O Natal e uma Mulher
A mulher secava as mãos ao longo do avental. A pele gelada fazia-se sentir
sobre a roupa, sobre o velho casaco que vestira de manhã, quando sentira a galinha a
debicar e a raspar em frente à porta de madeira. A luz coava-se através do filtro de
um céu encoberto, azul-escuro, tímido, e a mulher abriu a porta ao vento, e com ele
entrou a galinha.
A mulher colocou a água ao lume e sentou-se na cadeira de pernas bambas,
que ameaçava continuamente cair sem nunca o chegar a fazer, e olhou para a
galinha. Em breve, os sinos da igreja começariam a repicar e tocariam todo o dia, sem
parar, sem ceder ao frio e à tentação de se aconchegarem na quietude do bronze,
pois celebrava-se, nesse dia, o nascimento do redentor, do mensageiro de um
mundo novo onde todos são irmãos, e a mulher festejava-o também, com o fervor e
o gosto aprendido há muitos anos, quando era uma menina, e tantos anos se tinham
passado que era agora bastante velha, uma idosa que ainda se preocupava com o
que vestiria e comeria naquele dia, naquela festa, naquela celebração da vida.
Os filhos não a visitariam; estavam demasiado ocupados, retidos na cidade
pelos seus afazeres, pelos divertimentos, pelas compras, pelas luzes, pelos gastos,
pela arrumação que se seguiria para, assim, voltarem ao trabalho, e a mulher ali
estava, a sós. À exceção daquela galinha, a última que lhe restava, o único ser que
naquela casa fazia algum ruído, pois as fotografias não falavam e o relógio precisava
de corda para tocar as horas. A galinha ali estava, como em todas as manhãs, e
circulava pela cozinha com à-vontade, e debicava o chão de terra dura em busca de
migalhas, de grãos, e erguia alegremente a cabeça por estar ali, perto do calor do
fogão a lenha, mas enquanto a galinha estava ali, no chão, livre, não estava na
assadeira, pronta a ir ao forno, e a mulher não tinha outra coisa digna para comer
num dia daqueles, pois é impossível celebrar um nascimento com um caldo de nabos,
uma penca, uma sopa de agrião, e uma galinha é apenas uma galinha, mesmo que
seja uma companhia, e há nascimentos que valem milhares de mortes. Porém, a
mulher não se decidia a fazer o que sempre fizera.
Até que os sinos tocaram, repicando o primeiro anúncio do dia. Então, a mulher
tomou a decisão; cerrou os punhos e ergueu-se, deslocando-se até ao fogão.
Desligou o lume e verteu a água que pensara usar para o seu chá num alguidar que
retirou do armário.
A galinha debicava à sua volta e ergueu a cabeça quando sentiu a mulher olhar
para si. A mulher pegou na faca e a galinha cacarejou; a mulher franziu o sobrolho e a
galinha começou a correr; a mulher perseguiu-a e a galinha cacarejou e esvoaçou e
embateu na porta fechada; a mulher apanhou-a, e a galinha chorou.
A galinha ainda mexia os dedos quando os sinos da igreja voltaram a tocar.
Quando se fez novamente silêncio na aldeia, os dedos não mais se mexiam, e nunca
o voltariam a fazer.
A mulher preparou tudo e esperou, e esperou, e esperou e aguentou o tédio.
Até à hora da missa, anunciada pelos sinos. E, então, saiu de casa, com a sua melhor
roupa, e a galinha ficou na assadeira, no forno, e não cacarejou, e a mulher caminhou
até à igreja, bem no alto do pequeno monte sobranceiro à aldeia, depois desceu, e a
escuridão que a envolvera na subida era a mesma que a rodeava na descida, e aquele
nascimento não tinha direito a uma luz que o celebrasse num mundo que seguia o
seu rumo.
A porta foi aberta, a mulher chegara a casa.
Abriu o forno, pousou a assadeira na mesa, sentou-se na cadeira de pernas
bambas. Olhou para o chão, mas da galinha restava apenas uma pena.
Os sinos anunciavam ainda a grande celebração, mas a mulher, que não podia
abraçar o bronze que repicava na torre da igreja, chorou. E ninguém a ouviu.
Um conto de João Reis
http://joaoreisautor.blogspot.pt
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