C rônicamédica
A galinha “ocitócica”
Plantão em Mata de São João até rima, mas dificilmente dá samba. Tinha dias que era difí-cil de acreditar que tanta gente morasse na região, era um movimento danado, nem bem acabava um atendimento e a fila
já dobrava. Outras vezes era a paradeira... daquelas que
fazem a gente suspeitar de que uma tempestade está pra
cair. Às vezes caia.
Nesses dias mais tranquilos, quando a tarde caia parecia que o tempo parava, e a sensação do dever cumprido abria espaço para a vontade sem culpa de calçar
um chinelo, vestir uma bermuda, e andar pela vizinhança sem pensar em nada mais sério do que se vai ou não
chover logo mais à noite.
Pois foi numa tarde assim, já na boca da noite, que deu
entrada no posto uma mulher em trabalho de parto. A bolsa
já rompida, a dilatação adiantada e a natureza se apressando em abrir a porta do mundo para mais uma vida.
O nascimento praticamente não deu trabalho, nenhuma intercorrência digna de nota. Che-gou um menino
saudável, 3,2 kg, 48 cm, choro forte, reflexos normais.
Já da mãe não se podia dizer o mesmo. Uma hemorragia daquelas que desafiam as leis da coagulação irrompe frenética. Pressão caindo, nervosismo subindo... o
corre-corre se instala.
– Faz pressão pra parar!... Tem com o que cauterizar?... Cadê a ocitocina?...
A equipe parou.
– Que ocitocina doutor? Faz tempo que isso não chega aqui. Disse uma auxiliar. Nem água gelada tem.
– Boa idéia! Traz gelo que a gente estanca o sangue.
– Gelo também não tem, doutor.
– Não tem geladeira aqui?
– Ah, geladeira tem, mas gelo não.
– E tem alguma coisa gelada, pelo amor de Deus?
Perguntei já no desespêro.
Foi aí que alguém falou:
– Tem lá uma galinha congelada. É pro almoço de
amanhã.
– Manda trazer.
– A galinha, doutor?
– É, traz logo essa galinha!
Mesmo sem entender nada do pedido, uma alma solícita se apressou em buscar a galinha gelada – ou seria
frango? Ninguém se preocupou em definir isso.
A paciente, desacordada, nada via ou ouvia. E a hemorragia continuava.
A gelada galinha finalmente chegou. Ainda embrulhada num saco de supermercado, mas bem gelada.
Tendo o cuidado de proteger de contaminação a paciente, reembalei a gélida galinácea com material esterilizado. Coloquei-a (a galinha) de imediato na região abdominal e pélvica da parida.
Não levou muito tempo. Para felicidade geral, a hemorragia cedeu ante a galinha. A galinha ocitócica!
Resolvida a intercorrência, todo mundo na sala respirou aliviado. Só não a galinha, é claro.
Por via das dúvidas, enquanto a parturiente se recuperava, a galinha permaneceu a postos, refrigerando, digamos assim, o local da intervenção. Afinal ninguém queria correr o risco de voltar a hemorragia.
Lá pelas tantas, bem mais tarde, a parida acorda. Deve
ter achado estranha – ou no mínimo incômoda -, aquela sensação de peso ainda sobre a barriga, já que o menino não estava mais lá. Com alguma dificuldade e lentamente, foi conferir o motivo do peso...
Levou um susto ao se deparar com a galinha sobre
ela, ainda mais naquele local. Susto maior – me contaram depois -, foi do pessoal que estava no posto, ao ver
a mulher semi-nua jogar longe a galinha que lhe salvou
a vida e sair gritando:
– É macumba, é macumba!...
Ilmar Cabral é ginecologista e obstetra e diretor
do Sindicato dos Médicos da Bahia.
(Texto redigido em conjunto com o jornalista Ney Sá)
Este espaço é aberto aos pendores literários dos médicos, especialmente às crônicas. A única restrição é quanto ao
tamanho dos textos. Exercitem o poder de síntese para evitarmos as letrinhas. Aqui, menos quase sempre é mais...
Luta Médica – Abril / Julho de 2011
Dr. Ilmar CABRAL
35
Download

CRÔNICA MÉDICA A galinha "ocitócica - sindimed-ba