friedrich nietzsche
ASSIM FALOU
ZARATUSTRA
Um livro para todos e para ninguém
Tradução, notas e posfácio:
paulo césar de souza
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Copyright da tra­du­ção, notas e pos­fá­cio
© 2011 by Paulo César Lima de Souza
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título ori­gi­nal:
Also sprach Zarathustra
Capa:
João Baptista da Costa Aguiar
Preparação:
Márcia Copola
Índice remis­si­vo:
Luciano Marchiori
Revisão:
Renata Del Nero
Ana Maria Barbosa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900.
Assim falou Zaratustra : um livro para todos e para
ninguém / Friedrich Nietzsche ; tradução, notas e posfácio
Paulo César de Souza. — São Paulo : Companhia das Letras,
2011.
Título original: Also sprach Zarathustra.
978-85-359-1999-8
isbn
1. Filosofia alemã i. Título.
cdd-193
11-11984
Índices para catálogo sistemático:
1. Alemanha : Filosofia 193
2. Filosofia alemã
193
3. Filósofos alemães 193
2011
Todos os direi­tos desta edi­ção reser­va­dos à
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SUMÁRIO
primeira parte
Prólogo de Zaratustra ..................................................11
Os discursos de Zaratustra...........................................27
Das três metamorfoses ..........................................27
Das cátedras da virtude .........................................29
Dos trasmundanos.................................................31
Dos desprezadores do corpo ................................34
Das paixões alegres e dolorosas ...........................36
Do criminoso pálido..............................................38
Do ler e escrever....................................................40
Da árvore na montanha.........................................42
Dos pregadores da morte......................................44
Da guerra e dos guerreiros....................................46
Do novo ídolo .......................................................48
Das moscas do mercado........................................51
Da castidade..........................................................54
Do amigo...............................................................55
Das mil metas e uma só meta ................................57
Do amor ao próximo.............................................59
Do caminho do criador .........................................60
Das velhas e novas mulherezinhas........................63
Da picada da víbora ..............................................65
Dos filhos e do matrimônio ..................................67
Da morte voluntária ..............................................69
Da virtude dadivosa ..............................................72
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segunda parte
O menino com o espelho.....................................79
Nas ilhas bem-aventuradas ..................................81
Dos compassivos..................................................84
Dos sacerdotes .....................................................86
Dos virtuosos .......................................................89
Da gentalha ..........................................................92
Das tarântulas.......................................................95
Dos sábios famosos..............................................98
O canto noturno...................................................100
O canto da dança .................................................102
O canto dos sepulcros..........................................105
Da superação de si mesmo ..................................108
Dos sublimes........................................................111
Do país da cultura ................................................113
Do imaculado conhecimento...............................116
Dos eruditos .........................................................119
Dos poetas............................................................121
Dos grandes acontecimentos ...............................124
O adivinho............................................................127
Da redenção.........................................................131
Da prudência humana..........................................135
A hora mais quieta ...............................................138
terceira parte
O andarilho ..........................................................145
Da visão e enigma ................................................148
Da bem-aventurança involuntária........................153
Antes do nascer do sol .........................................156
Da virtude que apequena.....................................159
No monte das oliveiras.........................................164
Do passar além.....................................................167
Dos apóstatas........................................................170
O regresso ............................................................174
Dos três males ......................................................178
Do espírito de gravidade......................................183
De velhas e novas tábuas .....................................187
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O convalescente...................................................206
Do grande anseio .................................................212
O outro canto da dança........................................215
Os sete selos.........................................................219
quarta parte
A oferenda do mel................................................225
O grito de socorro ................................................228
Conversa com os reis ...........................................231
A sanguessuga......................................................235
O feiticeiro............................................................238
Aposentado ..........................................................245
O mais feio dos homens.......................................249
O mendigo voluntário..........................................254
A sombra ..............................................................258
No meio-dia..........................................................261
A saudação ...........................................................264
A última ceia.........................................................269
Do homem superior.............................................271
O canto da melancolia .........................................281
Da ciência.............................................................286
Entre as filhas do deserto .....................................289
O despertar...........................................................294
A festa do asno .....................................................297
O canto ébrio .......................................................301
O sinal ..................................................................308
Notas............................................................................313
Posfácio .......................................................................339
Índice remissivo ..........................................................349
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PRIMEIRA PARTE
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PRÓLOGO DE ZARATUSTRA
1.
Aos trinta anos de idade, Zaratustra deixou sua pátria e o
lago de sua pátria e foi para as montanhas.1 Ali gozou do seu
espírito e da sua solidão, e durante dez anos não se cansou.
Mas enfim seu coração mudou — e um dia ele se levantou
com a aurora, foi para diante do sol e assim lhe falou:
“Ó grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que iluminas?
Há dez anos vens até minha caverna: já te terias saciado
de tua luz e dessa jornada, sem mim, minha águia e minha
serpente.
Mas nós te esperamos a cada manhã, tomamos do teu
supérfluo e por ele te abençoamos.
Olha! Estou farto de minha sabedoria, como a abelha
que juntou demasiado mel; necessito de mãos que se estendam.
Quero doar e distribuir, até que os sábios entre os homens voltem a se alegrar de sua tolice e os pobres, de sua
riqueza.
Para isso devo baixar à profundeza: como fazes à noite,
quando vais para trás do oceano e levas a luz também ao
mundo inferior, ó astro abundante!
Devo, assim como tu, declinar,2 como dizem os homens
aos quais desejo ir.
Então me abençoa, ó olho tranquilo, capaz de contemplar sem inveja até mesmo uma felicidade excessiva!
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I
Abençoa a taça que quer transbordar, para que a água
dela escorra dourada e por toda parte carregue o brilho do
teu enlevo!
Olha! Esta taça quer novamente se esvaziar, e Zaratustra
quer novamente se fazer homem.”
— Assim começou o declínio de Zaratustra.
2.
Zaratustra desceu sozinho pela montanha, sem deparar
com ninguém. Chegando aos bosques, porém, viu subitamente um homem velho, que havia deixado sua cabana sagrada para colher raízes na floresta. E assim falou o velho a
Zaratustra:
“Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há
muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado.
Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não temes o castigo
para o incendiário?
Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca
não esconde nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino?
Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um despertado3 é Zaratustra: que queres agora entre os
que dormem?
Vivias na solidão como num mar, e o mar te carregava.
Ai de ti, queres então subir à terra? Ai de ti, queres novamente arrastar tu mesmo o teu corpo?”
Respondeu Zaratustra: “Eu amo os homens”.
“Por que”, disse o santo, “fui para o ermo e a floresta?
Não seria por amar demais os homens?
Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é,
para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos
homens me mataria.”
Respondeu Zaratustra: “Que fiz eu, falando de amor?
Trago aos homens uma dádiva”.
“Não lhes dês nada”, disse o santo. “Tira-lhes algo, isto
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sim, e carrega-o juntamente com eles — será o melhor para
eles: se for bom para ti!
E, querendo lhes dar, não dês mais que uma esmola,
deixando ainda que a mendiguem!”
“Não”, respondeu Zaratustra, “não dou esmolas. Não
sou pobre o bastante para isso.”
O santo riu de Zaratustra, e falou assim: “Então cuida
para que recebam teus tesouros! Eles desconfiam dos eremitas e não acreditam que viemos para presentear.
Para eles, nossos passos ecoam solitários demais pelas
ruas. E, quando, deitados à noite em suas camas, ouvem um
homem a caminhar bem antes de nascer o sol, perguntam a
si mesmos: aonde vai esse ladrão?
Não vás para junto dos homens, fica na floresta! Seria até
melhor que fosses para junto dos animais! Por que não queres ser, como eu — um urso entre os ursos, um pássaro entre
os pássaros?”
“E o que faz o santo na floresta?”, perguntou Zaratustra.
Respondeu o santo: “Eu faço canções e as canto, e, quando faço canções, rio, choro e sussurro: assim louvo a Deus.
Cantando, chorando, rindo e sussurrando eu louvo ao
deus que é meu Deus. Mas o que trazes de presente?”
Ao ouvir essas palavras, Zaratustra saudou o santo e falou: “Que poderia eu vos dar? Deixai-me partir, para que
nada vos tire!” — E assim se despediram um do outro, o
idoso e o homem, rindo como riem dois meninos.
Mas, quando Zaratustra se achou só, assim falou para
seu coração:4 “Como será possível? Este velho santo, na sua
floresta, ainda não soube que Deus está morto!”.
3.
Quando Zaratustra chegou à cidade mais próxima, na
margem da floresta, ali encontrou muita gente reunida na
praça; pois fora anunciado que um equilibrista5 andaria na
corda. E Zaratustra assim falou à gente:
Eu vos ensino o super-homem.6 O homem é algo que
deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?
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Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si próprios: e vós quereis ser a vazante dessa grande maré, e antes
retroceder ao animal do que superar o homem?
Que é o macaco para o homem? Uma risada, ou dolorosa
vergonha. Exatamente isso deve o homem ser para o super-homem: uma risada, ou dolorosa vergonha.
Fizestes o caminho do verme ao homem, e muito, em
vós, ainda é verme. Outrora fostes macacos, e ainda agora o
homem é mais macaco do que qualquer macaco.7
O mais sábio entre vós é apenas discrepância e mistura
de planta e fantasma. Mas digo eu que vos deveis tornar
fantasmas ou plantas?
Vede, eu vos ensino o super-homem!
O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-homem seja o sentido da terra!
Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não
acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas!
São envenenadores, saibam eles ou não.
São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos
envenenaram, e dos quais a terra está cansada: que partam,
então!
Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas
Deus morreu, e com isso morreram também os ofensores.
Ofender a terra é agora o que há de mais terrível, e considerar mais altamente as entranhas do inescrutável do que o
sentido da terra!
Uma vez a alma olhava com desprezo para o corpo: e
esse desdém era o que havia de maior: — ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar ao corpo e
à terra.
Oh, essa alma mesma era ainda magra, horrível e faminta: e a crueldade era a volúpia dessa alma!
Mas também vós, irmãos, dizei-me: o que conta vosso
corpo sobre vossa alma? Não é ela pobreza, imundície e lamentável satisfação?
Na verdade, um rio imundo é o homem. É preciso ser um
oceano para acolher um rio imundo sem se tornar impuro.
Vede, eu vos ensino o super-homem: ele é este oceano,
nele pode afundar o vosso grande desprezo.
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Qual é a maior coisa que podeis experimentar? É a hora
do grande desprezo. A hora em que também vossa felicidade se converte em nojo para vós, assim como vossa razão e
vossa virtude.
A hora em que dizeis: “Que importa minha felicidade?
Ela é pobreza, imundície e lamentável satisfação. Mas minha felicidade deveria justificar a própria existência!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha razão? Procura ela o saber, como o leão seu alimento? Ela é pobreza,
imundície e lamentável satisfação!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha virtude? Ela
ainda não me fez delirar. Como estou cansado de meu bem
e meu mal! Tudo isso é pobreza, imundície e lamentável
satisfação!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha justiça? Não
estou me vendo a ser brasa e carvão. Mas o justo é brasa e
carvão!”.
A hora em que dizeis: “Que importa minha compaixão?
A compaixão não é a cruz em que pregam aquele que ama
os homens? Mas minha compaixão não é crucificação”.
Já falastes assim? Já gritastes assim? Ah, tivesse eu ouvido
gritardes assim!
Não o vosso pecado — a vossa frugalidade brada aos
céus, vossa avareza até no pecado brada aos céus!
Onde está o raio que venha lamber-vos com sua língua?
Onde está a loucura com que deveríeis ser vacinados?
Vede, eu vos ensino o super-homem: ele é esse raio, ele
é essa loucura! —
Depois de Zaratustra assim falar, alguém do povo gritou: “Já ouvimos bastante sobre o equilibrista; agora nos
deixa vê-lo!”. E todos riram de Zaratustra. Mas o equilibrista, que achava que as palavras se referiam a ele, pôs-se a
trabalhar.
4.
Mas Zaratustra olhou para o povo e se admirou. Então
falou assim:
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O homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem — uma corda sobre um abismo.
Um perigoso para-lá, um perigoso a-caminho, um perigoso olhar-para-trás, um perigoso estremecer e se deter.
Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio.8
Amo aqueles que não sabem viver a não ser como quem
declina, pois são os que passam.
Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes
reverenciadores, e flechas de anseio pela outra margem.
Amo aqueles que não buscam primeiramente atrás das
estrelas uma razão para declinar e serem sacrificados: mas
que se sacrificam à terra, para que um dia a terra venha a ser
do super-homem.
Amo aquele que vive para vir a conhecer, e que quer
conhecer para que um dia viva o super-homem. E assim
quer o seu declínio.
Amo aquele que trabalha e inventa, para construir a casa
para o super-homem e lhe preparar terra, bicho e planta:
pois assim quer o seu declínio.
Amo aquele que ama a sua virtude: pois virtude é vontade de declínio e uma flecha de anseio.
Amo aquele que não guarda uma gota de espírito para
si, mas quer ser inteiramente o espírito de sua virtude: assim
anda ele como espírito sobre a ponte.
Amo aquele que faz, de sua virtude, seu pendor e sua
fatalidade: assim quer ele, por causa de sua virtude, ainda
viver e não mais viver.
Amo aquele que não quer ter virtudes demais. Uma virtude é mais virtude do que duas, pois significa mais laços
em que a fatalidade pende.
Amo aquele cuja alma esbanja a si mesma, que não quer
gratidão e não devolve: pois ele sempre doa e não quer se
guardar.
Amo aquele que se envergonha quando o dado cai a seu
favor, e que então pergunta: sou um jogador desleal? — pois
ele quer perecer.9
Amo aquele que lança à frente dos seus atos palavras de
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ouro e faz sempre mais do que promete: pois ele quer o seu
declínio.
Amo aquele que justifica os vindouros e redime os passados: pois quer perecer devido aos presentes.
Amo aquele que açoita seu deus porque ama seu deus:10
pois tem de perecer da ira de seu deus.
Amo aquele cuja alma é profunda também no ferimento,
e que pode perecer de uma pequena vivência: assim passa
de bom grado sobre a ponte.
Amo aquele cuja alma transborda de cheia, de modo que
esquece a si próprio e todas as coisas estão nele: assim, todas as coisas se tornam seu declínio.
Amo aquele de espírito livre e coração livre: assim, sua
cabeça não passa de entranhas do seu coração, mas seu
coração o impele ao declínio.
Amo todos aqueles que são como gotas pesadas, caindo
uma a uma da negra nuvem que paira sobre os homens: eles
anunciam a chegada do raio, e como arautos perecem.
Vede, eu sou um arauto do raio e uma pesada gota da
nuvem: mas esse raio se chama super-homem. —
5.
Depois de falar essas palavras, Zaratustra olhou novamente para o povo e calou. “Aí estão eles e riem”, falou para
seu coração, “não me compreendem, não sou a boca para
esses ouvidos.
Será preciso antes partir-lhes as orelhas, para que aprendam a ouvir com os olhos? Será preciso estrondear como os
timbales e os pregadores da penitência? Ou acreditarão
apenas num homem que balbucia?
Eles possuem algo de que se orgulham. Como chamam
mesmo o que os faz orgulhosos? Chamam de cultura,11 é o
que os distingue dos pastores de cabras.
Por isso não gostam de ouvir a palavra ‘desprezo’ quando se fala deles. Então falarei ao seu orgulho.
Então lhes falarei do que é mais desprezível: ou seja, do
último homem.”
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