A vida de José Carlos Caeiro A vida de José Carlos Caeiro Carlos Caeiro | A vida de José José, filho e ajuda de Germano. Estou mesmo com frio. Pai, não vou levar a roupa suja desta semana a casa para a mãe lavar? Não lhe pergunto. Ainda me grita. Mas que é estranho, lá isso é. Se calhar esqueceu-se. Mas não pode ser. Ele nunca se esquece. Bom, vou ver como estão as cabras. Estou a estranhar isto. Já sei. Devem ter combinado fazer as coisas de outra maneira. Se calhar, é a mãe quem vem buscar as roupas. Mas, então, o que é que eu visto amanhã? Amanhã deveria trocar esta roupa que trago no corpo desde o início da semana. Estas calças estão todas porcas. O melhor é escová-las logo mais, quando o rebanho estiver a descansar. Não vá dar-se o caso de a semana que vem ser assim. Sem roupa lavada. A mãe não veio. A roupa não foi. Ele não falou. Tenho de lhe dizer. Mas não me apetece ouvi-lo gritar. E se tiver acontecido alguma coisa que eu não saiba? Tenho saudades da mãe. De a ouvir dizer “meu zé”. E de ela me apertar a cara contra a dela. Do perfume da sua pele. Lá vem ele. Parece que está a fazer de conta que anda a pensar em alguma coisa e não quer que eu lhe diga nada. Pai, então 1 A vida de José | Carlos Caeiro a roupa, não tenho de ir levar a roupa suja à mãe? Não lhe digo nada. Logo mais, ao jantar talvez. Vou mostrar-lhe as minhas calças. Estão sujas de lama e de esterco. Já não as devia ter vestido hoje. Olha. Está zangado com o cão. Parece diferente. Nunca se zanga com o cão. Alguma coisa aconteceu. É melhor não dizer nada. Digo depois, à noitinha, quando me estiver a deitar. Se a mãe aparecesse aqui é que era bom. Era mesmo o que eu queria. Hoje é domingo. Ele vai passar um bocado à taberna. Eu podia ir a casa. Mesmo sem roupa para levar. Eu queria ir a casa. Digo-lhe isto. Pai, quero ir a casa ver a mãe. E o mano. Digo-lhe a seguir ao almoço. Antes de ele sair. E posso levar as roupas sujas. Pode ser que se tenha esquecido. Mas ele nunca se esquece. Ali vem ele. Traz a trouxa às costas. São as roupas. Vou a casa. Vou ver a mãe. Meu zé. Diz sempre isto antes de me apertar contra ela. Já tinha saudades mãe. Se calhar digo-lhe isto. Nunca lhe digo grande coisa. Desta vez digo-lhe. Saudades tuas mãe. Não me pediu para ir com ele. Não estava à espera desta. E agora faço 2 Carlos Caeiro | A vida de José o quê? Vou gritar-lhe para lhe perguntar se posso ir com ele. Posso ir consigo, pai? Ver a mãe? Já fui ver as cabras. Estão sossegadas. Sai daqui Malhado. Vai com o dono. Vai com ele. Se tu fores, pode ser que ele me chame também para ir com ele. Se calhar não. Se tu fores e eu for também, as cabras ficam sozinhas. Se calhar é por isso. Não me leva para o cão não ir atrás e ficarem as cabras aqui sozinhas. Será que isto agora vai ser assim? Ele leva a roupa suja e traz a muda de roupa lavada e eu fico sempre aqui. O que eu devia fazer era ir atrás dele e apresentar-me à porta de casa quando ele entrasse com a trouxa. Assim quem vinha abrir a porta era a mãe e ele já não tinha coragem para gritar comigo. Olha o meu zé. Dá cá um beijo à tua mãe. E pronto. Depois se quisesse que me gritasse. E brincava um pouco com o António. Vou ver as cabras. Anda Malhado. Anda daí. O dono foi levar a roupa. Pode ser que a mãe venha com ele de volta. Dizem que há uma guerra. Os aviões da Itália bombardearam um palácio onde vivia um Rei. O Juventude de Évora ganhou ao Sporting de Beja por dois a 3 A vida de José | Carlos Caeiro um e o Lusitano de Évora ganhou aos de Fafe por cinco. Os italianos bombardeavam a Abissínia com sete aviões. Depois o Rei disparou com uma metralhadora contra os aviões que lançavam as bombas. Morreu muita gente cá em baixo. Mas o Rei sobreviveu. Espero que a guerra não chegue aqui a São Manços. Ainda nos matavam as cabras todas com as bombas. O pai não tem medo da guerra. Mas os outros homens pareciam preocupados, quando falaram disso. Eu bem os ouvi. Malhado, tens medo da guerra? Se uma daquelas bombas te caísse em cima ficavas sem cor no pêlo. Onde é que fica essa Abissínia? Tenho de perguntar à mãe. Malhado, as cabras estão sossegadas. Não há nenhuma guerra. Vamos para casa. O pai ainda vai demorar. Deve estar a contar à mãe o trabalho que temos tido. E eu tenho trabalhado bem. Quando a mãe ouvir isso vai ficar com vontade de me ver. Tenho fome. Espero que o pai não demore para jantarmos. Germano, guardador de cabras e pai de José. O rapaz está 4 Carlos Caeiro | A vida de José desconfiado mas eu não lhe posso dizer porque senão ainda me abala a correr para casa da mãe e nunca mais lhe ponho a vista em cima e fico sem ninguém para me ajudar com as cabras isso é que era bom e ela fica os três para ela e eu fico entalado ainda por cima este que já se ajeita bem a tratar das cabras isso que era bom mas o cabrão do gaiato anda desconfiado. Tenho de o levar daqui para longe. Vendo as cabras por um bom preço e vou tratar do rebanho de ovelhas do doutor Flores lá para os lados da Amareleja. A culpa disto tudo é dela. Ela é que arruinou isto tudo. A grandessíssima puta. Um homem mata-se a trabalhar e acaba com um par de chavelhos na testa. Se esse caixeiro volta a aparecer aqui pela aldeia, desgraço-me mas rebento-lhe a mona com uma cachaporrada. Isso é limpinho. Aquele homem lá na Alemanha é que sabe o que faz. Dizem que não lhe escapa nada. Gatunos, ciganos, judeus e galdérias. Vai limpar a nação. Vou ao barbeiro. Ainda me sobra tempo. 5 A vida de José | Carlos Caeiro – Ora boa-tarde Germano. – Boa-tarde mestre João. – Então, que vai ser? Barba e cabelo? – O cabelo está bom. Tem pouco mais de quinze dias. Vai o bigode. – Ó homem, tu queres tirar o bigode? – Tirar todo não. Deixe-mo assim como o daquele gajo lá da Alemanha. O das cruzes e do braço esticado. – Eh pá. Olha que o homem é rijo. Mas tem cuidado. Se te ouvem falar nele ainda pensam que andas metido na política. – Eu não ando metido em nada. Faça-me lá o bigode como lhe digo mestre João. – Com certeza. É para já. E o rebanho como é que vai Germano? – As cabras vão bem. Estão a dar bom leite. – Ouvi dizer que tens uma ajuda contigo. – Tenho o meu rapaz mais velho, vai ajudar-me com os chibos. – E o rapaz não sente a falta da mãe, ó Germano? – Mestre João, faça-me lá o bigode que ainda tenho de ir fazer 6 Carlos Caeiro | A vida de José uma coisa. – É para já amigo Germano. Escuta, eu não tenho nada a ver com isso Germano. Mas tu sabes que eu tenho estima por ti. És trabalhador e dos sérios. E olha que isso não é coisa pouca. – Gatunagem é o que não falta por aí mestre João. – Pois é, Germano, pois é. Mas olha, escuta aquilo que eu te digo que sou teu amigo. Já se sabe na aldeia que tu largaste a mulher. E na minha opinião fizeste o que tinhas a fazer. O caixeiro-viajante andava por aí a rondar e a aparecer cada vez mais. Mas escuta aquilo que eu te digo Germano, tu não tires o filho de uma mãe. Mesmo que também seja teu. E mesmo que precises dele para ajuda no rebanho. – O bigode já está mestre João? – Sim, o bigode já está. – Mestre João, você não se esqueça de mudar a folha ao calendário? – O quê? – Sim, a folha do calendário. Está com dois dias de atraso. Hoje é dia 9. 7 A vida de José | Carlos Caeiro – É verdade, tens razão. Muitas vezes esqueço-me de passar a folha. – Hoje é dia 9 de Fevereiro de 1936, mestre João. João, filho de José e de Antónia. Recordava-se que em tempos adormecia com a cabeça preenchida com os gritos e as gargalhadas dos rapazes que ia inventando ao longo do dia e que eram os outros membros do bando, nas aventuras solitárias das férias do Natal que passava com eles no monte. Os cantos daquela casa grande cheia de corredores fundos e escuros parecia terem gravados os nomes das pessoas que ali tinham vivido em tempos e ali tinham morrido devagar, numa velhice desejada. Era uma casa grande com um tecto bastante alto, suportado por grandes barrotes de madeira e uma bela “madre”, como se chamava ao enorme tronco que percorria o telhado da casa de forma longitudinal e onde assentavam todos os outros. Não havia luz eléctrica. Ao fim da tarde ela acendia os candeeiros e o cheiro a petróleo, que nunca desaparecia completamente, voltava a inundar a cozinha grande onde passavam a maior parte do tempo 8 Carlos Caeiro | A vida de José sempre que estavam em casa. Escurecia e jantavam os três à luz de três candeeiros, um deles colocado no centro da mesa redonda, quase sem falaram uns com outros, a não ser quando ela lhe perguntava se queria mais carne ou, no final do jantar, mais uma fatia de melão ou uma guloseima, rebuçados com recheios diversos ou chocolates que tinha sempre escondidos nas prateleiras e gavetas dos armários onde guardava a loiça. Eram as guloseimas do menino. Chamava-lhe assim apesar de já ter feito os catorze anos. Mas era o mais novo, porque a Laura tinha mais dez anos e já estava casada a viver em casa dela com o marido. Depois do jantar, eles os dois sentavam-se à lareira e o lume ia morrendo pela noite fora até ficarem só umas brasas frias. Nessa altura, por volta das onze da noite, já ela se tinha ido deitar. Ele ficava um pouco mais, sentado na cadeira a dormitar à lareira ou a pensar em qualquer coisa que o tempo esbatera e a memória não queria avivar. Em certas noites, o rapaz ouvia-o pronunciar palavras soltas. Nunca frases completas. Mãe malhado cabras roupa. O que isso queria significar estava fechado no tempo e apenas assomava 9 A vida de José | Carlos Caeiro nesse estado de sonolência onde ele permanecia horas com a cabeça tombada sobre o peito. Nessa altura, as brasas estavam quase todas desfeitas em cinza, mantendo ainda as formas dos troncos ardidos. O rapaz retirava-se para ler no quarto, antes de adormecer. Sentia lá fora, nas traseiras da casa, as ovelhas a mexerem-se no curral, apertadas umas contra as outras para se protegeram do frio. Os restantes rapazes nunca existiram. Ia-os reinventando também no silêncio dessas noites frias. Às vezes, antes de adormecer, ficava imóvel, à escuta do ruído das oliveiras com as folhas cheias de vento. Não se ouvia nenhum tiro. Já não aconteciam desgraças nos montes alentejanos, daquelas de que sempre ouvira falar. Das mortes no silêncio e na solidão da noite, por causas como a honra, o desespero ou o simples absurdo. Na manhã seguinte, o ar da cozinha cheirava aos odores parados da noite anterior. Levantava-se por volta das dez da manhã e ia ver o dia. Dava sempre uma volta. Vou lá longe, dizia à mãe. Quando voltava para comer, trazia o odor do seu próprio corpo misturado com o cheiro da terra colado à pele. Tinha as pernas 10 Carlos Caeiro | A vida de José cheias do pó fino avermelhado dos campos. À noite, o jantar repetia-se a três. E eles envelheciam um pouco mais, perto do lume, com os olhos lacrimejantes do fumo. O rapaz escrevia histórias passadas no oeste longínquo dos cowboys mas com personagens dali. Uma história que recordava e eles talvez não. Mas não tinha a certeza. Aquelas cartas continuavam guardadas no fundo da gaveta grande da cómoda, debaixo da roupa branca, perto das imagens dos santos e de algumas orações benzidas. Só tinha lido parte de uma delas e por uma circunstância do acaso. Na história onde todas as noites acrescentava umas linhas, havia um rapaz que vestia umas calças de bombazina verde que lhe ficavam curtas nas pernas, gastas pelas lavagens sucessivas e enérgicas na pedra, pelas mãos de dona Antónia. Nessa idade tinha as pernas e os dentes grandes. Felizmente que, com os anos, os lábios cresceram. Numa manhã enevoada, o rapaz ia a caminho da escola com a mala dos livros a balouçar-lhe numa das mãos. Havia algo de muito 11 A vida de José | Carlos Caeiro estranho nessa manhã porque ele ia a seu lado e carregava com uma mala de viagem na outra mão. Vestia um fato com gravata e calçava uns sapatos pretos envernizados. Ele que trazia quase sempre calçado um par de botas Tractor. O rapaz caminhava pelo passeio, com o cotovelo esquerdo a tocar, por vezes, a caliça das paredes velhas. Tentava acertar o passo com o dele, como naqueles tempos tinha a mania de fazer sempre que alguém andava ao seu lado. Ele caminhava entre os carros e o rapaz. Não falava e mantinha o habitual olhar cerrado, como se tentasse ver ao longe, o que lhe tornava os olhos ainda mais pequenos. Depois, num cruzamento, despediram-se e o rapaz continuou em frente na direcção da escola. Quando olhou para trás viu, o rapaz viu que ele estava parado a olhá-lo. Adeus, disse-lhe outra vez. Antes, quando se despediram, ele tinha-o beijado, com a barba espetada a arranhar-lhe a face a lembrar-lhe os dias em que não tinha de ir à escola e o colocava ao colo quando chegava a casa. O rapaz pensou que ele devia ter medo de ir assim sozinho para Lisboa, com aquela mala de viagem na 12 Carlos Caeiro | A vida de José mão. Ele que nunca ia a lado nenhum via-se, de repente, obrigado a ir no comboio para Lisboa, enfiar-se num hospital para ser operado. Um dia, vários anos depois, o rapaz haveria de pegar numa dessas cartas que ele escrevera do hospital e que começava por “querida mulher”. Também a tratava por Antónia nas linhas a seguir. Dona Antónia, mãe de João e mulher de José. Quando o chão de cimento pintado de vermelho escuro era lavado por ela com uma esfregona de cabo alto e demorava, em certas partes, algum tempo a secar, sentia que a casa estava verdadeiramente acolhedora e asseada. Mas quando a dona Antónia, de lenço na cabeça, o começava a tratar a ele por você, com insultos, por não ter sido homem para emigrar, e não acendia a luz dos candeeiros logo que o sol desaparecia e começava a escurecer, a casa ficava-se repleta de medos. O rapaz sentia-se doente e via coisas. Como isso não passava, a mãe concluiu que eram as bruxas. Por pouco não o levaram para o outro mundo, costumava mais tarde dizer às vizinhas na mercearia 13 A vida de José | Carlos Caeiro do senhor Jacinto. Ó dona Antónia não diga isso, respondiam elas fingindo-se chocadas mas crentes. Mas ela levou-o à virtuosa, a famosa tia Rosa. E essa foi também a primeira vez que foi a Évora, porque na altura ainda viviam em Reguengos. O vinte de abril ainda não tinha chegado e o pai trabalhava no monte do doutor Fernandes onde era chaveiro. Recordava dessa viagem, uma rua estreita de empedrado irregular, onde morava a dita senhora e onde estavam três gaiatos a jogar com uma colecção de cromos de futebol, ainda por colar na caderneta, enquanto falavam dos clubes, aos gritos. Um deles gritou, eu sou do Belenenses. Depois disso ficou bom e voltou a comer bem. Por vezes, ainda via cães grandes e brancos onde estes não existiam. Noutras, homens magros e altos, de fato azul claro. Todos sem rosto. Via também a irmã Laura onde ela não estava. Por isso o candeeiro pequeno do quarto ficava sempre aceso, durante a noite, sobre a sua mesinha de cabeceira. O quarto ficava empestado com o cheiro a petróleo. Mas sempre era preferível o cheiro, do que abrir os olhos na escuridão e julgar que estava cego. 14 Carlos Caeiro | A vida de José Um dos maiores medos que tinha nesses tempos. João, filho de José e irmão de Laura. É meia-noite do dia 26 de Dezembro de 2008. Escrevo sobre ti. Apenas algumas notas sobre lugares e palavras ditas. Pensei que esta seria a melhor forma de estar contigo. Sei que podes estar a morrer neste preciso instante. Apenas tive consciência disso hoje à tarde, quando conduzia pela auto-estrada no regresso a Lisboa. Falei com a Laura ao telefone. Ela estava contigo nesse momento e disse-me que estavas a articular frases sem sentido. Para ela, claro. Contada, a minha vida dava um livro, disseste tu. Eu sei que sim. Um livro com muitas páginas em branco, muitas páginas desfeitas pelo pó e pela vontade de as manter fechadas. Também disseste que este era o tempo de levar as éguas aos cavalos para serem cobertas e ficarem prenhes. Deves ter guardado essa preocupação, vinda de há muitos anos. Fizeste muitas coisas na vida e também conduziste as éguas do doutor Fernandes na época da cobertura, entre o começo da Primavera 15 A vida de José | Carlos Caeiro e o fim do Outono. Nunca assisti a isso, acho que ainda não tinha nascido. Também chamaste pelo Malhado. A Laura perguntou-me se eu sabia quem era o Malhado. Contaste-me que o teu pai baptizou um cão com esse nome. Porque era branco, malhado de preto. Eras muito pequeno, tinhas oito anos e ajudavas o teu pai a guardar um rebanho de cabras. Foi antes da guerra. O teu pai deixou a tua mãe e guardou-te para ele para o ajudares com o rebanho. Foi uma vingança porque a tua mãe o traiu com um caixeiro-viajante que aparecia de tempos a tempos na aldeia. Naquela fotografia amarelada que ainda guardas na carteira, ele aparece com um bigode idêntico àquele que o Hitler usava. Já havia alguma guerra, mas não a grande guerra, dizias. Foi numa daquelas noites longínquas, à lareira do monte de São Pedro, depois de jantar, que me contaste isso. A Laura já tinha saído de casa. Nunca ouviu esta e outras histórias. Não foram muitas porque o silêncio sempre foi mais alto que as palavras. Hoje, depois de falar ao telemóvel com a Laura fiquei a pensar nessas palavras que ela te ouviu murmurar na cama do hospital. 16 Carlos Caeiro | A vida de José Compreendi que estavas a iniciar esse caminho afunilado que tanto falam aqueles que sobrevivem. Procurei fazer o mesmo, mas deste lado de cá. A verdade é que os nossos caminhos nunca foram os mesmos. Apenas guardo pedaços, recortes de um filme sem guião. São quase sempre episódios passados à noite. Não há nada de sombrio nisso. Apenas um toque de aventura. Naquela época eu vivia uma vida de aventuras a partir dos livros de cowboys que o filho mais novo da família que vivia no outro monte mais acima me emprestava. Tinha várias caixas de cartão cheias de livros e emprestava-me todos os que eu lhe pedisse. Talvez possa ter desejado muito viver contigo as aventuras de Kit Carson nas estradas de terra batida que ligavam os montes e as herdades desse Alentejo perdido no tempo das éguas. Não tem importância que não o tenhas percebido na altura. As coisas são assim. É verdade que nunca nos explicámos nem nunca nos ouvimos. Sabemos ambos porquê. Mas isso, não o escolhemos. Nenhum de nós escolheu que as coisas acontecessem dessa forma. Tu sempre achaste que eu não sou teu filho. Ela fez-te 17 A vida de José | Carlos Caeiro o que a tua mãe fez ao teu pai. Mas acho que és meu pai. Não te preocupes. És mesmo. Há cerca de dois anos, na verdade faz hoje mesmo dois anos, senti que te salvei a vida, quando os médicos no hospital em Lisboa se preparavam para te deixar morrer não avançando com a cirurgia. Pressionei-os de tal forma que não tiveram escolha. Afinal, com setenta e nove anos ainda era possível sobreviver. Só passaram dois anos, mas valeu a pena. É importante que saibas que, se morreres hoje durante a noite, amanhã o mundo será diferente. Porque tu não estarás cá. O sol da esquina, que tu não irás ver, já não será o mesmo sol. Eu próprio não serei o mesmo. Tenho a certeza. Sempre soube que seria assim. João e o mundo sem José. Está a atingir-me de um modo que me está a surpreender. Já esperava qualquer coisa diferente de todas aquelas que tinha imaginado. Mas isto é diferente. Contaram-se muitas histórias ontem à noite. Houve sorrisos. E rebentaram foguetes 18 Carlos Caeiro | A vida de José lá fora. A noite de fim de ano atrasou-se ou tu trocaste-lhe as voltas. Morrer no último dia do ano é tão organizado como os papéis e as facturas separadas por datas, temas e gavetas que mantinhas de forma quase obsessiva. Pela janela, o céu parece o mesmo que avistava naquele terraço que hoje recordei quando o pesquisei no Google maps porque queria recuperar os locais por onde passaste. Assim, visto do céu. Um azul claro escorrido de cinza velha e translúcida. O número dois da rua de Mourão não era uma porta normal. Era um portão pesado de ferro, pintado com a cor do ferro ferrugento. Poderia parecer o portão do porão de uma nave espacial desenhada pela ingenuidade de Lucas na sua guerra das estrelas. Não era a porta de uma casa. Era a entrada de um quintal, como lhe chamávamos, que na verdade era um parque de armazéns, cavalariças e habitações. Tudo aquilo pertencia ao doutor Fernandes. Vivíamos na casa do fundo, à qual chegávamos depois de andar uns cinquenta metros pela rua principal daquele quintal e virar à direita para andarmos mais uns trinta metros. 19 A vida de José | Carlos Caeiro Esses anos não foram felizes nem infelizes. Era demasiado pequeno para saber o que isso poderia significar. Hoje, sinto-lhe os cheiros, os sons e as cores. É assim que os recordo. Na língua e na memória. O balde de água atirado ao vestido de Laura. Um vestido branco estampado com flores castanhas de vários tons que acabara de vestir para a matiné no cineteatro Central. Os brinquedos separados em dois grupos, os de madeira e os de plástico, as novelas transmitidas na rádio, a vizinha Rita a quem tinha morrido o filho e que ainda mantinha a cama feita no seu quarto, a lata da gasolina entornada pelas minhas mãos desajeitadas, as palavras duras da mãe sobre o que aquilo tinha custado ao meu pai, a árvore de tília a inundar o quintal de aromas floridos, os golos do Yazalde no Sporting-Benfica de 1973, a mesa redonda, o livro de inglês da irmã com desenhos irresistíveis, a irmã na escola, a mercearia do senhor Jacinto, o rapaz do outro quintal, os dias de chuva ruidosa a despedaçar-se no empedrado, o festival da eurovisão, a escola primária, a primeira data escrita no quadro a despertar-lhe, pela primeira vez na vida, 20 Carlos Caeiro | A vida de José a consciência do tempo e do efémero, as idas ao monte do doutor Fernandes onde passavas temporadas sem nos veres, os rapazes do monte para estar contigo, as idas a Évora, os rapazes da cidade a brincarem na rua com berlindes, eu sou do Belenenses disse um deles, a virtuosa tia Rosa, as bebidas com sabor a terra, a madrinha que era bruxa desmascarada pela virtuosa, a Fernanda do pronto-a-vestir, estás tão alto que qualquer dia chegas ao céu, ai meu querido não queria dizer deus me perdoe e afinal ela foi para o céu tão nova por causa da doença do peito, o cheiro do perfume das senhoras da papelaria, os rumores sobre o que aí vinha, o medo do comunismo, as idas ao baile, os cabelos compridos dos namorados das irmãs, a Mara na carteira da frente, o murro da Marília nos dentes da frente, o café da Clarisse, o Renaul 4 L, o cão da vizinha, as amigas da irmã, as conspirações, as preocupações, a casa que era do doutor Fernandes e de onde a irmã nos haveria de expulsar depois da revolução quando o irmão teve de fugir para o Brasil. Depois, anos mais tarde, os dias tranquilos em Évora, a casa que 21 A vida de José | Carlos Caeiro tu compraste e de onde ninguém te podia expulsar, os natais com os dois filhos e os netos, as visitas do teu irmão António que nunca tinha arrancado da casa da tua mãe, os dois a falarem disso como se não tivesse tido importância nenhuma. Tu, com os olhos muito pequenos, pontos húmidos à procura de algo, lá longe, nos anos antes da guerra. Só achei estranho quando o pai não me pediu que fosse a casa trocar a roupa, disseste tu numa dessas tarde de visitas em casa. E o teu irmão a desviar o olhar, culpado, com o coração cheio de mãe desde aqueles anos em que tu, quase roubado por um pai ferido na honra com bigode de ditador, iniciavas uma vida que daria um livro. 22 A vida de José Carlos Caeiro ILUSTRAÇÃO ANA SOFIA GONÇALVES | WHO