o texto que leu, servindo de pretexto apenas para atividades de interpretação e gramática. As críticas feitas ao livro didático apontam que neles são utilizados fragmentos de textos, sempre dos mesmos autores, muitas vezes descontextualizados, com coerência e coesão comprometidas. Essa análise recai nas práticas efetivas de leitura, pois os autores quando escreveram suas obras tinham determinada intenção que acaba transformando-se em outra, através da publicação do seu trabalho no livro didático. Bakhtin (1992) reflete que os enunciados de um locutor partem de diálogos que o antecedem, por isso são deles constitutivos e destinar-se-ão a formar futuros diálogos. Logo, se os textos literários aparecem fragmentados e sem sentido, que tipo de diálogo estabelecer-se-á entre as crianças que utilizam textos que não visam à formação do leitor e os seus futuros diálogos enquanto jovens e adultos ? Essas reflexões são válidas e importantes levando em consideração que o Brasil conta hoje, com o maior programa oficial de governo - Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para distribuição de livros didáticos e, segundo dados da ABRELIVROS em 2008 foram distribuídos 110 milhões de livros aos alunos das escolas públicas. Os materiais 4142 inscritos passam por um processo de análise e avaliação pedagógica feita por uma equipe de especialistas nas áreas de conhecimento, que resulta no Guia de Livros Didáticos que por sua vez contém os princípios, critérios e as resenhas das obras avaliadas. Especificamente quanto aos livros de Língua Portuguesa de 5ª a 8ª séries o Guia do PNLD 2008 aponta critérios relativos aos quatro grandes conteúdos curriculares básicos da área – leitura, produção de textos, linguagem oral e reflexão sobre a língua e a linguagem. O Guia também considera que as práticas de uso da linguagem (leitura, compreensão, produção escrita e compreensão oral) em situações contextualizadas de uso devem ser prioritárias no livro didático. E no que tange à leitura literária, é objetivo central de Língua Portuguesa promover a “fruição estética e a apreciação crítica da produção literária associada à Língua Portuguesa, em especial a da literatura brasileira”. (MEC, 2008, p.12). Aponta também como insuficiente o tratamento dado à leitura literária nos livros de Língua Portuguesa de 5ª a 8a séries e indica que: Em maior ou menor medida, todas as coleções colaboram para o desenvolvimento da proficiência em leitura; mas ainda é reduzido o número das que também se ocupam em mobilizar e desenvolver capacidades envolvidas na formação do leitor literário. (MEC, 2008, p. 21). Com bases nessas reflexões e nas orientações deste documento norteador buscou-se analisar um dos livros didáticos mais utilizados nas escolas públicas brasileiras e escolhido por meio do PNLD a fim de verificar se as atividades propostas no livro contribuem para a formação do leitor literário e que aspectos devem ser ponderados pelo professor tanto no uso deste material quanto no trabalho com a leitura literária. ANÁLISE DA OBRA A Coleção Projeto Araribá de 5ª a 8ª série para Língua Portuguesa da Editora Moderna foi escolhida para análise preponderantemente por ter sido apontada pela mídia como a coleção mais vendida para o ano de 2008 para as escolas públicas, tanto para o Ensino Médio como para o Ensino Fundamental. Outro aspecto importante que influiu na sua escolha foi o fato da obra ter sido escrita por técnicos e não por um ou dois autores como é usual. A obra selecionada como objeto do estudo, Português: 7ª série, cuja primeira edição foi em 2006, apresenta-se como obra coletiva, concebida e produzida pela Editora Moderna. 4143 A coleção que a compreende prevê a articulação entre leitura, produção escrita e reflexão lingüística, com a proposta de ampliar conhecimentos relacionados à construção do texto e considerando diferentes tipos ou gêneros textuais. Nos quatro volumes da coleção, as unidades são organizadas a partir de um assunto de estudo lingüístico relacionado a aspectos a serem levados em conta na construção de textos. Optou-se por analisar o volume da sétima série por acreditar-se que é destinado a aluno com uma proficiência de leitura mais desenvolvida e, portanto apto a estabelecer relações entre o texto e o autor. Para tanto procurou–se observar como a leitura literária aparece neste volume e quais os desdobramentos que desencadeia. Outro fator apontado para a escolha desta série é a de que o aluno não está ainda preocupado como o Ensino Médio, fato que muitas vezes obriga o professor da escola pública a voltar-se para um ensino mais direcionado a realização de concursos para admissão de colégio que possuem um exame de seleção e, portanto debruça-se mais com questões de análise lingüística. Para o estudo da obra foi utilizada a análise de conteúdo, “uma técnica de investigação que através de uma descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto das comunicações, tem por finalidade a interpretação destas mesmas comunicações” (BERELSON, apud BARDIN, 1977, p. 31). Organizou-se a pesquisa seguindo-se as fases de pré-análise, de exploração do material e de tratamento dos resultados, constituído pela inferência e a interpretação. A análise realizada para este estudo apóia-se em critérios relacionados à articulação entre leitura, produção de textos e conhecimentos lingüístico-textuais, à pertinência das propostas de produção de textos e à organização adequada na apresentação da estrutura da obra. O livro escolhido para o estudo, compõe-se de oito unidades: “o narrador”; “ponto de vista”; “a descrição objetiva e a subjetiva”; “a estrutura do texto teatral”; “estruturas do texto expositivo”, “a argumentação”; “recursos de linguagem poética” e “imagens que explicam”. Essas unidades iniciam com uma “chave da unidade”, uma ilustração que serve de mote às leituras e às atividades relativas a estudo de texto, produção de texto, estudo da língua, ortografia, texto instrucional, projetos de investigação, ferramentas para projeto e projeto em equipe, Ilustrada com fotos, desenhos, tiras, tabelas, cartazes, gráficos e anúncios publicitários, 4144 Segundo avaliação do PNLD, o ponto forte da coleção é a articulação entre leitura, produção de textos e conhecimentos lingüístico-textuais, tendo como contraponto a limitada circulação ao ambiente escolar das propostas de produção de textos. Ao observarem-se os textos literários considerados como principais, ou seja, que ocupam um lugar de destaque e possuem figuras ilustrativas, percebeu-se que são bem escolhidos e trazem alguma novidade considerando-se que nos livros didáticos, é comum aparecerem sempre os mesmos textos dos mesmos autores. A partir de um levantamento quantitativo dos textos apresentados na seção Estudo do Texto, elaborou-se uma tabela para facilitar a visualização: Observa-se que dentre o total de textos presentes na obra com a proposta de leitura e estudo do texto, um percentual significativo (60%) refere-se a textos literários. Nas quatro primeiras unidades há um tratamento prioritário a esta tipologia, o mesmo não ocorrendo nas unidades subseqüentes onde em apenas uma verifica-se a presença do texto literário, o que demonstra não haver um tratamento uniforme e contínuo em toda obra com este tipo de texto. Percebe-se, a partir da análise, a presença das diferentes tipologias textuais e a predominância do gênero descritivo/narrativo, enquanto os textos poéticos, embora em igual quantidade, só aparecem numa única unidade. Observa-se também a predominância de autores nacionais, caracterizando a valorização da produção literária do país. No contexto geral da obra, os textos poéticos adquirem expressiva representatividade, principalmente na seção “estudo da língua”, onde são utilizados como pretexto para os estudos propostos. 4145 De um modo geral, neste exemplar destinado à sétima série, o texto literário aparece fragmentado, numa tentativa de adequá-lo à proposta do livro, fato que vem sendo alvo de crítica, aqui representada por Cosson (2006) ao comentar que “no ensino fundamental predominam as interpretações de texto trazidas pelo livro didático, usualmente feitas a partir de textos incompletos...” Os fragmentos de texto, comprometem o entendimento e subvertem muitas vezes a intenção do autor. Nos textos em prosa foi uma prática freqüente, salvo raras exceções. Com relação ao texto poético, os fragmentos são freqüentemente utilizados para explicarem fatos lingüísticos. As discussões para ampliação da criticidade do aluno também deixam a desejar, exemplo disso é o texto da página 86 intitulado Os Filhos da Lua, nele o autor introduz o texto literário alertando para a visão preconceituosa do narrador e também dos personagens com relação à cultura africana. No entanto no estudo do texto, não faz nenhuma alusão a esse assunto, o qual poderia ser largamente explorado partindo-se de críticas à visão capitalista dominante na cultura ocidental. No espaço destinado à oralidade, quando se poderia debater essa questão, é pedido simplesmente que os alunos recontem o texto para um colega. É consenso hoje no ensino de Língua Portuguesa partir-se de textos para o ensino da análise lingüística, evitando-se trabalhar os conteúdos gramaticais isoladamente, esta prática embasa-se no pensamento de Bakhtin (1992) quando afirma que não há como ensinar a Língua materna somente através de orações e palavras, que para ele são ”unidades da língua e não possuem entonação expressiva”. Este ensino deve acontecer através de enunciados acabados e com sentido concreto. O que se verificou neste livro, foi que para todo conceito, explicação ou aplicação de exercícios, lá estavam os textos. No entanto, não eram tratados como enunciados nos moldes bakhtinianos, ou seja, eram desprovidos de sentido e, na grande maioria das vezes, não geravam uma atitude responsiva por parte do leitor. O que leva à reflexão de que os textos, e, principalmente os poemas nesta obra, servem apenas de pretexto para se chegar a uma análise lingüística que são, no ponto de vista dos autores do livro didático analisado, o fim último do ensino da língua. 4146 CONSIDERAÇÕES FINAIS As reflexões até aqui realizadas sobre a obra selecionada e a conjuntura em que ela é utilizada levam a crer que, embora as atividades de leitura propostas nas unidades possam levar o estudante a desenvolver a proficiência em leitura, há limitações a essa ação pedagógica pela inadequação de algumas propostas tais como a descontextualização e a fragmentação dos textos literários o que, segundo Zilberman (1991), pode oferecer uma visão de mundo desordenada e caótica, limitando o ensino da língua materna somente ao cognitivo e negando a sua realidade como produção. Observou-se essa fragmentação tanto nos textos, como na organização e articulação do próprio livro, onde os capítulos são tratados de forma isolada. O livro analisado apresenta várias situações em que a preocupação com o domínio de normas gramaticais é sobreposta à formação do leitor, pois apesar do texto literário estar presente em diferentes contextos e formas, as atividades propostas a partir deles denotam uma excessiva preocupação com o aspecto formal da língua, bem como configuram um modo de subversão do texto como mero instrumento para análise lingüística. Os textos são escolhidos conforme o tema gerador da unidade, deixando lacunas no que concerne ao trabalho com o texto literário no conjunto da obra, transferindo assim para o professor a incumbência de ampliar os horizontes textuais para que o leitor literário possa ser formado, o que pode ocorrer ou não, dependendo do engajamento e da bagagem teórica deste professor com relação à leitura. Sobre o professor pesa a responsabilidade de assumir uma postura frente à leitura literária que oportunize ao aluno o prazer na leitura. Esta reflexão remete a importância da formação do professor de Língua materna, pois se os saberes docentes, como indicado por Tardif, são produzidos em diferentes instâncias e momentos da formação do professor e se são estes saberes que o professor deverá dominar, integrar e mobilizar em sua prática pedagógica que haja então a preocupação de se preparar um profissional que possa “quebrar” um paradigma historicamente construído, que conheça e principalmente utilize teorias e estratégias sobre a leitura e com isso oportunize ao aluno uma atitude “responsiva-ativa” com o texto, ajudando o aluno a refletir sobre o que o texto “diz” a ele, aluno, sujeito histórico e social que possui vivência e visão de mundo únicas, que farão toda a diferença na interpretação, ou não, do significado, possibilitando que concorde ou 4147 discorde das idéias do autor, e ao fazer disso uma prática estará percebendo o mundo social em que está inserido e poderá modificá-lo. Este trabalho só será possível, se além da vontade do professor, o livro didático oportunizar estas reflexões evitando propostas que subvertam a intenção do autor, ou que fragmentem seus textos de modo a impedir o estudante de exercer a fascinante trajetória da descoberta dos segredos do texto, quer seja ele em prosa ou poesia. Neste ponto há que se concordar com Silva (2005) quando afirma que para despertar o gosto pela leitura tão almejado pela escola é necessário instrumentalizar o estudante para obtenção desse prazer. Seria um processo de produção de sentidos entre o leitor e o autor, transformando o ato de ler em programas de ensino que possam realmente levar o aluno à reflexão sobre outros pontos de vista diferentes do seu, que possibilitem, principalmente, que a leitura seja ponto de partida para a polifonia de discursos entre professor - aluno e alunoaluno, numa atividade que estimule o pensar, a troca e o debate. REFERÊNCIAS BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. 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