SAMBA E LOUCURA: UM OLHAR SOBRE A REDE DE SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL NO MUNICIPIO DO RIO DE JANEIRO/RJ-BRASIL Autores: GARCIA JUNIOR, Carlos Alberto Severo. Psicólogo, Mestre em Educação, Residente em Saúde Mental do segundo ano pelo Grupo Hospitalar Conceição – GHC. Contato eletrônico: [email protected], Brasil. NASCIMENTO, Paula Thais Avila do. Médica. Residente em Medicina de Família e Comunidade do segundo ano pelo Grupo Hospitalar Conceição – GHC. Contato eletrônico: [email protected], Brasil. Área: Saúde Pública e Coletiva Eixo: O Institucional: análise/ intervenção/ autoanálise e autogestão Proposta de trabalho: Trata-se de um relato de experiência a partir do exercício reflexivo de dois profissionais de saúde em formação acerca da vivência no cenário dos serviços de saúde mental do município do Rio de Janeiro. Conclusão: A partir desta experiência podemos nos deparar que o cenário dos serviços de saúde mental no Rio de Janeiro é marcado de um lado por ausência de cobertura mínima em cuidados primários e de outro por estratégias inovadoras e articuladas que visam o cuidado integral em saúde. SAMBA-ENREDO O enredo deste estudo se refere à experiência vivenciada, durante um mês por dois profissionais de saúde em formação, na rede de serviços de Saúde Mental do município do Rio de Janeiro. Um psicólogo, do programa de Residência Integrada em Saúde (RIS), da ênfase de Saúde Mental e, uma médica, do Programa de Residência de Medicina de Família e Comunidade (PRMFC), ambos vinculados ao Grupo Hospitalar Conceição (GHC), situado no município de Porto Alegre/RS/Brasil. Deste modo, com o propósito de conhecer as relações existentes entre os serviços da rede de Saúde Mental e da Atenção Básica cariocas, dois residentes lançamse à experiência oportunizada pelo período de estágio optativo de seus programas. Nosso primeiro movimento constituiu-se a partir de um contato com o supervisor institucional do Centro de Atenção Psicossocial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (CAPS/UERJ), o Professor Marco José Duarte. Foi através de um encontro com Marco na VIII edição deste mesmo Congresso que estabelecemos que o ponto de partida de nossa “expedição” seria o cenário interno do CAPS/UERJ e sua relação com os cenários externos da rede. Desta forma, escolhemos também o Rio de Janeiro como cidade para ser explorada. O Rio, no entanto, deu-nos suficientes motivos por sua representatividade histórica no país como palco de lutas políticas no campo da Saúde Coletiva, através dos movimentos da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica. Podemos destacar, neste contexto, a realização da I Conferência Nacional de Saúde Mental na UERJ em 1987, além da desinstitucionalização de milhares de usuários provenientes dos grandes hospitais psiquiátricos, a saber, a Colônia Juliano Moreira, Instituto Philippe Pinel e o Instituto Nise da Silveira. Interessados neste panorama histórico-político, partimos para uma jornada teórico-prático-reflexiva acerca das experiências institucionais de uma rede de saúde mental bem estruturada, como apostávamos que fosse a do Rio. Essa aposta baseava-se, também, em nossas curiosidades pessoais acerca do modo de funcionamento de uma rede de saúde que conseguisse efetivar uma integralidade de ações em saúde mental a partir da atenção básica. Como seria essa rede de serviços de saúde mental dedicada à desinstitucionalização de pacientes, ao tratamento a partir do seu território, aos cuidados primários, etc? Sabemos que grande parte do sofrimento psíquico continua sendo objeto do trabalho da atenção básica. À medida que existe um componente de sofrimento psíquico associado a toda e qualquer doença. Poderíamos dizer que todo problema de saúde é também mental, e que toda saúde mental é também produção de saúde. Por isso, apostamos na importante e necessária articulação da saúde mental com a atenção básica. Com estes questionamentos em mente, embarcamos no avião e tentamos nos deixar levar por um compasso, confluindo sensibilidade, observação do cotidiano, próximo daquilo que Spink (2008) sugere-nos: o pesquisador conversador do cotidiano. O mar do Rio Tudo começou com uma faixa. Avistamos do avião uma faixa de areia extensa que dividia o mar em duas metades que não se tocavam. Interrogamo-nos se era o Rio, ou melhor, se era o mar do Rio. Era. Já do alto, era o Rio dos contrastes, do cindido. Pousamos e descobrimos um Rio lindo. Do aeroporto do Galeão ao Morro Santa Teresa, onde ficamos hospedados, nos deparamos com um belo percurso. Uma cidade fundida, na qual entre a natureza e o concreto. A natureza como pano de fundo para a velocidade de um trânsito que tem hora e minuto. Encantados, perdemos de vista o tanto que somos capazes de absorvê-lo. Pontos e mais pontos que fazem o contorno desse Rio cheio de mar. Copacabana, Botafogo, Flamengo, Central do Brasil, Maracanã e os Arcos da Lapa. Quadras de samba, cenários cariocas. Dia de encontros Chegamos ao CAPS/UERJ, primeiro escutamos. Rede, fluxos, cuidado, oficinas, trabalhadores de saúde, equipe interdisciplinar e seus paradoxos. Estamos falando de um CAPS dentro de uma policlínica, a Policlínica Piquet Carneiro (PPC) da UERJ, ou seja, estamos dentro de um grande ambulatório. Conforme a Portaria nº 336 (BRASIL, 2002) no seu art. 3º, parágrafo único: “Os CAPS poderão localizar-se dentro dos limites da área física de uma unidade hospitalar geral, ou dentro do conjunto arquitetônico de instituições universitárias de saúde, desde que, independentes de sua estrutura física, com acesso privativo e equipe profissional própria.” Para além dos contra-censos institucionais, nos deparamos, com alguns belos encontros. Jânio que, atento à sua prolixidade, educadamente nos autoriza: “Se eu estiver importunando posso parar de falar”. Prolixidade cheia de vida que conflui teorias e experimentos, da descoberta dos diferentes tipos de cálcio até a frustrada tentativa de encontrar a cura para a AIDS. Um sujeito dócil, nos termos de Foucault (1987), que declara já estar 80 a 90% melhor de sua esquizofrenia. Um fumante inveterado que fala da “ternura do sabor” do sorvete de brigadeiro degustado no jogo no Maracanã. Conta feliz por entrar no estádio de futebol sem pagar e que, dos 60 mil torcedores, outros 10 mil eram não-pagantes como ele, por terem seus direitos de inserção social assegurados. Jânio está nesta parcela de incluídos. Inclusão esta construída ao longo das décadas de luta pelos direitos dos sujeitos com sofrimento psíquico, como bem nos apresenta Amarante (1997). “De normal ninguém fica perto” Instituto Nise da Silveira. Dois séculos de ruínas da loucura. Fomos guiados por Thiago, graduando em psicologia na UERJ, dentro do complexo, antes hospitalar, agora plural. Encontramos outros espaços, para além dos obsoletos leitos psiquiátricos. Como, por exemplo, o Grêmio do Nise, fundado e organizado pelos próprios usuários, onde na parede atrás da mesa de Cristina (mulher, militante, jornalista e escritora, co-fundadora do Grêmio) lê-se: “De normal ninguém fica perto”. Conforme Cristina, frase criada pelos usuários parodiando a famosa frase de Caetano. Além de acesso a jogos, revistas e livros, os usuários do Nise ainda contam com um brechó interno. Dentre as roupas do brechó, Cristina nos mostrou uma jaqueta de moletom cinza. Contou-nos que se tratava de parte do uniforme de uma usuária que trocara parte de suas “vestes nosocomiais” por roupas, digamos, mais livres. Propomos a ela a compra da jaqueta. Concordou com a condição de que contaríamos para as “outras pessoas que estudavam como nós” sobre a história daquela jaqueta. A interna libertou-se do uniforme. Os externos libertaram o uniforme da instituição. Diante da vida pulsante que os encontros no Nise nos revelaram, os sentimentos despertados nas visitas ao Pinel e à Colônia Juliano Moreira foram bastante distintos. Apesar dos grandes movimentos de desinstitucionalização dos usuários com sofrimento psíquico destes grandes “manicômios”, ainda evidenciam-se em ambas as instituições redutos da “loucura psiquiátrica”. E, também em contraste com àquele, considerando que o Instituto Nise da Silveira conta com dois CAPS (um CAPS II, o Clarice Lispector, e um CAPS AD, o Raul Seixas) e, que a partir destes Centros, articula o cuidado dos usuários com a Atenção Básica, tanto o Pinel quanto a Colônia, são referências em suas distritais para internação menos por encaminhamento dos postos de saúde do que por demanda espontânea via emergência. Seria normal, se não fosse tradicional Estamos de volta ao prédio onde se situa o CAPS/UERJ. Partimos para a exploração do enorme complexo da PPC, com muitos corredores e consultórios, quase todos de portas fechadas, deflagrando um atendimento ambulatorial, de acesso restrito e pontual. Deparamo-nos com o instituído inusitado, uma placa onde se lia: “PSF”. Surpresos, procuramos pelo local onde o Programa de Saúde da Família (PSF) funcionava e encontramos duas salas de portas fechadas. O “PSF” não estava em funcionamento. Ao final, foi-nos informado que o tal “PSF” prestava atendimento apenas nas terças-feiras. E mais: No retorno, descobrimos que a equipe do CAPS desconhecia a existência do PSF dentro da policlínica. Além de um CAPS, como seria possível a existência de um “PSF” dentro de uma policlínica? Como dispositivos tão importantes para a rede de saúde com tamanha proximidade espacial não possuíam nenhum tipo de diálogo? Interessante notar que esses estranhamentos, provocaram na equipe do CAPS uma série de reflexões acerca das relações (in)existentes entre Saúde Mental e Atenção Básica no município do Rio. O PSF, ou mais corretamente, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) iniciou seu processo de implantação recentemente no município. O Rio, ainda, conta majoritariamente com Unidades Básicas de Saúde (UBS) que trabalham de forma não articulada com a rede de serviços e realizam escassa cobertura da população carioca. Finalmente, tivemos a oportunidade de acompanhar a experiência do Apoio Matricial realizado pela Professora Doutora Sandra Fortes da UERJ, através do “Projeto Babel”. Mensalmente, há um encontro de um turno com a equipe de uma unidade de saúde para a discussão de casos e atendimentos. Acompanhamos seu trabalho junto ao ESF Casa Branca, na comunidade de mesmo nome. Esta experiência de certa forma ilustrou a iniquidade da cobertura dos serviços de saúde no Rio de Janeiro, município marcado de um lado por ausência de cobertura mínima em cuidados primários e de outro por estratégias inovadoras e articuladas que visam o cuidado integral em saúde. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARANTE, Paulo. Loucura, cultura e subjetividade: conceitos e estratégias, percursos e atores da reforma psiquiátrica brasileira. In: FLEURY, Sonia (org.) Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. p. 163-185. BRASIL. Ministério da saúde. Portaria nº 336/GM. Em 19 de fevereiro de 2002 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1987. SPINK, Peter. O pesquisador conversador no cotidiano. In: Psicologia & Sociedade: 20, Edição Especial: 70-77, 2008.