CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO
SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Coordenadores
Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr
Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges.
Organizadores
Prof. Dr. Fernando Gustavo Knoerr
Prof. Msc. Thiago Paluma
Revisão técnica
Paula Fernanda Pereira de Araújo e Alves
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO
SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
2013
Curitiba
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
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São Paulo
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Knoerr, Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos – Coordenadora.
Borges, Prof. Dr. Alexandre Walmontt – Coordenador.
Cidadania, desenvolvimento social e globalização.
Título independente.
Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.
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1. Direito Nacional – latino americano.
2. Pesquisadores - críticos.
I. Título.
ISBN 978-85-99651-81-0
CDD 341
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Produção Editorial: Editora Clássica
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Séllos
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
Apresentação
A coletânea jurídica “Cidadania, Desenvolvimento Social e Globalização” congrega distintos pesquisadores e críticos do Direito nacional e latino-americano. A união destes artigos compõe este trabalho, que além de analisar
institutos jurídicos, visa à efetivação de um direito voltado à sociedade e aos
objetivos da coletividade.
O primeiro artigo, de autoria de Ana Carolina Tomicioli Cotrim e João
Paulo Palmeira Barreto, versa sobre a importância da proporcionalidade na solução de conflito entre a liberdade de manifestação cultural brasileira e a proteção constitucional a fauna.
Thiago Paluma e Juliana Demori de Andrade discorrem acerca da propriedade intelectual como propulsora do desenvolvimento econômico e social,
por meio da análise jurídica e estudo comparado com outras realidades como
Japão, Coreia do Sul e Índia.
As novas leituras da sustentabilidade a partir da relação entre o direito
penal e o direito administrativo na proteção ambiental constituem o objeto de
pesquisa dos autores Sérgio Augusto Lima Marinho e Túlio Arantes Bozola.
Os autores Alexandre Walmott Borges, Alfredo José dos Santos e Luciana Campanelli Romeu estudam as alterações da ordem econômica da Constituição brasileira, uma análise das modificações materiais introduzidas pelo
constituinte derivado.
Fernando D’Alessandro apresenta seu trabalho acerca do crédito documentário, globalização e fraude, por meio do qual verifica a atual situação de
diversos polos econômicos mundiais.
Sérgio Augusto Lima Marinho, Rodrigo Pereira Moreira e Marco Aurélio
Nogueira expõem seus estudos sobre a cidadania e o direito à saúde, na forma
do dever jurisdicional de realização do direito à saúde na ausência de provas das
condições fáticas e jurídicas desfavoráveis.
Os direitos sociais, desde sua existência, fundamentabilidade e eficácia
dos direitos humanos de ter são analisados pelos autores Jean Carlos Barcelos
Martins e Maria Rosaria Barbato.
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O direito em novos paradigmas de cidadania é estudado por Eduardo
Rodrigues dos Santos e Luiz Carlos Figueira de Melo, desde o jusnaturalismo
ao pós-positivismo jurídico, pelos delineamentos para a construção de um novo
paradigma jurídico.
João Victor Rozatti Longhi escreve da estrutura à função da atividade
empresarial, sob o enfoque da função social da empresa, afirmando que o
direito deve estar sempre atento às transformações sociais, vez que é ciência
social aplicada.
O conceito de investimentos no âmbito do sistema internacional de
promoção o proteção de investimentos estrangeiros é estudado por Ivette Esis,
evidenciando que a interpretação dada pelos Tribunais Arbitrais é muito ampla.
Marta Pardini analisa a situação legislativa da Argentina frente aos
mecanismos alternativos de resolução de conflitos, sendo a arbitragem um meio
possível para a resolução de conflitos societários.
A cidadania e os aspectos críticos do processo penal são objetos de
estudos de Leandro Araújo Garcia, Marco Aurélio Nogueira e Mário Ângelo de
Oliveira Junior, a partir da Opinio Delicti midiática e sua repercussão às avessas
no processo penal.
Os autores Jean Carlos Barcelos Martins e Cícero José Soares Neto
apresentam seu trabalho acerca dos paradigmas brasileiros de distribuição de
renda como mecanismos de garantia de direitos fundamentais e da cidadania.
O processo legislativo colaborativo é estudado pelos autores Rubens
Beçak e João Victor Rozatti Longhi, pela participação pela internet no trâmite
do Projeto de Lei nº 2.126/2011, no que concerne à redação dos dispositivos que
tratam da responsabilidade dos provedores por conteúdo inserido por terceiros.
O sistema constitucional de crises é analisado por Alexandre Walmott
Borges, Carlos Eduardo Artiaga Paula e Moacir Henrique Júnior, trazendo a
estudo os institutos jurídicos dos estados de sítio e defesa.
Francisco Gómez Fonseca estuda uma abordagem para a proteção
internacional dos direitos dos agricultores, evidenciando a necessidade de se
adaptar os ordenamentos jurídicos à realidade agrícola.
Considerações gerais acerca da administração pública, do ativismo
judicial e do direito fundamental à saúde compõem o trabalho da Giovana
Gadia, que estuda o mínimo existencial e a reserva do possível.
Saulo de Oliveira Pinto Coelho analisa o direito ao desenvolvimento e
o desenvolvimento do direito por meio de reflexões sobre os problemas metajurídicos referentes do direito fundamental ao desenvolvimento democrático.
Jorge Fontoura e Luiz Eduardo Gunther apresentam sua pesquisa
sobre a natureza jurídica e a efetividade das recomendações da Organização
Internacional do Trabalho.
6
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A erradicação da exploração da mão-de-obra infantil no Brasil é estudada
por Fernando Gustavo Knoerr e Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr, como uma
questão de respeito à dignidade humana.
Francisco Cardozo Oliveira e Marileia Tonietto analisam as limitações
jurídicas e socioeconômicas à consolidação da agricultura familiar através do
arcabouço legal agrário e suas implicações na dinâmica social do campo.
O risco pan coletivo é apresentado pelos autores Edson Fischer e Fábio
André Guaragni, a partir do estudo da sociedade de risco e da nova qualidade
de risco sob a ótica do direito penal.
O artigo escrito por Wilson Carlos de Campos Filho e Miguel Kfouri Neto,
estuda as limitações constitucionais ao princípio da livre iniciativa, tomando
como fundamento o princípio da dignidade humana e a cláusula de boa-fé.
O último artigo, de João Victor Rozatti Longhi e Rubens Beçak, versa
sobre o processo legislativo colaborativo, por meio da participação pela internet
no trâmite do projeto de Lei nº 2.126/2011, como marco civil da internet.
Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas abordados
neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.
Viviane Coêlho de Séllos Knoerr
Doutora em Direito do Estado pela PUC/SP, Mestre em Direito das Relações Sociais pela
PUC/SP, Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP. Advogada. Professora
Universitária em Graduação e Pós-Graduação é professora a atualmente, também coordenadora
do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA-PR.
Alexandre Walmott Borges
Doutor e Mestre em Direito pela UFSC. Atualmente é professor do programa de pós graduação,
mestrado e especialização, e da graduação em direito da Universidade Federal de Uberlândia
UFU. É diretor de pós-graduação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
Pró-Reitoria de pesquisa e de pós-graduação.
Fernando Gustavo Knoerr
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. É Professor do Programa de Mestrado
em Direito do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e Professor de Direito
Administrativo da Escola da Magistratura do Paraná
e da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná.
Thiago Paluma
Doutorando em Direito Internacional pela Universidad de Valencia – España.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, Especialista em Direito e
Graduado pela Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade
Federal de Uberlândia. Professor de Direito Internacional Privado da Universidade
Federal de Uberlândia e da Faculdade Pitágoras de Uberlândia.
7
Sumário
APRESENTAÇÃO..................................................................................................... 05
A IMPORTÂNCIA DA PROPORCIONALIDADE NA SOLUÇÃO DO CONFLITO
ENTRE A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO CULTURAL BRASILEIRA E A
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA
Ana Carolina Tomicioli Cotrim e João Paulo Palmeira Barreto .........11
A PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO PROPULSORA DO DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO E SOCIAL
Thiago Paluma e Juliana Demori de Andrade ............................................33
NOVAS LEITURAS DA SUSTENTABILIDADE: A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO
PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL
Sérgio Augusto Lima Marinho e Túlio Arantes Bozola ........................57
ALTERAÇÕES DA ORDEM ECONÔMICA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA.
ANÁLISE DAS MODIFICAÇÕES MATERIAIS INTRODUZIDAS PELO CONSTITUINTE DERIVADO
Alexandre Walmott Borges, Alfredo José dos Santos e Luciana
Campanelli Romeu ............................................................................................ 75
CREDITO DOCUMENTARIO; GLOBALIZACIÓN Y FRAUDE
Fernando G. D´Alessandro ........................................................................... 95
CIDADANIA E DIREITO À SAÚDE: DEVER JURISDICIONAL DE REALIZAÇÃO
DO DIREITO À SAÚDE NA AUSÊNCIA DE PCIDADANIA E DIREITO À SAÚDE:
DEVER JURISDICIONAL DE REALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NA AUSÊNCIA
DE PROVAS DAS CONDIÇÕES FÁTICAS E JURÍDICAS DESFAVORÁVEIS
Sérgio Augusto Lima Marinho, Rodrigo Pereira Moreira e Marco
Aurélio Nogueira.............................................................................................. 115
DIREITOS SOCIAIS: EXISTÊNCIA, FUNDAMENTABILIDADE E EFICÁCIA DOS
DIREITOS HUMANOS DE TER
Jean Carlos Barcelos Martins e Maria Rosaria Barbato ...................139
O DIREITO EM NOVOS PARADIGMAS DE CIDADANIA: DO JUSNATURALISMO
AO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: DELINEAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO
DE UM NOVO PARADIGMA JURÍDICO
Eduardo Rodrigues dos Santos e Luiz Carlos Figueira de Melo.......169
DA ESTRUTURA À FUNÇÃO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL: A FUNÇÃO
SOCIAL DA EMPRESA
João Victor Rozatti Longhi ...........................................................................201
EL CONCEPTO DE INVERSIÓN BAJO EL SISTEMA INTERNACIONAL
DE PROMOCIÓN Y PROTECCIÓN DE INVERSIONES FORÁNEAS
Ivette Esis V. ........................................................................................................216
LA SITUACIÓN LEGISLATIVA ARGENTINA FRENTE A LOS MECANISMOS
ALTERNATIVOS DE RESOLUCIÓN DE CONFLICTOS
Marta G. Pardini ................................................................................................228
CIDADANIA E ASPECTOS CRÍTICOS DO PROCESSO PENAL: OPINIO DELICTI
MIDIÁTICA E SUA REPERCUSSÃO ÀS AVESSAS NO PROCESSO PENAL
Leandro Araújo Garcia, Marco Aurélio Nogueira e Mário
Ângelo de Oliveira Junior .............................................................................245
OS PROGRAMAS BRASILEIROS DE DISTRIBUIÇÃO DE RENDA COMO
MECANISMO DE GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DA CIDADANIA
Jean Carlos Barcelos Martins, Cícero José Alves Soares Neto e
Alexandre Walmott Borges ..........................................................................260
PROCESSO LEGISLATIVO COLABORATIVO: A PARTICIPATIVIDADE PELA
INTERNET NO TRÂMITE DO PROJETO DE LEI Nº 2.126/2011 (MARCO
CIVIL DA INTERNET)
Rubens Beçak e João Victor Rozatti Longhi ............................................283
SISTEMA CONSTITUCIONAL DE CRISES NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 (ESTADOS DE SÍTIO E DEFESA)
Alexandre Walmott Borges, Carlos Eduardo Artiaga Paula e
Moacir Henrique Júnior ..................................................................................308
UNA APROXIMACIÓN A LA TUTELA INTERNACIONAL DE LOS DERECHOS
DE LOS AGICULTORES
Francisco Gómez Fonseca ...............................................................................337
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO FUNDAMENTAL
À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES GERAIS
Giovana Gadia ....................................................................................................358
O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO:
REFLEXÕES SOBRE OS PROBLEMAS META-JURÍDICOS REFERENTES DO
DIREITO FUNDAMENTAL AO DESENVOLVIMENTO DEMOCRÁTICO
Prof. Dr. Saulo de Oliveira Pinto Coelho (Ufg) ....................................388
NATURALEZA JURÍDICA Y EFECTIVIDAD DE LAS RECOMENDACIONES DE LA
ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO
Jorge Fontoura e Luiz Eduardo Gunther .................................................403
ERRADICACIÓN DE LA EXPLOTACIÓN DE LA MANO DE OBRA INFANTIL EN
BRASIL: UNA CUESTIÓN DE RESPECTO A LA DIGNIDAD HUMANA
Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e Fernando Gustavo Knoerr .......417
LIMITAÇÕES JURÍDICAS E SOCIOECONÔMICAS À CONSOLIDAÇÃO DA
AGRICULTURA FAMILIAR
Francisco Cardozo Oliveira e Marileia Tonietto ................................436
SOCIEDADE DE RISCO, NOVA QUALIDADE DE RISCO – RISCO PAN COLETIVO
E DIREITO PENAL
Edson Fischer e Fábio André Guaragni ......................................................456
LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA
Wilson Carlos de Campos Filho Miguel Kfouri Neto ..........................471
PROCESSO LEGISLATIVO COLABORATIVO: A PARTICIPATIVIDADE PELA
INTERNET NO TRÂMITE DO PROJETO DE LEI Nº 2.126/2011 (MARCO CIVIL
DA INTERNET)
Rubens Beçak e João Victor Rozatti Longhi ............................................492
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A IMPORTÂNCIA DA PROPORCIONALIDADE NA SOLUÇÃO DO CONFLITO
ENTRE A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO CULTURAL BRASILEIRA E A
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA
Ana Carolina Tomicioli Cotrim
Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, advogada, especialista em Gestão Ambiental pela Faculdade Católica de Uberlândia, pós graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera/UNIDERP, Especialista em Direito da Administração
Pública pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestranda em Direito
pela UFU. E-mail: [email protected]
João Paulo Palmeira Barreto
Bacharel em Direito Pela Potíficia Universidade Católica de Goias -PUC-GO. Advogado, pós Graduado em direito penal e processo penal PUC-SP. Pós Graduado em Direito Público pela Facudade Damasio de Jesus.
Pós graduando em Direito da Administração Pública pela Univerdade
Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]
1. INTRODUÇÃO
Recentemente a mídia brasileira exibiu a notícia de que um novilho
teve que ser sacrificado após ter participado de uma prova na maior e mais
tradicional festa de peão do país. O animal, usado no bulldog, modalidade
“esportiva” em que o peão tem que derrubar e imobilizar o animal apenas com
a força dos braços, teve o pescoço quebrado durante a realização da prova, no
dia 19 (dezenove) de agosto de 2011.
Impossibilitado de mover suas pernas em decorrência da lesão cervical
sofrida, o novilho teve que ser retirado da arena com o auxílio de peões e uma
carroça, sendo sacrificado minutos após, ali mesmo, no recinto conhecido como
Parque do Peão.
O fato do médico veterinário, Dr. Marcos Sampaio de Almeida Prado,
responsável pelo tratamento dos animais da Festa do Peão de Barretos, justificar
ser raro esse tipo de acontecimento na festa, não diminui a brutalidade ocorrida,
tão menos apaga a natureza de crime ambiental cometido contra o animal
durante a realização da tradicional manifestação popular do interior paulista.
Os maus tratos sofridos por animais nesse tipo de exteriorização cultural
não são raros. Ao contrário do que defendem alguns praticantes de “esportes”
que envolvem animais, a ocorrência de lesões e até mesmo o decorrente
sacrifício de animais são frenquentes durante as festas populares e os treinos
que antecedem as apresentações.
11
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O fato ocorrido durante a Festa do Peão de Barretos apenas exterioriza
uma prática assídua e antiga, presente não só na cultural brasileira, mas também
na mundial, em que animais são usados, muitas vezes de forma cruel, para o
fortalecimento e a manutenção da identidade cultural de um povo.
No Brasil, as formas mais expressivas da supracitada espécie de
manifestação cultural são os rodeios, em sentido amplo, as rinhas de galo, as
apresentações circenses, as vaquejadas e a farra do boi. Todas as formas de
expressão cultural mencionadas tem origem secular, e baseiam-se na cultura
alienígena, principalmente na Européia, em razão da das fortes influências
herdadas pelo processo de colonização.
A discussão do tema é polêmica. Envolve posicionamentos opostos, e,
do ponto de vista jurídico, trata-se de um tema conflituoso, uma vez que tais
eventos levam à colisão simultânea de dois princípios constitucionais, além de
colocar em xeque a filosofia ecocêntrica vivida atualmente.
De um lado, defensores do princípio constitucional de proteção à fauna
questionam o atual modelo antropocêntrico de submissão do meio ambiente
aos exclusivos interesses humanos. Por outro lado, defensores da dignidade da
pessoa humana defendem a liberdade nas manifestações culturais como forma
de expressão da cultura de um povo e garantia de um direito fundamental do
homem.
Neste ínterim, pesquisadores afirmam que ter o conhecimento da
história local de um povo é de fundamental importância para conceber a
sua identificação, além do mais, é a cultura de uma determinada região que
engrandece o espírito de seus habitantes e expressa a dignidade da pessoa
humana garantida constitucionalmente. Entretanto, acreditamos que, no caso
concreto, quando uma manifestação cultural se depara com outros interesses,
como, por exemplo, a proteção contra a crueldade em animais, tal liberdade
de expressão cultural deve ser limitada, de forma a garantir que a cultura local
não fira outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados e não dissipe a
brutalidade para com os seres vivos não-humanos.
2. MANIFESTAÇÕES CULTURAIS BRASILEIRAS
Como conceito genérico e abstrato, o termo “cultura” pode ser definido
sob diferentes perspectivas teóricas. A perspectiva mais comum é a visão
antropocêntrica de cultura, entretanto, nada impede que a análise e conceituação
do termo se dê, de acordo com o estudo e a necessidade, sob os aspectos ético,
religioso e filosófico.1
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.153.
1
12
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O primeiro conceito de cultura que se tem registro é do antropólogo
britânico Edward B. Tylor, formulado no final do século XIX. Para o estudioso,
o termo cultura compreende “todo o complexo que inclui o conhecimento, as
crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões
adquiridos pelo homem como membro da sociedade”.2
Como visto, aos incluir em seu conceito a expressão “ adquiridos pelo
homem”, Tylor rompe a vinculação existente entre o elemento humano cultural
e o elemento biológico, sintetizando a tendência crescente do pensamento da
época em que a cultura construia-se sobre aquilo que é aprendido, e não sobre
as características genéticas herdadas dos antepassados3.
Ao determinar que o evolucionismo da cultura se dá de forma
uniforme e linear desconsiderando-se a possibilidade de um relativismo
cultural, o conceito do antropólogo britânico passa a receber inúmeras críticas.
Hodiernamente, tal concepção ainda não se apresenta bem aceita por estudiosos.
Estes, apenas reconhecem a existência de um evolucionismo cultural apenas
quando tal evolucionismo ocorre dentro de uma abordagem multilinear, na
qual cada cultura desenvolve-se apartir dos eventos histórios enfrentados por
determinados povos.4
Adotando a moderna abordagem multilinear, o Ministério da Cultura do
Brasil, não adota um conceito uniforme de cultura brasileira, mas, ao contrário,
afirma que o país conta com uma imensa, rica e variada gama de manifestações
culturais popular, devendo estas serem compreendidas como as maneiras de ser,
agir, pensar e expressar dos diferentes segmentos da sociedade estejam eles em
áreas rurais, quanto urbanas.5
A conceituação do órgão ministerial demonstra o forte pluralismo cultural
existente no país ainda nos dias atuais. Pode-se afirmar que o processo de povoamento
do território brasileiro, responsável pela fusão de nativos indígenas com europeus
colonizadores e africanos escravizados, promoveu a formação de um mosaico de
conhecimentos e crenças, artes e costumes, acarretando na heterogeneidade cultural
e impossibilitando a afirmação da existência de uma manifestação cultural nacional
única, dominante em toda a extensão territorial brasileira.
Wikipédia: Cultura. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura >. Acesso em: 26
ago. 2011.
3
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. apud. BAHIA, Carolina
Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna.
p.154.
4
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.154.
5
BRASIL, Ministério da Cultura. Manifestações culturais populares. Disponível em: <http://
www.cultura.gov.br/site/pnc/diagnosticos-e-desafios/manifestacoes-culturais />. Acesso em: 26
ago. 2011.
2
13
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Entretanto, ao contrário do que poderia se imaginar, a heterogeneidade
tem grande importância no cenário cultural, pois, é pluralismo o responsável por
garantir a liberdade individual de escolha dos valores culturais a serem seguidos
e por assegurar a permanência da diversidade cultural que compõem a cultura
brasileira, tornando-o uma das mais ricas e diversificadas do mundo.6 Neste mesmo sentido, defendem os adeptos da dignidade da pessoa
humana, para os quais a pluralidade de manifestações culturais determinam o
conhecimento da história local de um povo, sendo de fundamental importância
para conceber a identificação daqueles que ali viveram. Além do mais, é a
cultura de uma determinada região que engrandece o espírito de seus habitantes
e expressa a dignidade da pessoa humana garantida constitucionalmente.
1.1 DIREITO FUNDAMENTAL À CULTURA E A GARANTIA CONSTITUCIONAL DE
LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO CULTURAL
Constituindo um direito fundamental, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1.988, em seus artigos 215 e 216, assegura a todos os
brasileiros o direito à cultura, além de garantir a liberdade de manifestação
cultural como expressão deste direito.
No art. 215 acima mencionado, o constituinte determina que o Estado
tem por obrigação assegurar o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso
às fontes de culturas nacional a todos os brasileiros. No mesmo sentido
continua o dispositivo ao determinar que caberá ao Estado o apoio e o incentivo
à valorização e difusão das manifestações culturais, bem como a proteção das
manifestações das culturas populares indígenas, afro-brasileiras e das demais
manifestações oriundas de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
Enquanto direito fundamental pode-se afirmar que, de acordo com a
leitura do artigo constitucional, o direito à cultura pressupõe duas dimensões. A
primeira delas é a dimensão de liberdade de ação cultural, enquanto a segunda
constitui- se das diversas prestações positivas do Estado para a efetivação do
acesso eficaz à cultura.
Na primeira dimensão, a liberdade de ação cultural assume o caráter de
direito de defesa ao assegurar determinadas posições subjetivas do indivíduo
em face do Estado. Nesta situação, o Estado não tem o poder de impedir que
o indivíduo viva de acordo com os valores de sua cultura e expresse qualquer
atividade cultural, desde que não seja vedada por lei.7
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.160.
7
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
6
14
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Já no âmbito da segunda dimensão, as prestações positivas impõem
ao Estado a obrigatoriedade de apoio às manifestações culturais, bem como
o incentivo de valorização e da difusão dessas. Também constitui prestação
positiva obrigatória Estatal a proteção das manifestações culturais oriundas de
grupos civilizatórios nacionais.8
Apesar da garantia do direito fundamental à cultura, a Constituição
Federal foi omissa ao não estabelecer um conceito do termo “cultura”. No art.
216 do supracitado documento legal o legislador se conteve em mencionar quais
os bens constituidores do patrimônio cultural brasileiro. Assim, de acordo com
o texto constitucional, constituem patrimônio brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, cujos quais são
portadores de referências a identidade, a ação e a memória dos diversos grupos
formadores da sociedade brasileira.
Através do art. 216, nota-se que a constituição, apesar de acolher uma
concepção abrangente de cultura tutelando tanto os bens materiais quanto os
imateriais, restringiu a extensão antropológica do termo cultura. Desta forma,
nem tudo que constitui cultura do ponto de vista antropológico ingressa na
compreensão cultural constitucional.9
Contudo, a Constituição Federal de 1.988 manifesta a mais aberta forma
de liberdade cultural, pois, não estabelece censura nem limites, determinando,
apenas, restrições para a prática de atividades culturais que por confrontarem
a moral e os bons costumes são vedadas por lei. O constituinte, segundo as
palavras de José Afonso da Silva, ao garantir o direito à cultura e a liberdade
de manifestação cultural permitiu ao homem uma vivência plena dos valores
que revelam o espírito humano e o sentido da vida através dos objetos e das
projeções criativas.10
1.2 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS BRASILEIRAS E A UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS
Inserida no mosaico cultural nacional, há algumas manifestações
populares tradicionais que utilizam a fauna como finalidade recreativa. Dentre
as formas mais expressivas encontramos as práticas enquadradas dentro “ciclo
do boi”, as rinhas de galo e as apresentações circenses.
As manifestações culturais populares que utilizam bovinos recebem a
conotação de “ciclo do boi”. Dentre tais modalidades estão inseridas a farra do
na proteção da fauna. p.158.
8
Idem, p. 158.
9
SILVA, José Afonso da. apud. BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas
manifestações culturais e na proteção da fauna. p.157.
10
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 255.
15
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
boi, os rodeios em sentido amplo, as vaquejadas, o bumba-meu-boi e o boi-demamão. Das manifestações citadas, trabalharemos apenas com aquelas que, por
utilizar o boi in natura, acarretam atos de maus tratos e crueldade com a fauna.
A análise iniciara com a farra do boi, seguida posteriormente das
vaquejadas e dos rodeios em sentido amplo.
Originária do povoamento da costa litorânea do Estado de Santa
Catarina pelos luso-brasileiros a partir da segunda metade do século XVII e da
ocupação efetiva pelos “casais açorianos” em meados do século XVIII, a farra
do boi constitui uma das práticas mais antigas e cruéis vigente no território
nacional11.
Praticada tradicionalmente durante a Semana Santa e raramente no
período natalino, festa de casamento ou aniversário, a farra do boi se divide
em quatro modalidades, todas elas passando por quatro etapas inicias bem
semelhantes entre si.
As quatro modalidades encontradas no território nacional são: boi-navara, boi-no-arame, boi-solto e boi-mangueirado.
O boi-na-vara constitui a modalidade de farra do boi mais antiga
que se tem notícia em terras brasileiras. Registros datados do ano de 1896 já
mencionam a prática cultural que hoje praticamente não existe mais no litoral
catarinense.12
Outra espécie é o boi-no-arame. De ocorrência rara, trata-se do
acorrentamento do boi a um comprido fio de arame, onde os farristas investem
atos de crueldade em favor do animal preso.13
A terceira modalidade, ainda predominante no litoral catarinense, é
o boi-solto. Tal espécie causa grandes alardes e preocupações uma vez que
o animal é solto pelas ruas das cidades e este, assustado e dolorido com os
ferimentos, passa a investir nas pessoas, o que gera estado de correria e tumulto
na comunidade, além de possíveis tragédias envolvendo morte e lesões de
humanos.14
A última espécie é o boi-mangueirado. Aceito e recomendado pelo
Estado de Santa Catarina, ocorre nas áreas mais urbanizadas e nas zonas de
veraneios, onde uma determinada área é cercada ficando a platéia do lado de
fora se divertindo com as acrobacias dos toureiros improvisados.15
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.166.
12
Idem, p.169.
13
Ibid.
14
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.169
15
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.169.
11
16
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Em todas as quatro modalidades apresentadas pode-se distinguir quatro
etapas da farra do boi, quais sejam: a constituição da lista de sócios, a escolha
do boi, a soltada e o sacrifício. A fase preparatória que dá início à farra do boi é
a constituição de uma lista de pessoas, que se reúnem para levantar a verba para
a aquisição do animal, que após a farra terá sua carne dividida entre os farristas.
Em algumas regiões somente os homens podem ser sócios da farra, enquanto
em outros há farras exclusivamente femininas.16
Elaborada a lista, o grupo de farristas se dirige até as fazendas para a
escolha e compra do animal, sendo o mais adequado o boi bravo, que desperta
perigo e medo nos farristas. Ajustada a compra, o animal é entregue no local da
farra, que recebem o boi com festas regadas de buzinas e foguetes. Depois de um
tempo o animal é solto, e passa a ser alvo de correrias, pegas, provocações com
gritos e varas até que surja um ambiente no qual o boi mostra-se enfurecido e os
farristas transpiram o medo e tensão. Normalmente os atos da soltada duram até
a sexta-feira da paixão, ocorrendo o sacrifício do animal na manhã de sábado.
Após o sacrifício a carne é dividida comunitariamente entre os sócios os quais
a levam para casa a fim de que seja comida durante o domingo de páscoa, ou
também chamado pelos farristas de domingo gordo.17
Como visto, não resta duvidas de que a farra do boi é uma manifestação
violenta, geradora de maus tratos e atos de crueldade, capazes de provocar
consequências físicas e alterações psíquicas nos animais utilizados para
tal fim. Do mesmo modo, é nítida a percepção de que o instituto da farra do
boi constitui uma forma de manifestação da cultura catarinense derivada do
processo colonizador português e açoriano, e como tal deve ser assegurada e
protegida pelo Estado. Diante da colisão de direitos fundamentais o Superior
Tribunal Federal foi chamado a apreciar o caso no 3. MEIO AMBIENTE E A PROTEÇÃO DA FAUNA
A fauna, compreendida como o conjunto de todos os animais que
vivem em uma determinada região, ambiente ou período geológico18, pode ser
considerada atualmente como o mais importante indicador da biodiversidade
terrestre, uma vez que, segundo a zoologia dominante, a quantidade e a variedade
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.175.
17
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.176.
18
Portaria IBAMA -93-N de 07.07.1998, que dispõe sobre a importação e exportação de
espécimes vivos, produtos e subprodutos da fauna silvestre brasileira e da fauna silvestre exótica,
define o conceito de fauna em seu art. 2°.
16
17
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
das espécies animais existentes em uma determinada região são diretamente
proporcionais à quantidade e a qualidade da vegetação ali existente.19
Tradicionalmente, a preocupação dos estudiosos em relação à proteção
da fauna se mantem vinculada às possíveis situações que acarretam a extinção
das espécies e o consequente desequilíbrio ecológico local, regional e até
mesmo nacional.
O próprio sistema de conservação da fauna brasileira, baseado no §1°,
VII, do art. 225 da Constituição Federal, determina que os critérios de manejo
adequado da fauna devem visar, apenas, a existência dos animais, evitar a
extinção de espécies raras e, sobretudo, preservar a diversidade e a integridade
do patrimônio genético faunístico do país.20
Entretanto, hodiernamente, com o nascedouro das ideologias advindas
da teoria da ecologia profunda21, a comunidade científica e até mesmo a própria
sociedade passaram a questionar o comportamento humano em face das demais
espécies de vida existentes. Diante disto, o foco dos estudos relacionados à fauna
e até mesmo o sistema de conservação desta, ganham novas dimensões, ao passo
que, cada vez mais, justifica-se a necessidade de manutenção da dignidade no
trato e na preservação dos animais não humanos, sendo inadmissível, nos dias
atuais, a execução de práticas que submetam outros seres à crueldade.
3.1 A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NO PROTECIONISMO ANIMAL
A proteção dos animais não constitui uma prerrogativa do homem
contemporâneo. A cerca de quarto mil anos atrás, já era possível encontrar
registros de proteção à fauna. Os primeiros documentos mundiais referentes ao
trato animal a que se tem notícia remontam ao Código de Hamurabbi, em 1.780
a.C, e ao papiro egípcio de Kahon, escrito no mesmo período histórico. Em
ambos os documentos havia a previsão de regras comportamentais e obrigações
humanas destinadas ao cuidado e a saúde dos animais.22
No Brasil, as primeiras normas relacionadas à proteção faunística
derivam do período colonial, mais precisamente do ano de 1.603, com a redação
das Ordenações Filipinas. Em tal documento, havia regulamentações para o
combate da caça e pesca predatória, uma vez que, sendo a alimentação uma
das necessidades fundamentais de todos os seres vivos e inexistindo legislação
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. p. 256.
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. p. 197.
21
O termo ecologia profunda foi desenvolvido pelo filósofo norueguês Arne Naess para
determinar a ecologia que inclui o homem como parte integrante do meio ambiente natural. Se
contrapõe ao antropocentrismo e subdivide-se em biocentrismo e ecocentrismo.
22
ACKEL FILHO, Diomar. Direito dos animais. p. 26.
19
20
18
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
pertinente à atividade alimentar, as singelas atividades pesqueira e de caça
acabaram por concretizar incontáveis desastres no equilíbrio ambiental.
Trezentos anos mais tarde, o Código Civil de 1.916 retratou novamente
a fauna nos documentos legislativos brasileiros, porém, até 1.967, ano de edição
da Lei 5.179, referente à proteção da fauna, os animais eram tratados apenas sob
a perspectiva patrimonial e os delitos contra a fauna eram considerados crime
contra a propriedade.
A grande evolução no trato e preservação animal adveio com a
promulgação da Constituição da República Federativa de 1.988. O citado
documento inovou perante as demais Constituições nacionais e mundiais
ao instituir um Capítulo destinado exclusivamente a proteção ambiental23,
garantindo ao povo brasileiro um meio ambiente ecologicamente equilibrado
e impondo ao Poder Público, em todas as suas esferas, e a sociedade como um
todo a obrigatorieadade de defesa e preservação ambiental, de modo que as
presentes e futuras gerações desfrutem de uma sadia qualidade de vida.
O art. 225, §1°, VII da Constituição supracitada consagrou o rpincípio da
proteção jurídica dos animais contra a crueldade, assegurando de forma reflexa a
efetividade do direito intergeracional de meio ambiente equilibrado e da qualidade
de vida ao dispor que caberá ao Poder Público a proteção da fauna, sendo vedadas
as práticas que coloquem em risco a função ecológica desta, bem como provoquem
a extinção de espécies ou submetam animais a qualquer forma de crueldade.
Da redação do disposivo, conclui-se que é prerrogativa do Estado
brasileiro a proteção contra atos cruéis, maus tratos e abandono para com
todos os animais irracionais, independente da sua função ecológica, habitat,
nacionalidade ou risco de extinção destes, pois, apesar de possuírem finalidades
diversas, tanto os animais domésticos, quanto os domesticáveis, os exóticos e
os selvagens devem receber a mesma proteção estatal, já que, independente de
sua classificação, estão sujeitos as mesmas dores e sofrimentos gerados por atos
de maus tratos e crueldade.24
Destarte, ao referir-se genericamente à proteção dos animais contra
atos de crueldade de forma indistinta, a Carta Magna vigente rompe com a
visão patrimonialista de natureza, assumindo caráter bicêntrico, visto que, além
de conciliar o desenvolvimento econômico ao bem estar humano e a proteção
jusfundamental do meio ambiente sadio25, tutela os animais não só pela sua
escassez ou valor de mercado, mas também, pela capacidade funcional que
estes assumem26.
Constituição Federal de 1988, Título VIII, Da ordem Social, Capítulo VI, Do Meio Ambiente.
PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. p.227.
25
LEVAI, Laerte Fernando.Crueldade Consentida: a violência humana contra os animais e o
papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada. p. 04.
26
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
23
24
19
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Ainda do dispositivo constitucional supracitado, verifica-se que
o legislador não intencionou atribuir aos animais personalidade jurídica,
provovendo-os à categoria de sujeitos de direito, ao contrário, quis o constituinte
garantir a tutela contra atos de crueldade e maus tratos, uma vez que, a proteção
da fauna demonstra-se como um interesse juridicamente relevante.27
Além de promover um avanço nos cuidados com a fauna, a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988 influenciou a criação
de dois importantes institutos de efetivação da proteção e preservação da fauna:
o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) e
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). De
igual modo, o art. 225, da Carta Magna serviu como base para a propositura
e o desenvolvimento da Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1.998, popularmente
conhecida como Lei de Crimes Ambientais.
A lei 9.605/98 está divida em uma parte geral e uma parte específica.
Na parte específica situam-se dos artigos 29 a 37, os crimes cometidos
especificadamente contra a fauna.
Por entender que a seção normativa supramencionada compila todas
as infrações ambientais contra a fauna, a maioria da doutrina se posiciona
no sentido de que a Lei de crimes ambientais revogou tacitamente os demais
crimes contra a fauna previstos nas leis 5.197/67 (Lei de proteção à fauna,
também conhecido como Código de Caça) e 7.679/88, que proíbe a pesca
mediante a utilização de explosivos, bem como o Decreto-lei 3.668/41, que traz
as contravenções penais contra atos de maus tratos animais. A única exceção de
revogação legislativa pela lei de crimes ambientais é a lei 7.643/87, que proíbe
a pesca de cetáceos em águas jurisdicionais brasileiras.28
Para o trabalho em questão nos restringiremos ao estudo dos crimes
faunísticos envolvendo atos de crueldade e maus tratos durante a realização de
manifestações culturais populares brasileiras.
3.2 NEO-UTILITARISMO E BEM ESTAR ANIMAL
Antes de entrarmos na teoria neo-utilitarista do filósofo americano
Peter Singer, é necessário fazer uma digressão da relação homem - animal, de
forma que, entendendo a sistemática existente ao longo dos anos possamos
compreender a importância que a teoria singeriana exerce na legislação
brasileira referente aos maus tratos e atos de crueldade contra a fauna.
na proteção da fauna. p.180.
27
Idem, p.179-180.
28
GARCIA, Leonardo de Medeiros; THOMÉ, Romeu. Direito ambiental: princípios e
competências constitucionais na lei 6.938/81; lei 4.771/65; lei 9.985/00 e lei 9.605/98. p.337.
20
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Os primeiros registros do ponto de vista jurídico da relação homemanimal advêm dos ensinamentos gregos. Em uma ordem cronológica,
primeiramente se destacam os ensinamentos de Hesíodo, o qual pregava a
separação entre seres de natureza racional e irracional. Os primeiros tinham
como representantes os humanos, e estes, pelo fato de serem racionais deveriam
ser sujeitos de proteção legal. Já os seres de natureza irracional, dentre os quais
se destacam os animais, por serem desprovidos de intelecto não mereciam ser
sujeitos de proteção jurídica.29
Em um segundo momento, Pitágoras influencia o pensamento de
autores como Plutarco, Ovídio, Sêneca e Porfírio, os quais demonstram em suas
obras uma grande preocupação com os animais, chegando inclusive a defender
o vegetarianismo.30
Retrocedendo no pensamento protecionista animal, Aristóteles,
considerava que os seres vivos estavam dispostos em uma ordem hierárquica,
sendo que os seres inferiores deveriam servir ao ser dotado de razão.31
A idéia Aristotélica de utilização da razão como critério distintivo entre
os sujeitos de direitos e os excluídos desse universo, expandiu-se anos afora,
sendo aceita pelos romanos, retomada pelos medievais e usada posteriormente
a favor da filosofia judaico-cristã.32
Com o advento do Renascimento, séculos XV e XVI, houve a
recuperação dos valores grego-romanos e o homem passou, novamente, a ser
considerado o centro do universo, entretanto, neste mesmo período, cientistas
como Leonardo da Vinci e Giordano Bruno se contrapunham ao pensamento
dominante ao destacar a pequenez humana diante do universo, manifestando
repúdio as práticas que envolviam crueldade com animais.33
Com as descobertas de Copérnico e Galileu a fragilidade humana
restou acentuada. Em sentido contrário, cientistas modernos como Francis
Bacon e Descartes, recuperaram a filosofia de dominação do homem sobre a
natureza. Descartes afirmava que os sentimentos moravam na alma, e por serem
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p. 88.
30
FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer
em defesa dos animais. p.42.
31 Para Aristóteles o único ser dotado de razão é o homem, sendo excluídos do grupo pensante
os escravos, os metecos, as mulheres, os infantes e os dotados de distúrbios mentais, uma vez que
estes eram considerados como seres desprovidos de razão própria (FELIPE, Sônia T. Por uma
questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer em defesa dos animais. p.44)
32
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas
e aos animais. p. 37.
33
FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer
em defesa dos animais. p.51-53.
29
21
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
desprovidos de alma, os animais jamais poderiam ter capacidade de sofrer. O
pensamento cartesiano justificou durante anos a utilização dos animais em
proveito do homem, mediante quaisquer atos de crueldade.34
Anos mais tarde, as descobertas da anatomia comparada e a evolução das
espécies de Charles Darwin demonstraram as semelhanças anatômicas existentes
entre a estrutura dos animais humanos e dos não-humanos. Outrossim, estudos
com material genético provaram cientificamente a proximidade entre o homem e
os grandes primatas, colocando em xeque a filosofia cartesiana que afirmava serem
os humanos seres infinitamente superiores aos não humanos e que os últimos, por
desprovirem de alma, detinham a capacidade de não sentir dor.35
Restou clara a singularidade humana através de estudos cientificamente
comprovados, tornando insustentável a tese de superioridade genética do
homem em relação aos animais. Influenciados por este contexto, um grupo
de filósofos da faculdade de Oxford, nos Estados Unidos, liderados por Peter
Singer retomaram na década de 70 do século passado as discussões sobre a
capacidade dos animais não-humanos sentirem dor36. Os estudos de Singer e
sua equipe proporcionaram o nascimento de uma tese protecionista animal,
denominada neo-utilitarismo.
Por volta do ano de 1.970, baseado nas descobertas da anatomia
comparada e nos estudos da evolução das espécies de Charles Darwin que
demonstravam as semelhanças anatômicas existentes entre a estrutura dos
homens e dos animais, o filósofo norte-americano Peter Singer desenvolveu
uma tese ao qual denominou de neo-utilitarismo.
A teoria singeriana teve como base a teoria utilitarista desenvolvida
no século XIX por Jeremy Benthan, John Stuart Mill e James Mill, na qual
procurava-se maximizar a utilidade e a felicidade em prol do bem comum. Na
teoria desenvolvida por Singer, a busca do bem comum amplia-se, a fim de
compreender não apenas o bem estar dos humanos, mas também dos animais, os
quais, segundo ele, seriam capazes de sentir dor e prazer tanto quanto os homens.37
A justificativa da teoria neo-utilitarista reside no princípio da igual
consideração de interesses. Segundo este princípio, a nossa preocupação para
com os “outros”38 não deve depender de como esses outros são e quais as
aptidões por eles desenvolvidas, mas sim sobre a capacidade de sofrimento por
eles sentida.39
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas
e aos animais. p. 41.
35
Idem, p. 155 e 168, respectivamente.
36
FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer
em defesa dos animais. p. 78.
37
SINGER, Peter. Ética Pratica. p.67.
38
O termo “outros”, na visão do autor, inclui tanto os humanos aunto os não-humanos.
39
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
34
22
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Com este pensamento, Singer criticar duramente a doutrina clássica
até então vigente, cujo o critério de proteção jurídica decorria da consideração
moral e das capacidades de razão e linguagem desenvolvidas pelo seres. Para
o filósofo, o simples fato dos animais não pertencerem a espécie humana não
traduz necessariamnete um baixo coificiente de inteligência, tão menos uma
menor capacidade sensitiva de dor e prazer, o que injustificaria sua exploração
em prol dos interesse humanos.40
Tal justificativa decorre de inúmeros estudos desenvolvidos por
profissionais das mais diversas áreas, os quais, em sua maioria absoluta,
comprovaram que os animais sentem dor, frio e fome, além de desenvolverem
sentimentos de amor, companheirismo e solidariedade parecidos com os dos
humanos. Estudos mais avançados também demonstram a capcidade intelectual
dos animais não-humanos, comprovando que algumas espécies de golfinhos,
macacos e cachorros detem um elevado coeficiente de inteligência.41
A vertente de defesa e protecionismo animal desenvolvida por Peter
Singer recebeu a denominação de “Animal Welfare”, em português “bemestar animal”. Tal corrente tem como fundamento o tratamento humanitário e a
eliminação de qualquer forma de sofrimento que seja desnecessária os animais.
A filosofia “welfarista” apresenta-se bem aceita nos dias atuais42,
pois, ao trabalhar apenas com a garantia de um mínimo exitencial aos animais,
deixando de conferir-lhes direitos fundamentais de vida, liberdade e integridade
física, todas as preocupação recaem apenas sobre os maus-tratos e a matança
dolorosa e injustificada dos animais, permitindo desta forma, a mantutenção de
interesses econômicos humanos, exigindo-se apenas que em tais atividades não
se permita maus-tratos e atos de crueldade para com os animais.
Na contramão da filosofia neo-utilitarista de bem estar animal, surge
nos Estados Unidos da América por volta da década de 80 do século passado
a tese de extensão de direitos morais a animais, devido a um parâmetro de
coerência que deve obrigatoriamente ser observado entre todos os seres que
possuem determinadas capcidades e qualificam-se como sujeitos de uma vida.43
Tal teoria sustenta a necessidade de garantia de um mínimo existencial
tal qual defende a teoria neo-utilitarista de Singer, entretanto, a tese de extensão
de direitos de Tom Regan propõe que além de cessar o sofrimento dos animais
é necessário que as leis em sentido amplo garantam a concessão de direitos
na proteção da fauna. p.98.
40
SINGER, Peter. Ética Pratica. p.67.
41
RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito & Os Animais, Uma Abordagem Ética, Filosófica e
Normativa. p. 59.
42
Idem. p.207.
43
FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer
em defesa dos animais. p14.
23
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
fundamentais de vida, liberdade e preservação da integridade física aos
animais44.
No Brasil, a extensão de direitos fundamentais a animais não-humanos
encontra forte resistência doutrinária e até mesmo jurisprudencial. Para a maioria
dos doutrinadores brasileiros a proteção dos animais existe apenas e tão somente
com o intuito de proteger os interesses humanos, sendo que, apenas uma minoria
dos cientistas pátrios defende e evoca os ensinamentos de Regan ao entender
que os animais, independente de sua classificação taxonômica, são seres vivos
com personalidade autônoma sui generis, devendo, portanto, ser protegidos como
sujeitos de direito, uma vez que são dotados de percepção e sensações.45
Apesar das críticas ao “welfarismo”, a legislação brasileira de
protecionismo à fauna46 adota como fundamento a teoria neo-utilitarista de bem
estar animal de Peter Singer, garantindo aos animais apenas, e não por isso
menos importante, a impossibilidade de que atos humanos lhes acarretem maus
tratos e crueldade.
3.3 DEFINIÇÃO LEGAL DE CRUELDADE E AS CONSEQUÊNCIAS DOS MAUS TRATOS
GERADOS PELO ABUSO NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
O decreto 24.645, de 10 de julho de 1.934, referente às medidas de proteção
animal definia em seu art. 3° os atos configuradores de maus tratos. Entretanto, a
Lei de crimes ambientais editada posteriormente e responsável pela revogação do
referido decreto não estabeleceu nenhuma definição legal para o termo crueldade,
tão pouco elencou os atos passíveis de expor animais a maus tratos.
Diante desta lacuna legislativa, alguns autores como Edna Cardoso
Dias entendem que a concepção de crueldade prevista no decreto 24.645
não foi revogada, podendo ser aplicada atualmente47, entretanto este não é o
posicionamento da maioria da doutrina, tão menos dos Tribunais Superiores, o
qual, diante da ausência conceitual legislativa tem buscado conceitos definidos
ora pela própria língua portuguesa, ora por renomados estudiosos.
De acordo com o dicionário Aurélio de língua portuguesa, o termo
crueldade reporta-se àquele que se compraz em fazer mal, em ser desumano,
pungente, doloroso, sanguinolento.48
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p.101.
45
RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito & Os Animais, Uma Abordagem Ética, Filosófica e
Normativa. p.77.
46
Trata-se da legislação em sentido amplo, abrangendo todas as espécies normativas que tem
como objeto a preservação e proteção da fauna.
47
DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. p. 157.
48
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3°ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1993.
44
24
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Já para a doutrina há dois conceitos que por serem ao mesmo tempo
amplo e detalhado vem sendo utilizados tanto por estudiosos do ramo jurídico
quanto por aplicadores do direito49.
O primeiro conceito é o do renomado lingüista brasileiro Antenor
Nascentes, que, no dicionário de sinônimos da editora Nova Fronteira definiu
crueldade como sendo a qualidade de cruel; sevícia como sendo a crueldade
ferina e feralmente, no plural, significando maus tratos. Assim, crueldade na visão
de Nascentes assume um significado amplo, genérico, abrangendo em si outras
modalidades de violência como abusos, maus tratos, ferimentos e mutilações.50
O outro conceito, formulado por Helita Barreira Custódio, define
crueldade como sendo toda ação ou omissão dolosa ou culposa, em locais
públicos ou privados, que envolvam atos de matança cruel pela caça abusiva,
desmatamentos ou incêndios criminosos, poluição ambiental, experiências
científicas, abates atrozes, castigos violentos e adestramentos por meios de
instrumentos torturantes. Ainda de acordo com a autora, constitui crueldade
quaisquer outras condutas impiedosas que resultem em maus tratos e que,
consequentemente, submetam animais a sofrimentos decorrentes de lesões
corporais, a invalidez, a angústia, a excessiva fadiga ou a exaustão.51
Diante do apresentado constata-se que, embora o significado de
crueldade não se apresente legalmente nas normas nacionais referentes à
proteção da fauna, o judiciário tem se valido dos pressupostos hermenêuticos e
dos avanços da doutrina para não se omitir diante da lacuna legislativa.
No que se refere às consequências dos maus tratos gerados em
animais após o cometimento de atos de crueldade, não resta dúvidas tão menos
divergência de opinião entre os estudiosos: são extremamente devastadoras seja
no físico quanto no psíquico dos animais.
Estudos promovidos pela professora Irvênia Luiza de Santis Prada52,
sob a forma analógica e de observações neuroatômicas e comportamentais,
revelaram que a organização morfofuncional de todos os mamíferos e o sistema
nervoso destes estruturam-se de forma comum, diferentemente do que pensava
a etologia53 clássica. Ainda segundo estudos da equipe da douta professora, o
sistema nervoso não só dos mamíferos, mas de todos os animais vertebrados
são organizados segundo o mesmo modelo: medula espinhal, tronco encefálico,
Neste sentido, STF: ADI 2514/SC, STJ: Resp 1.115.916/MG e TRF da 4° Região: Apelação cível
2006.70.00.009929-0/PR
50
LEVAI, Laerte Fernando. Crueldade Consentida: a violência humana contra os animais e o
papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada. p. 02.
51
CUSTÓDIO, Helita Barreira. Crueldade contra animais e a proteção destes como relevante
questão jurídico-ambiental e constitucional. p.66.
52
Professora da cadeira de Anatomia da Universidade de São Paulo- USP,
53
Etologia pode ser entendida como o estudo dos comportamentos.
49
25
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
cérebro e cerebelo54. É claro que há variações anatômicas do sistema nervoso de
uma espécie para outra, entretanto, o modelo é basicamente o mesmo.
Para doutora da cadeira de Anatomia da Universidade de São PauloUSP, o psiquismo dos animais é muito rico, compreendendo a vivência de
sensações, sentimentos e sofrimentos.55
Conclui-se através dos resultados supracitados que: por ser o sistema
nervoso de todo vertebrado compreendido pelo mesmo modelo e sendo o
homem uma das espécies de vertebrados, as mesmas sensações de dor, angústia,
fadiga e exaustão sentidas pelos humanos são sentidas também pelos demais
vertebrados não humanos.
Assim, não resta dúvidas que os maus tratos e atos de crueldade
acarretam tanto dores físicas, quanto consequências psíquicas nos animais
utilizados como instrumentos de atividades recreativas.
4. A PONDERAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS
A proporcionalidade, apontada por alguns doutrinadores como regra,
por outros como princípio e por outros ainda como postulado, vem crescendo
cada vez mais em importância no Direito Brasileiro, uma vez que, atua como
instrumento de controle dos atos do Poder Público em seu sentido negativo, e
como meio impeditivo à omissão ou atuação insatisfatória do Estado, em seu
aspecto positivo.56
Oriunda do século XIX, a idéia de proporcionalidade foi introduzida
inicialmente por administrativistas alemães às normas relativas ao poder de
polícia e seus limites. Anos mais tarde, mais precisamente em 1.949, com a
vigência da Lei Fundamental da Alemanha, a idéia de proporcionalidade foi
inserida na esfera jurídico-constitucional, sendo aceita tanto pela doutrina,
quanto pela jurisprudência alemã.57 Atualmente, a aplicação mais valorativa do
instituto pode ser observada no campo do Direito Constitucional.
Herdeira das novas tendências hermenêuticas, principalmente do
método concretizador de Hesse, a proporcionalidade admite a importância dos
valores na interpretação constitucional, bem como, valoriza as circunstâncias
fáticas do caso concreto para a solução dos conflitos normativos.58
PRADA, Irvênia Luiza de Santis. A alma dos animais.p.26.
LEVAI, Laerte Fernando. Crueldade Consentida: a violência humana contra os animais e o
papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada. p. 02.
56
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 27.
57
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p. 76.
58
Idem, p. 74.
54
55
26
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Apesar do reconhecimento de sua importância na solução de conflitos
normativos, grande parte dos doutrinadores ainda diverge quanto à sua natureza
e fundamento jurídicos.
Para a maioria da doutrina, a proporcionalidade é compreendida como
um princípio edificante do Estado de Direito. Neste sentido, Cristiane Derani
a define como sendo um princípio orientador, sem conteúdo próprio e usado
apenas como instrumento de busca pelo justo, aplicado às relações concretas
nas quais deve-se optar pela prevalência de alguns princípios em detrimento
de outros.59 Na mesma linha da autora, destacam-se Gilmar Ferreira Mendes,
Canotilho, Paulo Bonavides e Daniel Sarmento.
Virgílio Afonso da Silva ao contrário, defende a proporcionalidade
como uma regra de interpretação e aplicação do direito, cujo objetivo principal
é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões
desproporcionais. Nas próprias palavras do autor, trata-se de uma restrição às
restrições.60
Um terceiro posicionamento sobre a natureza jurídica da proporcionalidade
advém do douto professor Humberto Ávila, o qual atribui ao instituto a classificação
de postulado normativo aplicativo, sendo empregado apenas nos casos em que há
uma relação de causalidade entre um meio e um fim.61
No que tange ao fundamento jurídico da proporcionalidade, novamente
a doutrina diverge. Para sua grande maioria, liderada por Gilmar Ferreira
Mendes e Canotilho, o fundamento jurídico da proporcionalidade reside no
Estado Democrático de Direito.
Há, entretanto, uma minoria que sustenta ser o fundamento da
proporcionalidade decorrente de inúmeros dispositivos constitucionais, dentre
eles o que estabelece a dignidade da pessoa humana, o princípio da reserva legal
e da proteção judiciária. Neste sentido defendem Paulo Bonavides e Suzana de
Toledo Barros.62
Virgílio Afonso da Silva vai à contramão de ambos os posicionamentos
acima mencionados ao afirmar que a regra da proporcionalidade não encontra
seu fundamento em dispositivos legais de direito positivo, ao contrário, decorre,
de forma lógica e racional, da própria estrutura dos direitos fundamentais.63
Diferentemente das divergências que reinam sobre sua natureza
jurídica e fundamentação, a estrutura do instituto da proporcionalidade é aceita
DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos. p.163.
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 24.
61
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 145.
62
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p. 81.
63
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 43.
59
60
27
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
de forma pacífica pela doutrina, sendo inclusive admirada pela racionalidade
com que soluciona os conflitos normativos perante o caso concreto.
Dividida estruturalmente em três sub-regras, ou elementos, a
proporcionalidade clama pela observância da adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito.
Adequação, segundo Humberto Ávila, nada mais é que a relação
empírica na qual o meio deve levar à realização de um fim.64 Ainda segundo
o autor, os meios escolhidos pelo administrador ou legislador para o alcance
do fim podem variar quantitativamente, qualitativamente ou probalisticamente,
uma vez que, o meio variará de acordo com o caso concreto apresentado. A
única exigência, segundo o autor, reside no fato de que o meio escolhido para o
caso concreto seja suficiente para que se alcance um determinado fim.65
Virgílio Afonso da Silva entende que adequado é o meio cuja utilização
para a realização de um objetivo é fomentada, independentemente se o meio
escolhido foi completamente realizado ou não.66
No que tange à necessidade, esta pode ser compreendida como a escolha
do meio mais suave dentre os diversos meios disponíveis. Em outras palavras,
deve-se primar pela escolha do meio que afete de forma mínima bens e valores
constitucionalmente protegidos, quando estes, por ventura, vierem a colidir
com outros bens e valores fundamentais consagrados na norma interpretativa.67
Já a proporcionalidade em sentido estrito nada mais é que a comparação
entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição dos direitos
fundamentais.68 Nas palavras de Virgílio Afonso da Silva, proporcionalidade
em sentido estrito é o sopesamento entre a intensidade da restrição do direito
fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que
com ele colide e fundamenta a adoção da medida restritiva.69
Vale lembrar que para Robert Alexy a adequação e a necessidade são
elementos que relacionam-se com a possibilidade fática dos princípios, enquanto
que a proporcionalidade em sentido estrito, relaciona-se com a relativização de
um princípio em face das possibilidades jurídicas.70
Para a maioria da doutrina os três elementos supracitados, quais sejam, a
adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, concretizam
a proporcionalidade como um dos instrumentos mais eficazes de solução de
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 167.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 171.
66
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 36.
67
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p. 80.
68
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 175.
69
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 40.
70
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. p.117.
64
65
28
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
conflitos concretos, pois, a subsidiariedade dos elementos e a ordem predefinida
de observação fazem com que a estrutura jurídica da solução dos conflitos se dê
de forma racional, evitando-se com isto, a ocorrência de possíveis injustiças na
decisão do caso concreto.
4.1 CONCLUSÕES
O Direito Ambiental, ou Direito do Ambiente71 constitui um dos novos
ramos jurídicos e considerando que os “novos direitos” apresentam-se como
direitos apenas prima facie, pode-se ressaltar a importância da proporcionalidade
como instrumento de otimização desses direitos no plano concreto.72
Tal afirmação reside no fato dos direito fundamentais terem como
característica o princípio da relatividade ou limitabilidade. Segundo o
princípio referido, não existem direitos fundamentais absolutos, pois todos
encontram limites em outros direitos também consagrados na Constituição, tão
pouco existe hierarquia entre tais direitos, sendo impossível afirmar que um é
superior a outro. Se não houvesse a limitabilidade, os direitos fundamentais
seriam obrigatoriamente considerados como absolutos, e, assim sendo, jamais
seria possível ocorrer a ponderação principiológica entre dois ou mais direitos
conflitante no caso concreto, pois aquele princípio de maior hierarquização
sempre iria prevalecer em face dos direitos com valoração inferior.
No caso em tela, verifica-se a importância do instituto da ponderação
principiológica diante da colisão de dois direitos fundamentais, ambos derivados
do direito fundamental de vida digna. A proporcionalidade vem justamente
para solucionar a colisão do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado com o direito à liberdade de manifestação cultural. A necessidade
da utilização da ponderação para solução do caso concreto, justifica-se segundo
duas fundamentações. Advém da própria conflituosidade dos novos direitos
biodifusos e da necessidade de se empregar os elementos da proporcionalidade
como mecanismo para se atingir uma decisão de melhor qualidade e mais
protegida contra o arbítrio estatal.73
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. p.54.
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e
na proteção da fauna. p. 147.
73
Idem, p.146.
71
72
29
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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32
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO PROPULSORA DO
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL
Thiago Paluma74
Juliana Demori de Andrade75
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Atualmente, o conhecimento humano e o fruto de sua capacidade
inventiva têm se mostrado como um dos produtos mais bem remunerados,
tendo em vista que é necessário, via de regra, anos de investimento e pesquisa
para a criação de novas técnicas.
Os países detentores de modernas tecnologias valem-se dessa situação
confortável e através do comércio desse valioso produto auferem lucros
extraordinários. O Brasil, por exemplo, no ano de 200876, segundo dados do
INPI, movimentou dois bilhões quatrocentos e vinte e oito milhões de dólares
em remessas ao exterior por transferência de tecnologia.
O efetivo investimento em pesquisa, por parte da iniciativa pública ou
privada, revela uma característica importante que aponta o nível de crescimento
econômico e social do país, ou que pelo menos esse país esteja caminhando
rumo a um futuro com desenvolvimento pleno. Comprova-se esta afirmação,
vislumbrando-se os números a seguir apontados.
Enquanto o Brasil em 2010 registrou no USPTO (United States Patent
Trade Office)175 patentes, Israel obteve 1.819, Coréia do Sul 11.671, Índia
1.098, Japão 44.814 e EUA 107.792 patentes77. Esses cinco últimos países estão
entre os maiores exportadores de conhecimento do mundo, e o lucro gerado
com essas tecnologias permitem a realização de investimentos em áreas sociais,
como educação, saúde e melhores condições de trabalho.
. Advogado Sócio do Escritório Demori e Paluma Advogados Associados. Professor do Curso
de Direito da Faculdade Pitágoras-Uberlândia e de diversos cursos de Pós-Graduação (lato sensu)
em Uberlândia e Região. Mestre em Direito pela UFU. Doutorando em Direito Internacional
Privado pela Universitat de València – Espanha. Membro pleno da Asociación Americana de
Derecho Internacional Privado. Email: [email protected]
75
Advogada Inscrita na OAB/MG e Sócia de Demori e Paluma Advogados Associados.
Professora do curso de Direito da UNIPAC-Uberlândia. Especialista em Direito Tributário
pelo IBET (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e em Direito Público pela Universidade
Católica Dom Bosco. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia. Email:
[email protected]
76
Dados disponíveis em <http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/contrato/pasta_estatisticasnew-version/remessas_html-new-version-new-version>. Acesso em: 17 set. 2011.
77
USPTO. Patent Counts by Country/State and Year. USPTO. Disponível em <http://www.uspto.
gov/web/offices/ac/ido/oeip/taf/cst_utl.pdf>. Acesso em: 15 set. 2011.
74
33
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Ao longo deste capítulo será demonstrada, primeiramente, a relação entre
o Desenvolvimento e a propriedade intelectual. Em um segundo momento,
abordar-se-á a inserção do tema Desenvolvimento no Acordo TRIPS/OMC, que,
atualmente, é a principal norma jurídica sobre o tema Propriedade Intelectual
na esfera internacional. Por fim, será realizado um estudo das bem-sucedidas
experiências do Japão, Coréia do Sul e Índia, o que permitirá uma análise
comparativa com a realidade brasileira e a política e legislação nacional sobre
o tema.
2. RELAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E O DESENVOLVIMENTO
Para iniciar o presente tópico faz-se necessária uma remissão ao
pensamento de Amartya Sen. Como exposto anteriormente, o desenvolvimento
é liberdade e para alcançá-lo é necessário que se removam as fontes que privam
esta liberdade78. Dessa forma, o Estado deve combater problemas estruturais (de
ordem social, econômica e política), tais como: pobreza, poucas oportunidades
econômicas, má-distribuição de renda, ineficiência na prestação de serviços
públicos, interferências internacionais, ordenamento jurídico adequado e
instituições públicas (administrativas ou judiciais) sólidas. A melhor prestação
desses serviços e a atuação mais eficiente do Estado possibilitará a constituição
de um plano de desenvolvimento equilibrado e sustentado.
No que tange às interferências internacionais excessivas pode-se citar
a imposição da continuidade da dependência dos países em desenvolvimento
ou com menor desenvolvimento relativo em relação aos países desenvolvidos,
que se dá através de acordos que visam uma maior proteção dos direitos à
propriedade intelectual, como os TRIPS-Plus e TRIPS-Extra.
O acordo TRIPS, sem dúvida, constitui-se como um importante
instrumento de proteção da propriedade intelectual em nível internacional,
porém, os países desenvolvidos, descontentes com algumas lacunas existentes
neste Acordo, forçam os países menos desenvolvidos, principalmente os
emergentes, a assinarem tratados que disponham sobre um nível de proteção
superior a estabelecida no TRIPS (TRIPS-Plus) ou em que “abram mão” de
suas brechas e salvaguardas.
Os professores Luiz Otávio Pimentel e Welber Barral, sobre a pressão
dos países desenvolvidos em elevar os padrões de proteção da propriedade
intelectual nos demais países, explicam que:
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
p. 18.
78
34
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A corrente de Sherwood postula que os países subdesenvolvidos devem
aumentar a proteção à propriedade intelectual para obterem benefícios
substanciais, como investimentos, tecnologia e, em geral, um crescimento
econômico do país79.
O aumento da proteção como garantia de desenvolvimento, por
supostamente estimular a produção tecnológica é, segundo opinião dos
supracitados professores, um sofisma. A efetiva transferência de tecnologia é o
único meio capaz de gerar desenvolvimento, se conjugada conjuntamente com
políticas de investimentos em novas tecnologias80.
Conforme exposto no segundo capítulo deste trabalho existem instrumentos
internacionais fortemente comprometidos em proteger os direitos de propriedade
intelectual. Da mesma forma, tais instrumentos são, em sua maioria, eficientes no
que tange à vigilância dos países-membros quanto à observância das disposições
pactuadas. Kelly Bruch, Débora Hoff e Eveline Brigido ressaltam que:
[...] a questão que se apresenta é como os países que não são líderes na
produção de tecnologia podem adotar políticas públicas para a promoção
do desenvolvimento, sem violar os tratados dos quais são partes81.
Os países em desenvolvimento possuem a difícil tarefa de gerarem
desenvolvimento sem infringirem as disposições dos tratados firmados,
como é o caso do TRIPS. Dessa forma, políticas públicas juridicamente bem
estruturadas devem ser criadas simultaneamente às elaborações de normas
jurídicas condizentes com a realidade de cada Estado, de forma que todas
as brechas e possibilidade de flexibilidade dos tratados internacionais sejam
eficientemente utilizadas.
Um eficiente instrumento para limitar o poder econômico de grandes
corporações que utilizam os direitos de proteção da propriedade intelectual
PIMENTEL, Luiz Otávio; BARRAL, Welber (Org.). Propriedade Intelectual e
Desenvolvimento. Florianópolis: Editora Fundação Boiteux, 2007, v. 1. p. 26.
80
Daniel Rocha Corrêa com base nos ensinamentos econômicos trazidos por Schumpeter afirma
que “[...] a tecnologia, sob a forma de inovação, poderá ser favorável também para o processo do
desenvolvimento econômico. Conforme Joseph A. Shumpeter já assinalou, o desenvolvimento é
um processo de mudança espontânea e descontínua que supõe o emprego de inovações.” CORRÊA,
Daniel Rocha. “Política tecnológica e defesa da concorrência”. In.: OLIVEIRA, Amanda Flávio de
(Coordenadora). Direito econômico – evolução e institutos: obra em homenagem ao professor
João Bosco Leopoldino da Fonseca: Rio de Janeiro: Forense, 2009. Págs. 97-126.
81
BRUCH, Kelly Lissandra; HOFF, Débora Nayar; BRIGIDO, Eveline Vieira. Propriedade
Intelectual: Desenvolvimento e governabilidade nos países em desenvolvimento. In: BARRAL,
Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio; CORREA, Carlos M. Direito, Desenvolvimento e Sistema
Multilateral de Comércio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 188.
79
35
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
para auferir cada vez mais lucros, como o monopólio na exploração, é a licença
compulsória.
No caso do Brasil, a licença compulsória de patentes que sejam
de interesse público82 possui respaldo em vários artigos constitucionais e
infraconstitucionais83. Porém, qualquer justificativa baseia-se no princípio da
supremacia do interesse público sobre o privado. Este princípio faz com que a
medida governamental seja considerada justa e legal. Na esfera internacional
tais medidas são previstas, conforme exposto em momento anterior, pelo
TRIPS. Outra forte justificativa que deve ser considerada é a preservação da
livre-concorrência84.
Não restam dúvidas que a produção de tecnologia própria ou a transferência
de tecnologia advinda de Estados estrangeiros gera desenvolvimento econômico
para o país receptor, mesmo que esse desenvolvimento refira-se apenas ao lucro
gerado pelo aumento ou melhora na produção. César Flores, quanto à relação
entre os benefícios estatais advindos de investimentos privados, leciona que:
A economia mundial cresce a cada dia e toma proporções assustadoras,
inviabilizando uma divisão entre o interesse público, desenvolvimento
do Estado, o interesse privado, e melhora na produção industrial. A cada
dia, o volume de recursos gerados pela iniciativa privada influencia mais
no desenvolvimento da economia estatal85.
Todavia, a grande questão fica na seara do desenvolvimento social
e na alienação gerada pela dominação dos países detentores de capital e
tecnologias de ponta em relação aos países menos desenvolvidos. Um aumento
de arrecadação, momentâneo, advindo da aplicação de uma técnica importada
para uma produção já existente é esperado. Porém, com o passar dos anos, não
havendo investimentos em pesquisa concomitante à importação de técnicas, a
dominação e dependência são cada vez maiores.
O desenvolvimento tecnológico é um dos meios para se chegar ao
desenvolvimento social e econômico86. No entanto, a relação de domínio e
Podem ser citados, a título de exemplo, como interesse público: saúde, desenvolvimento
tecnológico, proteção à genética da flora e fauna brasileira, dentre outros interesses.
83 Ver arts. 68 a 74 da Lei de Propriedade Industrial e art 5º, Incisos XXIII e XXIX da Constituição
Federal.
84
Ver arts. 2°, V e 195 da Lei de Propriedade Industrial
85
FLORES, César. Contratos Internacionais de Transferência de Tecnologia. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003. p. 88.
86
A respeito da situação de subjugação tecnológica dos países pobres, temos o competente e
sempre oportuno pensamento de Celso D. de Albuquerque Mello. Para o ilustre jurista:
“Um dos grandes problemas do Direito Internacional Econômico e a nova ordem econômica
internacional é a transferência de tecnologia que os países ricos só transferem aos pobres quando
82
36
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
dependência tecnológica gera um círculo vicioso, principalmente quando
essa transferência de tecnologia não vem acompanhada de investimentos em
pesquisa, como a criação de centros de P&D, e uma sólida relação de cooperação
científica ou tecnológica, entre governos ou entre a iniciativa pública e privada87.
Mesmo antes da criação do Acordo TRIPS, os países em desenvolvimento
ou com menor desenvolvimento relativo propunham uma maior flexibilidade
dos acordos internacionais, para que eles também conseguissem se desenvolver
tecnologicamente até mesmo a partir de técnicas já existentes no mercado. É de
interesse dos países desenvolvidos que os períodos de proteção e exclusividade
para exploração da propriedade intelectual sejam cada vez maiores, pois dessa
forma os países destituídos da tecnologia ficam por mais tempo dependentes.
Outra relação que deve ser analisada é a existente entre a soberania88
dos países e a dependência tecnológica. A dependência tecnológica gera
consequentemente a dependência econômica, principalmente, quando a
tecnologia que o Estado menos desenvolvido necessita encontra-se inserida
em sua cadeia produtiva. Um país não será totalmente independente na esfera
internacional, enquanto, por exemplo, ele negociar outras questões com um
país que seja o produtor da tecnologia que é básica e essencial para sua principal
fonte de produção industrial.
Exemplo de norma que se possuísse aplicabilidade seria extremamente
vantajosa para os países menos desenvolvidos é a do item 2 do artigo 66 do
Acordo TRIPS. Ela estabelece a necessidade dos países desenvolvidos de
ela se encontra ultrapassada. (...) A transferência de tecnologia realizada na sociedade internacional
não atende aos países pobres e sofre uma série de críticas: a) quando ela é realizada, não beneficia
toda a sociedade do Estado, mas é feita apenas em proveito de uma filial ou subsidiária de uma
empresa cuja matriz está no exterior. A transferência ficou restrita a verdadeiras ilhas no Estado
pobre; b) a transferência é quase sempre de técnicas consideradas obsoletas; c) existe uma
diferença entre “técnica” e “tecnologia” (...) É claro que os países ricos preferem transferir a técnica
e não a tecnologia; d) critica-se ainda que a tecnologia transferida nem sempre é a que atende
as necessidades do desenvolvimento; e) o preço da transferência é muito elevado para os países
pobres; f) o processo de transferência aumenta a dependência dos países pobres”. MELLO, Celso
D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 12 ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2000. Vol. II. p. 1604.
87
Para um estudo mais aprofundado no que tange à Propriedade Intelectual e a transferência
de tecnologia nas Universidades, é de leitura obrigatória a obra “Propriedade Intelectual e
Universidade”, de Luiz Otávio Pimentel. PIMENTEL, Luiz Otávio. Propriedade Intelectual e
universidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.
88
“[...] pode-se conceituar soberania como o poder que um povo possui de, com base em
fundamentos jurídicos máximos, ou seja, por ação da vigência de instituições formalizadas no
âmbito da Constituição, autogovernar-se dentro da circunscrição de um território com poder
supremo não se submetendo a qualquer outro ordenamento normativo superior visto que
mantém uma relação com outros entes de Direito Internacional de coordenação, horizontalidade
e não de submissão, baseada na percepção e aceitação de igualdade entre os mesmos.” FÉLIX,
Luiz Fernando Fortes. Soberania e ‘Risco Brasil’. In.: GUERRA, Sidney; SILVA, Roberto Luiz.
Soberania: Antigos e Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004. p. 186-187.
37
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
concederem “incentivos a empresas e instituições de seus territórios com o
objetivo de promover e estimular a transferência de tecnologia aos países de
menor desenvolvimento relativo, a fim de habilitá-los a estabelecer uma base
tecnológica sólida e viável”.
Os países menos desenvolvidos, membros da OMC, possuem como
obrigação, mesmo que gozando de um prazo maior, de adequar-se ao Acordo
TRIPS89. Em contrapartida, os países desenvolvidos, por serem a curto prazo
os maiores beneficiados pela proteção da propriedade intelectual, devem, em
respeito ao preceituado no artigo 66.2 do TRIPS, transferir tecnologia para os
países menos desenvolvidos, e não apenas a técnica, ou seja, o produto final da
pesquisa com objetivo de aumentar a relação de dependência.
Essa transferência de tecnologia no sentido Norte-Sul que visa, como
estabelecido no próprio dispositivo do TRIPS, “estabelecer uma base tecnológica
sólida e viável” não ocorre, justamente pelas razões anteriormente expostas, quais
sejam: a) que a dependência tecnológica resulta numa dependência econômica,
b) que consequentemente desencadeia uma carência do mercado, mantendo os
países do norte na posição de principais fornecedores de tecnologias de ponta.
Deve-se, com a finalidade de fundamentar os argumentos acima expostos,
recorrer às lições de Amartya Sen90, para quem:
[...] A despeito de aumentos sem precedentes na opulência global,
o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de
pessoas – talvez até mesmo à maioria. Às vezes a ausência de liberdades
substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que
rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição
satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de
vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou
saneamento básico.
A título de exemplo tem-se o Japão e a Coréia do Sul, que se tornaram
em menos de meio século potências econômicas, com excelentes níveis sociais,
Acordos multilaterais como a OMC exigem aos países em desenvolvimento mudanças
institucionais que geram um aumento dos custos administrativos. Welber Barral afirma que “o
exemplo que vem à mente são as exigências decorrentes do acordo sobre propriedade intelectual
(TRIPS) da OMC, que impõe obrigações administrativas a países já exauridos por custos
fiscais proibitivos para sua reforma institucional. Afinal, o custo das reformas regulatórias pode
representar um peso relevante para países pobres tanto em termos de custos de implementação
quanto em custos de oportunidade relativos ao redirecionamento de investimentos que poderiam
ser aplicados na minimização de problemas sociais”. BARRAL, Welber. A influência do comércio
internacional no processo de desenvolvimento. In.: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio.
Comércio Internacional e Desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p. 22.
90
SEN, op. cit., p. 18.
89
38
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
tendo como um dos pilares de suas políticas de crescimento, um programa
viável de propriedade intelectual, acelerado pela transferência de tecnologia,
que foi intensamente estimulada por esses governos.
Essa relação permite uma análise da relação proposta entre os elementos
Desenvolvimento e proteção jurídica dos direitos de propriedade intelectual.
Dessa forma, no próximo item será abordada tal relação no âmbito do principal
documento jurídico internacional sobre a matéria (Acordo TRIPS).
3. PROPRIEDADE INTELECTUAL E DESENVOLVIMENTO NO ÂMBITO DO
ACORDO TRIPS/OMC
Em um primeiro momento, o Acordo TRIPS realiza, no preâmbulo,
uma menção ao desenvolvimento como objetivo dos países membros da OMC.
Tal disposição tem caráter mais programático do que aplicabilidade normativa,
pois não possui nenhum comando objetivo. No entanto, sua importância reside
justamente na interpretação sistemática91 que deve ser realizada em relação
ao texto do TRIPS, de modo que todas as disposições realizadas nos artigos
deste acordo sejam interpretadas a partir dos parâmetros e valores inseridos no
preâmbulo.
Ainda no preâmbulo é reconhecido que os direitos de propriedade
intelectual possuem natureza de direito privado. Tal reconhecimento é
importante, pois permite a flexibilização destes direitos quando confrontados
com interesses de natureza de direito público92.
Nos artigos subsequentes ao preâmbulo a preocupação com o
desenvolvimento estatal gerado a partir de direitos de propriedade intelectual é
exteriorizada no artigo 7 que ressalta que a proteção destes direitos e a aplicação
do acordo devem ter como objetivo: promover a inovação tecnológica; contribuir
para a transferência de tecnologia; gerar bem-estar social e econômico; e, criar
um equilíbrio entre direitos e obrigações.
Os objetivos descritos no artigo supracitado acompanham, enquanto
obrigações positivas, as disposições do Acordo TRIPS. Com caráter menos
Paulo Nader salienta que “Não há, na ordem jurídica, nenhum dispositivo autônomo,
autoaplicável. A norma jurídica somente pode ser interpretada e ganhar efetividade quando
analisada no conjunto de normas pertinentes a determinada matéria”. NADER, Paulo. Introdução
ao Estudo do Direito. 33 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 278.
92
A supremacia do interesse público sobre o privado é uma máxima do Direito que subsiste,
ainda que com menos força, até os dias atuais. Luís Roberto Barroso pondera que “O interesse
público primário, consubstanciado e valores fundamentais como justiça e segurança, há de
desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e democrático. [...] O interesse público
primário desfruta da supremacia porque não é passível de ponderação; ele é o parâmetro da
ponderação”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito constitucional contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 72.
91
39
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
programático que o preâmbulo, o artigo 7 é importante na medida em que traça
parâmetros concretos que devem guiar a aplicação de referido acordo. Caso
algum Estado-membro não respeite a disposição realizada acerca de algum destes
objetivos é possível que este Estado seja levado ao procedimento de resolução
de conflitos da OMC. De maneira inversa, os Estados em desenvolvimento
podem utilizar tais objetivos para moldar a forma como aplicam o TRIPS no
âmbito interno.
O artigo 8, nomeado de “Princípios”, possui importante consideração. Tal
dispositivo possibilita que os Estados, quando da adequação de suas legislações
internas aos padrões mínimos do TRIPS, adotem medidas protetivas justificadas,
dentre outras possibilidades, na promoção do “desenvolvimento sócio-econômico
e tecnológico” do país. A primeira consideração que deve ser realizada é quanto
à extensão do conceito de Desenvolvimento empregado pelo TRIPS. Não se
trata somente do desenvolvimento econômico ou tecnológico (matéria objeto
do Acordo), mas também do social, que em uma interpretação ampla abrange a
educação, saúde, saneamento básico, inclusão social, dentre outros.
Uma segunda consideração que deve ser realizada refere-se à forma
como tal dispositivo poderia ser aplicado pelos países em desenvolvimento ou
com menor desenvolvimento relativo. Tais brechas legais devem ser utilizadas
de maneira mais consistente por estes Estados, pois se trata de uma flexibilização
dos padrões de proteção de propriedade intelectual previstos pelo acordo. No
entanto, tem-se observado, principalmente a partir de uma análise do Brasil, que
se incorporam os padrões de proteção previstos pelo acordo sem um adequado
estudo de impacto e plano futuro de desenvolvimento.
Como forma de instrumentalizar os princípios trazidos na primeira
parte do artigo 8, a segunda parte dispõe que os Estados podem utilizar medidas
que visem evitar o abuso da exclusividade que o autor/inventor possui ou
para impedir as práticas, também decorrentes da exclusividade, que limitem o
comércio ou a transferência internacional de tecnologia. Tais medidas devem
ser compatíveis com as disposições seguintes do Acordo TRIPS, como, por
exemplo, a utilização da patente sem a autorização do titular (art. 31 do TRIPS).
No que se referem às patentes o artigo 31 do TRIPS permite o
licenciamento compulsório da exclusividade do titular sobre a produção. Este
artigo determina todas as situações e procedimentos que devem ser observados
para este licenciamento. Primeiramente, deve ter ocorrido, entre o governo e o
titular, uma negociação para se tentar chegar a condições comerciais razoáveis.
Tal negociação pode ser dispensada pelo governo em situações de emergência
nacional, situações de urgência ou uso público não-comercial.
A duração e o alcance do uso da patente licenciada deverão ater-se
somente às circunstâncias espaciais e temporais que motivaram o licenciamento.
40
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O uso desta patente pelo governo será não-exclusivo, ou seja, o titular continua
com a possibilidade de produção ou comercialização paralela à realizada
pelo governo ou terceiro autorizado por este. Outra condição diz respeito à
transferência da licença compulsória. Segundo o TRIPS esta é intransferível.
Sobre a transferência da licença compulsória deve-se recordar que a
proteção da patente confere ao inventor dois direitos, que são: a titularidade jurídica
sobre a invenção e a exclusividade econômica em sua produção. O licenciamento
da patente flexibiliza somente a exclusividade produtiva do detentor, permitindo
que esta seja produzida paralelamente pelo governo ou terceiro autorizado. No
entanto, o detentor do registro da patente mantem a titularidade jurídica, o que
consequentemente impede sua transferência, pois o Estado não poderá transferir
a propriedade de objeto que não foi fruto de expropriação.
Quanto ao uso da patente licenciada, esta deve ter como foco principal
o abastecimento do mercado interno e cessará quando deixarem de existir as
circunstâncias que motivaram o licenciamento. No que tange à remuneração
do titular, este, apesar do licenciamento, deverá receber quantia adequada, que
levará em consideração o valor econômico da licença.
Ainda sobre o licenciamento compulsório, o acordo TRIPS prevê que
qualquer decisão administrativa (sobre o licenciamento ou valor arbitrado como
remuneração) estará passível de recurso judicial.
O mesmo artigo 31 prevê, na alínea K, a possibilidade de licenciamento
compulsório por prática anti-competitiva ou desleal, desde que tais práticas
tenham sido verificadas por meio de processo judicial ou administrativo. Nessas
hipóteses, não é necessário que o Estado-membro negocie anteriormente à
licença melhores condições comerciais com o titular, e nem que o uso seja
predominantemente voltado para o mercado interno.
O artigo 40, presente na Seção 8 “Controle de práticas de concorrência
desleal em contratos de licença”, estabelece a possibilidade de limitação nas
legislações nacionais de práticas de licenciamento que limitem a concorrência.
A concorrência constitui-se como importante ferramenta de mercado, na medida
em que permite uma competição entre produtos similares provocando disputa
para melhor qualidade e menor preço do produto ou serviço oferecido.
Desta forma, a manutenção da concorrência é importante principalmente
entre produtos essenciais, como gênero alimentício e medicamentos, colocados
à disposição dos consumidores. Os Estados podem, com base no artigo 40.2,
adotar medidas para garantir a concorrência, como: estabelecer condições de
cessão exclusiva, estabelecer condições que impeçam impugnações da validade
e pacotes de licenças coercitivos.
Em outro momento, o texto do Acordo TRIPS volta a preocupar-se
com o desenvolvimento dos países membros. Tal situação vislumbra-se na
41
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Parte VI do Acordo, denominada de “Disposições Transitórias”. Nessa parte
são estabelecidos os prazos para o início da aplicabilidade das disposições do
TRIPS pelos Estados-membros.
Reconhecendo os custos institucionais provocados e as diferentes
realidades sócio-econômicas o Acordo estabelece três prazos diferentes para
sua entrada em vigor. Assim, existe o prazo geral de um ano (Art. 65.1), que é
excepcionado pelo artigo 65.2 e 65.3 que aumenta este prazo para quatro anos
caso trate-se de país em desenvolvimento ou que se encontre em transição de
uma econômica de planejamento para uma de mercado e de livre empresa.
O prazo geral pode ainda ser postergado para dez anos se o país-membro
for classificado como país com menor desenvolvimento relativo. É importante
ressaltar que esse prazo já foi prorrogado para 1º de Julho de 2013, conforme
explicado no item 2.3 deste trabalho.
Ainda na “Parte VI” são realizadas imposições de cooperação e ajuda
aos países desenvolvidos. O artigo 66.2 estabelece a concessão de incentivos
a empresas e instituições por parte dos países desenvolvidos, para que estes
realizem investimentos nos países menos desenvolvidos, “a fim de habilitá-los
a estabelecer uma base tecnológica sólida e viável”.
O artigo 67 prevê a “Cooperação Técnica” entre os países desenvolvidos e
os em desenvolvimento ou com menor desenvolvimento relativo. Tal cooperação
deverá ser requerida pelos países com menores condições e consistirá em ajuda
técnica e financeira, incluindo assistência na elaboração de normas relativas
à propriedade intelectual e melhoria na estrutura das instituições de gestão e
proteção dos direitos de propriedade intelectual.
A partir do exposto, tem-se que o TRIPS possui em seu texto diversos
mecanismos e brechas para que os países em desenvolvimento não comprometam
seus interesses nacionais com a incorporação de uma forte proteção dos
direitos de propriedade intelectual. No entanto, alguns Estados não possuem
planejamento voltado para o desenvolvimento pleno e, com isso, acabam
por não aproveitar tais brechas e mecanismos e, ao contrário, incorporam os
padrões do TRIPS sem fazerem uso dos prazos concedidos à época da criação
deste Acordo. O Brasil, por exemplo, não fez uso do prazo de quatro anos e,
apenas um ano após a entrada em vigor do TRIPS, adequou sua legislação de
propriedade industrial aos padrões da OMC (vide item 4.4.4 deste trabalho).
4. A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO E OS DIREITOS DE PROPRIEDADE
INTELECTUAL: CORÉIA DO SUL, JAPÃO, ÍNDIA E BRASIL
Com o intuito de relacionar as políticas e legislações de propriedade
intelectual com o nível de desenvolvimento alcançado, neste tópico será
42
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
realizada uma comparação entre três países que se aproveitaram de legislações
frágeis de propriedade intelectual para se desenvolverem (Coréia do Sul, Japão
e Índia) e o Brasil.
4.1. CORÉIA DO SUL
A Coréia do Sul é atualmente uma das maiores detentoras de tecnologia
de ponta do mundo93. O país possui ainda excelentes níveis sócio-econômicos
obtidos com os frutos provenientes do sucesso tecnológico e comercial do país
nos últimos 40 anos94.
O processo de desenvolvimento tecnológico sul-coreano teve início
nas décadas de 60 e 70 do século passado, através do incentivo à absorção de
tecnologia por meios indiretos, como a imitação e a engenharia reversa95.
Após a acumulação de Know-How nas duas décadas que se passaram, no
início dos anos de 1980, o governo iniciou a implantação de um programa de
desenvolvimento de tecnologia em todos os setores produtivos.
Segundo o professor Linsu Kim96, da Universidade de Seoul, os
investimentos se concentraram, em um primeiro momento, na importação
de tecnologias, no recrutamento fora do país de profissionais altamente
qualificados, no incentivo à P&D no país, além de capacitação da pesquisa nas
Universidades e Institutos científicos.
Com a implementação dessas medidas, os investimentos estrangeiros
diretos97 aumentaram de US$ 218 milhões em 1967-1971 para US$ 1,76 bilhões
em 1982-1986. Em 2012, segundo estimativas oficiais do Governo da Coréia
do Sul, os investimentos estrangeiros diretos ultrapassarão os US$ 20 bilhões98.
Ou seja, em um curto período de tempo, do período de 1967-1971 até 1982 Segundo dados do USPTO citados no item 4.1. a Coréia do Sul registro 11.671 patentes no
ano de 2010.
94
A Coréia do Sul, segundo ranking de IDH de 2010, figura em 12º lugar, com índice de 0,877,
a frente de Suíça (0,874) e França (0,872). O Brasil, apenas a título de comparação, figura na
73ª posição com índice de 0,699. Deve-se considerar ainda que recentemente foi publicada a
expectativa do IDH de 2011, dados estes que ainda não estão considerados. Segundo a recente
publicação a projeção é que a Coréia do Sul passe para a 15ª posição (0,897) e o Brasil para a 84ª
(0,718).
95
A engenharia reversa é considerada como um dos meios indiretos de transferência de
tecnologia, em que se desmonta o produto, ou software, ou processo químico, para se descobrir
como se chegou à invenção final.
96
KIM, Linsu. Technology Transfer and Intellectual Property Rights: The Korean experience.
IPRS online. Disponível em: <www.iprsonline.org/ictsd/docs/kimbridgesyear5n8novdec2002.
pdf> Acesso em: 28 ago 2011.
97
Idem.
98
CORÉIA DO SUL. Explorando Corea. Gateway to Korea. Disponível em <http://spanish.
korea.net/exploring.do?subcode=spa020004&thcode=spa030018>. Acesso em: 12 de out de 2011.
93
43
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
1986 os investimentos estrangeiros aumentaram cerca de 800%. Deste último
período até as estimativas de 2012 os investimentos aumentaram 11 vezes, o
que demonstra a credibilidade internacional do país e a viabilidade para gerar
lucros aos investidores.
Com o intuito de diminuir a dependência tecnológica, os investimentos
em P&D realizados pelo governo também foram altos. Aumentaram de US$
28,6 milhões em 1971 para US$ 4,7 bilhões em 1990, e dez anos mais tarde, em
2000, alcançou a incrível cifra de US$ 12,2 bilhões. Ainda nesse mesmo ano,
39 multinacionais instalaram centros de P&D no país99.
Dessa forma, é possível verificar no caso da Coréia do Sul alguns dos
fatores citados anteriormente como geradores de desenvolvimento. O governo
sul-coreano, conforme demonstrado nas estatísticas apresentadas, aumentou, no
momento oportuno, qual seja, pré-TRIPS, os investimentos em P&D de forma
considerável, da mesma forma que propiciou a criação de centros de P&D a
partir de incentivos públicos a empresas privadas.
A adequada e acertada política sul-coreana fez do país um dos maiores
produtores de tecnologia. Atualmente a Coréia do Sul é um dos países que mais
pedem patentes no mundo, além de possuir uma legislação que dá segurança
aos investidores internacionais no país, ainda que, em um primeiro momento a
imitation e a engenharia reversa tenham sido estimuladas.
Para comprovar o desenvolvimento sul-coreano observe a tabela abaixo,
que relaciona o IDH com o número de patentes registradas em 3 momentos
diferentes.
N° de patentes registradas no USPTO
IDH *
1963-1989
598
2000
3.314
2010
78.400
Em 1990:0.73
0.82
0.877 (12° na lista)
*O IDH (índice de desenvolvimento humano) foi criado em 1990 pelos economistas Mahbub ul
Haq e Amartya Sen. Os índices são calculados a partir de dados de expectativa de vida ao nascer,
de educação e de PIB (produto interno bruto) per capita.
A partir dos dados expostos resta demonstrado que o IDH da Coréia
do Sul cresceu acompanhando o desenvolvimento tecnológico do país,
que foi demonstrado na tabela acima pelo número de patentes sul-coreanas
registradas no USPTO. A partir da análise destes dados é possível concluir
que o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento social da Coréia do
KIM, Linsu. Op. Cit.
99
44
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Sul foram fatores atrelados pelo governo daquele país. O número de patentes
registradas no USPTO em 2010 é 131 vezes maior que os registros realizados
entre 1963 e 1989. Este salto na produção tecnológica foi alcançado através de
investimentos em P&D, educação e melhores condições de vida, fatores estes
que influenciam diretamente no cálculo do IDH do país.
Para Linsu Kim quatro lições devem ser retiradas do caso de
desenvolvimento tecnológico sul-coreano.
A primeira é que padrões elevados de proteção da propriedade intelectual
podem dificultar ao invés de facilitar a transferência de tecnologia, e em um
estágio inicial devem ser utilizadas a engenharia reversa e a imitação de
produtos estrangeiros, para que gere um estágio inicial na indústria nacional.
Esta foi a política sul-coreana adotada na década de 1960 e 1970
A segunda lição é que após acumular conhecimentos através da primeira
fase, é que se deve investir em uma estrutura para o desenvolvimento de
ciência e tecnologia. Neste ponto, ilustra-se a afirmativa realizada por Linsu
Kim através dos dados referentes aos investimentos realizados pelo governo da
Coréia do Sul em P&D.
Depois, são necessárias políticas de adequação e proteção dos direitos de
propriedade intelectual aos níveis exigidos pelos investidores internacionais.
Quanto a esta terceira lição, o governo sul-coreano, após a transferência de
tecnologia realizada entre a década de 1960 e 1980, aderiu ao Acordo TRIPS
e adequou sua legislação interna aos níveis previstos no acordo de forma a
respeitar os parâmetros internacionais de proteção.
Por último, o país em desenvolvimento deve participar dos sistemas
multilaterais de proteção da propriedade intelectual. Tal ponto encaixa-se ao
anterior, na medida em que a Coréia do Sul integra o sistema multilateral de
comércio da OMC e, consequentemente, adequou-se aos standards de proteção
indicados pelo TRIPS, que é um dos acordos que fazem parte desta Organização.
4.2 JAPÃO
O Japão, assim como a Coréia do Sul, iniciou seu processo de crescimento
e desenvolvimento tecnológico através da importação maciça de tecnologia. A
diferença foi que o processo japonês de desenvolvimento começou antes que
o sul-coreano, ainda no pós-guerra, com vistas a recuperar o país dos efeitos
devastadores da II Guerra Mundial.
O professor Akira Chinen, leciona que
Algumas tecnologias adquiridas eram completamente novas para o
Japão, como o nylon e a utilização de laminadores de ação contínua nas
siderurgias. [...]
45
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Outras tecnologias capitalizaram sobre especializações e experiências
adquiridas durante a guerra, em particular nas indústrias relacionadas
com o armamento, tornado-se esta a base para a adoção de tecnologia
importada e produção em série de artigos como rádios, televisores,
máquinas fotográficas, relógios, máquinas de costura, etc.
Também, a construção de navios foi modernizada, na seqüência da
importação da construção em bloco do know-how da soldagem elétrica100.
O supracitado professor compara ainda esse processo de desenvolvimento
japonês com o ocorrido na era Meiji, por seguir uma sequência que começou com a
produção de matérias-primas até chegar a produtos complexos. Para Akira Chinen:
À semelhança da introdução da indústria no período Meiji101, o
desenvolvimento da tecnologia, após a Segunda Guerra, seguiu uma
certa seqüência: primeiro os materiais e as indústrias básicas, incluindo o
aço e a eletricidade, depois a maquinaria elétrica e, por fim, as linhas de
montagem como a de automóveis102.
Seguindo esse ritmo novos setores industriais desenvolveram-se, como
a indústria química com a produção de polietilenos e poliésteres. No que
concerne ao investimento em pesquisa, o governo japonês na década de 1960,
época determinante no desenvolvimento do Japão, aumentou as despesas com
investimentos em cinco vezes e as empresas privadas aumentaram oito vezes
seus investimentos103.
Akira Chinen explica que o desenvolvimento japonês pode ser dividido
em três fases. A primeira fase é marcada por uma grande importação de
mercadorias, tendo em vista que os produtos estrangeiros são complexos para
serem copiados. Nessa fase as importações foram importantes para atender o
mercado consumidor interno e inserir novas tecnologias no Japão.
Numa segunda fase, o mercado japonês cresce e torna-se suficiente,
o que acarreta na diminuição das importações. Ainda nessa fase a indústria
japonesa, mais desenvolvida, assimila a tecnologia dos produtos importados
na primeira fase, possibilitando uma menor dependência nacional em relação
às tecnologias estrangeiras.
CHINEN, Akira. Know-How e propriedade industrial. São Paulo: Oliveira Mendes, 1997. p. 47.
A Era Meiji refere-se ao período de 45 anos do reinado do Imperador Meiji. Este reinado
durou de 1868 a 1912, e durante estes anos o Japão desenvolveu-se de forma acelerada, deixando
de ser um país feudal.
102
CHINEN, Akira. Op cit., p. 47.
103
Ibid., p. 49.
100
101
46
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Na terceira fase a produção é sólida, o que propicia um aumento das
exportações. A indústria japonesa já assimilou a tecnologia e sua produção
torna-se suficiente para abastecer o mercado interno e exportar o excedente, o
que, consequentemente, melhora a situação econômica do país, pois favorece a
balança comercial e aumenta a entrada de capital.
Chinen acrescenta ainda uma quarta fase, trazida por C. Sautter. Devido à
qualificação da mão-de-obra e o consequente aumento dos salários, a produção
japonesa torna-se cara, o que resulta na emigração das indústrias japonesas
ultrapassadas, em busca de mão-de-obra mais barata, e um crescimento das
importações desses produtos produzidos nos países menos desenvolvidos104.
A divisão do desenvolvimento japonês nestas fases demonstra que
a implementação de uma política nacional para o desenvolvimento traz
resultados. Um processo que se iniciou com a importação maciça de novas
tecnologias resultou em um país que em 2010 registrou 44.814 patentes no
USPTO (segundo país no ranking deste órgão, atrás apenas dos EUA). O
desenvolvimento japonês comprova que políticas bem acertadas aliadas a um
sistema jurídico que progressivamente confira as condições necessárias para o
sucesso destas políticas é uma fórmula bem-sucedida.
4.3 BRASIL
O Brasil ao longo do século XX adotou políticas diferentes às postas
em prática pelos três países analisados. Ao contrário, conferiu proteção aos
direitos de propriedade intelectual sempre seguindo os níveis indicados em
tratados internacionais, e, em algumas vezes, adequando a legislação interna
aos padrões internacionais sem gozar do período de carência concedido aos
países em desenvolvimento, como ocorreu com a aprovação da lei 9.279/96.
Com a lei 9.279/96 e a incorporação dos standards de proteção
conferidos pelo TRIPS o Brasil encontra-se em uma situação diferente da
vivenciada em meados do século XX pelo Japão e Coréia do Sul, ou então nos
anos de 1970 e 1980 pela Índia. Com a promulgação desta lei e a adequação da
legislação nacional ao TRIPS, o Brasil não pôde mais aproveitar-se de medidas
como a imitação ou engenharia reversa, ou até mesmo, incentivar que indústrias
nacionais começasse a utilizar tecnologias estrangeiras como base para a criação
de tecnologias mais refinadas.
Tal limitação decorre justamente da legislação brasileira sobre o
assunto que, em harmonia com o TRIPS, estabelece padrões altos de proteção,
conforme salienta Dênis Borges Barbosa. Segundo este autor, a lei Brasileira
de propriedade industrial possui proteção maior que a prevista pelo TRIPS,
CHINEN, Akira. Op cit., p. 49.
104
47
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
constituindo-se em uma lei TRIPS-Plus. Sendo assim, todas as distorções e
excessos provocados na aplicação da Lei de Propriedade Industrial foram
causados pelos legisladores e juízes brasileiros que agiram contrariamente aos
interesses nacionais105.
Nelisa Jessen, em estudo realizado para a UNICAMP, critica a falta de
preocupação do legislador brasileiro quando da tramitação do projeto de lei, que
posteriormente concretizou-se na atual Lei de Propriedade Industrial. Segundo a
autora, o Brasil não se preocupou com o desenvolvimento tecnológico nacional,
incorporando mecanismos de proteção mais amplos que o previsto pelo TRIPS.
Nesse sentido:
A perda da capacidade de os países selecionarem áreas tecnológicas
de como não-concessão de privilégios e a recusa de introduzir no PL
824/91 os mecanismos de exceção que o GATT admitiu, a retroação da
possibilidade de depósito de patente (“pipeline”), muito mais amplo do
que a negociada em GATT-TRIPs, o abandono do período de transição
admitido em TRIPs e uma série de outras escolhas, menos flexíveis para
o País, devem ser cuidadosamente vistas, pois demonstram até uma certa
relação de divergência entre os níveis multi e bilaterais.
Também a questão do segredo de indústria, regulado de maneira pífia
no PL 824/91, e a introdução da matéria no GATT, bem como sua
transformação, ao longo das negociações, até o conceito de “undisclosed
information” (que, aliás, tem passado desapercebido), é do mais alto
interesse para a aquisição de conhecimento tecnológico e para a produção
de bens que utilizem certas inovações tecnológicas, especialmente nas
áreas de fármacos e alimentos.
A imposição de certos caminhos judiciais, inclusive com aspectos
inadmissíveis no nosso Direito (de que o dispositivo sobre a pseudo
reversão de ônus da prova é exemplo) que aparecem em GATT-TRIPs
e na Harmonização de Patentes (em contraste aos insípidos dispositivos
constantes do PL), a determinação da proteção das bases de dados, a
possibilidade de limitação da circulação de informações existentes
em bibliotecas e mesmo o novo conceito de reprodução de obra são
condicionantes inevitáveis para a inovação tecnológica106.
BARBOSA, Denis Borges. “TRIPS Forever”. In: Seminário Internacional de 200 anos de
Propriedade Industrial no Brasil. Brasília, 29 de abril de 2009. Disponível em <HTTP://www.
dipi.mre.gov.br/apresentacao-1/painel-ii-assessment-of-the-implementatios-of-trips-inbrazil-1997-2009/apresentacao-do-dr-denis-barbosa/view>. Acesso em: 04 jan. 2010.
106
JESSEN, Nelida Jazbik. Estudo técnico para a Universidade de Campinas, 13 de outubro de
105
48
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O professor Dênis Borges Barbosa, também faz referência a alguns
pontos da lei brasileira que confere proteção maior que a determinada pelo
TRIPS. Dessa forma, referido jurista afirma que:
[...] exemplos de desequilíbrio insensato - e por isso mesmo, contrário
à Constituição - incluem o dito pipeline, que revigora a proteção
de tecnologias já integrantes do domínio público, o que TRIPs não
impusera; a declaração judicial de prorrogação de patentes além do prazo
constitucionalmente limitado, a pretexto da aplicação interna de TRIPs
rejeitada pelo texto, pela doutrina, e pela jurisprudência da OMC e dos
tribunais internacionais e estrangeiros; o abandono das lesões ao meio
ambiente como fundamento de recusa às patentes - o que TRIPs aceita e
a lei brasileira não; e a escolha de um sistema de exaustão de direitos que
ofende o livre comércio e o próprio GATT.
Em suma, a pseudo-incorporação de TRIPs na ordem interna foi,
em regra, muito além do texto final de consenso negociado, e sempre
contra o contra o interesse brasileiro. O legislador brasileiro acabou
cedendo à pressão unilateral americana, sem se aproveitar dos ganhos de
razoabilidade que vieram com TRIPs107.
Não obstante o mal fadado passado político e jurídico do país no que
tange às políticas e proteção dos direitos de propriedade intelectual, o Brasil
deve olhar para o futuro e agir em diferentes frentes, através de políticas
públicas, posicionamento estratégico no plano político internacional e criação
de aparato jurídico capaz de auxiliar o país a desenvolver-se108.
No que tange à implementação de políticas públicas ressalta-se a criação
de redes de cooperação entre universidades e centros privados de pesquisa, assim
como a criação de suporte institucional para o desenvolvimento de tecnologia
dentro dos centros acadêmicos. Dessa forma, segundo Bruch, Hoff e Brigido:
Para que um país possa proteger adequadamente sua tecnologia, fazse necessária a elaboração de adequadas políticas públicas. É preciso
1992. apud BARBOSA, Denis Borges. TRIPS e a Experiência Brasileira. Disponível em<http://
www.denisbarbosa.addr.com/trips2004.doc>. Acesso: em 4 out. 2011.
107
BARBOSA, Denis Borges. TRIPS e a Experiência Brasileira. Disponível em<http://www.
denisbarbosa.addr.com/trips2004.doc>. Acesso em: 4 out. 2011.
108
Nesse sentido, cumpre ressaltar que nos últimos anos diversas políticas públicas foram
implementadas durante a gestão do Presidente Lula e da Presidente Dilma Rousseff, como por
exemplo: Lei de Inovação (lei 10.973/04), Lei do Bem (Lei 11.196/05), Lei de Informática (Lei
8.248/91, alterada pelas leis 10.176/01 e 11.077/04), Política industrial, Tecnológica e de Comércio
Exterior – PITCE (lançada em 31 de março de 2004), Plano Brasil Maior, dentre outras.
49
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que se criem leis para proteger o conhecimento e as invenções, pois é a
adoção de uma regulamentação jurídica que legitima a implementação da
estratégia estatal dentro do Estado de Direito109.
Exemplo de implementação da estratégia estatal ocorre em várias
universidades, dentre elas na Universidade Federal de Uberlândia, onde se
encontra a Agência Intelecto110, que é responsável pela gestão do conhecimento
criado dentro dos campi da universidade.
Na esfera internacional, o governo brasileiro deve colocar seus interesses
nacionais como paradigma para a assinatura de qualquer texto que crie deveres
jurídicos ao país. Tal estratégia deve estar em harmonia com a produção
legislativa interna, de forma que não sejam legisladas normas jurídicas com
padrões de proteção maiores ou menos benéficos que os firmados na esfera
internacional.
Nesse ponto, faz-se mister voltar à discussão da lei 9.279/96 frente à
proteção conferida pelo Acordo TRIPS. O Brasil, como país em desenvolvimento,
poderia utilizar o prazo concedido pelo art. 65.2 para começar a aplicar as
disposições do TRIPS, mas, ao contrário, promulgou a Lei 9.279/96, adaptando
a legislação nacional aos standards de proteção do TRIPS no ano seguinte à
aprovação deste Acordo.
Tal fato comprova a ausência de um plano estratégico de desenvolvimento
que relacione a política internacional desempenhada pelo poder Executivo
Federal com a produção legislativa nacional.
Patrícia de Oliveira Areas afirma que “A propriedade intelectual é um
instrumento institucional que poderá ser um fator de desenvolvimento, dependendo
de como é tratada tanto pela sociedade como pelos organismos governamentais111”.
Contrário senso, se mal tratada pelos organismos governamentais a propriedade
intelectual pode constituir-se em um entrave ao desenvolvimento, como ocorreu
em alguns momentos da história recente do Brasil.
Conforme exposto em diversos momentos a aprovação da Lei 9.279/96,
data vênia, foi um atentado à política de desenvolvimento do país. Em momento
nenhum no presente trabalho defende-se a não regulamentação e a ausência de
BRUCH, Kelly Lissandra; HOFF, Débora Nayar; BRIGIDO, Eveline Vieira. Propriedade
Intelectual: Desenvolvimento e governabilidade nos países em desenvolvimento. In: BARRAL,
Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio; CORREA, Carlos M. Direito, Desenvolvimento e Sistema
Multilateral de Comércio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 195.
110
A Agência Intelecto é um órgão ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da
Universidade Federal de Uberlândia. Mais informações sobre o papel institucional desta agência
pode ser visto no site: <www.intelecto.ufu.br>. Acesso em: 05 set. 2011.
111
AREAS, Patrícia de Oliveira. Medidas Tecnológicas de proteção e desenvolvimento. In:
BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio; CORREA, Carlos M. Direito, Desenvolvimento e
Sistema Multilateral de Comércio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 245.
109
50
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
proteção à propriedade intelectual. No entanto, a promulgação da lei 9.279/96
com o texto que se conhece mostrou-se inadequada para o momento histórico
e econômico do Brasil. O legislador e o Presidente da República deveriam
esperar passar o prazo de carência concedido pelo TRIPS aos países em
desenvolvimento, assim como ter incorporado as diversas brechas previstas
pelo Acordo.
No entanto, isto não foi feito e a legislação, apesar de contestada
doutrinariamente, é vigente e eficaz. O que se deve proporcionar a partir de
então são leis que destinem recursos para políticas de desenvolvimento, que
reestruturem e modernizem o sistema nacional de proteção da propriedade
industrial (no caso o INPI), de forma que torne o país mais atrativo ao capital
estrangeiro que queira realizar investimentos em P&D.
No que tange ao suporte jurídico necessário o Brasil demonstra grande
despreparo e pouco conhecimento técnico para tratar de temas afetos ao direito
internacional público e ao direito de propriedade intelectual. Neste sentido
é importante citar, apenas a título exemplificativo, um dentre vários casos
similares de aplicação direta das disposições do TRIPS pelo Poder Judiciário
em benefício de particulares.
Tal impropriedade pode ser observada em apelação interposta pelo INPI
em uma Ação de Mandado de Segurança junto ao Tribunal Regional Federal da
2ª Região112. Neste case a apelação do INPI foi julgada improcedente, pois a
turma, por unanimidade, entendeu que o TRIPS começou a vigorar no Brasil
a partir de sua incorporação enquanto tratado internacional. Com base neste
entendimento a ilustre relatora decidiu que o Acordo aplicava-se aos particulares
independente de lei nacional que refletisse os prazos e disposições do TRIPS.
Nesse sentido, a Mma. Desembaragadora relatora prorrogou a proteção da
patente do impetrante/apelado em 5 anos, pois a lei brasileira da época (Lei
5.772/71, art. 24) previa um prazo de 15 anos, enquanto que o acordo TRIPS
aumentava esse prazo para 20 anos (Art. 33). A relatora entendeu ainda que
o Brasil não exerceu o prazo de carência para adequação ao TRIPS, pois tal
prerrogativa deveria ter sido expressa no momento da ratificação do Acordo, o
que não ocorreu.
Esta decisão não observou que Acordo TRIPS é um tratado-contrato
e não gera direitos ou obrigações a particulares, mas somente aos Estados
(ver item 1.2 deste trabalho). Complementarmente, a decisão deveria também
observar o art. 70.1 que, expressamente, prevê que o Acordo TRIPS “não gera
obrigações relativas a atos ocorridos antes de sua data de aplicação para o
respectivo Membro”.
BRASIL. Tribunal Regional Federal (2ª região). Apelação em Mandado de Segurança n°
98.02.44769-2. 5ª Turma, Rio de Janeiro, RJ, 25 de abril de 2000. Disponível em <http://www2.
trf2.gov.br>. Acesso em: 16 out. 2011.
112
51
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Assim, a extensão do prazo de proteção da patente com base no TRIPS
é equivocada, pois este Acordo não é aplicável diretamente aos particulares
e, ainda que fosse, não poderia retroagir a patente depositada antes de 1º de
janeiro de 2000, data em que o TRIPS tornou-se definitivamente obrigatório
para os Estados-membros em desenvolvimento, como é caso do Brasil113.
A junção dos três fatores supracitados, quais sejam, políticas públicas,
posição política internacional e suporte legal e jurídico, permitirão a criação
de um plano de desenvolvimento integrado para o país. As medidas devem ser
tomadas em todas as esferas do poder público, trabalhando-se desde a educação
da população até os paradigmas utilizados pelos poderes da República.
Pimentel, seguindo esta mesma orientação, explica que para o
desenvolvimento do país é essencial que se tenha “educação e conhecimento;
eficácia e transparência do sistema; a reunião desse conjunto disperso de
direitos; a capacitação dos operadores; e a revisão da dimensão do processo
legislativo, administrativo e judicial114”.
Sendo assim, não basta que medidas isoladas sejam adotadas. É
necessário que um plano integrado e estratégico seja traçado entre as várias
esferas e grupos que compõem o poder público, de forma a proporcionar um
impacto ao desenvolvimento nacional.
Dentro desta conjuntura é reservado ao Direito um papel de destaque,
capaz de garantir a independência das várias instituições públicas envolvidas e,
ao mesmo tempo, através da legislação, conferir legalidade às ações praticadas
pelo Estado e por particulares. Em suma, o Direito, nessa perspectiva, cumpre
seu objetivo básico, qual seja: garantir segurança jurídica às relações entre
Estado-particulares e entre particulares.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dependência tecnológica resulta em uma relação assimétrica que,
consequentemente, desencadeia uma carência de mercado, mantendo a relação de
exportador de tecnologia do país desenvolvido e a de eterno comprador, do país
emergente ou pobre. A quebra dessa relação de dependência tecnológica passa pela
construção de uma sólida política de propriedade intelectual que atuará em vários
setores, como a promoção de melhorias sociais, aumento dos investimentos em P&D,
adequação da legislação de propriedade intelectual ao nível de desenvolvimento do
país, atuação internacional independente, dentre outros.
Nesse mesmo sentido ver: BARBOSA, Denis Borges. Da inoponibilidade da patente
prorrogada em face dos concorrentes anteriores. Disponível em: <denisbarbosa.addr.com/170.
doc>. Acesso em 25 out.2011.
114
PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito de propriedade intelectual e desenvolvimento. In: BARRAL,
Welber (Org). Direito e desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005. p. 309.
113
52
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Da mesma forma que não se defendeu a ausência de proteção à propriedade
intelectual ao longo do trabalho, também não se afirmou que a baixa proteção da
propriedade intelectual é a garantia da geração de desenvolvimento. Isto posto,
entende-se que em primeiro lugar é necessária a cooperação entre os países
ricos, emergentes e pobres, assim como a realização de investimentos graduais
dos governos em P&D, criando, simultaneamente, meios para que ocorra
uma verdadeira transferência de tecnologia capaz de equilibrar as diferenças
entre os níveis de desenvolvimento dos países do mundo. Tais soluções não
são meramente políticas, pois se encontram positivadas no Acordo TRIPS,
carecendo apenas de eficácia.
Em segundo lugar, na esfera interna, faz-se necessária a implementação
de políticas voltadas à qualificação da população, além do oferecimento de
melhores condições de saúde e educação, realização de investimentos públicos
em centros universitários e de pesquisa, atração de investimentos privados
e a promulgação de uma legislação séria e comprometida com os interesses
nacionais, de forma a contribuir para o desenvolvimento pleno do país.
Várias dessas ações foram demonstradas no capítulo 4 ao tratar-se do
Japão, Coréia do Sul e Índia. No caso dos dois primeiros países o governo
promoveu uma eficiente política de desenvolvimento tecnológico a partir de
investimentos em educação e P&D, além da atração de investimentos privados,
permitindo, com base em uma legislação flexível em matéria de propriedade
intelectual, que estes alcançassem um alto nível de desenvolvimento tecnológico,
econômico e social.
Já no caso da Índia o investimento governamental também foi
fundamental. Deve-se observar no caso desse terceiro país que os investimentos
foram setoriais (medicamentos e softwares) e o desenvolvimento desses
campos foi fortemente baseado em uma legislação permissiva sobre direitos de
propriedade intelectual. Ainda sobre a Índia, diferente do Japão e da Coréia do
Sul, o governo não conseguiu alcançar um nível satisfatório de desenvolvimento
social, fato este justificado por diversos fatores, como a complexa divisão social
do país e as grandes proporções demográficas e territoriais.
No caso do Brasil, a política nacional em meados da década de 1990 não
aproveitou os prazos concedidos pelo TRIPS aos países em desenvolvimento
ou com menor desenvolvimento relativo. Ao contrário, o Brasil aprovou a Lei
de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96) com padrões de proteção TRIPS-Plus,
como é caso do citado artigo 230, que traz ao ordenamento jurídico brasileiro o
instituto conhecido como pipeline.
O Acordo TRIPS é uma realidade e seus standards de proteção já foram
incorporados pelos países membros citados nesse trabalho. Dessa forma, resta
aos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil e da Índia, adotarem
53
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
programas governamentais sérios e bem estruturados, que objetivem alcançar
um desenvolvimento econômico e social satisfatório.
Complementarmente, é necessária a adoção de políticas de Propriedade
Intelectual acertadas e um comprometimento maior dos governos dos países
do hemisfério Sul com suas populações e os interesses nacionais, para que
assim possa-se alcançar o desenvolvimento tão almejado por todas as nações, e
consequentemente diminuir a dependência tecnológica.
Os direitos de Propriedade Intelectual devem ter seus níveis de proteção
temperados conforme os sabores de cada país, e não impostos de forma que
afetem e comprometam o desenvolvimento social e econômico, e a soberania
das nações.
Por fim, destacam-se algumas medidas que podem melhorar a posição
do Brasil no ranking mundial de produtores de conhecimento. Primeiro,
o governo deve elaborar um plano nacional para atração e recepção de
investimentos estrangeiros. Concomitante, deve juntamente com outros
países em desenvolvimento, realizar ações concertadas na OMC e em outros
fóruns mundiais para a efetiva promoção da transferência de tecnologia e do
desenvolvimento.
A contribuição do Direito é dar suporte legal para essas ações, conferindo
segurança jurídica e condições para a modernização das instituições públicas
que cuidam dos direitos de propriedade intelectual, como é o caso do INPI.
Paralelamente, faz-se necessária a especialização do Poder Judiciário para
interpretar e aplicar com maior qualidade a legislação vigente sobre o tema, de
forma a cuidar do interesse público nacional.
54
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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56
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
NOVAS LEITURAS DA SUSTENTABILIDADE: A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO
PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL
Sérgio Augusto Lima Marinho115
Túlio Arantes Bozola116
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a legitimidade e a eficácia
do Direito Penal na tutela do meio ambiente, em comparação com a atuação do
Direito Administrativo sancionador. A preservação ambiental, que se elevou à
condição de gênero de primeira necessidade, deve ser realizada de forma eficaz
e em conformidade com o Estado Constitucional e Democrático de Direito.
Uma vez reconhecida a atuação do Direito Penal na proteção ambiental, analisase de que maneira e em que medida tal atuação se apresenta e sua íntima relação
com o Direito Administrativo. Para cumprir esse mister, elegeu-se a pesquisa
teórica, pautada na análise da doutrina nacional e estrangeira.
Palavras-chave: Direito Penal; Direito Administrativo Sancionador; meio ambiente; eficácia.
SUMÁRIO: Introdução – 1. Proteção ambiental: aspectos históricos – 2. A legitimidade
do Direito Penal na tutela do meio ambiente; 2.1. As propostas abolicionistas do direito
penal ambiental; 2.2. As propostas expansionistas – 3. A íntima relação entre o Direito
Penal e o Direito Administrativo na proteção ambiental – 4. Conclusão – 5. Referências
bibliográficas
INTRODUÇÃO
O momento histórico atual, denominado de sociedade de riscos,
marcado por vários impactos como o multiculturalismo e a globalização, além
do surgimento de novos riscos e incremento dos já existentes, caracteriza-se
por inúmeras mudanças de paradigmas em diversos campos do conhecimento
humano. O Direito Penal não teve outro destino: seara de grande surgimento
de ideias, nos últimos anos é que se percebe um proveitoso florescimento de
teorias buscando a solução dos dilemas criminais.
Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade
Federal de Uberlândia.
116
Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade
Federal de Uberlândia.
115
57
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Dentre esses dilemas criminais, um dos mais polêmicos é a proteção do
meio ambiente pelo Direito Penal. Parcela considerável da doutrina considera a
intervenção penal na questão ambiental como ineficaz e ilegítima, propondo a
atuação do Direito Administrativo em seu aspecto sancionador. Por outro lado,
vários penalistas defendem a tutela penal na esfera ambiental, entendendo ser
necessária a modernização do Direito Penal e sua consequente adaptação às
mudanças das reações sociais reais.
As mais diversas propostas têm sido ofertadas pelos doutrinadores, desde
tendências claramente abolicionistas até teses pautadas na forte repressão penal,
passando pelo Direito Penal de Duas Velocidades defendido pelo espanhol
Jesús-María Silva Sánchez e o Direito de Intervenção idealizado pelo alemão
Winfried Hassemer.
O propósito do trabalho que ora se apresenta é enfrentar esse ponto
polêmico tanto no plano teórico como nas suas repercussões práticas. Neste
sentido, primeiramente é traçado um escorço histórico sobre a tutela do meio
ambiente. Em seguida, é analisada a legitimidade do Direito Penal na proteção
ambiental, em comparação com o Direito Administrativo sancionador. Por fim,
uma vez reconhecida a atuação do Direito Penal na esfera ambiental, examinarse de que maneira e em que medida tal atuação se apresenta bem como sua
íntima relação com o Direito Administrativo. Para tanto, elegeu-se a pesquisa
teórica, pautada na análise da doutrina nacional e estrangeira, em especial a
doutrina espanhola e a alemã.
1. PROTEÇÃO AMBIENTAL: ASPECTOS HISTÓRICOS
O meio ambiente foi protegido de muitas formas em diversas épocas,
havendo até mesmo menção de preocupação em civilizações pré-cristãs. Essa
preocupação se intensificou no final do século XIX, com a promulgação, na
Inglaterra, do Rivers pollution prevention act, mas a isso se tem como exceção,
vez que somente a partir do fim da Segunda Grande Guerra, com a instituição da
era pós-industrial, é que se nota um incremento na proteção do meio ambiente
(WAINER, 1999, p. 4).
No Brasil, a primeira legislação específica sobre o meio ambiente foi
o Código Florestal (Dec. 23.793), seguido do Código de Caça (Dec. 24.645),
ambos de 1934. A produção legislativa ambiental ganhou importância na década
de 60, com a edição do Código Florestal (Lei 4.771), em 1965, e o Código de
Proteção da Fauna (Lei 5.197), em 1967 (FERREIRA, 1995, p. 82).
No entanto, a proteção ao meio ambiente no Brasil somente se tornou
tema fundamental a partir da década de 80 do século passado, com a edição
da Lei 6.938/81, que criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente, quando se
58
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
disseminou na consciência popular a importância da proteção ambiental. Nesta
década, fatos como a explosão demográfica, o advento de novas tecnologias
e avanços científicos, o degelo dos pólos, a redução da camada de ozônio, a
poluição dos rios, do mar e da atmosfera e a destruição da flora, especialmente
pela especulação imobiliária, conduziram à consciência da defesa e preservação
ambiental, que se elevou à condição de gênero de primeira necessidade.
Nesse sentido, a defesa do meio ambiente passou, sob o clima da
pressão da mídia, a ser considerada como algo politicamente correto, perdendo
racionalidade e ganhando radicalidade, e isso desaguou na exigência de uma
forte tutela no campo do Direito Penal.
Com o surgimento da Lei dos Crimes Ambientais no fim da década
de 90 (Lei nº 9.605/98), passou-se a tipificar como delito condutas de mera
desobediência, de perigo abstrato, cuidando às vezes de bagatelas, como a
criminalização do desrespeito a normas regulamentares.
Tal forma de proteção penal ambiental foi amplamente criticada, sob a
acusação de ser meramente simbólica, isto é, sem agilidade e presteza, como
sendo dirigida muito mais a uma satisfação da sociedade do que à alteração
de comportamentos. Isso teve como conseqüência o reconhecimento, por
parte de alguns, de não ser o Direito Penal estruturalmente capaz de oferecer
respostas legítimas e eficientes ao meio ambiente e da impossibilidade de se
abrir mão ou flexibilizar princípios fundamentais como o da ofensividade. Para
esses críticos, o correto seria recorrer ao Direito Administrativo sancionador,
todo reestruturado, promovendo-se ampla descriminalização de determinadas
condutas previstas na Lei 9.605/98.
Isto posto, percebe-se que o ponto polêmico da tutela ambiental é exatamente
descobrir se tal proteção deve ser realizada por um ramo extrapenal como o Direito
Administrativo sancionador ou se o Direito Penal é imprescindível à prevenção dos
danos ambientais. Na tutela penal do meio ambiente, o ponto de partida do controle
penal é a antecipação da tutela, ou seja, a proteção buscada pelo Direito Penal é
evitar a produção de lesões através da prevenção de danos, o que ocorre quando
constatados os riscos no desenvolvimento de determinada atividade.
2. A LEGITIMIDADE DO DIREITO PENAL NA TUTELA DO MEIO AMBIENTE
A atuação do Direito Penal na proteção do meio ambiente é tema de
infindável polêmica nas doutrinas estrangeira e brasileira, de forma que existem
diversas propostas metodológicas.
Alguns defendem a total descriminalização de condutas ligadas a lesões
ou perigo de lesões ao meio ambiente e propõem forte interferência do Direito
Administrativo, entendendo que o Direito Penal, quando atua na problemática
59
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
ambiental, apresenta resultados claramente ineficazes. Outros advogam a tese
de que o Direito Penal é perfeitamente legítimo na proteção ambiental, devendo
se adequar às mudanças sociais e se antecipar à ocorrência de danos através de
uma tutela preventiva.
A seguir, serão expostas as diversas propostas metodológicas de tal
polêmica, presentes tanto na doutrina estrangeira (alemã e espanhola) como
na doutrina brasileira. Tais propostas serão divididas em dois grandes grupos:
aquelas que defendem a não atuação do Direito Penal no campo ambiental,
denominadas de propostas abolicionistas, e aquelas que defendem a forte
atuação do Direito Penal Ambiental, denominadas de propostas expansionistas.
2.1 AS PROPOSTAS ABOLICIONISTAS DO DIREITO PENAL AMBIENTAL
O contexto hodierno da política criminal é marcado pela necessidade de
reconduzir a intervenção punitiva do Estado no sentido de um Direito Penal
mínimo. Esta é a característica do constitucionalismo brasileiro e em grande
parte no mundo, como na Alemanha e na Espanha, em que a tutela dos direitos
fundamentais é detalhada pelo ordenamento jurídico.
Na Alemanha, as propostas abolicionistas encontraram campo fértil na
denominada Escola de Frankfurt, com destaque para as críticas trazidas por
Winfried Hassemer. Este parte da premissa de que o Direito Penal deve ser limitado
ao máximo, o que significa a sua incidência apenas sobre aquelas condutas que
violem, de maneira agressiva, os bens individuais indispensáveis para o convívio
social, como a vida, a saúde, a integridade física, a honra, a propriedade, etc.
Assim, segundo o autor alemão, serve o Direito Penal para a defesa do
bem jurídico estritamente individual, dedicando-se tão somente à proteção
subsidiária e repressiva dos bens jurídicos essenciais ao desenvolvimento
do indivíduo, mediante os instrumentos tradicionais de imputação de
responsabilidade e segundo os princípios e regras clássicas de garantia, não
devendo tutelar bens jurídicos vagamente configurados, como o caso do bem
jurídico ambiental (difuso por excelência).
Hassemer revela que quando o Direito Penal procura diminuir a
insegurança proveniente da sociedade de riscos, como na proteção do meio
ambiente, acaba alterando drasticamente seus conceitos dogmáticos e se
afasta de sua missão tradicional de apenas assegurar uma escala de valores
indispensáveis à vida social. Quatro razões são expostas para demonstrar que
o Direito Penal não é o ramo apto a resolver os problemas inerentes à tutela
ambiental (HASSEMER, 1998, p. 31 e 32).
A primeira razão é a denominada acessoriedade administrativa. Na tutela
ambiental, o Direito Penal não intervém de forma autônoma, eis que depende do
60
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Direito Administrativo. Assim, o Direito Penal acaba se transformando para se
tornar um instrumento auxiliar da Administração Pública, passando a depender
da intervenção desta. Para Hassemer, isto gera um problema: a acessoriedade
administrativa faz com que o ilícito penal deixe de ser visível e a matéria da
ilicitude penal passa a ser objeto de negociação direta entre a Administração e
o potencial infrator, fazendo com que o Direito Penal perca a sua credibilidade
perante a sociedade.
A segunda razão diz respeito à imputação da responsabilidade criminal.
Enquanto o Direito Penal trouxer a privação de liberdade no seu rol de sanções,
não poderá abrir mão de critérios estritos de imputação de responsabilidades
individuais, imprescindíveis no Direito Penal clássico. Todavia, na formatação
do Direito Penal que tutela o meio ambiente, na maioria dos casos há apenas a
apuração da responsabilidade coletiva. Isso ilide toda a tradição da dogmática
de participação criminosa, baseada na delimitação rigorosa das contribuições
individuais para a prática do delito.
A terceira razão para criticar a interferência penal no âmbito ambiental é
o reconhecimento de que o Direito Penal, quando tutela o meio ambiente, não
atinge os fins da pena, vez que a crença da sociedade na força da norma penal,
denominada de prevenção geral positiva, é meramente ilusória. O citado autor
ainda critica a aplicação das penas: sendo aplicadas penas de multa, quem acaba
por pagar a multa nunca é o infrator, mas a empresa, e as penas privativas de
liberdade são aplicadas à razão de uma para mil casos possíveis.
Por fim, a quarta razão é que o Direito Penal na proteção ambiental é
puramente simbólico, ou seja, não serve para a proteção de bens jurídicos e
destina-se somente para a consecução de fins políticos. Tal fato, segundo o
citado autor, torna o Direito Penal Ambiental um fator que desobriga os poderes
públicos de perseguirem uma política efetiva de proteção do meio ambiente.
Para a proteção ambiental, Hassemer propõe a criação de um ramo
extrapenal, denominado por ele de Direito de Intervenção, situado nas
“vizinhanças” do Direito Administrativo Sancionador. Esse novo ramo deveria
reunir, em si mesmo, todas as “franjas” dos outros ramos do Direito que têm
relação direta com o Direito Ambiental e teria as seguintes características:
atuação prévia à consumação de danos; imputação apenas de responsabilidades
coletivas; não previsão de penas privativas de liberdade; atuação global, e não
apenas para casos isolados; previsão de soluções inovadoras, que garantam a
obrigação de minimizar os danos (HASSEMER, 1998, p. 34 e 35).
Na doutrina brasileira, Regina Helena Lobo da Costa é uma crítica fervorosa
da proteção do meio ambiente através do Direito Penal. Segundo a autora:
Podem-se apontar fortes indícios de uso simbólico do direito penal
brasileira na seara ambiental. Além de não ser efetivo no sentido de
61
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
evitar condutas lesivas ao meio ambiente, um direito penal com tais
características é amplamente contraprodutivo, pois bloqueia o discurso e
a busca por outros meios de tratamento da questão, provavelmente mais
efetivos em razão das características da matéria ambiental. Ademais,
os princípios fundamentais de um direito penal adequado ao Estado
Democrático de Direito são violados, atingindo-se nuclearmente a esfera
de liberdade individual (2010, p. 151 - 152).
A autora propõe outras vias para o sancionamento de condutas lesivas ao
meio ambiente, ressaltando que a sanção, mesmo que administrativa, deve ser
tida como fonte de intervenção subsidiária, privilegiando-se formas preventivas,
tais como os estudos de impacto ambiental, a implementação de técnicas menos
poluentes nas indústrias e o desenvolvimento de políticas públicas ambientais
(COSTA, 2010, p. 160). Em consequência, conclui que o direito administrativo
apresenta características e institutos mais adequados à proteção ambiental, tanto
de forma preventiva quanto de forma sancionadora, devendo ocorrer ampla
descriminalização dos delitos ambientais (COSTA, 2010, p. 182 e 183).
Nesse sentido, a citada autora defende a reestruturação do sistema
sancionador no âmbito do direito administrativo, com o aumento na transparência
do trato das questões ambientais, objetivando uma participação mais efetiva
e democrática da população e consequentemente maior conscientização
ambiental, o que contribuiria para a prevenção de danos (COSTA, 2010, p.
188). Segundo a autora “o direito administrativo é tido como uma alternativa
interessante não por oferecer, supostamente, menos garantias do que o direito
penal, mas por apresentar características mais adequadas às exigências da tutela
ambiental” (COSTA, 2010, p. 215 - 216).
Justificando a criação de uma Parte Geral do Direito Administrativo
Sancionador, em busca de maior rendimento na tutela de interesses relacionados
ao meio ambiente, e, fundamentalmente, com vistas a afastar-se de qualquer
possibilidade de consagração do arbítrio estatal, Miguel Reale Júnior aduz que:
Ao nosso ver deve haver uma Parte Geral nas leis tipificadoras das infrações
administrativo-penais, que contenha os princípios garantistas próprios do
Direito Penal aplicáveis às infrações administrativo-penais, bem como os
princípios ordenadores do conjunto normativo (1999, p. 125).
Referido autor, a seguir, sistematiza sete sugestões para o delineamento
de sua proposta de Parte Geral: a) adoção do princípio da legalidade; b)
flexibilização da aferição do elemento subjetivo, com uma presunção de dolo; c)
estabelecimento da solidariedade entre a empresa e seu dirigente na imputação
62
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
da prática de infração à ordem econômica e ambiental; d) fixação de normas
relativas às causas dirimentes escoradas na inexigibilidade de conduta diversa;
e) previsão do erro de tipo e de força maior, a excluir a sanção; f) regramento
preciso da individualização da sanção; g) contemplação de causas de extinção da
punibilidade e prescrição sancionatória (REALE JUNIOR, 1999, p. 126 a 128).
Márcia Elayne Berbich de Moraes, em estudo de campo realizado no
Estado do Rio Grande do Sul, com análise de 572 inquéritos e processos sobre
crimes ambientais, aponta dados que demonstram a ineficiência do direito penal
ambiental brasileiro. Segundo tal estudo, 62,3% dos casos selecionados versam
sobre delitos praticados por pessoas físicas, sendo 46% sobre pesca ilegal e
16,3% sobre pássaros em cativeiro (MORAES, 2004, p. 183 e 184). Desses casos
apurados, não se vê nenhum poluidor de peso, o que demonstra que o direito
penal ambiental se volta às condutas mais visíveis, isto é, mais identificáveis,
praticadas por pessoas físicas, deixando de lado a tão exigida punição das pessoas
jurídicas por crimes ambientais prevista no art. 225, § 3º, da Constituição Federal.
Ainda na doutrina brasileira, Renato de Mello Jorge Silveira também
critica a intervenção penal na proteção ambiental. Segundo o autor:
Muito melhor, ainda que um tanto utópica, parece ser a substituição da tutela
penal por uma real política ambiental. Ao menos deve-se ter em conta, por
igual, o pregado por Hassemer, sempre na busca de mais uma coerente
intervenção estatal no campo turbulento do meio ambiente. Provavelmente
um dos tópicos mais comentados e discutidos nos últimos anos, a relevância
ambiental é de tremenda importância. O questionável é a abrangência penal
desta intervenção. A constatação de sua mínima eficácia, nos moldes em que
hoje se mostra, já é razão suficiente para busca de novas formas punitivas.
Isso, aliado ao fato de que as próprias características reitoras do bem jurídico
mostram-se de forma particular, incrementa a posição favorável ao Direito
de Intervenção (SILVEIRA, 2003, p. 141).
A seguir serão expostas as propostas expansionistas de atuação do Direito
Penal na seara ambiental, diametralmente opostas às visões abolicionistas.
2.2 AS PROPOSTAS EXPANSIONISTAS
A denominada expansão do Direito Penal, crescimento da intervenção
penal em searas antes tuteladas por outros ramos do Direito, originou-se em
razão de certas causas. A principal delas é o desenvolvimento tecnológico,
que no primeiro momento se traduz pelo conceito de modernidade simples,
motivado pelo incremento de tecnologias em benefício do bem-estar social,
63
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
mas que trouxeram consigo diversos fatos não previstos e que, posteriormente,
se traduziram como ameaças às formas de vida no planeta (MACHADO;
GIÁCOMO, 2009, p. 46).
A constatação destas ameaças traduz-se no conceito de modernidade
reflexiva (BECK, 2010, p. 231), em que se passou a observar os efeitos
secundários do desenvolvimento tecnológico, nascendo a necessidade de
delimitação de atividades potencialmente geradoras de perigo, através dos
mecanismos de gerenciamento de risco. A ansiedade por prevenção ressoou
no campo da política criminal e inevitavelmente na dogmática jurídicopenal, discutindo-se acerca da potencialidade do Direito Penal defender os
novos riscos.
As propostas expansionistas, de forma geral, defendem uma performance
firme, rígida e multifacetada do Direito Penal, apesar de apresentarem certas
divergências sobre a forma como deverá ocorrer tal intervenção. Nesse sentido,
entendem que apenas com a intervenção penal é que o ordenamento jurídico
conseguirá fazer frente às novas formas de criminalidade surgidas com a
sociedade de riscos, mormente a criminalidade ambiental. Partem da premissa
de que o Direito Penal possui condições de garantir um melhor regramento
da atividade social danosa, permitindo uma mais intensa observância de
seus preceitos pelos atores sociais em razão, principalmente, de seu caráter
estigmatizante (MACHADO; GIÁCOMO, 2009, p. 46).
As principais críticas das propostas expansionistas dirigidas às teses
abolicionistas são, em geral, as seguintes (MACHADO; GIÁCOMO, 2009, p. 47):
a) O servidor público encarregado de presidir o processo administrativo
sancionador não possui as garantias fundamentais reservadas aos
membros do Poder Judiciário e Ministério Público, que lhe possibilitariam
autonomia e independência no processamento e julgamento. Em
consequência, sua imparcialidade fica afetada.
b) Inexistência de um Tribunal administrativo. Face à triste realidade
política que assola o País, não se pode negar a influência da força política
e econômica no direcionamento das questões difusas.
c) A tutela administrativa dos bens jurídicos difusos como o meio
ambiente não proporciona níveis mínimos de inibição à ocorrência de
novas condutas perigosas.
d) A Administração tem o poder-dever de tutelar o meio ambiente,
munindo-se de seu poder de polícia. Se não consegue evitar o dano,
torna-se corresponsável pela sua reparação. Nesse sentido, há posição
jurisprudencial consolidada a respeito. Some-se o fato que o sistema
constitucional (art. 225, § 3º, CF) e o art. 14 da Lei n. 6.938/81 atribuem
64
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
responsabilidade civil objetiva ao causador do dano ambiental, e por isto
a obrigação de repará-lo ou restituí-lo.
O espanhol Jesús-María Silva Sanchéz adota uma postura intermediária
no embate entre as teses expansionistas e as teses garantistas de Direito Penal,
propondo um modelo duplo para o sistema penal, qual seja: o Direito Penal
de Primeira Velocidade e o Direito Penal de Segunda Velocidade. Para tanto,
parte de duas premissas: a modernização do Direito Penal, caracterizada pela
expansão e pela flexibilização de princípios político-criminais, e a negação de
uma volta ao Direito Penal clássico (SILVA SANCHÉZ, 2011, p. 188-192).
Assim, Direito Penal de Primeira Velocidade é aquele setor do
ordenamento criminal em que se impõem penas privativas de liberdade e
no qual devem manter-se de modo estrito os princípios político-criminais,
as regras de imputação e os princípios processuais clássicos. A segunda
velocidade destina-se àquelas infrações cominadas com penas pecuniárias e
restritivas de direito, tratando-se, portanto, de figuras delitivas de cunho novo,
como as ambientais, onde então caberia flexibilizar de modo promocional os
princípios e regras clássicos (SILVA SANCHÉZ, 2011, p. 189). A diferença
principal entre o Direito Penal de Segunda Velocidade e o Direito de
Intervenção de Hassemer é que este se situa no campo extrapenal enquanto
que aquele se encontra no campo penal.
Silva Sanchéz analisa o surgimento, com a sociedade pós-industrial, de
novos objetos de proteção, quais sejam, os bens jurídicos transindividuais, e
a tutela antecipada de tais objetos através de crimes de perigo abstrato, como
características da administrativização do Direito Penal. Como exemplo típico
dessa tendência, o autor menciona a proteção penal do meio ambiente, que se
configura na proteção de um contexto, isto é, de uma situação de superação de
standards administrativamente fixados (‘2011, p. 150-151).
Na doutrina alemã, encontram-se diversas teses a favor da proteção do
meio ambiente através do Direito Penal, como as visões de Urs Kindhaüser,
Lothar Kuhlen, Bernd Schünemann e Klaus Tiedemann117.
Urs Kindhaüser afirma que o modelo do Direito Penal da segurança é
uma das condições da sociedade de riscos, e por essa razão o citado modelo é
apresenta legitimidade. Para tanto, parte da premissa de que em uma sociedade
que produz múltiplos perigos, o Estado deve garantir a segurança através de
instrumentos de controle social que façam frente aos riscos, e essa segurança
deve ser feita através de instâncias penais e não somente administrativas.
Porém, o autor alemão reconhece que o Direito Penal continua com seu caráter
Estes posicionamentos constam da obra: MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en
la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 119-148.
117
65
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
de ultima ratio, esgotando-se, primeiramente, todos os outros ramos do Direito,
em vista de ser este o único meio legítimo de intervenção penal.
No mesmo sentido, Lothar Kuhlen aduz que é sempre teoricamente possível
uma verdadeira e não puramente simbólica solução de problemas referentes aos bens
jurídicos coletivos, como o meio ambiente, através de normas de comportamento
reforçadas com uma sanção. O autor reconhece a existência de uma série de aspectos
discutíveis, mas afirma que todos eles não fundamentam a exigência que faz a
doutrina tradicional à eliminação do Direito Penal do meio ambiente. Também não
é evidente, nem convincente, segundo ele, que os bens jurídicos coletivos podem
ser protegidos por outra maneira que não pelo Direito Penal.
Klaus Tiedemann também apoia a tendência atual de proteção do meio
ambiente e demais bens jurídicos de conteúdo difuso pelo Direito Penal,
assim como a ampla utilização do modelo de delitos de perigo abstrato. Isto
posto, defende que o modelo de tipificação abstrata reputa-se como a técnica
legislativa típica que corresponde à essência dos bens jurídicos supraindividuais
e que existe maior eficácia preventiva deste modelo delitivo, justamente pelo
adiantamento da punibilidade.
Bernd Schünemann, por sua vez, reconhece as transformações na
sociedade contemporânea por influência dos novos riscos oriundos do
desenvolvimento tecnológico e a necessidade de se manter como missão do
Direito Penal a proteção dos bens jurídicos, incluindo os bens jurídicos de
conteúdo difuso. Nesse sentido, entende o autor ser necessária a modernização
do Direito Penal e o seu consequente ajuste às mudanças das reações sociais
reais, sendo a crítica existente contra a intervenção penal puramente reacionária
e conservadora, pois se opõem à modernização e ignoram as condições atuais
da sociedade moderna (SCHÜNEMANN, 1998, p. 347).
Na doutrina brasileira, Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Christiany
Pegorari Conte também defendem a tutela penal ambiental, entendendo que
os pilares desta, traçados em normas constitucionais, não são necessariamente
coincidentes com os diplomas e conceitos básicos de direito material e processual
ordinários (FIORILLO; CONTE, 2012, p. 13). Dessa forma, sua característica
peculiar é a prospecção ou caráter preventivo. Segundo os autores:
A importância dos bens ambientais para a sociedade fez com que a
Constituição determinasse a proteção criminal, levando à relevância do
bem jurídico em análise, que se traduz na necessidade de sua proteção em
âmbito penal (FIORILLO; CONTE, 2012, p. 21).
A seguir, uma vez reconhecida a atuação do Direito Penal na proteção
ambiental, analisar-se de que maneira e em que medida tal atuação se apresenta
e sua íntima relação com o Direito Administrativo.
66
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
3. A ÍNTIMA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO
NA PROTEÇÃO AMBIENTAL
Em razão da importância do meio ambiente não só como conjunto de
pressupostos da vida humana, como também da vida no planeta, impõe-se ao
Estado o dever de preservá-lo e protegê-lo. Nesta estratégia global de tutela
ao meio ambiente que o Estado tem de desenvolver, o Direito Administrativo
recebe fundamental importância, com sua rede de decretos, portarias, licenças,
permissões e autorizações, o que acaba por interferir de forma nuclear no
Direito Penal Ambiental.
Esta situação faz com que o Direito Penal Ambiental contenha vasto
número de dispositivos que parecem proibir não qualquer lesão ao bem ambiental
protegido, mas somente aquela praticada também em contrariedade ao Direito
Administrativo (GRECO, 2006, p. 154). Como exemplo, pode-se citar o art. 30
da Lei 9.605/98: exportar para o exterior peles e couros de anfíbios e répteis em
bruto, sem a autorização da autoridade ambiental competente.
A existência de normas penais que fazem referência direta ao Direito
Administrativo, ao que se denomina acessoriedade administrativa, gera uma série
de problemas, tanto de natureza política geral, quanto de caráter especificamente
jurídico. Um deles é a inevitável tensão que surge entre o Direito Penal, movido
preponderantemente pela lógica da legalidade, e o Direito Administrativo, no
qual existem muito mais espaços de oportunidade e discricionariedade.
Um exemplo ilustra bem o que se pretende demonstrar: uma empresa
madeireira, cuja permissão para cortar árvores em floresta de preservação
permanente (art. 29, Lei 9.605/98) esteja a ponto de expirar, entra com
requerimento de renovação junto à autoridade competente. O prazo expira,
a autoridade não reage a tempo, mas acaba, seguindo orientação pró-verde
do governo, por negar a permissão três meses depois. A empresa recorre à
autoridade superior e nesse meio tempo há uma mudança no governo, agora
pró-desenvolvimento, sendo que a permissão acaba sendo concedida depois
de outros três meses. Durante todo esse interregno de seis meses, a empresa
prosseguiu em suas atividades sem a permissão. Pode-se, nesse caso, punir o
empresário pelo crime do art. 29 da citada Lei? (GRECO, 2006, p. 155-156).
Percebe-se que as considerações que interferem na decisão administrativa
de conceder ou negar uma permissão têm natureza muito mais flexível e ampla
do que as que interferem no juízo penal a respeito da ilicitude de um fato. A
partir do momento em que o rígido juízo de ilicitude penal depende da flexível
decisão sobre a ilicitude administrativa, surgem conflitos nem sempre de fácil
resolução. Alguns até entendem que tal problema viola o princípio da legalidade
e a separação de poderes.
67
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Segundo Regina Helena Lobo da Costa, o tipo penal pode ser
complementado por dados advindos do Direito Administrativo de três
formas: por meio de um conceito, por meio de uma norma e por meio de um
ato administrativo concreto. Todavia, vale ressaltar que essa tripartição não
é absoluta: ela decorre muito mais de uma tentativa de sistematização, para
facilitar a compreensão e a análise do fenômeno, do que de uma diferenciação
científica evidente entre conceitos, normas e atos administrativos (2009, p. 192).
A complementação por meio de conceitos ocorre quando o tipo penal
arrola um certo conceito do Direito Administrativo como elemento do crime ou
remete, de forma mais genérica, a um tal conceito. É o caso, por exemplo, dos
artigos 38 e 39 da Lei 9.605/98, que tipificam condutas relacionadas a “floresta
considerada de preservação permanente”. Floresta de preservação permanente
é um conceito do direito administrativo, construído a partir da interpretação
dos dispositivos do Código Florestal e Resoluções do CONAMA que tratam
das áreas de preservação permanente (Res. 302, 303 e 369), conjugados com o
conceito de floresta.
É majoritário o entendimento de que a complementação conceitual não
traz, via de regra, problemas graves em face do princípio da legalidade, já que
a própria norma penal delimita materialmente o espaço a ser preenchido pelo
direito administrativo – devendo, como sempre, evitar a utilização de termos
amplos e genéricos. O Direito Administrativo fica adstrito ao conteúdo material
mínimo daquele conceito.
O segundo tipo de acessoriedade é a normativa, que se verifica quando a
redação típica é complementada por uma norma administrativa de caráter geral
(leis, decretos, portarias, resoluções etc.). Os tipos penais com essa característica
são denominados de normas penais em branco pela doutrina. Como exemplo,
pode-se citar a segunda parte do art. 38 da Lei 9.605/9815 ou o art. 56 da mesma lei.
A norma penal dessa espécie pode ser complementada por leis da mesma
hierarquia e fonte legislativa, sendo chamadas de normas penais em branco
homogêneas, ou por fontes diversas (normas penais em branco heterogêneas).
As normas penais heterogêneas têm dado ensejo a discussões acerca de
eventual ofensa ao princípio da legalidade, já que o conteúdo do tipo acaba
sendo modificado por outras instituições que não o Congresso Nacional.
Tem-se reconhecido que o Poder Legislativo pode delegar espaços no tipo
penal para a complementação pelo Poder Executivo, desde que o faça de modo
delimitado e em matérias que necessitem, em razão de suas características, de tais
complementações. Segundo Regina Helena Lobo da Costa, o Poder Executivo
deve ficar limitado, quando da complementação, pelo conteúdo semântico da
palavra ou locução a ser complementada, não podendo complementá-la além
dos limites materiais e substanciais da locução a ser completada (2009, p. 195).
68
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O terceiro tipo de acessoriedade ocorre quando o tipo penal se refere
a um ato administrativo concreto, como uma conduta praticada sem licença,
autorização ou permissão, ou em desacordo com esses atos. Há inúmeros
exemplos dessa espécie de tipos penais na Lei dos Crimes Ambientais, podendose citar, dentre outros, os artigos 50-A, 51e 52.
O principal conflito que esses crimes geram se refere à legitimidade de
se criminalizar meras desobediências administrativas, que, em inúmeros casos,
não acarretam qualquer dano ou perigo ao bem jurídico-penal. Considera-se
que o ato administrativo não pode ser usado como único parâmetro do tipo
penal, devendo-se acrescer outros elementos que afastem a criminalização da
mera desobediência administrativa.
Na visão de Regina Helena Lobo da Costa, caso o legislador não siga
tal orientação e redija tipos fundados meramente na desobediência a atos
administrativos, deverá o intérprete aplicar corretivos, no sentido de afastar
a tipificação de condutas que não apresentem lesão do bem jurídico ou sua
colocação em perigo. Caso contrário, haverá uma série de situações em que
a afetação do bem jurídico meio ambiente estará ausente e a determinação do
conteúdo típico ficará, afinal, a cargo do funcionário responsável pelo ato, o que
abre as portas para a insegurança jurídica e para o arbítrio (2009, p. 199).
Apesar dos problemas citados, não se pode esquecer a importância dos
atos de autorização, licença e permissão ou de proibição e interdição para o
desenvolvimento e execução da política ambiental. Tais atos, pelo seu caráter de
concretude, permitem que se leve em consideração variáveis locais, temporais e
técnicas específicas para determinar a conduta permitida ou a proibida. Para o
destinatário do ato, também há um importante aspecto de segurança jurídica, já
que a Administração transmite informações específicas sobre as condutas que
deverá adotar.
Nesse sentido, conclui-se, então, que o Direito Penal Ambiental tem de
conviver com a complementação de seus tipos pelo Direito Administrativo.
Nesse contexto, sustenta-se que não há autonomia absoluta entre as esferas,
pois se considera a unidade lógica do sistema jurídico. Uma mesma conduta
concreta não pode, ao mesmo tempo, ser lícita no Direito Administrativo e
proibida criminalmente.
Com isso não se quer dizer que a ilicitude é coincidente nas duas esferas.
Ilícitos administrativos devem, na maioria dos casos, em razão do princípio
da subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal – não configurar
qualquer crime. Ocorre que o ilícito penal encerra tamanha gravidade dentro
do sistema jurídico que, necessariamente, não poderá ser permitido por outro
ramo do Direito. O ilícito penal precisa ser antijurídico, ou seja, encerrar uma
contrariedade à totalidade da ordem jurídica (TAVARES, 2000, p. 116-117).
69
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
4. CONCLUSÃO
O Direito Penal está inserido no sistema de controle social como principal
instrumento do Estado na atuação na tutela de bens jurídicos fundamentais,
alcançando o controle normativo por meio de um conjunto de normas destinadas
a promover, além da pacificação social, a própria sobrevivência da sociedade
humana no planeta.
Portanto, a função do Direito Penal é, de forma inequívoca, a proteção
dos bens jurídicos essenciais aos cidadãos, tanto individualmente como
coletivamente considerados. O fato de um bem jurídico ser caracterizado como
coletivo, como o meio ambiente, não pode servir para barrar a ingerência penal.
Nesse sentido, o Direito Penal, como mecanismo de controle social, deve
se adaptar à dinâmica da sociedade atual e lançar reações que sejam capazes de
atender à política social dos tempos atuais e ao mesmo de respeitar os ditames
dos princípios constitucionais penais.
O reconhecimento da atuação do Direito Penal na proteção ambiental
é imperioso, por possuir a função inequívoca de proteção dos bens jurídicos
essenciais aos cidadãos. Sua direção, dessa forma, necessariamente deve pender
para a prevenção de ofensas a estes bens jurídicos, sob pena de perda de sua
eficácia. Ao assumir um desempenho preventivo, o Direito Penal cria condições
de evitar danos incorrigíveis e situações ambientais catastróficas, algo que o
Direito Administrativo não seria capaz de realizar sozinho.
Com a expansão do Direito Penal, é necessária a harmonia entre a proteção
dos bens jurídicos coletivos, como o meio ambiente, e a manutenção de um sistema
de intervenção punitiva baseado no princípio da legalidade e na proteção dos
direitos fundamentais. Recusar a proteção penal do meio ambiente simplesmente
pelo receio à concepção de novos tipos penais é negar a realidade caótica da
deterioração do meio ambiente e a necessária e urgente proteção jurídico-penal.
Vislumbra-se que a complementação de tipos penais por meio de atos
e normas do Direito Administrativo pode gerar conflitos à luz de princípios
penais como o da legalidade e o da lesividade a bens jurídicos. Todavia,
essa complementação é inafastável na seara ambiental, em razão de suas
características peculiares. Isso não pode servir de barreira intransponível para a
proteção penal do meio ambiente.
O correto é a constituição de um arcabouço que permita a plena incidência
das normas penais, afastando a punição da mera desobediência administrativa
e evitando decisões que desrespeitem a unidade lógica do sistema jurídico e o
espaço de decisões políticas relacionadas ao meio ambiente.
Em conclusão, o Direito Penal é legítimo para a tutela tanto repressiva
como preventiva do meio ambiente. Os problemas advindos da acessoriedade
70
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
administrativa no Direito Penal Ambiental merecem ser enfrentados, sempre
buscando uma tutela mais efetiva e mais eficaz. Afinal, o meio ambiente é
bem jurídico intermediário: a vida, a integridade física, a saúde e o patrimônio
correm risco através de um dano ambiental.
71
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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74
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
ALTERAÇÕES DA ORDEM ECONÔMICA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA.
ANÁLISE DAS MODIFICAÇÕES MATERIAIS INTRODUZIDAS PELO
CONSTITUINTE DERIVADO
Alexandre Walmott Borges118
Alfredo José dos Santos119
Luciana Campanelli Romeu120
INTRODUÇÃO
O trabalho analisa as alterações promovidas por Emendas constitucionais
aos textos normativos integrantes da Ordem Econômica da Constituição
brasileira. O ponto de análise é a verificação do grau de amplitude e alcance das
alterações. Para tanto, usa-se a ideia base de certo conteúdo material das normas
da constituição econômica e utiliza-se de divisão entre as normas de garantia,
as normas de organização e as normas de programa da Ordem Econômica. A
pesquisa é basicamente teórica (com referencial bibliográfico) com análise de
documentos constitucionais (alguns esparsos julgados) para a contextualização
da teoria de base e, ao final, a comprovação de resultado de que as alterações
são, basicamente, de normas organizacionais da OEF121.
1. ELEMENTOS À COMPREENSÃO DE ALTERAÇÕES MATERIAIS NA OEF
Para a compreensão do alcance das alterações promovidas pelo
Constituinte derivado vai-se aos pontos centrais de análise:
1°, a compreensão de uma constituição econômica material que trata das
normas da economia consagradas na Constituição;
2°, a verificação de que as normas da OEF podem ser normas de garantia,
normas de organização e normas de programa.
A OEF da Constituição brasileira está presente no Título VII, entre os
artigos 170 a 192 (CADE, 2007). Ao se tomar um conceito mais amplo de
Doutor em Direito UFSC. . Professor do programa de mestrado em Direito da UFU e da
UNESP. Área de pesquisa: jurisdição constitucional e ordem econômica; teoria da constituição
econômica.
119
Doutor em Direito PUC-SP. Professor do programa de mestrado em Direito da UNESP.
Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Área de pesquisa: direito empresarial; governança e
atividade empresarial.
120
Mestra em Direito UNESP. Doutoranda em Direito USP. Área de pesquisa: jurisdição
constitucional e teoria constitucional.
121
Utiliza-se, à larga, a abreviatura OEF para a Ordem Econômica da Constituição.
118
75
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Ordem econômica, tomando-se a Ordem Econômica em sentido material,
descortina-se um universo mais abrangente. Para a apreensão do sentido
material de Ordem econômica, deve-se acompanhar a distinção elaborada
sobre Ordem Econômica material e Ordem Econômica formal. Além desse,
a diferença entre constituição econômica material e constituição econômica
formal (CANOTILHO & MOREIRA, 1991):
Ao conjunto das normas constitucionais e dos princípios constitucionais
relativos à economia - i. e., à ordem constitucional da economia - pode darse, (...), o nome de Constituição econômica. Trata-se do conjunto de normas
e de princípios constitucionais que caracterizam basicamente a organização
econômica, determinam as principais regras de seu funcionamento,
delimitam a esfera de ação dos diferentes sujeitos econômicos, prescrevem
os grandes objetivos da política econômica, enfim, constituem as bases
fundamentais da ordem jurídico-política da economia.
Bem pode se ver que a expressão constituição econômica é uma adaptação
do conceito de constituição – normas jurídicas básicas de organização do
Estado – para o específico campo das normas jurídicas de conteúdo econômico
– normas jurídicas básicas de organização da economia de um Estado
(Miranda, 2002). Assim, como há a utilização do conceito de constituição para
o conceito de constituição econômica, há também a utilização dos conceitos
de constituição formal e de constituição material. Há, dessa maneira, uma
constituição econômica formal e uma constituição econômica material
(CAMARGO, 1993) (GRAU E. R., 1981) (GRAU E. R., 1990) (VENÂNCIO
FILHO, 1968).
Nem todos os elementos constitutivos de um sistema econômico
estão consagrados no texto da constituição e também há normas básicas de
organização da economia que estão em normas infraconstitucionais (e não
na constituição). Os conjuntos de normas básicas da economia que não estão
escritas na constituição, ou que estão em textos normativos que não são a
constituição, integram a constituição econômica material (GRAU E. R., 1990).
Além das normas que não estão escritas, das normas que estão em outros
textos normativos, há também as normas básicas que estão no texto. Com este
conjunto de informações pode-se dizer que a constituição econômica material é
medida pelo conteúdo da norma: deve ser norma básica ao sistema econômico.
Em contraste, as normas jurídicas da economia que estão dispostas
na constituição são o conjunto normativo que é a constituição econômica
formal. Pode bem acontecer de normas jurídicas da economia não serem
normas básicas mas, por estarem no texto constitucional, são integrantes da
76
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
constituição econômica formal. E normas básicas que estão no texto e
constituem a constituição econômica material. Assim, normas jurídicas
básicas da economia que estão no texto são, simultaneamente, integrantes da
constituição econômica material e formal (GRAU E. R., 1981) (GRAU E. R.,
1990) (VENÂNCIO FILHO, 1968).
Nem sempre a expressão constituição econômica pode ser empregada
como se fosse a expressão sinônima de ordem econômica. A expressão
ordem econômica pode designar várias realidades (GRAU E. R., 1990):
1) Ordem econômica pode ser o sinônimo de sistema econômico já que
um sistema econômico é uma ordem da economia ou uma determinada
organização da economia (construção típica do mundo do ser)..
2)Ordem econômica pode ser a expressão de todas as normas que
regulam o sistema econômico, podendo ser as normas jurídicas, morais,
religiosas, entre tantas outras, já que as normas ordenam a economia.
3) Ordem econômica pode ser a expressão das normas jurídicas que
regulam o sistema econômico, tanto podendo designar:
a.Toda e qualquer norma jurídica que tenha conteúdo econômico;
b. As normas jurídicas constitucionais que tenham conteúdo
econômico (o que, neste caso, é sinônimo de constituição econômica);
c. As normas jurídicas constitucionais reunidas numa parte específica
denominada ordem econômica constitucional (o que, neste caso, é o
Título VII da Constituição).
A Ordem Econômica constitucional brasileira está concentrada no
Título VII, dos artigos 170 a 192. Na verdade, o título inteiro é Ordem
Econômica e Financeira. Várias das alterações realizadas pelo Poder
Constituinte Derivado e aqui abordadas, são de textos normativos que
estão escritos fora do Título VII, como é o caso dos serviços públicos
e das atividades econômicas presentes – e alteradas – no artigo 21 da
Constituição. Pode-se acrescentar que na linha condutora do trabalho, vaise valer da expressão constituição econômica de maneira abrangente,
justamente para apanhar e descrever alterações da ordem econômica
constitucional (no sentido do item b, acima).
Outro aspecto de interesse para o trabalho é o questionamento sobre a
própria natureza constitucional de normas sobre a ordem econômica. Ao se
adotar o conceito material de Constituição do liberalismo, esta seria o conjunto
normativo envolvente da regulação do Estado. E tome-se o Estado como agente
77
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
garantidor de certos pressupostos funcionais da economia. Dessa maneira,
a constituição econômica material do liberalismo é o conjunto de regulação
da ação estatal na economia de maneira a colocar o Estado como garantidor
de certos pressupostos funcionais. Tomando-se o conteúdo das normas da
constituição econômica, tem-se o seguinte (PATRÍCIO, 1985):
i) as normas que demarcam e garantem os elementos definidores de um
sistema econômico, nesse sentido constituintes do mesmo sistema (área
de garantia, constituição estatutária);
ii) as normas que têm por objeto as formas de organização e funcionamento
do sistema, normas que podem variar e de fato variam, no espaço e no
tempo, para um mesmo e único sistema (área de organização);
iii) as normas que prospectivamente disciplinam ou implementam uma
nova ordem econômica, mostrando-se aí – [...] - o papel inovador ou
criador do Direito (área de programa, constituição programática).
O que se percebe é que os conteúdos alterados pelo constituinte derivado
são aqueles identificados como a área de organização da constituição
econômica nacional. Com isso quer-se dizer que houve alteração material de
conteúdos que disciplinavam a ação estatal na economia. Por outro lado da
observação, vê-se que não há alteração, patrocinada pelo constituinte derivado,
de normas da área de garantia da constituição econômica.
As normas de garantia da constituição econômica brasileira estão
concentradas nos Princípios Fundamentais – Título I -, nos Direitos
Fundamentais – Título II -, e no próprio Título VII – OEF. Da análise de toda
a atividade do constituinte derivado, não se vê alteração de destaque nos 25
anos da vigência da Constituição. Como afirmado acima, há sim alterações na
área de organização, notadamente sobre as formas de intervenção estatal na
economia. Mesmo na área de programa, cumpre destacar que não há também
alterações do constituinte derivado no programa constitucional da OEF.
A ideia de constituição econômica dirigente está bastante distante da
natureza da Constituição brasileira (CANOTILHO J. J., 1994):
‘Deve uma Constituição conceber-se como ‘estatuto organizatório’, como
simples ‘instrumento de governo’, definidor de competências e regulador
de processos, ou, pelo contrário, deve aspirar a transformar-se num plano
normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e
define fins? Uma Constituição é uma lei do Estado e só do Estado ou é
um ‘estatuto jurídico do político’, um ‘plano global normativo’ do Estado
e da sociedade.’
78
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A leitura de Canotilho, de uma constituição dirigente econômica, não é
visível no texto da Constituição brasileira. Que toda a norma é um programa,
isto é assentado na teoria constitucional. Cumpre analisar qual a ambição
programática (Böckenförde, 1993). No caso da Constituição brasileira não
há grandes projetos ou determinações por demais vinculantes. Antes, há um
programa aberto com coordenadas genéricas de bem-estar social (Bonavides,
Do Estado Liberal ao Estado Social, 1996).
Basicamente, a OEF define o tipo peculiar de organização do sistema
econômico – capitalista e o sistema econômico pode assumir formas ou regimes
diferenciados (MOREIRA, 1977) (Lajugie, 1959). Com essas informações devese visualizar que mencionar que as alterações da OEF se processaram nas normas
de organização significa interpretar os princípios constitucionais, de tal maneira
que se ordene um núcleo de normas que são definidoras do sistema econômico
e uma quantidade de normas que complementam e dão forma ao sistema. O
sistema econômico capitalista pode assumir formas ou regimes diferenciados. As
diferenças são decorrência de fatores históricos, de ideologias e de valores.
É relevante lembrar que não existe um consenso sobre como se deve
designar a forma ou o regime do sistema econômico na constituição brasileira.
Como sói acontecer nesses casos, deve-se devemos atentar aos princípios e
interpretá-los:
É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção
por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa
circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só
intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples
instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes,
programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula
um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade,
informado pelos preceitos veiculados pelos seus arts. 1º, 3º e 170. A livre
iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas
também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita
também da ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem
pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a livre
iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências
tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura
e ao desporto (arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217, § 3º, da Constituição).
Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o
interesse da coletividade, interesse público primário. O direito ao acesso
à cultura, ao esporte e ao lazer são meios de complementar a formação
dos estudantes (BRASIL STF, 2006).
79
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Assim, princípios valem tanto para o reconhecimento do sistema
econômico como para o reconhecimento da forma ou do regime do sistema
econômico. É na área das formas do sistema econômico, mais especificamente
nas normas de organização do sistema econômico que se houve a produção
constituinte derivada alteradora da OEF (Ferrajoli, et al., 2009).
A diferença entre princípios e regras também é oportuna já que se
pode verificar o grau de alcance das alterações, a profundidade material das
alterações, pela dicotomia. Regras são mais definidas e não trazem conteúdos
tão abrangentes quanto os princípios. Assim, alterações de regras são de
menor alcance que alterações nos princípios (Alexy, 2002) (Bonavides, 1998)
(Dworkin, 1997).
2. EMENDAS E ALTERAÇÕES NA OEF.
As alterações atacaram conteúdos variados do subsistema constitucional
da OEF. Verificam-se as alterações por ordem cronológica.
2.1 DIFERENCIAÇÕES ENTRE EMPRESA BRASILEIRA E EMPRESA BRASILEIRA DE
CAPITAL NACIONAL
A EC n° 06, do ano de 1995, acabou com a diferenciação que havia no
texto original, entre empresa brasileira com sede no Brasil e empresa brasileira
de capital nacional122. A redação original era a seguinte – artigo 170, inciso IX
(BRASIL Constituição Federal, 1988):
IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital
nacional de pequeno porte.
Na íntegra (BRASIL Emenda Constitucional n° 06, 1995): As Mesas da Câmara dos Deputados
e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a
seguinte emenda ao texto constitucional: Art.1º O inciso IX do art. 170 e o § 1º do art. 176 da
Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 170 [...] IX - tratamento
favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham
sua sede e administração no País. Art. 176 [...] § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais
e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser
efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou
empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma
da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em
faixa de fronteira ou terras indígenas.” Art.2º Fica incluído o seguinte art. 246 no Título IX “Das Disposições Constitucionais Gerais”: “Art.246. É vedada a adoção de medida provisória na
regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda
promulgada a partir de 1995.” Art. 3º Fica revogado o art. 171 da Constituição Federal. Brasília,
15 de agosto de 1995.
122
80
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
E com a nova redação, manteve-se o tratamento isonômico à empresa de
pequeno porte mas sem a distinção entre as sediadas no Brasil e as de capital
brasileiro (BRASIL Constituição Federal, 1988):
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. E revogou todas as disposições do artigo 171 que disciplinavam a
diferença entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional. A
redação do artigo 171 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):
Art. 171. São consideradas: I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha
sua sede e administração no País; II - empresa brasileira de capital
nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a
titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes
no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por
controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital
votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir
suas atividades. § 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional: I
- conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver
atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou
imprescindíveis ao desenvolvimento do País; II - estabelecer, sempre
que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico
nacional, entre outras condições e requisitos: a) a exigência de que o controle
referido no inciso II do “caput” se estenda às atividades tecnológicas
da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder
decisório para desenvolver ou absorver tecnologia; b) percentuais de
participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no
País ou entidades de direito público interno.§ 2º - Na aquisição de bens e
serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei,
à empresa brasileira de capital nacional.
A EC n° 06 também estendeu o fim da distinção às atividades
concessionadas ou autorizadas na exploração minero-mineral.
2.2. ABERTURA AOS AGENTES ECONÔMICOS ESTRANGEIROS PARA A EXPLORAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS
A EC n° 06 também encerrou a distinção entre empresa brasileira e
empresa brasileira de capital nacional na concessão ou autorização de recursos
minerais. O texto original era o seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):
81
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os
potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do
solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,
garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
§ 1º - A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos
potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser
efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse
nacional, por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional, na
forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas
atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.
E passou à seguinte forma (BRASIL Constituição Federal, 1988):
§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos
potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser
efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse
nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que
tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá
as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em
faixa de fronteira ou terras indígenas. A cessação de distinção também se estendeu ao corpo de normas
constitucionais reguladoras dos transportes.
2.3. ALTERAÇÕES NA REGULAÇÃO DOS MODAIS DE TRANSPORTE
A EC n° 07 modificou o regime vigente sobre a regulação de transportes.
A redação original do artigo 178 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal,
1988)123:
No inteiro teor (BRASIL Emenda Constitucional n° 07, 1995): As Mesas da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam
a seguinte emenda ao texto constitucional: Art. 1º O art. 178 da Constituição Federal passa a vigorar
com a seguinte redação: “Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e
terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados
pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Parágrafo único. Na ordenação do transporte
aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a
navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.” Art. 2º Fica incluído o seguinte
art. 246 no Título IX - “Das Disposições Constitucionais Gerais”: “Art. 246. É vedada a adoção de
medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por
meio de emenda promulgada a partir de 1995.” Brasília, 15 de agosto de 1995
123
82
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Art. 178. A lei disporá sobre: I - a ordenação dos transportes aéreo, aquático
e terrestre; II - a predominância dos armadores nacionais e navios de
bandeira e registros brasileiros e do país exportador ou importador; III
- o transporte de granéis; IV - a utilização de embarcações de pesca e
outras. § 1º A ordenação do transporte internacional cumprirá os acordos
firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade § 2º Serão
brasileiros os armadores, os proprietários, os comandantes e dois terços,
pelo menos, dos tripulantes de embarcações nacionais § 3º A navegação
de cabotagem e a interior são privativas de embarcações nacionais, salvo
caso de necessidade pública, segundo dispuser a lei.
E passou à seguinte redação (BRASIL Constituição Federal, 1988):
Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático
e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional,
observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da
reciprocidade.
Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá
as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a
navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras. Como se vê, as reservas aos agentes econômicos nacionais foram
suprimidas por um conteúdo geral de atendimento à reciprocidade (Jo, 2004).
Apenas o transporte aquaviário manteve alguma reserva com relação ao trânsito
de naves estrangeiras.
2.4. ALTERAÇÕES NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE TELECOMUNICAÇÕES
A EC n° 08 trouxe alteração aos serviços de comunicação telefônica
permitindo a delegação a agentes privados de tais serviços. A redação original
do inciso do artigo 21 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988)124:
O inteiro teor da EC (BRASIL Emenda Constitucional n° 08, 1995): As Mesas da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam
a seguinte emenda ao texto constitucional: Art.1º O inciso XI e a alínea “a” do inciso XII do art.
21 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 21. Compete à União:
[...] XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de
telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de
um órgão regulador e outros aspectos institucionais; XII [...] a) explorar, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens; “
Art. 2º É vedada a adoção de medida provisória para regulamentar o disposto no inciso XI do art.
21 com a redação dada por esta emenda constitucional. Brasília, 15 de agosto de 1995.
124
83
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Art. 21. Compete à União:
XI - explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle
acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de
dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a
prestação de serviços de informações por entidades de direito privado
através da rede pública de telecomunicações explorada pela União.
E passou a ser seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):
XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou
permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que
disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador
e outros aspectos institucionais
Com a alteração complementar do inciso XIII (BRASIL Constituição
Federal, 1988):
XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou
permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens e demais
serviços de telecomunicações;
Que passou a contar com a seguinte redação (BRASIL Constituição
Federal, 1988):
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens
Com isso, houve, logo no posterior à EC, a alienação das empresas
estatais prestadoras do serviço. Também as atividades econômicas exploradas
pelo Estado sofreram alteração (Cezne, 2005).
2.5. O NOVO REGIME DO MONOPÓLIO CONSTITUCIONAL DOS HIDROCARBONETOS.
O artigo 177 contemplava o monopólio estatal da União com a
obrigatoriedade de execução somente por entidades estatais (BRASIL
Constituição Federal, 1988):
Art. 177. Constituem monopólio da União:
I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros
hidrocarbonetos fluidos;
II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos
resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
84
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de
derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte,
por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de
qualquer origem;
[...]
§ 1º O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados
decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União
ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor,
na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto
no art. 20, § 1º.
A nova redação, dada pela EC n° 09125, permite a contratação do monopólio
petroleiro com agentes econômicos privados (BRASIL Constituição Federal, 1988):
§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas
a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo
observadas as condições estabelecidas em lei.
§ 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: I - a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o
território nacional; II - as condições de contratação; III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União; § 2º - A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais
radioativos no território nacional.
§ 3º A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos
no território nacional.
Não só o monopólio das atividades petroleiras foi alterado. Também
houve alteração no monopólio dos resseguros.
O inteiro teor da EC (BRASIL Emenda constitucional n° 09, 1995): As Mesas da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60, § 3º, da Constituição Federal, promulgam
a seguinte emenda ao texto constitucional: Art.1º O § 1º do art. 177 da Constituição Federal passa
a vigorar com a seguinte redação: “Art. 177 [...] § 1º A União poderá contratar com empresas
estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas
as condições estabelecidas em lei.” Art. 2º Inclua-se um parágrafo, a ser enumerado como § 2º com
a redação seguinte, passando o atual § 2º para § 3º, no art. 177 da Constituição Federal: “Art. 177
[...] § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: I - a garantia do fornecimento dos derivados
de petróleo em todo o território nacional; II - as condições de contratação; III - a estrutura e
atribuições do órgão regulador do monopólio da União”. Art. 3º É vedada a adoção de medida
provisória para a regulamentação da matéria prevista nos incisos I a IV e dos §§ 1º e 2º do art. 177
da Constituição Federal. Brasília, 9 de novembro de 1995
125
85
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
2.6. ALTERAÇÃO NO MONOPÓLIO DOS RESSEGUROS
Na redação original do texto de 1988 havia três monopólios. Um, dos
hidrocarbonetos; outro, das atividades nucleares; o terceiro, o monopólio dos
resseguros previsto no artigo 192 – EC n° 13 (BRASIL Constituição Federal, 1988)126:
II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro,
previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do
órgão oficial ressegurador; E passou a contar com a seguinte redação (BRASIL Constituição Federal,
1988):
II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro,
resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial
fiscalizador. Ao contrário do monopólio dos hidrocarbonetos que foi alterado, o
monopólio dos resseguros foi extinto.
2.7. ALTERAÇÕES DO REGIME DAS EMPRESAS ESTATAIS EXPLORADORAS DE
ATIVIDADES ECONÔMICAS
Além das atividades econômicas exploradas em regime monopolista, o
constituinte derivado também produziu normas disciplinadoras do regime geral
das empresas estatais que exercem atividades em regime competitivo. A redação
original do § 1°, artigo 173 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):
§ 1º - A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras
entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime
jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações
trabalhistas e tributárias.
E passou ao seguinte teor (BRASIL Constituição Federal, 1988):
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade
de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade
O teor da EC (BRASIL Emenda Constitucional n° 13, 1996): As Mesas da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam
a seguinte emenda ao texto constitucional: Artigo único. O inciso II do art. 192 da Constituição
Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 192[..]II - autorização e funcionamento dos
estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial
fiscalizador.” Brasília, 21 de agosto de 1996.
126
86
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de
serviços, dispondo sobre: I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas,
inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas
e tributários; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações,
observados os princípios da administração pública; IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e
fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos
administradores.
Interessante notar que as alterações das empresas estatais vieram no bojo
da EC n° 19, da reforma administrativa127.
2.8. INSERÇÃO DE NOVAS REGRAS TRIBUTÁRIAS NO ARTIGO 177
O artigo 177 sofreu acréscimos de matéria tributária e de partilha de
receitas – EC n° 33 (BRASIL Constituição Federal, 1988):
§ 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico
relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e
seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá
atender aos seguintes requisitos: I - a alíquota da contribuição poderá ser:
a) diferenciada por produto ou uso; Na parte da EC que trata das empresas estatais (BRASIL Emenda Constitucional n° 19, 1998):
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da
Constituição Federal, promulgam esta Emenda ao texto constitucional: [...] Art. 22. O § 1º do
art. 173 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art.173[..] § 1º A lei
estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas
subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de
prestação de serviços, dispondo sobre: I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e
pela sociedade; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto
aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III - licitação e contratação
de obras, serviços, compras e alienações,observados os princípios da administração pública; IV
- a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação
de acionistas minoritários; V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade
dos administradores. [..]Art. 34. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua
promulgação. Brasília, 4 de junho de 1998
127
87
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe
aplicando o disposto no art. 150,III, b; II - os recursos arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível,
gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria
do petróleo e do gás; c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes. O conteúdo da EC n° 33, embora em texto da OEF, é de referência à
Ordem Tributária.
2.9. ALTERAÇÃO DO ARTIGO 192
A EC n° 40 eliminou do texto constitucional os vários incisos do artigo
192. A redação original era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):
O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade,
será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: I - a autorização para o funcionamento das instituições financeiras,
assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos
os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas
instituições a participação em atividades não previstas na autorização de
que trata este inciso; III - as condições para a participação do capital
estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores,
tendo em vista, especialmente: a) os interesses nacionais; b) os acordos
internacionais IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do
banco central e demais instituições financeiras públicas e privadas;V - os
requisitos para a designação de membros da diretoria do banco central
e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos após o
exercício do cargo; VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de
proteger a economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósitos
até determinado valor, vedada a participação de recursos da União;VII os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda
inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento; VIII
- o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que
possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das
instituições financeiras. § 1º - A autorização a que se referem os incisos I
e II será inegociável e intransferível, permitida a transmissão do controle
88
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema
financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade
técnica e reputação ilibada, e que comprove capacidade econômica
compatível com o empreendimento.§ 2º - Os recursos financeiros
relativos a programas e projetos de caráter regional, de responsabilidade
da União, serão depositados em suas instituições regionais de crédito e
por elas aplicados. § 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões
e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à
concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano;
a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura,
punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.
Houve a redução com a eliminação de todas as regras dos incisos
(BRASIL Constituição Federal, 1988):
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade,
em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito,
será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a
participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
O artigo 192 encerrava a disposição sobre o limite de juros no Brasil.
Com a revogação dos dispositivos, perdeu a natureza constitucional.
2.10. INTRODUÇÃO DO PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR NA OEF
A EC n° 42, do ano de 2003, trouxe alterações aos princípios do artigo
170. A redação original era (BRASIL Constituição Federal, 1988):
VI - defesa do meio ambiente;
A nova redação (BRASIL Constituição Federal, 1988):
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos
de elaboração e prestação;
Com o novo texto é possível diferenciar o tratamento administrativo e
tributário a ser dado aos processos de produção. Com isso, incorporam-se à
OEF os princípios ambientais do poluidor-pagador.
89
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
2.11. ALTERAÇÕES NO MONOPÓLIO DAS ATIVIDADES NUCLEARES
As atividades nucleares não sofreram as alterações com a mesma
profundidade do monopólio dos hidrocarbonetos. As modificações patrocinadas
pelo constituinte derivado dizem respeito às formas de autorização – e agora
permissão - que poderão gozar os agentes privados, nalgumas limitadas
atividades com materiais nucleares. Eis o texto da EC n° 49 com as alterações
promovidas, primeiro no artigo 177 (BRASIL Constituição Federal, 1988):
V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus
derivados.
Com o novo texto:
V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus
derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização
e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme
as alíneas b e c do inciso XXIII docaput do art. 21 desta Constituição
Federal. No artigo 21:
XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza
e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e
reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e
seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:
a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida
para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;
b) sob regime de concessão ou permissão, é autorizada a utilização de
radioisótopos para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas, industriais
e atividades análogas; c) a responsabilidade civil por danos nucleares
independe da existência de culpa;
Agora com a seguinte redação:
b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a
utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e
industriais; 90
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização
e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência
de culpa; A mudança basicamente é a mudança do regime de direito administrativo
de autorização para o de permissão.
3. ALTERAÇÕES E ESCALA TEMPORAL – PRESIDÊNCIAS
As alterações na OEF foram todas processadas nos mandatos de dois
Presidentes, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Em
significado das alterações e no número de disposições textuais alteradas, a
promoção de ECs no mandato de Fernando Henrique Cardoso foi maior do que
no de Lula da Silva. Eis o quadro comparativo:
EMENDAS CONSTITUCIONAIS NA
GESTÃO DE FERNANDO
HENRIQUE CARDOSO
1995-2003
EC n° 06 - 1995
EC n° 07-1995
IDENTIFICAÇÃO DA EMENDA
CONSTITUCIONAL
Eliminou o tratamento diferencial entre empresas de pequeno porte e empresas de pequeno porte de capital nacional;
revogou no inteiro teor a distinção entre empresa brasileira e
empresa de capital nacional (artigo171); revogou a restrição
de que somente empresa brasileira de capital nacional poderia explorar recursos minero-minerais;
Alterou as formas de exploração dos transportes aquaviário, aéreo, terrestre, e no revogou as formas que
limitavam a
exploração à empresas e naves brasileiras
EC n° 08-1995
Alterou as disposições sobre serviços públicos, permitindo a delegação a agentes privados (telefonia);
EC n° 09-1995
Alterou as disposições sobre o monopólio estatal do
petróleo
EC n° 19-1998
Adotou a ideia de que lei dotará as empresas estatais exploradoras de atividades econômicas de regime específico;
adicionou novas regras sobre o funcionamento, o controle e a
gestão das empresas estatais;
EC n° 33-2001
Inseriu alterações na partilha de receitas dos hidrocarbonetos e instituiu Contribuição de intervenção no domínio
econômico
SEIS EMENDAS
CONSTITUCIONAIS AO TOTAL
ALTERAÇÕES EM VÁRIAS DISPOSIÇÕES DE ATIVIDADES
ECONÔMICAS, ESTATUTO DA NACIONALIDADE DO CAPITAL, DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E MONOPÓLIOS.
91
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Em Luís Inácio Lula da Silva:
EMENDAS CONSTITUCIONAIS NA
GESTÃO DE LUÍS INÁCIO LULA DA
SILVA – 1995-2003
IDENTIFICAÇÃO DA EMENDA
CONSTITUCIONAL
EC n° 42-2003
Inseriu o tratamento diferencial das atividades econômicas de
acordo com o potencial ou efetivo efeito nocivo ao ambiente
EC n° 40-2003
Alterou a disciplina do SFN revogando várias
disposições do artigo
EC n° 49-2006
Alterou o regime de autorização das atividades nucleares
TRÊS EMENDAS
CONSTITUCIONAIS AO TOTAL
ALTERAÇÕES PONTUAIS, NO SFN, MEIO-AMBIENTE
E ATIVIDADES NUCLEARES.
Materialmente, vê-se que as modificações significativas ocorreram entre
1995 e 1998.
4. CONCLUSÕES
As alterações refletem mudanças textuais na parte de normas de
organização da OEF. Tocam nos seguintes eixos materiais:
1. De maior delegação de serviços públicos aos agentes privados;
2. Maior participação de agentes privados nas atividades econômicas;
3. Regramento sem tratamento diferencial à empresa de capital nacional;
4. Abertura à participação de agentes econômicos estrangeiros – em
delegações variadas;
5. Incorporação do princípio do poluidor-pagador;
6. Extinção de monopólio estatal;
7.Desconstitucionalização dos conteúdos do sistema financeiro nacional.
Nota-se que as alterações refletem em pontos organizacionais da OEF
sem que sejam substancialmente alterados:
1. Não há alteração na parte de garantia da OEF;
2. Não há alteração na parte programática da OEF;
3. As alterações são em algumas regras da OEF.
92
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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94
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
CREDITO DOCUMENTARIO; GLOBALIZACIÓN Y FRAUDE
Fernando G. D´Alessandro128
I. INTRODUCCIÓ: BREVES REFLEXIONES SOBRE EL CRÉDITO DOCUMENTARIO
El crédito documentario surge frente a la desconfianza inherente a la
celebración de operaciones de compraventa internacional entre sujetos que
no se conocen demasiado y que se encuentran ubicados en distintas plazas;
y a las dudas que pueden suscitarse acerca de la solvencia de las partes; del
comportamiento comercial de las mismas; y de la calidad y cantidad de las
mercaderías, agravadas por la probable vigencia de legislaciones diversas, no
siempre coincidentes, que podrían tornar dificultoso el cumplimiento coactivo
de las obligaciones asumidas129.
Fue así como se pergeñó una operación -en principio triangular-, que
contemple la intervención de un banco otorgante de crédito y que brinde al
vendedor la seguridad de pago que un comprador no le puede ofrecer; y a este
último, la seguridad en la remisión de la mercadería adquirida, que habrá de ser
sustituida en el marco de la operación por documentos representativos.
Esta operación, en su versión más simple, entraña una superposición
de relaciones jurídicas entre tres sujetos intervinientes en virtud de la cual el
comprador/ordenante, atendiendo al compromiso asumido en el contrato de
compraventa, contrata con su banco la apertura de un crédito documentario
a favor del vendedor/beneficiario. Por su parte, el banco/emisor asume la
obligación de emitir una carta de crédito a nombre de este último –y de pagarle
su importe, aceptar o negociar letras de cambio-, contra la entrega de los
documentos acreditativos del envío de la mercadería contemplados en la carta
de crédito y en la compraventa original.
En el marco de la operatoria descripta pueden incorporarse otras
entidades bancarias intermediarias a fin de incrementar el nivel de confianza
de las partes. También es factible encontrar al crédito documentario vinculado
a otro tipo de transacciones como instrumento de pago bancario independiente
de la operación subyacente.
. Profesor Adjunto de la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires (UBA).
Licenciado en Derecho por la U.B.A; Especializado en Contratación y Mercados Financieros
Internacionales (Universidad de Castilla-La Mancha, España, 2004); Doctorado cursado en la
Universidad de El Salvador (tesis pendiente). Juez Nacional de 1ra. Instancia en lo Comercial.
129
Ver en general nuestros trabajos sobre Crédito Documentario en Tratado de Derecho Comercial,
dir. Ernesto E. Martorell, Ed. La Ley, Buenos Aires, 2010, t. III, ps. 325 y ss. y en Tratado de
Derecho Bancario, dir. Kabas de Martorell, Ed. Rubinzal Culzoni, t. III, ps. 251 y ss.
128
95
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
II. EVOLUCIÓN Y GLOBALIZACIÓN
El concepto de globalización no resulta unívoco, admitiendo diversas
acepciones que no revisten carácter uniforme y que, por lo demás, pueden
referir a distintos ámbitos como el social, el político, el cultural, el económico
y el jurídico.
Para la CEPAL (Comisión Económica para América Latina) la
globalización refiere a la creciente gravitación de los procesos financieros,
económicos, ambientales, políticos, sociales y culturales de alcance mundial en
los procesos de carácter regional, nacional y local, pudiendo advertirse como
rasgos sobresalientes la progresiva integración mundial de los mercados130.
Por su parte, Stiglitz considera que aquel fenómeno se encuentra
principalmente determinado por la enorme reducción de los costos de transporte
y comunicación, y por el desmantelamiento de las barreras artificiales a los
flujos de bienes, servicios, capitales, conocimientos y hasta personas131.
En ese marco, adquiere particular relevancia la evolución del comercio
y su fuerza expansiva que, frente a la insuficiencia del derecho común,
determinaron en primer término en la Edad Media el nacimiento del Derecho
mercantil como una categoría especial, autónoma y profesional, aplicable
únicamente a los comerciantes agrupados en corporaciones; y el origen de una
jurisdicción consular, con competencia específica para dirimir contiendas entre
comerciantes.
Esa jurisdicción se fue expandiendo, verificándose progresivamente
el tránsito de criterios subjetivos a otros de carácter objetivo para definir su
competencia; la supresión de las corporaciones; la aparición del concepto de
acto de comercio; la sanción del Código de Comercio francés; y la expansión del
Derecho Comercial, cuya aplicación dejaba de estar determinada por los sujetos
intervinientes para estarlo por el contenido objetivo de los actos involucrados,
alcanzando a los no comerciantes.
No obstante, desde fines del siglo XIX se va a presenciar un nuevo giro, y
el retorno a criterios subjetivos a través de la concepción del Derecho Mercantil
como el derecho de la empresa, con el realce de la figura del empresario y de
las sociedades como centro de regulación de la mano del Código Civil Alemán
de 1897 y del Código Civil italiano de 1942.
Debe quedar claro que el concepto de comercio no siempre coincidió con
la materia mercantil. Largamente precedió al nacimiento del Derecho Comercial
como categoría especial, pero fue su expansión la que determinó la necesidad
de esta regulación autónoma que, a su vez, fue generalizándose en el ámbito del
Montoya Alberti, Ulises, La globalización jurídica, ps. 279 y ss.
Stiglitz, Joseph, El malestar de la globalización, Ed. Taurus, Buenos Aires, p. 37.
130
131
96
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
derecho privado132 al punto de la unificación legislativa con el Derecho Civil en
varios países, dando lugar a la paradoja que destacaba Ascarelli al advertir que
un derecho especial moría en el instante de su máximo triunfo, esto es, cuando
adquiría la categoría de derecho común.
De todos modos la realidad siempre se impone y así como antes la
realidad del pasado era casi inmóvil en el tiempo y muy cambiante en el espacio,
hoy la misma se aprecia mucho más mutante en el tiempo y más uniforme
en el espacio, superponiendo la globalización de los mercados una nueva “lex
mercatoria” al derecho de los Estados133.
Retomando el hilo de la cuestión en análisis, debe señalarse que la fuerte
expansión del comercio internacional enfrentó el problema de la yuxtaposición
de legislaciones y hasta costumbres diferentes que contribuyeron a generar
la incertidumbre en el comercio entre distintas plazas de la que hablamos al
comienzo de este trabajo.
De tal modo, la operación de crédito documentario pergeñada para afianzar
la confianza de quienes pretendían celebrar compraventas entre distintas plazas
requería, para su exitosa difusión, de criterios y reglas más o menos uniformes.
El fracaso de las llamadas “letters of credit” derivado de múltiples
incumplimientos bajo excusas formales a fines de la primera guerra mundial
incentivó el dictado de diversos reglamentos o regulaciones sobre crédito
documentario en varios países (por ejemplo, las llamadas reglas de Nueva York
de 1920; las de Berlín de 1923; la ley de Grecia del mismo año; las aprobadas
en Francia en 1924 por la Unión Sindical de Banqueros de París, entre otras).
Esas reglas tenían carácter muchas veces local o regional y resultaron
insuficientes por su falta de generalización, sin embargo evidenciaron la
necesidad de uniformidad y fueron el germen de las posteriores Reglas y
Usos Uniformes relativos a los Créditos Documentarios, aprobados en Viena
en 1933 (RUU).
Cabe concluir pues que el crédito documentario aparece como un contrato
relativamente moderno, que se ha ido desarrollando a partir de las necesidades
del tráfico mercantil; de las referidas RUU; y de sus sucesivas revisiones por
parte de la Cámara de Comercio Internacional -CCI-. La última de ellas se
encuentra vigente desde el 01.07.07 (publicación o brochure nro. 600).
En la mayoría de los países, el crédito documentario es un contrato atípico,
pero esa atipicidad jurídica no se corresponde con una atipicidad social, toda
vez que es utilizado como uno de los medios de pago más usuales en materia de
V. Fontanarrosa, Rodolfo O., Derecho Comercial Argentino, Ed. Víctor P. de Zavalía, 1979,
ps. 18 y ss.
133
Ver Galgano, Francesco, La globalización en el espejo del derecho, Ed. Rubinzal Culzoni,
Buenos Aires, 2005, ps. 14/6.
132
97
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
transacciones internacionales, llegando según estimaciones a abarcar más del
15% de aquéllas.
La labor de la CCI en la elaboración de reglas o recopilación de usos
y costumbres, y su periódica revisión, tendiente a la uniformidad en esta
materia ha sido clave en la difusión y aplicación exitosa de esta herramienta del
comercio internacional.
Cierto es que la CCI carece de capacidad legisferante y que su intención
no parece haber sido la de elaborar un compendio integral de normas obligatorias
en materia de créditos documentarios, sino una guía para el desarrollo del
negocio sujeta a revisión.
Por lo demás, las RUU, más allá de que las partes en general se sujeten
voluntariamente a su aplicación, no contemplan una regulación hermética
de todas las cuestiones involucradas en el empleo de créditos documentarios,
de modo que muchas veces nos encontramos ante la necesidad de integrar
su aplicación con normas nacionales para cubrir alguna laguna o cuestión no
prevista por los sujetos intervinientes. En otras ocasiones, puede mediar colisión
entre aquellas y alguna norma de orden interno que resultará menester dirimir
en el caso concreto.
Con todo, el éxito en la tarea de la CCI y en la consecución de los objetivos
propuestos se fundó en la actitud asumida por los Estados que, en general y
salvo contadas excepciones como los Estados Unidos de Norteamérica e Italia,
declinaron la posibilidad de dictar regulaciones nacionales; en la adhesión
voluntaria de cámaras nacionales de comercio, asociaciones de bancos y bancos
en particular al texto de las RUU; y, en definitiva, en la convicción y seguridad
generadas que determinó, a su vez, la adhesión de los sujetos intervinientes
a la aplicación de dichas reglas por vía convencional, al punto de que gran
cantidad de los formularios de solicitud de apertura de créditos documentarios
ya contienen remisión a las RUU.
En este sentido, enseñaba Galgano que la economía contemporánea,
en antítesis al carácter nacional de los sistemas legislativos, es una economía
transnacional; en continua transformación y que exige la adecuación del
derecho a los cambios de la realidad. Así, continúa, la producción y distribución
en serie y a escala, impone a empresas transnacionales la necesidad de contratar
en condiciones uniformes134, relativizando la eficacia de las convenciones
internacionales de derecho uniforme para poner el énfasis en la circulación
internacional de modelos contractuales uniformes.
Se han elaborado múltiples tesis acerca de la naturaleza jurídica de dichas
reglas135.
Galgano, op. cit., ps. 105/6.
Ver reseña en tal sentido en Marimón Durá, Rafael, El crédito Documentario Irrevocable:
134
135
98
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Las más atendibles a nuestro criterio son las que postulan que se trata
de normas de carácter consuetudinario, encuadrándolas en el ámbito de la
costumbre y de los usos comerciales con función normativa, bien sea con base
en un Derecho Comercial Internacional autónomo o bien a partir del sistema de
fuentes que rige los respectivos ordenamientos nacionales.
Por su parte, las tesis contractualistas postulan que el carácter vinculante
de las RUU sólo puede provenir de la voluntad de las partes intervinientes en
cada operación concreta, incorporándolas al contrato mediante sujeción expresa
a sus términos.
Claro está que en caso de mediar incorporación contractual, las partes
habrán obrado en el marco de la autonomía de su voluntad, eligiendo a las RUU
como normas materiales del contrato, lo que sólo podría encontrar reparos en
normas de orden público interno o normas de policía que, por ejemplo, en el
Derecho Argentino no existen.
En caso de no mediar incorporación, y de lagunas o casos no previstos en
el contrato, sólo podrán ser aplicados aquellos usos y costumbres identificables
como tales que se encuentren comprendidos en las RUU en la medida en que
el sistema de fuentes del derecho de cada estado lo habiliten y de su alcance,
tal como pasa en la República Argentina con el art. 17 del Código Civil y el
alcance fijado por el Título Preliminar y los arts. 217, 218 y 219 del Código de
Comercio.
Sucede que las RUU como cuerpo no parecen ser una mera recopilación de
usos y costumbres preexistentes por falta de concurrencia del elemento material
y espiritual en muchos casos. La propia dinámica de las sucesivas revisiones
conspira contra esa concepción con carácter general y lleva a preguntarse si las
reglas en sí mismas recogen usos comerciales de carácter normativo previos o
tienen el propósito de regular “ex novo” aspectos imprecisos de las prácticas
vinculadas a créditos documentarios o de mejorar las regulaciones preexistentes.
Y creemos que la respuesta dependerá del análisis de cada regla en
particular y, con ello, la solución de cada caso concreto.
III. BASES Y DINÁMICA DE LA OPERATORIA: RELACIONES INVOLUCRADAS. EL
PRINCIPIO DE AUTONOMÍA Y EL FORMALISMO DOCUMENTARIO
Una de las funciones esenciales que el crédito documentario está llamado a
cumplir es la de seguridad o garantía. La misma opera en un doble sentido, dado que
el instituto tiende a reforzar tanto la posición del vendedor como la del comprador.
La del vendedor, porque no habrá de remitir la mercadería hasta tanto no
se lo anoticie de la apertura de la carta de crédito a su favor y del compromiso
configuración jurídica y funcionamiento, Ed. Tirant lo blanch, Valencia, 2001, ps. 82/106.
99
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
asumido por esa vía por el banco, cuya intermediación y solvencia incrementan
las seguridades que ofrece el comprador.
También refuerza la posición de este último pues, tratándose de un
“pago contra documentos”, el banco no procede al mismo sino hasta verificar
la regularidad formal de la documentación que acredite la expedición de
la mercadería. Se disipa así cualquier riesgo de pago anticipado, quedando
cubiertos los posibles percances durante el envío, carga y descarga por los
seguros, cuya contratación es de rigor para las partes y deberá ser también
materia de examen por el banco136.
La relación ordenante/beneficiario es la emergente del contrato
subyacente que da origen al crédito documentario. Provendrá normalmente de
un contrato de compraventa internacional y resulta en principio ajena al banco
interviniente, que no participa de ella.
El contrato base debe contener una cláusula que establezca la obligación
del comprador de solicitar la apertura de un crédito documentario como medio
de pago del precio convenido; los documentos que deben presentarse para
tornar exigible la obligación asumida por el banco; y las demás especificaciones
que debe reunir el crédito en cuestión.
Por el llamado principio de autonomía o independencia dicha relación de
base se predica independiente de las restantes involucradas en la operatoria. Es
así como los bancos no se hallan afectados por aquel contrato ni su compromiso
frente al beneficiario se encuentra sujeto a reclamaciones o excepciones por parte
del ordenante resultantes de su relación con el beneficiario o con el propio banco
(art. 4, RUU, publicación 600). Caso contrario, el instituto no podría satisfacer
la función de seguridad y garantía que es la razón de ser de su propia existencia.
La referida autonomía no solo se encuentra prevista en protección
del beneficiario, sino también del banco emisor en orden a circunscribir su
responsabilidad al cumplimiento de las obligaciones emergentes del compromiso
asumido frente al ordenante y al tercero, y deslindándolo de las vicisitudes que
puedan rodear al contrato subyacente.
En el marco de la relación ordenante/emisor el primero cursa instrucciones
al banco para que este abra una carta de crédito a favor del beneficiario,
asumiendo la institución una obligación con ese alcance pero en su propio
nombre. De dicho extremo y del carácter irrevocable que el compromiso puede
revestir (art. 7, RUU) deriva precisamente la mayor seguridad que el crédito
documentario está llamado a satisfacer.
Ello resulta estrictamente razonable en la medida en que a partir de la
apertura de la carta de crédito confluyen intereses distintos del correspondiente
Cfr. Guerrero Lebrón, M. Jesús, Los créditos documentarios. Los bancos intermediarios, Ed.
Marcial Pons, Madrid, 2001, ps. 16/7.
136
100
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
al ordenante, a saber: el del beneficiario de la carta de crédito y el del propio
banco que asumió un compromiso con aquél, cuyo incumplimiento compromete
su responsabilidad.
El banco percibirá una comisión del ordenante; el reembolso de los
gastos devengados por la operación; y tendrá derecho también al reintegro de
los fondos que eventualmente pueda adelantar si, además, financia al ordenante
estableciendo con este último una relación de crédito. En resguardo de ello el
banco, en su condición de tenedor de la documentación representativa de la
mercadería, goza del derecho de retención.
La relación emisor/beneficiario está signada por el compromiso del
banco de honrar la carta de crédito abierta a este último contra la entrega de los
documentos especificados por el ordenante.
Las notas típicas de la carta de crédito son la literalidad y la autonomía, toda
vez que las partes deben ajustarse con estrictez al tenor de la misma que, en principio,
se encuentra desvinculada de la relación de base que dio lugar a su emisión.
Esta fase de la operatoria se encuentra signada por el formalismo
documentario y resulta de aplicación la llamada doctrina del “estricto
cumplimiento (strict compliance)” en virtud del cual el banco debe rechazar los
documentos que no satisfagan exactamente las instrucciones impartidas por el
ordenante, reproducidas en la carta de crédito.
En el crédito documentario se negocia sobre documentos y no sobre
mercancías o servicios que puedan encontrarse relacionados con los mismos.
Por ende, el banco se encuentra obligado a verificar su correspondencia
formal y aparente sin que corresponda al mismo llevar adelante otro tipo
de investigaciones sobre el cumplimiento de las prestaciones del negocio
subyacente137.
El examen de la documentación debe ser realizado desde un doble punto
de vista: cuantitativo y cualitativo138 y la verificación de la correspondencia de
aquella debe ser llevada a cabo sobre la base de su apariencia (art. 14, inc. a, cit.).
El acuerdo sobre la documentación necesaria y disponible debe recaer en
la persona de los sujetos vinculados por el contrato subyacente. De modo que
sobre esa base el ordenante impartirá las instrucciones tendientes a la apertura de
la carta de crédito al banco emisor, con precisión y detalle de la documentación
requerida, y a las mismas debe sujetarse este último. Comunicada la apertura
al beneficiario, si la documentación que está en condiciones de presentar no
se ajusta al tenor de la prevista en la carta de crédito, debe hacerlo saber al
Arts. 5° y 14, inc. a) RUUU, y CNCom. Sala A, “Agroforestal y Ganadera Río Negro SRL c/
Banco Río de la Plata S.A.”, del 14.06.85.
138
Ferro Astral, José, Algunos aspectos sobre crédito documentario, Revista de la Facultad de
Derecho y Ciencias Sociales, año XIII, Montevideo, julio-septiembre de 1962, ps. 608/9.
137
101
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
ordenante para que imparta nuevas instrucciones tendientes a su modificación,
la que requiere el consentimiento de todos los interesados (art. 10, RUU).
Si es el banco el que tiene una discrepancia con la documentación que
le es presentada, debe comunicárselo al beneficiario y rechazar el pago hasta
que sea superada. Asimismo, tiene la facultad de dirigirse al ordenante para
comunicarle las discrepancias y que la presentación “no es conforme”, pudiendo
obtener por esta vía la renuncia a dichas discrepancias de parte de aquel en su
condición de principal interesado (art. 16, RUU).
El formalismo documentario opera en una doble dimensión que involucra
al banco emisor en su relación con el beneficiario y también con el ordenante.
Los documentos constituyen el límite y la medida de la obligación del
banquero. Si los mismos son aparentemente conformes, está obligado a cumplir
su compromiso frente al beneficiario139 y si lo hace, desatendiendo su deber de
examinar de modo estricto la correspondencia de la documentación presentada
con la requerida, deberá responder por los daños y perjuicios ocasionados al
ordenante por su negligencia.
Por ende, el formalismo documentario protege al banquero que obra
de buena fe y constata de modo diligente la correspondencia formal de la
documentación presentada con la exigida, toda vez que los bancos no cuentan
con medios que les permitan determinar inequívocamente si los documentos
que se les presentan son auténticos. Basta con que parezcan genuinos140.
Por otra parte, la carta de crédito debe contener la fecha de vencimiento
del plazo para formalizar la presentación, que puede efectuarse hasta ese día,
sin que el banco emisor tenga obligación de recibirla fuera de su horario de
atención al público. El mismo solo
puede prorrogarse si el fin del término recae en un día inhábil bancario,
extendiéndose al día hábil inmediato siguiente (arts. 6, 29 y 33, RUU).
Toda la ingeniería y dinámica del crédito documentario gira en derredor
de documentos y no de mercancías o prestaciones propias del contrato basal (art.
5, RUU). La operatoria supone una convención de “pago contra documentos”
debiendo sujetarse el beneficiario a la presentación de los estipulados en la carta
de crédito y el banco emisor a examinar su correspondencia formal -cuantitativa
y cualitativa- con estrictez de acuerdo a las pautas expuestas con anterioridad.
La documentación ordinariamente exigida es la vinculada a las
mercaderías; a su transporte; y a los seguros contratados.
Cfr. Costa, Ligia M., Waiver: una nueva alternativa contra el rigor del formalismo del crédito
documentario, Revista de Derecho Bancario y de la Actividad Financiera, año 3, Ed. Depalma,
Buenos Aires, julio-diciembre de 1993, p. 332.
140
Olarra Jiménez, Rafael, Manual del crédito documentario, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1966,
ps. 96/7 y art. 14, inc. a) RUU.
139
102
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Por lo demás, como ya se anticipó, pueden incorporarse a la operatoria
otros bancos intermediarios con distintos roles. Así, puede intervenir un banco
“avisador o notificador”; un “banco confirmador”, que añade su compromiso
personal, autónomo y directo de atender el crédito abierto a favor del beneficiario,
obligándose en los términos de la carta de crédito (arts. 2 y 8, RUU); un “banco
designado”; y/o un “banco reembolsador”.
IV. EL PROBLEMA DEL FRAUDE EN EL CRÉDITO DOCUMENTARIO141
Como dijimos con anterioridad, el crédito documentario se encuentra
signado por los principios de autonomía y literalidad; el formalismo
documentario; y la doctrina del estricto cumplimiento.
El principio de autonomía determina la independencia de las distintas
relaciones que se suscitan en el ámbito de la operatoria. Queda pues vedado
al ordenante, como consecuencia de aquél, invocar los incumplimientos del
beneficiario en relación al contrato base para impedir la efectivización del
crédito por parte del banco emisor.
Los restantes principios generales mencionados imponen al banco emisor
ajustarse al tenor escrito de la carta de crédito abierta a favor del beneficiario, y
examinar con estrictez la concordancia de la documentación que le es presentada
con la requerida, antes de honrar su compromiso.
La aplicación de tales principios resulta de la esencia de la operatoria e
inherente y a las funciones que se halla destinada a satisfacer.
Sin embargo, debe entenderse que tales postulados no se pueden aplicar
con carácter absoluto cuando encubren un comportamiento abusivo del
beneficiario o una maniobra fraudulenta del mismo que sale a la luz.
Sucede que en el tráfico mercantil internacional globalizado han tenido
lugar variados casos de fraude que motivaron desde hace algún tiempo la
búsqueda de soluciones alternativas a la aplicación lisa y llana de aquellos
principios. La gama de situaciones es variada y abarca casos en los que el
comprador/ordenante toma conocimiento de que el contenido del embarque
consignado por el beneficiario no se corresponde en absoluto con la mercadería
adquirida o es directamente inexistente; hipótesis de adulteración material
y falsedad ideológica de conocimientos de embarque, formularios u otros
documentos; y casos de resolución judicial del contrato base, entre otros.
Y lo cierto es que la aplicación de aquellos preceptos generales conduciría
a que el banco se atenga a verificar el cumplimiento formal de la obligación de
Además de nuestros trabajos citados al inicio, ver La defensa de fraude en el crédito
documentario: breve esbozo de la situación en el derecho comparado, publicado en Revista del
Derecho Comercial y de las Obligaciones, Ed. Depalma, 2011-A, ps. 853 y ss.
141
103
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
presentar los documentos requeridos por parte del beneficiario y a honrar en su
sola consecuencia el compromiso asumido frente al mismo con la emisión de la
carta de crédito a su favor, solución esta que no se aprecia satisfactoria.
Una de las alternativas posibles es recurrir a la llamada “exceptio doli”
o defensa de fraude que, como veremos, importa un apartamiento o atenuación
del principio de autonomía o independencia y de la doctrina del estricto
cumplimiento. Ello constituye el objeto de los estudios más recientes de uno
de los problemas que afecta el funcionamiento del crédito documentario.
La “exceptio doli” aparece como un recurso o defensa derivada de
circunstancias localizadas en la relación subyacente que, por principio,
no debieran incidir en la ejecución y desarrollo de la operación de crédito
documentario.
Por poner un ejemplo, en los casos excepcionales que estamos considerando,
la entrega efectiva de la mercadería adquirida -que constituye un supuesto material
de cumplimiento del contrato base, ajeno en principio a la incumbencia del banco
emisor- pasa a revestir relevancia dirimente para determinar la procedencia del
pago dado que “…los contratos vuelven a estar conectados en alguna forma para
los supuestos patológicos, especialmente el fraude…”142.
Se postula, en este sentido, que las reglas generales no pueden permanecer
incólumes ante tales situaciones porque “fraus omnia corrumpit”. Con todo,
resulta menester formular aclaración expresa de que la procedencia de la
defensa de fraude se encuentra reservada para los supuestos excepcionales que
estamos considerando, no pudiendo erigirse en base para el incumplimiento
de obligaciones legítimas y en una vía de escape de un negocio que resulte
desventajoso 143.
Resulta relevante destacar que la utilidad de la excepción de fraude parece
reservada a aquellos casos, también excepcionales, en los que el ordenante
cuenta con elementos de convicción sobre la existencia de la maniobra con
anterioridad a la efectivización del crédito. Tal es el supuesto general del crédito
documentario con obligación de pago diferido. Caso contrario, el breve espacio
temporal difícilmente permitirá aquella constatación y su acreditación ante el
ordenante, o la intervención judicial para paralizar el pago por vía de alguna
medida cautelar144.
Cierto es que el fraude también puede hacerse valer con posterioridad,
pero ello no tendrá lugar por vía de excepción sino de acción ordinaria de
Tapia Hermida, Antonio, Reglas y Usos relativos a los créditos documentarios [Revisión 1983]
[Proyecto de modificación], Revista de Derecho Bancario y Bursátil, 1983, p. 52, Ed. Lex Nova.
143
Asad, María Verónica, El fraude en el crédito documentario. El régimen aplicable en los sistemas
de derecho civil, en Magistra, Banca e Finanza, www.magistra.it, 10.03.03.
144
Participa de esta reflexión, Guerrero Lebrón, op. cit., ps. 162/3.
142
104
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
repetición, de incumplimiento, o de resarcimiento de daños interpuesta por el
sujeto afectado en cada caso.
Vale también en esta materia el llamado de atención de Marimón Durá
quien reflexiona acerca del carácter común de la doctrina del fraude en el
ámbito de los créditos documentarios y de las garantías independientes, que
ha dado lugar a coincidencias y entrelazamientos en doctrina y jurisprudencia
comparada145.
Ante tal estado de situación, intentaremos acotar nuestro análisis a los
alcances propios del esbozo propuesto, no sin antes referir que deben descartarse
en la materia las postulaciones apocalípticas sobre la repercusión negativa que
la atención de las situaciones de fraude podría traer aparejada para el futuro del
instituto, proveniente en gran medida del temor de los bancos emisores frente
a la necesidad de paralizar los pagos en casos en los que la documentación
aparece formalmente conforme.
También cabe adelantar desde ya que las RUU no contemplan los
supuestos objeto de estudio sino que se estructuran sobre la base de los principios
generales referidos con anterioridad y del regular funcionamiento de la operatoria,
manteniéndose la CCI al margen de estas situaciones que deberán analizarse
judicialmente a la luz de la legislación nacional aplicable en cada caso.
A - La situación en los Estados Unidos de América:
Ya en las primeras décadas del siglo pasado se verifican antecedentes en
la jurisprudencia norteamericana en los que se convalidó la actuación del banco
emisor al rechazar documentos que no se ajustaban a la realidad.
Ello sucedió, entre otros, en el caso Old Colony Trust Co. v. Lawyers´Title
& Trust Co.146.
El mismo versaba sobre una operación de compraventa de azúcar
proveniente de Java, cuyo pago se instrumentó a través de una ¨letter of credit¨.
Se especificaron los documentos exigidos, entre ellos la factura por triplicado
con la indicación de que la mercadería había sido embarcada en Java. También
se requería que aquélla hubiera superado el control estatal, por haber sido
pesada y pagados los impuestos pertinentes.
El beneficiario original transfirió la ¨letter of credit¨ con los documentos
a Old Colony Trust Co., que le había adelantado fondos. Sin embargo, el banco
emisor rechazó dichos documentos cuando le fueron presentados:
i) el certificado de depósito en un almacén, por haber recibido testimonio
del propietario del mismo de que en la época en que se libró, en lugar de las
Marimón Durá, op. cit., ps. 507/8.
297 F. 152,158, 2d Cir. 1924
145
146
105
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
diez mil bolsas declaradas el vendedor solo había entregado menos de la mitad,
completando la entrega cuando la letra había vencido; y
ii) la orden de entrega, porque no surgía de la misma el pesaje de la
mercadería antes de su emisión, lo que presuponía que no pudieron haberse
satisfecho los impuestos correspondientes.
La Corte, luego de advertir el peligro de que los bancos tengan
que enfrentarse a algo más que a la verificación de la concordancia de los
documentos presentados con los exigidos en la operación de crédito, convalidó
el accionar del banco emisor por cuanto no mediaba dicha correspondencia.
El certificado de depósito fue reputado falso e ilegal, mientras que la orden de
entrega resultaba insuficiente incluso en su forma aparente.
Este precedente suele ser citado como la primera sentencia norteamericana
en que se califica de correcta la actuación del banco emisor que rechazó
honrar su compromiso al haber descubierto la falsedad de los documentos
presentados. Al mismo tiempo, la sentencia distingue conceptualmente los
documentos falsos y los documentos formalmente insuficientes (“on its face”)
o incorrectos, aunque reputa a ambos como documentos no conformes con las
condiciones del crédito147.
Ahora bien, es considerado como “leading case” de la jurisprudencia
norteamericana sobre fraude en materia de créditos documentarios el recaído
en la causa Sztejn v. J. Henry Schroder Banking Corporation148.
En este caso el beneficiario de un crédito documentario depositó a
bordo de una embarcación cincuenta cajas que supuestamente contenían
cierta mercancía objeto de una compraventa (cerdas para cepillos) y obtuvo la
documentación acorde, descriptiva de aquélla. Sin embargo, en las mismas solo
había pelo de vaca, materiales inservibles y basura carentes de valor.
El ordenante alcanzó a poner la maniobra en conocimiento del banco
emisor antes de la aceptación de la letra librada por el beneficiario y presentada
por su banco corresponsal, y demandó que se ordenase al primer banco que se
abstuviera de aceptar y atender la cambial.
El Tribunal sostuvo que cuando el fraude llega a conocimiento del banco
antes de que los documentos hayan sido presentados al cobro, el principio de
independencia de la obligación a cargo de aquél no debe extenderse a amparar
al vendedor inescrupuloso que omitió deliberadamente el embarque de los
efectos adquiridos por el comprador.
Por otra parte, dejó a salvo la responsabilidad del banco en el supuesto,
distinto del configurado en el caso, de que se anoticie del fraude con posterioridad
a la efectivización del pago, si la entidad obraba con una diligencia razonable.
Cabe recordar aquí que la segunda categoría sí tiene previsión expresa y solución en las RUU.
Misc. 719, 31 N.Y.S. 2d 631 -1941-.
147
148
106
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Agregó también que el principio de independencia respecto de la relación
de base debía ser reafirmado ante meros incumplimientos contractuales, que
distinguió de la actuación fraudulenta consistente en la falta total de entrega de
las mercaderías; y descartó que el banco corresponsal pudiera ser considerado
tenedor de buena fe de la cambial en esa causa, habida cuenta que intervenía
como un mero agente de cobro del beneficiario.
Las directrices que fueron elaboradas jurisprudencialmente en estos y
otros precedentes, algunos referidos a medidas cautelares149 dieron lugar a la
originaria legislación federal contenida en el Código de Comercio Uniforme
(UCC), Sección 5-114 (2).
Tal regulación fundamentalmente establecía los supuestos en los que el banco
emisor estaba obligado a honrar el crédito, cuando se presentaban documentos
formalmente acordes a los requeridos y pese a configurarse un supuesto de fraude
(en general cuando existía un tercero de buena fe que reclama el pago como tenedor
legítimo de una letra u otro título involucrado en la operatoria).
Asimismo, facultaba pero no obligaba al banco que obre de buena
fe a pagar el crédito pese a la mera comunicación del ordenante de haberse
configurado un fraude, debiendo entenderse sujeta esta opción a la hipótesis de
no habérsele arrimado pruebas de aquél.
Por último, contemplaba expresamente la facultad del tribunal competente
de paralizar ese pago a través de medidas cautelares requeridas por el ordenante,
presupuesto de su intervención.
Debemos aclarar que la vigencia de esta norma dependía de su
incorporación al Código de Comercio de cada uno de los estados federados
que, en general, la reprodujeron; y que la jurisprudencia -de modo no unánimeentendió que no mediaba contradicción entre el CCU y las RUU, que si bien no
contemplan el supuesto de fraude tampoco impiden la aplicación de la doctrina
elaborada en derredor del mismo ni de la normativa dictada en consecuencia 150.
No resulta infrecuente encontrar pronunciamientos sustentados en
criterios más flexibles ante supuestos que revestían algún tipo de trasfondo
político internacional o de influencias metajurídicas151.
Luego de la crisis de Irán (1978) y tras un largo proceso de revisión, se
aprobó en 1995 un nuevo texto del art. 5 del UCC que dedica la sección 109 al
fraude y a la falsificación152.
V. Grob v. Manufacturers y Nadler v. Mei Loong.
V. Banco Tornquist, S.A. v. American Bank & Trust Company (337, N.Y.S. 2d 489/90, 1972; id.,
Cappaert Enterprises v. Citizens & Southern Internacional Bank of New Orleans (486 F.Supp.819/31,
E.D.La. 1980).
151
Cfr. Marimón Durá, op. cit., ps. 536/8.
152
Remitimos a la versión en castellano autorizada por The American Law Institute, traducción
de José María Garrido, Ed. Marcial Pons, Madrid, 2002, que reproducimos en su parte pertinente.
149 150
107
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
5-109 Fraude y falsificación:
(a) Si se realiza una presentación que aparentemente cumple
estrictamente con los términos y condiciones del crédito documentario, pero
uno de los documentos requeridos ha sido falsificado o es sustancialmente
fraudulento, o si atender la presentación facilitaría un fraude sustancial a
cargo del beneficiario en detrimento del emisor o del ordenante:
(1) el emisor deberá atender la presentación, si se ha solicitado el
cumplimiento por: (i) una persona designada que ha dado una contraprestación
de buena fe y sin estar avisado de una falsificación o de un fraude sustancial;
(ii) un confirmador que ha cumplido su confirmación de buena fe; (iii) un
tenedor legítimo de una letra librada conforme al crédito documentario, que
fue adquirida después de la aceptación del emisor o de la persona designada;
o (iv) un cesionario de una obligación aplazada del emisor o de la persona
designada, que fue adquirida onerosamente y sin que el cesionario estuviera
avisado de una falsificación o de un fraude sustancial después de que la
obligación aplazada fuese contraída por el emisor o la persona designada; y
(2) el emisor, actuando de buena fe, puede atender o desatender la
presentación en cualquier otro caso.
(b) Si un ordenante alega que un documento requerido por el crédito
documentario está falsificado o es sustancialmente fraudulento, o que el
cumplimiento de la presentación facilitaría la realización de un fraude
sustancial por parte del beneficiario y en perjuicio del emisor o del ordenante,
un tribunal competente puede prohibir, de manera provisional o permanente,
que el emisor cumpla una presentación, o adoptar una medida similar contra el
emisor u otras personas, solamente si el tribunal establece que:
(1) la medida no está prohibida por la ley aplicable a una letra aceptada
o a una obligación aplazada contraída por el emisor;
(2) el beneficiario, el emisor o la persona designada que pudiera ser
afectada negativamente queda debidamente protegida contra cualquier pérdida
que pueda sufrir como consecuencia de la adopción de la medida;
(3) todas las condiciones necesarias para que una persona tenga derecho
a esa medida, conforme las leyes de este Estado, se han cumplido; y
(4) con el fundamento de la información puesta a disposición del
tribunal, existen más posibilidades de que la alegación de falsificación o de
fraude sustancial del ordenante sea estimada que posibilidades de que sea
desestimada; y la persona que requiere que la presentación sea atendida no
reúne los requisitos para obtener la protección de la subsección (a) (1).
El texto resulta mucho más claro que el anterior en cuanto abarca
tanto el supuesto de presentación de documentos material o ideológicamente
108
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
falsos, como el fraude del beneficiario operado en detrimento del emisor o del
ordenante (en ambas relaciones, incluida la subyacente). El fraude debe ser
sustancial y relevante.
Por otra parte, se incluye un listado de los terceros de buena fe que
merecen protección frente a la excepción de fraude y se reitera la facultad del
banco emisor de denegar el pago o de atenderlo siempre que obre de buena fe.
La ponderación de su conducta habrá de encontrarse en relación directa con las
pruebas que arrime el ordenante y la oportunidad en que anoticie al banco del
fraude detectado.
Finalmente el texto se explaya acerca de los recaudos que deben
satisfacerse para lograr que un tribunal suspenda el pago por parte del emisor
o adopte otra medida cautelar, con una impronta que denota claramente su
carácter excepcional.
B - La situación en Gran Bretaña:
Los tribunales ingleses han desarrollado una pacifica y uniforme
jurisprudencia que ha sostenido tradicionalmente y se ha apegado al principio
de independencia frente a eventuales disputas entre comprador y vendedor
motivadas por la calidad de las mercancías153. En estos supuestos, el banco debe
honrar su compromiso por resultar la “sangre vital” del comercio internacional.
La excepción al principio de independencia ha tenido lugar con carácter
restrictivo y a título de suspensión cautelar del pago mediante una “injunction”
solicitada por el ordenante, a quien se le reconoce interés en la cuestión.
En el ámbito de los créditos documentarios uno de los precedentes más
destacados en materia de fraude es el caso Etablissement Esefka International
Anstalt v. Central Bank of Nigeria, de 1979154, vinculado al llamado escándalo
del cemento acontecido en Nigeria. Allí se detecto la falsificación de
conocimientos de embarque por un envío parcial de 94.000 toneladas después
de haberse pagado su importe al beneficiario. Frente al reclamo de este último
que, además, persiguió cierta indemnización por estadías amparadas por los
mismos créditos, el juez lo rechazó e hizo lugar a la excepción de fraude opuesta
por el banco emisor y a la reconvención deducida por el mismo por la porción
del crédito previamente satisfecha.
La jurisprudencia inglesa ha hecho especial hincapié en la necesidad de
concurrencia de mala fe del beneficiario para aceptar la excepción de fraude,
de modo que ante la presentación de documentos formalmente correctos no
basta la falsedad de su contenido para el progreso de la excepción de fraude
sino que resulta menester que el beneficiario sea conciente de la misma y
V. Malas v. British Imex Industries Ltd., ALL ER, 1958-1, p. 264.
1 Lloyd’s L. Rep., ps. 445/9.
153
154
109
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que los presente a sabiendas, mas allá de la actuación atribuible a terceros155.
Resulta menester la concurrencia de engaño para habilitar la procedencia de
la defensa de fraude.
Los tribunales británicos exigen que el fraude se encuentre claramente
probado. El banco emisor no debe desplegar actividad alguna en tal sentido
y puede adoptar una actitud pasiva, a la espera de los elementos que aporte el
ordenante o del dictado de alguna medida cautelar a pedido de este último.
Las medidas cautelares disponibles son la “interlocutory injunction” y la
“mareva injunction”.
La primera constituye una orden dirigida al banco para que se abstenga de
pagar el crédito, o al beneficiario, para que se abstenga de cobrarlo. La segunda
importa una prohibición al beneficiario de llevarse el dinero hasta que se dirima
la cuestión suscitada, entendiéndose en este caso que no se vulnera el principio
de independencia que rige en materia de créditos documentarios en tanto el
banco emisor pudo cumplir las obligaciones a su cargo.
También se ha reconocido jurisprudencialmente protección a los terceros
de buena fe cuando los mismos resultan ser portadores legitimados de letras
de cambio involucradas en la operatoria, distinguiendo la situación de los
cesionarios a quienes se considera oponible la defensa de fraude156.
C - La situación en Francia:
Los tribunales franceses han admitido en casos excepcionales que se
flexibilice el dogma de la independencia y abstracción puesto que una postura
excesivamente rígida en ese aspecto conduciría a la destrucción de la concepción
unitaria del crédito documentario para pasar a sostener una mera yuxtaposición
de contratos independientes157.
La jurisprudencia parece haberse orientado finalmente por una
concepción estricta del fraude, que debe encontrar respaldo en prueba objetiva
y manifiesta a partir de sendos pronunciamientos de la Chambre Commerciale
de la Cour de Cassation.
En sentencia del 07.04.87 se llegó a juzgar acreditada de manera
irrefutable la insinceridad de una factura emitida en el marco de una operación
de crédito documentario158.
Ver sentencia firme de la House of Lords en el caso United City Merchants Ltd. v. Royal Bank
of Canada, All ER, 1982-2, p. 720.
156
Riva, J., Operatoria Bancaria en Comercio Exterior, ps. 171 y ss., Ed. Ad Hoc, Buenos Aires,
2003.
157
Cfr. Asad, María Verónica, El fraude en el crédito documentario. El régimen aplicable en los
sistemas de derecho civil, en Magistra, Banca e Finanza, www.magistra.it, 10.03.03.
158
Banque 1987, p. 625, obs. Rives-Lange.
155
110
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Con posterioridad, en el caso Automobiles Peugeot, del 29.04.97, se
sostuvo que la sola afectación de la ejecución del contrato de base no justificaba
la invocación de fraude si no se encuentra comprometido el crédito documentario
en si mismo 159.
La medida cautelar disponible en Francia es la “saisie-arrêt” (similar al
embargo) aunque cuando es solicitada por el ordenante solo sea excepcionalmente
admitida frente a supuestos de fraude evidente y acreditado en grado cercano a la
certeza. Esta medida suele tener mayor receptividad en el caso de ser promovida
por el banco interviniente, sin perjuicio de no considerarse indispensable para
que el mismo pueda negarse a pagar ante la constatación de irregularidades.
D – La situación en Alemania:
En general, en Alemania la excepción de fraude tiende a ubicarse
sistemáticamente entre las defensas derivadas de la relación ordenante/
beneficiario pues es en este ámbito donde pueden configurarse las causas que
justifiquen considerar abusivo el reclamo del beneficiario.
La regla general de que la ejecución del crédito documentario no debe
paralizarse por divergencias sobre el cumplimiento o incumplimiento de la
relación de base no puede mantenerse ante situaciones de fraude o abuso del
derecho, aunque las limitaciones al principio de independencia solo se han
justificado en casos muy excepcionales160, por vía de constatación de un abuso
del derecho o una conducta contraria a la buena fe.
La doctrina suele identificar como causales que dan lugar a la
procedencia de la excepción de fraude a los supuestos de entrega de una
mercancía totalmente distinta de la acordada, o cuando el beneficiario carece
de derecho a reclamar el cumplimiento de la contraprestación derivada de la
relación subyacente por haber sido la misma declarada ineficaz por resolución
firme, o nula, o resuelta, o por haberse concertado el crédito documentario
para burlar una prohibición legal161.
Sin embargo, se discute acerca del carácter objetivo del fraude –en cuyo
caso bastaría la ausencia de justificación del reclamo por parte del beneficiario
del crédito para la procedencia de la excepción- o si, además, debe concurrir
un componente subjetivo, emergente del conocimiento de aquel extremo por
parte del sujeto a quien habrá de oponerse la defensa -su mala fe o el consilium
fraudis en caso de pluralidad de participantes en la operación-, tesis esta última
que se ha considerado prevaleciente.
Cfr. Asad, op. cit..
Cfr. Nielsen, Auslandgeschäft, en Bankrecht und Bankpraxis, Vol. 5, 1996, p. 334.
161
Cfr. Marimón Durá, op. cit., ps. 559/562.
159
160
111
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Resulta menester contar con prueba líquida por medios contundentes
disponibles al momento de su alegación sin que sea posible abrir un proceso
largo y complicado a tal fin, exigencia que se compadece con la concepción
del crédito documentario como instrumento de pago rápido, que reposa
exclusivamente sobre bases documentales162.
La situación del banco emisor ante un eventual fraude lo coloca en una
situación complicada porque si deniega el pago resulta pasible de reclamo por
parte del beneficiario y, si lo ejecuta, corre el riesgo de que el ordenante pueda
oponerse al reembolso o promover reclamo resarcitorio en su contra.
Las medidas cautelares disponibles son el “arrest” y la “einstweilige
Verfügung”.
La primera importa un embargo preventivo por medio del cual el
ordenante puede evitar que el beneficiario disponga del importe del crédito en
caso de haber mediado abuso de su parte.
La segunda consiste en una orden jurisdiccional dirigida al beneficiario
para que se abstenga de reclamar el pago, o bien al banco emisor, para que se
abstenga de dar cumplimiento a la obligación a su cargo, aunque la doctrina y
la jurisprudencia tampoco se aprecian concordantes sobre la procedencia de
la orden al banco por entender, en este caso, con mayor rigor el principio de
independencia o sostener, en su caso, la ausencia de perjuicio para el ordenante
si este puede oportunamente negarse al reembolso.
E - La situación en España y en la Argentina:
En España la doctrina advierte la inexistencia de pronunciamientos del
Tribunal Supremo específicamente en materia de fraude cometidos en el ámbito
de operaciones de crédito documentario163.
Tal situación de escasa litigiosidad se repite en la República Argentina
con el aditamento de que en nuestro país, contrariamente a lo que sucede en
aquél, la doctrina no se ha ocupado sino muy tangencialmente de este tema.
Merecen destacarse como excepciones a esta regla los trabajos de Riva164; y los
de Assad y Labanca citados “ut supra”.
En nuestro país frente a la invocación de fraude, resultarían aplicables
los principios de las medidas precautorias en general, bien sea para la adopción
de una cautela genérica -vgr: suspensión del pago del crédito-, o para la
procedencia de una prohibición de innovar, que son las que guardarían mayor
relación de instrumentalidad con la eventual pretensión que se deduzca con
Cfr. Nielsen, op. cit., p. 335.
Cfr. Marimón Durá, op. cit., p. 575.
164
Operatoria Bancaria en Comercio Exterior, ps. 171 y ss..
162
163
112
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
base en aquél. Es decir, que habrá de justificarse sumariamente la verosimilitud
del derecho invocado, vinculada en el caso con los elementos de convicción que
puedan aportarse con el pedido, y el peligro en la demora (cfr. arts. 230 y 232
del Cód. Procesal de la Nación, generalmente reproducido en estos aspectos en
jurisdicciones provinciales).
Al margen de lo anterior, desde un punto de vista sustancial, lo cierto
es que no contamos con una regulación del crédito documentario ni con un
catálogo de los sujetos que podrían considerarse terceros de buena fe, como
sucede en el derecho norteamericano. La situación nacional sería más parecida
a la del derecho inglés.
Cabría distinguir pues frente a la invocación de fraude la situación del
sujeto a quien pretende oponerse el mismo; y si ha mediado o no libramiento
de letras de cambio.
Sucede que, en este último caso, no resultan oponibles al portador
legitimado por vía de endoso las excepciones personales que tenga el accionado
contra el librador o los tenedores anteriores salvo que medie mala fe del
adquirente (art. 18 Dec. Ley 5965/63). Sin embargo, la mala fe puede ser
invocada fuera del ámbito de un juicio o proceso ejecutivo por la abstracción
procesal emanada del art. 544 del Código Procesal de la Nación. Cabe pues,
en principio, su invocación y prueba en un proceso de conocimiento pleno,
debiendo destacarse que en nuestro ordenamiento la buena fe se presume165 y
que la situación precedentemente descripta puede reconocer variaciones según
la legislación procesal local de cada jurisdicción.
Por el contrario, frente a un caso de cesión de créditos (utilizado a veces
con la pretensión de amparar los derechos emergentes del crédito documentario
ante una invocación de fraude), el cesionario no gozaría de la protección que
brindan los principios de abstracción y autonomía que rigen en materia de títulos
cambiarios y se le aplicarían los arts. 1474 y 3270 de nuestro Código Civil,
quedando el mismo sujeto al resultado de la defensa de fraude que analizamos.
La situación del cesionario queda asimilada pues a la del beneficiario
de la carta de crédito contra quien puede hacerse valer el planteo de fraude
plenamente en un proceso de conocimiento o, por vía cautelar, cuyo resultado
habrá de depender de los elementos de convicción que se aporten al juez y
de la oportunidad en la que los mismos estén a su disposición (antes de la
efectivización del crédito). Ello sin perjuicio de su presentación ante el banco
emisor a fin de procurar que el mismo suspenda el pago del crédito ante prueba
contundente de la perpetración de la maniobra fraudulenta, pudiendo apartarse
con esa base del principio de autonomía o independencia que continuará siendo
la regla general a la que debe sujetar su conducta y actuación.
165 Riva, Operatoria Bancaria en Comercio Exterior, ps. 231 y ss..
113
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Como hemos visto, las RUU no llegan a imponer “per se” la aplicación
de normas materiales de carácter uniforme sino que la uniformidad se ha
alcanzado, fundamentalmente, por adhesiones y consensos generalizados en
la incorporación de aquéllas en los contratos de crédito documentario que se
celebran a diario en el planeta.
Por lo demás, el silencio de las RUU sobre los supuestos de fraude
determina -en definitiva- soluciones locales que, en cierto modo, van en
desmedro de la generalidad y uniformidad requeridas por la globalización de
los mercados. Sería deseable pues un mayor avance en este aspecto.
114
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
CIDADANIA E DIREITO À SAÚDE: DEVER JURISDICIONAL DE REALIZAÇÃO
DO DIREITO À SAÚDE NA AUSÊNCIA DE PROVAS DAS CONDIÇÕES FÁTICAS E
JURÍDICAS DESFAVORÁVEIS
JURISDICTIONAL DUTY TO REALIZE THE RIGHT OF HEALTH IN
THE ABSENT OF PROOFS OF THE FACTUAL AND LEGAL CONDITIONS
UNFAVOURABLE
Sérgio Augusto Lima Marinho166
Rodrigo Pereira Moreira167
Marco Aurélio Nogueira168
RESUMO
O trabalho tem como objeto geral analisar o direito social à saúde previsto
na Constituição Brasileira e a forma como este direito deve ser realizado
judicialmente na ausência de provas das condições fáticas e jurídicas que impeçam
sua aplicação. Parte-se de problema sobre a natureza principiológica do direito
social à saúde, explanando sobre a classificação e a função desse direito, bem
como a compreensão da atividade judicial de controle de constitucionalidade
nos direitos fundamentais sociais. Para tanto, utilizar-se-á o método dedutivo e
procedimento de pesquisa bibliográfico e documental, este último analisando a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A conclusão mostra que ausentes
condições fáticas ou jurídicas desfavoráveis à realização deste direito persiste
o dever de prestação da saúde, o qual deve ser reconhecido judicialmente. Este
posicionamento é acompanhado pela jurisprudência da Corte Constitucional.
Palavras Chave: Direitos Fundamentais; Direito à Saúde; Princípios jurídicos;
Condições Fáticas e Jurídicas.
ABSTRACT
This paper analyzes the social right of health provided in the Brazilian
Constitution and how this right should be jurisdiction realized in the absence
Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade
Federal de Uberlândia. Bolsista da CAPES.
167
Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade
Federal de Uberlândia. Bolsista da CAPES.
168
Doutor em Direito. Professor do programa CMDIP-FADIR-UFU, mestrado em Direito.
166
115
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
of evidence of the factual and legal conditions that prevent his application. The
paper begins with the problem about the nature of the principle in the social
right of health, explaining about the classification and function of this right and
understanding the judicial activity in the constitutional control in fundamental
social rights. It will be utilized the deductive method and procedure from
bibliographic and documentary, the latter examining the jurisprudence of the
Supreme Court. The conclusion shows that absent of legal or factual conditions
un favorable to realization of this right, remains the duty to provide health,
which must be judicial lyre cognized. This position is accompanied by the
jurisprudence of the Constitutional Court.
Keywords: Fundamental Rights; Right to Health; Legal Principles; Factual and
Legal Conditions.
INTRODUÇÃO
A vida é o bem jurídico mais importante de qualquer ser humano e
certamente está acima de todos os demais bens protegidos pelo ordenamento
jurídico, como o patrimônio e até mesmo da honra. É neste panorama que surge o
direito à saúde como consequência constitucional indissociável do direito à vida.
Saúde corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos
cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças e, por
conseguinte, mantença da vida. Dessa forma, o direito social à saúde surge
com uma dupla face, uma de preservação e outra de proteção à saúde. Neste
diapasão, é revelada a importância do acesso ao direito social à saúde como o
direito do ser humano de preservar e proteger a sua própria vida.
O direito social à saúde, bem como seu acesso, é concebido como um
direito de todos e dever do Estado, o qual deve garanti-lo mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos,
é um direito constitucional. Contudo, muitas vezes não é fácil gozar deste
direito, seja por conta da inobservância do que dispõe a Constituição quanto
àquelas políticas sociais e econômicas, seja por falta de medicamentos, material
humano, e outros fatores necessários à realização do acesso ao direito social,
constitucional, fundamental à saúde.
O presente trabalho tem por objeto de pesquisa o direito social à saúde e
a maneira como este direito deve ser realizado pelo poder judiciário na ausência
de provas acerca das condições fáticas ou jurídicas que impeçam sua realização,
haja vista o seu entendimento como princípio e, consequentemente, como
mandamento de otimização que deve ser realizado observadas as circunstâncias
fáticas e jurídicas. A pesquisa encontra-se pautada no método dedutivo e na
116
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
consulta bibliográfica e jurisprudencial sendo uma abordagem de dogmática
jurídica, vez que se pretende analisar o tema e verificar se as conclusões
encontram respaldo na jurisprudência dominante, para isto, são utilizadas
algumas decisões judiciais da Corte Constitucional.
Para tanto, divide-se o trabalho em 5 cinco tópicos. Aborda-se,
primeiramente, a relação de interdependência do Estado constitucional de
Direito e dos direitos fundamentais. Em seguida, é tratada a fundamentalidade do
direito à saúde juntamente com o seu tratamento constitucional, posteriormente,
pondera-se acerca do caráter principiológico do direito à saúde, destacandose o seu caráter de otimização e, em decorrência disto, o dever jurisdicional
de realização deste direito em não havendo provas das condições fáticas ou
jurídicas que impeçam dita realização.
1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E ESTADO DE DIREITO
O Estado Absoluto possui os méritos da criação de mecanismos
institucionais que fortaleceram a figura do Estado tais como a soberania nacional,
una e indivisível, a unidade e um maior número de leis escritas reforçando a
institucionalização jurídica do poder político. Neste sentido,
A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou
construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma divisão
com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos aos privilégios
feudais), para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade
de vínculos ao poder (MIRANDA, 2011, p. 30).
Contudo, no contexto do Estado absoluto, não há que se falar em direitos
fundamentais, menos ainda direitos fundamentais sociais. “Expediente técnicojurídico muito característico deste ambiente é o desdobramento do Estado em
Estado propriamente dito, dotado de soberania, e em Fisco, entidade de Direito
Privado e sem soberania” (MIRANDA, 2011, p. 29). Tem-se, então, que apenas
o fisco mantém relações jurídicas com os particulares e somente contra ele
podem ser reivindicados direitos subjetivos.
A concentração do poder, combinada ao crescente poder econômico da
burguesia e sua falta de poder político, gerou como consequência a crise do
Estado Absoluto e o advento do Estado Constitucional ou Estado de Direito.
No Estado de Direito,
Em vez da tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe,
a soberania nacional e a lei como expressão da vontade geral; em vez do
117
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
exercício do poder por um só ou seus delegados, o exercício por muitos,
eleitos pela coletividade; em vez da razão do Estado, o Estado como
executor de normas jurídicas; em vez de súditos, cidadãos, e atribuição a
todos os homens, apenas por serem homens, de direitos consagrados nas
leis. E instrumentos técnicos-jurídicos principais tornam-se, doravante,
a Constituição, o princípio da legalidade, as declarações de direitos, a
separação dos poderes, a representação política (MIRANDA, 2011, p. 31).
Em sentido estrito, a expressão “Estado de Direito” refere-se a qualquer
ordenamento cujos poderes públicos são conferidos pela lei, sendo exercidos
pelas formas e procedimentos estabelecidos na própria lei. Num sentido amplo,
significa que os poderes públicos também estão sujeitos à lei, não somente quanto
às formas, mas também em relação ao seu conteúdo (FERRAJOLI, 2006, p. 417).
Luigi Ferrajoli (2006, p. 418) divide, assim, o Estado legislativo
de Direito e o Estado constitucional de Direito. O primeiro é ligado ao
paleopositivismo (positivismo clássico), nascido juntamente com a concepção
moderna de Estado e caracterizado principalmente pela afirmação do princípio
da legalidade.169 Já o segundo, nasce após a Segunda Guerra Mundial sendo
caracterizado pela difusão das constituições rígidas reconhecidas como
normas de direito válidas e também pelo controle de constitucionalidade
sobre as leis ordinárias.170
Neste diapasão, com o advento deste Estado de Direito há uma troca de
papéis, outrora o homem encontra-se a serviço do Estado e deveria contribuir
para a realização de suas finalidades, agora, é o Estado quem deve propiciar
os meios pelos quais os homens possam realizar seus objetivos. No Estado
de Direito destacam-se características que o distinguem do Estado Absoluto:
a Juridicidade, a Constitucionalidade, o sistema de direitos fundamentais,
a divisão dos poderes e a garantia da administração autônoma local
(CANOTILHO, 2003, p. 243).
Consoante Ferrajoli (2006, p. 423), no paleopositivismo “uma norma existe e é válida não
porque é intrinsecamente justa e ainda menos ‘verdadeira’, mas somente porque é proclamada em
forma de lei por sujeitos habilitados por ela.”
170
Sobre a validade da norma jurídica no Estado Constitucional de Direito, Ferrajoli (2006, p.
425) afirma que: “no ‘Estado constitucional de Direito’, as leis são submetidas não só a normas
formais sobre a produção, mas também a normas substanciais sobre o seu significado. De fato, não
são admitidas normas legais, cujo significado esteja em contraste com normas constitucionais.
A existência ou vigor das normas, que no paradigma paleopositivista tinham sido separadas da
justiça, separam-se agora, também, da validade, tornando possível que uma norma formalmente
válida e, portanto, vigente, seja substancialmente inválida quando o seu significado estiver em
contraste com normas constitucionais substanciais (...).”
169
118
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
No Estado de Direito não há poder soberano, todavia o poder encontrase vinculado à Constituição “o Estado de Direito pressupõe a existência de uma
Constituição normativa estruturante de uma ordem jurídico normativa fundamental
vinculada a todos os poderes públicos” (CANOTILHO, 2003, p. 245).
Desta vinculação dos Poderes Públicos à Constituição decorre o dever de
realização dos direitos alçados ao status de direitos fundamentais. Ao legislador
o dever de criar políticas que visem à realização destes direitos, ao Administrador
o dever de realizar as políticas criadas, e ao Juiz o dever de impedir que as
normas constitucionais definidoras destes direitos se tornem vazias.
Dois pontos são centrais à contextualização do trabalho. Primeiro, a
teoria jurídica moderna – e os desdobramentos na teoria constitucional, teoria
dos direitos fundamentais e teoria da decisão judicial - desenvolve os seus
trabalhos com uma concepção de sistema normativo no qual a Constituição se
encontra no plano mais elevado. Segundo, há no momento um deslocamento da
parcela decisória sobre as políticas de Estado ao Judiciário.
A Constituição Federal preconiza em seu artigo 1º que o Brasil constituise em um Estado Democrático de Direito, nesta quadra, há que se destacar a
existência no texto constitucional de direitos tidos por fundamentais e de uma
relação simbiótica entre os estes direitos e o Estado Democrático de Direito.
Somente é possível vislumbrar um Estado Democrático de Direito
a partir da existência de direitos fundamentais. Tais direitos, funcionando
conjugadamente com outros fatores fazem parte da essência do Estado
Constitucional constituindo-se elemento nuclear da Constituição material, é o
que defende Ingo Sarlet (2010, p. 58) para quem:
Os Direitos Fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da
forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a
essência do Estado Constitucional, constituindo, neste sentido, não
apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da
Constituição material.
Por outro lado, deve-se consignar que o Estado Democrático de Direito
também se mostra indispensável aos direitos fundamentais. Não obstante estes
servirem como fundamento à existência e legitimação de qualquer ordem
constitucional, o Estado Constitucional é o responsável por consignar proteção
e eficácia aos direitos fundamentais.171
Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos fundamentais é, na verdade,
proteção juridicamente mediada, isto é, por meio do Direito, pode afirmar-se com segurança, na
esteira do que leciona a doutrina, que a Constituição (e, neste sentido, o Estado Constitucional),
na medida em que pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada por órgãos
171
119
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Traço marcante deste Estado Constitucional, como dito, é a supremacia
constitucional que deve ser assegurada mediante o controle de constitucionalidade.
Dito controle é exercido no Estado Constitucional pelo Poder Judiciário de
forma de difusa e concentrada. Contudo, a forma concentrada é exercida pelo
órgão máximo de jurisdição, a Corte Constitucional.
Neste sentido, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 26 de agosto de 1789, em seu art. 16 preconiza que “A sociedade em que não
esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes
não tem Constituição”. Essa declaração, inspirada nos ideais iluministas do século
XVIII, condiciona a própria existência de um Estado (já que este surge, ao menos
juridicamente, a através da Carta Constitucional) não somente à existência, como
também à garantia de posições jurídicas fundamentais que garantam aos indivíduos
o gozo das liberdades (termo aqui utilizado em sentido amplo) e que por isto, sejam
retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes construídos.
As ideias de Constituição e direitos fundamentais são, no âmbito do
pensamento da segunda metade do século XVIII, manifestações paralelas e
unidirecionadas da mesma atmosfera espiritual. Ambas se compreendem como
limites normativos ao poder estatal. Somente a síntese de ambas outorga à
Constituição a sua definitiva e autêntica dignidade fundamental.
A supremacia da Constituição e a consequente necessidade de adequação
de todos os atos estatais, não somente os normativos, tal qual conhecemos
hoje é sobremaneira influenciada pelo pensamento de Hans Kelsen(1976, p.
310) para quem:
A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no
mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção
escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua
unidade é produto da relação de dependência que resulta do facto de a
validade de uma norma, cuja produção, por seu turno é determinada por
outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental
– pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos, é,
portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta
interconexão criadora.
Neste panorama emerge como necessidade de qualquer Estado que se
pretenda de direitos, o controle de constitucionalidade dos atos do poder público
com a finalidade de garantir a compatibilidade destes atos com a Constituição.
estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os
direitos fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de um autentico Estado
Constitucional.
120
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Neste diapasão, destaca-se o segundo ponto de contextualização do trabalho,
pois a partir uma vez que a compatibilização dos atos estatais com a Lei Maior
é realizada pelo Judiciário há um deslocamento da parcela decisória sobre as
políticas de Estado para este Poder.
Decisões de controle de constitucionalidade que visam a reafirmação da
supremacia constitucional (com a realização de Direitos fundamentais negados
administrativamente) e acabam por representarem verdadeiras decisões políticas,
são as decisões do Supremo Tribunal Federal de concessão ou manutenção
de prestações em matéria de saúde. Diversas são as razões pelas quais estas
demandas alcançam o nível mais elevado de jurisdição constitucional brasileiro.
Por isto, promove-se um recorte vislumbrando-se somente as decisões nas
quais a Administração Pública visa à negação ou a cessação de uma prestação
em matéria de saúde pelo comprometimento da saúde ou da ordem econômica.
2. DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE
Antes de se adentrar na temática central do presente trabalho, faz-se
mister discorrer um pouco a respeito do direito fundamental e social à saúde.
Inicialmente pode-se afirmar que se trata de um direito fundamental por
possuir intima ligação com a dignidade da pessoa humana (o que lhe confere
fundamentalidade material) além de ser um direito expressamente previsto no
texto constitucional (nota de sua fundamentalidade formal).
Concebidos os direitos fundamentais a partir dos momentos históricos de
sua positivação nas Constituições internas, a doutrina os divide em dimensões. Tais
dimensões representam o surgimento e positivação destes ao longo dos séculos.
Elege-se a terminologia dimensões, ao contrário de gerações, termo
anteriormente utilizado pelos estudiosos, substituído por se considerar que sua
utilização poderia criar na mente do intérprete a falsa noção de substitutividade
entre os direitos surgidos e os anteriores.172
Deve-se ter presente que a discordância dogmática é meramente
terminológica, pois, em princípio, há consenso no que tange ao conteúdo das
dimensões e gerações de direitos fundamentais.173 Discorrendo acerca do que
considera gerações de direitos fundamentais, Flores (2005, p. 101) pondera que:
Se é possível de fato falar em gerações de direitos, estas se encontram
menos vinculadas a uma manifestação de racionalidade humana universal,
tal como sustentada desde os estóicos até a declaração da ONU, de 1948,
No direito constitucional pátrio atribui-se a Paulo Bonavides (1997, p. 525) o pioneirismo no
apontamento para esta imprecisão terminológica.
173
Neste sentido é a lição de Antonio Augusto Cançado Trindade (1997, p. 24-25).
172
121
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
mas sim, dizem respeito às diversas reações funcionais e críticas que
têm sido implementadas na esfera social, política e jurídica ao longo dos
processos de acumulação capitalista desde a baixa Idade Média até os
nossos tempos.
Aparentemente há convergência doutrinária no sentido da existência
de três dimensões de direitos fundamentais, quais sejam: primeira dimensão,
segunda dimensão e terceira dimensão.
Na primeira dimensão são encontrados os direitos civis e políticos,
nascidos ante a pressão burguesa frente ao Estado em busca de menor intervenção
na autonomia privada. Tais direitos consubstanciam-se como garantias do
cidadão “surgindo e afirmando-se como direitos do individuo frente ao Estado,
mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não
intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu
poder” (ANDRADE, 1987, p. 43).
Por tais motivos, os direitos de primeira dimensão não exigem prestação
direta174 alguma do Estado, ao contrário, lhe impõem uma abstenção de agir. No
rol destes direitos assumem grande relevo, por conta de sua inegável inspiração
jusnaturalista, os direitos à vida, liberdade, propriedade e igualdade perante a Lei.
A Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX promovendo mudanças na
sociedade causou novos problemas sociais e econômicos. Neste contexto, o Estado
viu-se obrigado a deixar de lado sua postura de abstenção para agir em prol dos
interesses de uma sociedade que exige condições melhores de vida a todos.
Neste panorama surgiram os direitos fundamentais de segunda dimensão,
também denominados direitos sociais, culturais e econômicos. Tais direitos
devem ser garantidos e efetivados pelo Estado. Não se tratam esses direitos de
liberdades a serem exercidas frente ao Estado, mas por seu intermédio. Dentre
tais direitos está o direito fundamental à saúde que deve ser garantido mediante
políticas publicas que visem a proteção, promoção e recuperação da saúde.
Nos direitos de primeira dimensão tais como liberdade expressão,
liberdade de associação, liberdade de escolher uma profissão, se parte de algo
antecedente, não são criados pela regulamentação positiva, mas protegidos e/
ou limitada por ela. De modo diverso, nos direitos de segunda dimensão não
se parte de algo antecedente que deve ser juridicamente protegido pelo Estado,
antes, é necessária criação do direito para depois se proteger e regulamentar.
Afirma-se que não há prestação ao menos direta, porque a doutrina mais atualizada preconiza,
acertadamente, que mesmo os direitos tradicionalmente definidos como de caráter negativo,
também acarretam ao Estado alguns encargos econômicos como um sistema de segurança
pública e de administração judiciária, por exemplo. Neste sentido é a lição de Holmes e Sunstein
(1999, p. 35-48).
174
122
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Por isto, somente após a ação do legislador e do administrador para possibilitar
aos cidadãos o acesso a bens materiais é que surgirá algo para ser protegido
contra a intervenção do Estado.
Os direitos de segunda dimensão ao contrário dos de primeira dimensão
exigem um agir por parte do Estado. Conforme explica Böckenförd(1993, p. 76):
En los derechos fundamentales sociales la cosa es muy distinta.
Aspirando a procurar determinados bienes materiales, no parten de algo
antecedente, ya dado, que debe ser protegido jurídicamente y asegurado
frente a ataques. Para asegurar estos derechos fundamentales se necesita
más bien, con anterioridad a la garantía de la protección jurídica, una
acción estatal activa, positiva; se necesitan medidas del legislador y/o
de la Administración que procuren el acceso a los bienes materiales y la
participación en ellos.175
Os direitos de segunda dimensão surgem para possibilitar a igualdade
material entre os indivíduos visto que a igualdade formal é garantida pelos direitos
de primeira dimensão, como os direitos de liberdade religiosa e de expressão,
por exemplo. Inclusive, há autores que apontam como um dos fundamentos
axiológicos dos direitos fundamentais sociais (direitos de segunda dimensão)
a lei (tutela) do mais fraco, ou seja, tais direitos surgiriam como respostas às
reivindicações daqueles que não detém o poder político ou econômico.
Neste sentido, Ferrajoli (2009, p. 362) afirma que:
El cuarto criterio meta-ético idóneo para señalar el carácter fundamental
de las necesidades y expectativas vitales es el que las identifica con otras
tantas leyes del más débil frente a la ley del más fuerte propia del estado
de naturaleza, es decir, de la ausencia de derechos.176
Adverte-se para o fato de que o autor considera a tutela dos interesses
do mais fraco como fundamento de diversos direitos fundamentais inclusive de
primeira dimensão, mas, este fundamento se mostra ainda mais eloquente no
que toca os direitos econômicos, sociais e culturais. Pondera o autor que:
“Nos direitos sociais fundamentaisa coisa é muito diferente. Aspirando a aquisição de
determinados bens materiais, não partem de algo antecedente, já dado, que devem ser protegidos
juridicamentee garantidos frente a ataques. Para garantir esses direitos fundamentais é necessária,
antes da garantia de proteção jurídica, a ação ativa do Estado, ação positiva; Necessitando-se de
medidas do legislador e/ou da Administração que buscam conceder o acesso a bens materiaise a
participação neles.” (tradução livre).
176
“O quarto critério meta-ético adequado para apontar a natureza fundamental das necessidades
e expectativas vitais, é aquele que as identifica com tantas outras leis dos mais fracos frente à lei
do mais forte, próprias do estado de natureza, ou seja, da ausência de direitos.” (tradução livre).
175
123
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
De hecho, puede afirmarse que, históricamente, todos los derechos
fundamentales han sido sancionados, en las diversas cartas
constitucionales, como resultado de luchas o revoluciones que, en
diferentes momentos, han rasgado el velo de normalidad y naturalidad
que ocultaba una opresión o discriminación precedente: desde la libertad
de conciencia a las otras libertades fundamentales, desde los derechos
políticos a los derechos de los trabajadores, desde los derechos de las
mujeres a los derechos sociales. (FERRAJOLI, 2009, p. 363).177
Ainda em decorrência do progresso tecnológico e outras transformações
econômicas e sociais emergem na sociedade novas necessidades, necessidades
estas que precisam ser atendidas, daí surgem os direitos fundamentais de
terceira dimensão.
Deve-se esclarecer que quanto à titularidade dos direitos de primeira e
segunda dimensão pode-se afirmá-la individual. Por outro lado, na chamada
terceira dimensão, a titularidade dos direitos passa do indivíduo ao coletivo
sendo por isto muitas vezes indefinida e indeterminável.
Por conta de sua titularidade eminentemente coletiva, os direitos de
terceira dimensão são denominados de direitos de solidariedade e fraternidade.
Contudo, deve-se consignar que apesar disto resta preservado seu cunho
individual nuclear (SARLET, 2010, p. 48-49). Como exemplo destes direitos,
pode-se fazer referência às garantias contra manipulações genéticas, direito de
morrer com dignidade, direito a mudança de sexo, direito ao meio ambiente
preservado e equilibrado, direito à paz, dentre outros.
Há ainda quem defenda a existência de uma quarta e até uma quinta
dimensão de direitos fundamentais. Paulo Bonavides (1997, 524-526) defende
a existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais decorrente da
globalização. Entretanto, sua positivação no direito interno está longe de se
tornar uma realidade.
Para alguns autores a classificação dos direitos fundamentais em
dimensões não explica de modo satisfatório o processo de formação histórica e
social dos direitos fundamentais (BRANDÃO, 2001, p. 123). Tal classificação
seria meramente uma forma acadêmica de facilitar a reconstrução histórica da
luta pela concretização dos direitos fundamentais.
“Na verdade, pode-se argumentar que, historicamente, todos os direitos fundamentais foram
sancionados em diversas cartas constitucionais, como resultado de lutas ou revoluções que,
em diferentes momentos, modificaram o véu da normalidade e naturalidade que ocultava uma
opressão ou discriminação precedente: desde a liberdade de consciênciaaté as outras liberdades
fundamentais, desde os direitos políticos aos direitos dos direitos dos trabalhadores, desde os
direitos das mulheres aos direitos sociais.” (tradução livre).
177
124
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Por isto, inspirado na teoria de Jelinek, SARLET (2010, p. 167) classifica
os direitos fundamentais de acordo com a sua função preponderante em direitos
de defesa e direitos a prestações. Estes são divididos em direitos a prestações
em sentido amplo (direitos à proteção e direitos à participação na organização e
procedimento) e direitos a prestações em sentido estrito.
Os direitos de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos
poderes públicos. Impõem ao Estado um dever de respeito a determinados interesses
individuais, por meio da omissão de ingerências ou pela intervenção na esfera de
liberdade pessoal apenas em determinadas hipóteses e sob certas condições.
Inexistem controvérsias no que concerne à identificação entre os
denominados direitos de defesa com os direitos de primeira dimensão, os
quais já foram tratados. No âmbito dos direitos de defesa, se enquadram
primordialmente os direitos de liberdade e igualdade, bem como suas respectivas
formas de manifestação e concretização. Também está incluída entre os direitos
de defesa a maioria dos direitos políticos, das garantias fundamentais e alguns
direitos sociais, vez que como fora dito, esta classificação leva em consideração
a função preponderante dos direitos fundamentais em espécie.
Por sua vez, os direitos a prestações, ao contrário dos direitos de defesa,
exigem um agir por parte do Estado, impondo além da tarefa de não intervir
na esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, o dever de criar e colocar
à disposição dos cidadãos as condições fáticas que possibilitem o efetivo
exercício das liberdades fundamentais. A respeito destes direitos Ingo Sarlet
(2010, p. 185) pondera que:
Os Direitos Fundamentais a prestações objetivam, em ultima análise, a
garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado),
mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa
de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua
liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos.
Como fora dito linhas acima, os direitos a prestações se subdividem
em direitos a prestações em sentido amplo e direitos a prestações em sentido
estrito. Pode-se afirmar que os direitos a prestações em sentido amplo possuem
um caráter residual uma vez que se enquadram nesta classificação os direitos
fundamentais de natureza no mínimo predominantemente prestacional, que não
são direitos de defesa e nem direitos a prestações em sentido estrito.
Por outro lado, os direitos a prestações em sentido estrito, na concepção
de Robert Alexy (2011, p. 499), constituem direitos a prestações fáticas que o
indivíduo, caso dispusesse dos recursos necessários e em existindo no mercado
uma oferta suficiente, poderia também obter de particulares.178
O autor ainda completa: “quando se fala em direitos fundamentais sociais, como, por exemplo,
178
125
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Assim, os direitos a prestações em sentido estrito são facilmente
identificados com os direitos sociais, dentre os quais, como preconiza a nossa
Lei Maior em seu art. 6º, encontra-se o direito à saúde. Deve-se ressaltar, que o
que se leva em consideração para posicionar o direito social à saúde como direito
prestacional em sentido estrito é o seu caráter eminentemente prestacional.
Deve-se ter presente que o caráter eminentemente prestacional do direito
social à saúde não exclui seu caráter defensivo, uma vez que gera para o Estado
além do dever de criar ações que visem proteger, promover e recuperar a saúde,
o dever de não prejudicar a saúde de nenhum cidadão.
3. DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A Constituição, no Título II, em seu segundo capítulo, trata dos direitos
sociais como direitos a prestações, trazendo em seu artigo 6o que:
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifos nossos).
O direito social à saúde, de modo semelhante ao que ocorre com os
direitos sociais em geral, comporta duas vertentes. A primeira vertente é de
natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado ou de qualquer
pessoa que se abstenha de praticar atos que prejudiquem a saúde. A outra
vertente é de natureza positiva, significando o direito às medidas e prestações
estatais visando à prevenção das doenças e o tratamento delas.
A Constituição, no artigo 196 define a saúde como:
Direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.
Estas ações e serviços são de relevância publica, na forma do artigo
citado. A saúde, bem como a previdência e a assistência social, são direitos
encontrados no âmago da seguridade social. Nos termos da Carta Política, a
seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à
saúde, à previdência, e à assistência social.
direitos à assistência à saúde, ao trabalho, à moradia e à educação, quer-se primariamente fazer
menção a direitos à prestação em sentido estrito.” (ALEXY, 2011, p. 499).
126
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A seguridade social deve ser organizada nos termos da lei, com a
observância obrigatória de alguns objetivos, dentre os quais se encontram
primordialmente a universalidade da cobertura e do atendimento. Assim, como
a Administração Pública tem o dever constitucional de organizar a seguridade
social universalizado a cobertura e o atendimento, deve fazê-lo também quanto
às ações e serviços destinados à promoção, proteção e recuperação da saúde.
Neste contexto, prestações materiais do Estado, como a saúde, adquirem
o caráter objetivo de normas consagradoras de situações jurídicas fundamentais.
Contudo, tais direitos à prestações demandam uma estrutura estatal que precisa
ser constantemente construída pelo Estado,179 ao contrário dos direitos de
defesa, sendo que os recursos para a promoção desta estrutura são escassos.
Somasse ao problema da escassez dos recursos a inércia de agentes estatais na
realização dos direitos sociais.
É inegável que as normas definidoras de direitos fundamentais, em especial
os direitos sociais, em sua grande maioria possuem caráter principiológico.
Todavia, o artigo 5º, § 1º da Constituição Federal dispõe que as normas
definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.180
4. DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRINCÍPIOS: PRINCIPAL PRESSUPOSTO
TEÓRICO
Uma vez apresentado o direito à saúde como direito fundamental e,
portanto, integrante do cerne da Constituição material, bem como apresentada
Neste sentido, SILVA (2011, p. 238) chega à conclusão de que todas as normas de direitos
fundamentais são programáticas e não somente a dos direitos à prestações, o que ocorre é que
com os direitos de defesa a fruição destes direitos já se encontra garantida por uma estrutura que
já existe, por exemplo, no que tange ao sufrágio universal, já existe um Tribunal Eleitoral, uma
legislação pertinente, um sistema de votação e etc., por outro lado, no que toca o direito à saúde,
sempre há a necessidade de construção de novos hospitais, o pagamento de novos profissionais, o
desenvolvimento de novos tratamentos e etc.
180
Neste mesmo diapasão, SARLET (2010, p. 271) pondera que: “Se, portanto, todas as normas
constitucionais sempre são dotadas de um mínimo de eficácia, no caso dos direitos fundamentais,
à luz do significado outorgado ao art. 5º,§ 1º, de nossa lei fundamental, pode-se afirmar que aos
poderes públicos incumbe a tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos
fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados
relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar a circunstância
de que a aplicabilidade imediata e a plena eficácia que militam em favor dos direitos fundamentais
constitui, em verdade, um dos esteios de sua fundamentalidade formal no âmbito da Constituição.”
Na esteira do referido autor percebe-se que a regra do artigo 5º, § 1º da Constituição Federal constitui
um aditivo agregado às normas definidoras de Direitos Fundamentais, conferindo-lhes, em relação
às demais normas constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia.
179
127
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
a evolução dos direitos fundamentais que os divide em primeira, segunda e
terceira dimensões, além de exposta a classificação dos direitos fundamentais
de acordo com sua função preponderante o que leva à classificação do direito
à saúde como direito prestacional e delineado seu tratamento constitucional,
parte-se para o principal pressuposto teórico do trabalho, qual seja: os direitos
fundamentais enquanto princípios constitucionais.
Muitos são os traços distintivos entre as regras e os princípios, para
alguns autores181 estes se diferenciam daquelas na medida em que seriam
normas basilares do ordenamento jurídico de um país e de generalidade alta,
ao passo que as regras seriam apenas normas concretizadoras dos princípios e,
consequentemente, de generalidade baixa. Existiria por tanto uma diferença de
grau entre estas normas.182
Não obstante esta distinção não se mostrar equivocada, adotar-se-á a
diferenciação proposta por Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 45), influenciado
pela doutrina de Robert Alexy, para quem:
O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria
dos princípios, é a estrutura dos direitos que essas normas garantem. No
caso das regras, garantem direitos (ou se impõem deveres) definitivos, ao
passo que no caso dos princípios são garantidos direitos (ou são impostos
deveres) prima facie. (grifos do autor).
Assim, conforme nos adverte o autor, direitos garantidos por regras, por
serem definitivos, devem ser realizados totalmente, sendo aplicáveis ao caso
concreto, obviamente respeitadas as exceções. Por outro lado, em se tratando de
princípios não se poderá falar em realização total do que a norma garante isso
por que como dissemos, os princípios garantem direitos apenas prima facie e
não direitos definitivos.
Nesta esteira, é valido recorrer à lição de Alexy (2011, p. 103-104) para quem:
Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível
dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Neste sentido,
eles não contem um mandamento definitivo, mas apenas prima facie.(...)
Neste sentido é a lição de José Afonso da Silva (2008, p. 92) e de Celso Antônio Bandeira de
Mello (2008, p. 942).
182
Alexy (2011, p. 87) discorre sob esta posição: “Há diversos critérios para se distinguir regras
de princípios. Provavelmente aquele que é utilizado com mais frequência é o da generalidade.
Segundo este critério, princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto,
enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo.”
181
128
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O caso das regras é totalmente diverso. Como as regras exigem que seja
feito exatamente aquilo que elas ordenam, ela têm uma determinação da
extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas.
Essa determinação pode falhar diante de impossibilidades jurídicas e
fáticas; mas, se isso não ocorrer, então vale definitivamente aquilo que a
regra prescreve.
Dessa feita, os princípios devem ser tomados como mandamentos de
otimização, de modo que devem ser realizados ao máximo possível os direitos
previstos nestas normas. Por outro lado, às regras é aplicável a “regra do tudoou-nada” de modo que devem ser realizados de modo integral os direitos
estabelecidos por este tipo de norma.
O mandamento de otimização de determinado princípio e a medida
ordenada de seu cumprimento depende tanto das circunstâncias fáticas quanto
de suas circunstâncias jurídicas, sendo estas últimas determinadas pela colisão
de princípios jurídicos contrários (ALEXY, 2007, p. 64).183
Dentro do sistema jurídico, Robert Alexy (2010, p. 167-169) visualiza a
possibilidade do sistema ser composto apenas por regras, apenas por princípios
ou por regras e princípios conjuntamente. Um sistema composto apenas por
regras traz uma grande vinculação na decisão e por isso seria cheio de lacunas,
haja vista que ou o julgador aplica a regra ou não a aplica, seguindo o modelo
do tudo-ou-nada. A ordem jurídica, portanto, é uma ordem jurídica rígida.
Em contraponto à teoria do sistema jurídico composto apenas por regras,
existe a teoria do sistema jurídico composto apenas por princípios. A ordem
jurídica seria, assim, flexível. A indeterminação deste tipo de sistema jurídico
somado à sua flexibilidade não condiz com algumas exigências inderrogáveis
de certeza jurídica que o ordenamento exige.
Neste diapasão, o modelo de sistema jurídico composto por regras/
princípios se mostra mais adequado. Isso porque, neste modelo permanece uma
força vinculativa das regras como mandamentos definitivos, e ainda conserva
sua natureza principiológica, sendo que a aplicação dos princípios permite a
resolução de qualquer caso eliminando os problemas das lacunas.184
Em outra passagem Alexy (2011, p. 90) ressalta: “princípios são, por conseguinte, mandamento
de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato
de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas
também das possibilidades jurídicas.”
184
Nas palavras de Alexy (2010, p. 169): “no modelo regras/princípios permanece, de um lado,
fundamentalmente, conservada a força vinculativa do plano das regras. Do outro lado, ele é um
modelo fechado, à medida que princípios sempre são correspondentes e nele, por conseguinte,
nenhum caso é possível que não possa ser decidido com base em critérios jurídicos. Com isso, o
problema das lacunas chega, na base de uma tese da unidade, fundada na teoria dos princípios
183
129
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Tem-se, então, que as normas definidoras de direitos fundamentais têm a
estrutura de princípio exigindo, assim, a máxima realização possível do direito,
dadas as circunstâncias fáticas e jurídicas, podendo se tornar uma regra após
a aplicação da proporcionalidade. Como será observado, isto ocorre também
com as normas definidoras do direito fundamental à saúde.185 Todavia, há quem
discorde desta premissa.
Luigi Ferrajoli critica a concepção dos direitos fundamentais como normas
dotadas de estruturas de princípios. Antes de adentrar neste critica, faz-se necessário
apresentar o que são direitos fundamentais para o referido autor. Ferrajoli (2009, p.
19) apresenta um conceito formal de direitos fundamentais, para ele:
Son derechos fundamentales todos aquellos derechos subjetivos que
corresponden universalmente a todos los seres humanos en cuanto
dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad
de obrar; entiendo por derecho subjetivo cualquier expectativa positiva
(de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un sujeto
por una norma jurídica; y por status la condición de un sujeto, prevista
asimismo por una norma jurídica positiva, como presupuesto de su
idoneidad para ser titular de situaciones jurídica y/o autor de los actos
que son ejercicio de éstas.186
A partir deste conceito formal, o autor diferencia os direitos fundamentais
dos direitos que ele denomina patrimoniais e uma das diferenças apontadas
é justamente a estrutura das normas definidoras dos direitos fundamentais e
dos direitos patrimoniais. Para o autor, enquanto estes são positivados por
intermédio de normas hipotéticas, aqueles o são por intermédio de normas
téticas. Em suas palavras:
Podemos llamar normas téticas a las del primer tipo, que inmediatamente
disponen las situaciones expresadas mediante ellas. Aquí están no sólo
(...).”
185
Neste diapasão, Alexy (2011, p. 575) defende que independentemente de uma formulação
precisa ou não, todos os direitos fundamentais possuem a natureza de princípios e, portanto,
também são mandamentos de otimização.
186
“São direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos concedidos universalmente a
todos os seres humanos como pessoas dotadas do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com
capacidade jurídica; entendo por direito subjetivo qualquer expectativa positiva (de prestações) ou
negativa (de não sofrer lesões) ligada a um sujeito por uma norma jurídica; e por status a condição
de um sujeito, prevista por uma norma jurídica positiva, como pressuposto de sua idoneidade
para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos quesão exercício destas.” (tradução livre).
N.T: a expressão “capacidad de obrar” não possui uma tradução tão específica para o português,
podendo ainda ser traduzida como “capacidade de agir” ou “capacidade de trabalhar”.
130
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
las normas que adscriben derechos fundamentales sino también las que
imponen obligaciones o prohibiciones, como las normas del código penal
y las señales de carretera. Llamaré, en cambio, normas hipotéticas a las
del segundo tipo, que no adscriben ni imponen inmediatamente nada, sino
simplemente predisponen situaciones jurídicas como efectos de los actos
previstos por ellas. Entran aquí no sólo las normas del código civil que
predisponen derechos patrimoniales, sino también las que predisponen
obligaciones civiles como efectos de actos negociales o contractuales.
(FERRAJOLI, 2009, p. 34).187
A partir desta concepção de direitos fundamentais como regras,
Luigi Ferrajoli (2012, p. 17-19) identifica, dentro do constitucionalismo
jurídico moderno, duas correntes: um constitucionalismo jusnaturalista e
um constitucionalismo juspositivista.O primeiro é orientado especialmente
pelas ideias de Robert Alexy e seu entendimento de direitos fundamentais
como princípios, podendo ainda ser designado por constitucionalismo
argumentativo ou principialista, concepção já desenvolvida. O segundo,
podendo ser ainda denominado constitucionalismo garantista, caracterizase pelo entendimento de que os direitos fundamentais se comportam como
regras, haja vista que implicam na existência ou imposição de regras que
funcionam como suas garantias.188
Entretanto, esta concepção das normas de direito fundamentais enquanto
regras não deve prosperar tendo em vista a própria realidade constitucional
que positiva os direitos fundamentais (principalmente aqueles chamados
prestacionais) sem, contudo dispor sobre quais ações, estados ou posições
“As de primeiro tipo, podemos chamar de normas téticas, que imediatamente dispõem as
situações expressadas por elas. Aqui estão não só as normas que atribuiem direitos fundamentais,
mas tambémas que impõem obrigações ou proibições, como as normas do código penal e os sinais
de trânsito. Chamarei, no entanto, de normas hipotéticasas do segundo tipo, que não atribuem e
não impõem imediatamente nada, mas simplesmente predispõem situações jurídicas como efeitos
dos atos previstos por elas. Entram aqui não só as normas do código civil que predispõem direitos
patrimoniais, mas também as que predispõem obrigações civis como efeitos dos atos negociais ou
contratuais.” (tradução livre).
188
Em especial Ferrajoli (2012, p. 18-19) explica que: “a primeira orientação [principialista]
caracteriza-se pela configuração dos direitos fundamentais como valores ou princípios morais
estruturalmente diversos das regras, porque dotados de uma normatividade mais fraca, confiada
não mais à subsunção, mas à ponderação legislativa e judicial. A segunda orientação [garantista],
entretanto, caracteriza-se por uma normatividade forte, de tipo regulativo, isto é, pela tese de
que a maior parte dos (ainda que não todos) princípios constitucionais, em especial os direitos
fundamentais, comportam-se como regras, uma que implica a existência ou impõe a introdução
de regras consistentes em proibições de lesão ou obrigações de prestações que são suas respectivas
garantias.”
187
131
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
jurídicas estão abarcadas por estes direitos. Por tudo isto, acredita-se que os
direitos fundamentais possuem estrutura de princípios e não de regras.
Por isto, uma vez concebidos os direitos fundamentais como princípios
tem-se que devem ser realizados na maior medida possível em vista das
condições fáticas e jurídicas existentes. Então, o direito à saúde como direito
fundamental que é, deve ser realizado desta forma.
5. DEVER CONSTITUCIONAL DE REALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE PELO PODER JUDICIÁRIO
Como referido alhures, a Carta Constitucional brasileira desenha um
Estado Constitucional cujo traço marcante é justamente a existência de direitos
tidos por fundamentais os quais devem ser não somente respeitados, como
também promovidos por este Estado. Como dito, esses direitos fundamentais são
classificados em dois grandes grupos tendo em vista sua função preponderante.
O primeiro grupo de direitos fundamentais é o dos direitos de defesa,
direitos que em regra não exigem uma prestação do Estado, não exigem uma
estrutura estatal que já não exista quando de sua positivação. Ao contrário, o
grupo dos direitos à prestações exige uma estrutura estatal para sua promoção e
fruição que deve ser construída e melhorada constantemente, e por isto, carece
de maiores recursos financeiros o que limita a fruição destes direitos.
Por isto, os direitos fundamentais, e em especial os direitos prestacionais
(por conta de sua natureza), devem ser tidos como princípios jurídicos, ou seja,
mandamentos de otimização. Assim, os Direitos Fundamentais exigem que
algo seja realizado na maior medida possível em vista das condições fáticas e
jurídicas existentes.
Ocorre que, não raras vezes, o Poder Público deixa de conferir efetividade
a estes princípios (deixa de realizar os direitos fundamentais), o que leva a uma
busca de fruição destes direitos por intermédio do Poder Judiciário. Com o
direito à saúde não é diferente, principalmente por se tratar de um direito básico
e essencial à manutenção da vida.
Neste diapasão, acertada se mostra a observação de Boaventura Sousa
Santos (2011, p. 25), o qual assevera que:
Mesmo descontando a debilidade crônica dos mecanismos de
implementação, aquela exaltante construção jurídico constitucional tende
a aumentar as expectativas dos cidadãos de verem cumpridos os direitos
e as garantias consignadas na Constituição, de tal forma que a execução
deficiente ou inexistente de muitas políticas sociais pode transforma-se
num motivo de procura dos tribunais.
132
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Neste panorama o Poder Judiciário tem figurado como protagonista na
realização dos direitos fundamentais como é o caso do direito à saúde. Não
poderia ocorrer de maneira diferente. Como princípio que é, a negação de uma
prestação em matéria de saúde não pode se dar ao livre arbítrio da Administração
Pública, mas somente mediante justificativa constitucionalmente adequada que
seria a falta de recursos financeiros ou de previsão jurídica (dês que se trate de
uma opção pelo não fornecimento e não uma omissão estatal).
Assim sendo, quando um cidadão ingressa em juízo pleiteando uma
prestação material de saúde, o Poder Público deve imediatamente constituir
prova de sua impossibilidade de fornecimento, caso o contrário há um dever
de fornecimento por parte do Estado Juiz. Dessa feita, as condições fáticas
desfavoráveis as quais se encontra submetida a realização do princípio devem
ser desde já apresentadas, para justificar uma não realização.
Semelhantemente ocorre com as condições jurídicas. Caso estas não sejam
favoráveis ao fornecimento da prestação de saúde, devem ser invocadas em juízo
tão logo possível. Este é o entendimento esboçado pela Corte Constitucional
brasileira, segundo o STF, a mera alegação de comprometimento da ordem
econômica e da saúde pública em decorrência da concessão de determinada
prestação de saúde desvinculada de provas deste comprometimento não é capaz
de elidir o dever constitucional de fornecer.
Neste sentido, são diversas decisões tais como a decisão do agravo regimental
na suspensão de tutela antecipada nº 175/CE na qual ficou consignado que:
Melhor sorte não socorre à agravante quanto aos argumentos de grave
lesão à economia e à saúde publicas, visto que a decisão agravada
consignou, de forma expressa, que o alto custo de um tratamento ou
medicamento que tem registro na ANVISA não é suficiente para impedir
o seu fornecimento pelo poder publico (BRASIL, 2010a, p. 103).
Some-se isto ao fato de que é juridicamente impossível discutir matéria
de fato em grau de recurso extraordinário, sendo somente possível a discussão
em torno de matéria de direito, especificamente matéria constitucional. Assim,
quando uma demanda alcança o nível mais elevado de jurisdição, não será
possível a cessação ou a cassação das prestações de saúde visto que a prova
do comprometimento do sistema deve ser realizada em momento anterior e
encontra-se preclusa.
Ante o que foi até então apresentado, pode-se concluir que a natureza
eminentemente principiológica e programática do direito à saúde não é algo
prejudicial à sua realização, ante disto, é garantidor desta realização, não podendo
este direito se transformar em uma promessa constitucional inconsequente.
133
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Esta linha de raciocínio também encontra guarida na jurisprudência
constitucional como se pode vislumbrar em diversos julgados. Este é o
entendimento exposto no julgamento do agravo regimental no recurso
extraordinário nº. 271.286-8/RS, cujo relator é o Ministro Celso de Melo
(BRASIL, 2000, p. 1409-1410):
O caráter programático da regra inscrita no art. 196. da Carta Política
- que tem por destinatário todos os entes políticos que compõem, no
plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ
CRETELA JUNIOR, “Comentários à Constituição de 1988”, vol.
VIII/4332-4334, item n 181, 1993, Forense Universitária) – não pode
converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena
de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas
pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de
seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
(grifos do autor).
Deve-se ter presente que os julgados neste sentido189-190 estão em
consonância com a doutrina que considera não haver dicotomia entre normas
programáticas e o reconhecimento de direitos subjetivos individuais a
determinadas prestações decorrentes destas normas, este é o entendimento de
Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 294):
Tomando-se como exemplo o direito à saúde, verifica-se que assim como
é correto (pelo menos é o que se irá sustentar mais adiante) deduzir da
Constituição um direito fundamental à saúde (como complexo de deveres
e direitos subjetivos negativos e positivos) também parece certo que ao
enunciar que a saúde – além de ser um “direitos de todos”, “é dever do
Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doenças e outros agravos (...)” (art. 196 da
Assim pode-se citar o recurso extraordinário n. 368.564 de Relatoria do Min. Marco Aurélio,
julgamento onde lê-se: “ SAÚDE – TRATAMENTO – DEVER DO ESTADO. Consoante o exposto
no art. 196 da Constituição Federal ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado (...)’, incumbindo
a este viabilizar os tratamentos cabíveis.” (BRASIL, 2011, p. 64).
190
E Ainda o AI 734.487-AgR de Relatoria da Min. Ellen Gracie constando que: “O direito a saúde é
prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas,
impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a
tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando
inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em
questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.” (BRASIL, 2010b, p. 1220).
189
134
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
CF de 1988), a nossa Lei Fundamental consagrou a promoção e proteção
da saúde de todos como um objetivo (tarefa) do Estado que, na condição
de norma impositiva de políticas públicas, assume a condição de norma
de tipo programático. Importa notar, portanto, que a assim designada
dimensão programática convive com o direito (inclusive subjetivo)
fundamental, não sendo nunca demais lembrar que a eficácia é das
normas, que, distintas entre si, impõem deveres e/ou atribuem direitos,
igualmente diferenciados quanto ao seu objeto, destinatários, etc..
CONCLUSÃO
O direito social à saúde, enquanto direito fundamental que é, faz
parte do cerne da ordem constitucional devendo ser protegido contra ações
erosivas do legislador/administrador tendentes a esvaziar seu conteúdo.
Além disto, deve ser realizado dia após dia por se tratar de um direito
elementar à condição humana.
Este direito fundamental encontra sua fundamentalidade material
justamente na sua ligação intrínseca com a dignidade da pessoa humana e
sua fundamentalidade formal em sua positivação no texto constitucional.
Classificado como direito fundamental de segunda dimensão e ainda como
direito fundamental prestacional, as normas definidoras deste direito possuem
caráter programático (embora não destituída de aplicabilidade) e natureza
principiológica, por isto, o Poder Público tem o dever de criar e fornecer o
máximo possível de prestações em matéria de saúde observadas as condições
fáticas e jurídicas para tanto.
Ocorre que não raras vezes estas prestações de saúde, essenciais à
manutenção da vida e indispensáveis à dignidade humana, são negadas
administrativamente. Inconformados, muitos cidadãos recorrem ao Poder
Judiciário para garantir o que lhes é assegurado constitucionalmente.
Entender o direito fundamental à saúde como princípio implica na sua
realização máxima, salvo condições fáticas e jurídicas desfavoráveis. Então,
tendo em vista o caráter principiológico deste direito, a impossibilidade de sua
realização há que ser comprovada desde logo e sua não realização não poderá esta
pautada somente em alegações desvinculadas de prova do comprometimento
da ordem econômica e da saúde pública. Este é o entendimento esboçado em
diversos julgados da Corte Constitucional pátria.
Não somente o Supremo Tribunal Federal, mas também o Poder
Judiciário como um todo, tem sido essencial na realização do acesso ao
direito social à saúde daqueles a quem muitas vezes é negada uma prestação
fundamental à sua subsistência.
135
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Uma vez denegada a prestação da saúde, viola-se a realização máxima
dos direitos fundamentais enquanto princípios constitucionais, haja vista que
não se verifica nenhuma circunstância fática ou jurídica que justifique a falta da
prestação protegida pelo direito fundamental social à saúde. Não raras vezes,
a Corte Constitucional tem se pronunciado no sentido de que o direito social à
saúde não pode se transformar em uma promessa constitucional inconsequente.
136
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
REFERÊNCIAS
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Advogado, 2007.
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138
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
DIREITOS SOCIAIS: EXISTÊNCIA, FUNDAMENTABILIDADE E EFICÁCIA
DOS DIREITOS HUMANOS DE TER
Jean Carlos Barcelos Martins191
Maria Rosaria Barbato192
INTRODUÇÃO
A cidadania e a capacidade são as únicas diferenças de status que
determinam a igualdade das pessoas, sendo estes dois parâmetros, o primeiro
superável e o segundo insuperável, como o grande divisor dos direitos
fundamentais. Os direitos fundamentais devem conter seu ideal na positivação
das normas que expressam a existência das obrigações e proibições de cada
cidadão. O texto constitucional compreende a cártula de identificação de tais
direitos, bem como, o instrumento que possibilita a realização de técnicas e
políticas para efetivação dos direitos fundamentais. Não basta que o Estado
reconheça formalmente a existência de tais predicados, mas sim, há uma
necessidade diária de concretização dos mesmos, incorporando-os ao dia a
dia de cada cidadão. Este trabalho narra a jusfundamentabilidade dos direitos
humanos de ter, apontando sua condição necessária para subexistência dos
indivíduos, bem como o respeito a sua observância pelas políticas públicas
do Estado. Neste contexto, serão abordados os fundamentos e estrutura dos
direitos sociais, em um breve contexto histórico contemporâneo, apontando, por
conseguinte o conteúdo essencial desses direitos, culminando com a análise da
impossibilidade do retrocesso social do Estado e a importância da Assistência
Social como o direito de ter.
1. FUNDAMENTOS E ESTRUTURA DOS DIREITOS SOCIAIS: O RESPEITO AO
BEM ESTAR SOCIAL INDIVIDUAL E COLETIVO
Os direitos fundamentais refletem um caráter axiológico dos direitos
humanos invocando uma acepção que concretiza as lutas sociais pela dignidade
do homem, numa sociedade equilibrada e justa. Tal ideia não deve apenas
estreitar-se nos campos dos Estados Nações e sim no próprio contexto do
cenário internacional.
Neste contexto, Kant (2008, p. 115) relata que as pessoas devem existir com
um fim em si mesmo e nunca como um meio, imposto para esse ou aquele propósito.
Cada indivíduo possui um valor insubstituível e único, dotado de dignidade.
Professor do curso de Direito FADIR-UFU. Mestre em Direito.
Doutora em Direito pela Universidade de Roma Torvergata. Professora da UFMG.
191
192
139
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Luigi Ferrajoli (2009, p. 50) argumenta que os direitos fundamentais
são todos os direitos subjetivos, na condição de qualidade positiva ou negativa
de prestações do Estado, garantidos a universalidade de homens dotados de
personalidade. Este conceito é meramente formalístico, não ensejando uma
análise critica, bastando somente o seu reconhecimento universal para garantia
de sua existência, sua inalienabilidade ou inegociabilidade.
Ainda neste mesmo sentido, o mesmo autor discorre que a igualdade de
direitos garantidos a todos está reconhecida normativamente, devendo, entretanto,
ser averiguada sua intensidade e extensão, já que existem classes de sujeitos com
status diferenciados. Personalidade, cidadania e capacidade, são condicionantes
dos diversos tipos de direitos fundamentais, devendo ser ponderados como
parâmetros tanto das igualdades como das diferenças de tais direitos.
Os direitos fundamentais seriam o elemento de ligação entre o Estado e
cada indivíduo em sua relação cotidiana em sociedade, neste contexto, Alexy
(2011, p. 231) aplica as definições propostas por Jellinek no final do século
XIX, transcrevendo a existência dos quatro status (categorias) dos direitos dos
indivíduos perante o Estado, sendo eles:
Direitos de status negativos, aqueles que permitem aos homens resistir
a uma possível atuação do Estado, em razão de sua personalidade e liberdade,
constituindo verdadeiros instrumentos de defesa, capazes de assegurar
interferências ilegítimas do Poder Público, em suas três esferas de atuação:
Executiva, Legislativa e até mesmo Judiciária. Havendo violação desses direitos
poderão ser constituídas pretensões de abstenção, revogação ou anulação da
situação afetada.
Direitos de status positivos ou sociais, para os quais o indivíduo exige
que o Estado realize uma atuação prestacional, a fim de lhes ser possível
melhorias em suas condições de vida e subsistência para exercício das liberdades
e igualdades do homem. Trata-se de direitos objetivos, pois conduzem os
indivíduos em condições diferenciadas a uma igualdade material, por meio de
políticas e ações intervencionistas positivas do Estado para sua concretização.
São assim considerados como “liberdades positivas”, exigindo uma atuação
direta dos Poderes Públicos na busca do bem-estar social.
Direitos de status passivo ou subjetivos, a categoria na qual os indivíduos
encontram-se subordinados aos organismos estatais, ou seja, vinculados
aos poderes públicos através de regulamentos e imposição, compreendo não
propriamente direitos, mas sim deveres a serem cumpridos por todos no âmbito
da vida em sociedade.
Direitos de status ativos ou políticos, esta última categoria estabelece
competências para formação da estrutura governamental do Estado, permitindo
a participação na escolha e vontade política, tanto no aspecto do sufrágio
140
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
(votação) como o da exigência de informações e prestações de contas dos
poderes administrativos.
Conforme analisado anteriormente, o respeito ao bem estar social
individual e coletivo torna-se a própria estrutura à concretização dos direitos
sociais. Tal conceito pode ser sintetizado nos dizeres de Antonio-Enrique Perez
Luño (2005, p. 132), pois também reconhece que os direitos humanos devem
ser entendidos como um conjunto de faculdades que, em um dado momento
histórico, concretizam as exigências de direitos, como a dignidade humana, a
liberdade e a igualdade, e devem ser reconhecidas e positivadas. Ao passo que
os direitos fundamentais são aqueles positivados no ordenamento jurídico, na
maioria das vezes, em sede constitucional.
Os direitos fundamentais não surgiram simultaneamente, mas em períodos
distintos conforme a demanda de cada época, tendo esta consagração progressiva
e sequencial nos textos constitucionais dando origem à classificação em gerações.
a) Primeira geração: os direitos individuais, que pressupõem a igualdade
formal perante a lei e consideram o sujeito abstratamente. A liberdade é
a essência da proteção dada ao indivíduo.
b) Segunda geração: os direitos sociais, econômicos, culturais, em que o
sujeito de direito é visto enquanto inserido no contexto social. Igualdade
de direitos (ex. art. 196)
c) Terceira geração: os direitos coletivos e difusos. Necessidade
de proteção do corpo social. Seu fundamento é a fraternidade ou
solidariedade. Compreendem os direitos relacionados ao consumidor e
ao meio ambiente.
d) Quarta geração: os direitos de manipulação genética, relacionados
à biotecnologia e à bioengenharia, que requerem uma discussão ética
prévia. São direitos relacionados ao processo de globalização.
e) Quinta geração: os direitos da realidade virtual, a cibernética, que
rompem fronteiras e distâncias e estabelecem conflitos entre países de
realidades distintas. (BOBBIO, 2005, p. 98).
Os direitos da primeira geração, para Pérez Luño (2005, p. 134)
correspondem, em sua base, àqueles relacionados à proteção das liberdades
individuais, que impõem a limitação e a não interferência pela administração
pública nos direitos privados, que se concretizam pela atitude meramente
omissiva ou de simples vigilância dos entes públicos.
Já os direitos de segunda geração são aqueles que se observam pela
participação coletiva e da igualdade, necessitando ação política ativa, garantidora
do seu exercício, realizada por técnicas jurídicas prestacionais.
141
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Ainda para Luño, a terceira geração, complementa uma última etapa
necessária à plenitude dos direitos fundamentais ao preocupar-se com questões
relacionadas à solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um
meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso e ao
desenvolvimento dos povos.
[...] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) –
que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o
princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos,
sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais
ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira
geração, que materializam poderes de titularidade coletiva, atribuídos
genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da
solidariedade e constituem um momento importante no processo de
desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de
uma essencial inexauribilidade. (MELLO apud MORAES. 2010, p. 31)
Para os doutrinadores da atualidade, como Paulo Bonavides (2010, p.
233), a existência de uma quarta geração remete-nos aos frutos da globalização
política correspondendo à organização internacional da defesa da democracia,
do biodireito, da bioética, e à informatização, possibilitando um novo acesso ao
desenvolvimento e a solução de problemas trazidos pelo crescimento econômico
no âmbito mundial.
Contudo, não se pode aceitar com precisão tal posicionamento já que
não são exatos os critérios adotados para realização da divisão. Não se pode
dizer que as “gerações” de direitos fundamentais existiram isoladas em certo
lapso temporal, nem tão pouco que houve uma superação de regras, com o
surgimento dessas “gerações”.
As novas gerações de direito não podem ser consideradas como causas
extintivas das anteriores, entretanto um debate doutrinário tem se firmado posto
que alguns prefiram a utilização de “dimensões” já que ocorreu uma sucessão
desses direitos. Em verdade, todos eles coexistem. Desta forma, entende-se que
a consolidação das duas primeiras dimensões já se tenha acontecido, as demais,
encontram-se em fase de formação e positivação.
Para Dimoulis e Martins (2010, p. 31), dever-se-ia empregar a terminologia
“categorias” ou “espécies”, posto que desde as primeiras Constituições já se
observara a existência dos direitos fundamentais em sua case pela abrangência,
ou seja, na regulamentação dos direitos individuais, políticos e sociais, não se
atentando unicamente a um fator cronológico.
142
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
[...] é inexato se referir a “gerações” dos direitos fundamentais,
considerando que os direitos sociais sejam posteriores aos direitos
de inspiração liberal-individualista ou que estes tenham substituído,
ultrapassado os direitos fundamentais clássicos da dita “primeira geração”
liberal-individualista. Não há dúvida de que a parcela do orçamento estatal
dedicada ao financiamento dos direitos sociais após a Segunda Guerra
Mundial é bem maior do que aquela de inícios do século XIX. Mas essa é
uma alteração quantitativa. Sinaliza uma mudança nas políticas públicas
e não uma inovação no âmbito dos direitos fundamentais, cuja teoria
e prática conheceram, desde o início do constitucionalismo os direitos
sociais. (DIMIOULIS. 2010, p. 31)
Ainda neste contexto,
Portanto, recomenda-se utilizar os termos “categorias” ou “espécies” de
direitos fundamentais, da mesma forma como se classifica leis e atos
jurídicos em espécies de leis ou categorias de atos jurídicos e não em
dimensões do ato jurídico ou da lei. Reservar-se-á o termo “dimensões”
para indicar dois aspectos ou funções dos mesmos direitos fundamentais,
isto é, o objetivo e o subjetivo. (DIMIOULIS. 2010, p. 31).
Como se observa, a discussão não se encerra e nem tão pouco cabe aqui
uma escolha certa e única a cerca da terminologia mais correta a ser utilizada.
Prefere-se então considerar que todas as terminologias expressam um único e
verdadeiro significado etimológico que determina as várias espécies de direitos
fundamentais do homem no contexto doutrinário, podendo ser empregado
tanto às expressões gerações ou dimensões, não se afastando estes do seu foco
principal, sua jusfundamentabilidade.
Esses direitos constituíram-se como direitos do povo e para o povo,
seja ele na condição de ser humano, ou na coexistência social coletiva. Sua
finalidade é de impor limites na esfera de atuação do Estado em relação aos
indivíduos. Pode ser considerado, ainda, como um direito de defesa.
Sobre as características da jusfundamentabilidade dos direitos
fundamentais, José Afonso da Silva (2010, p. 181), descreve que estão
presentes: a historicidade, pois estes, não diferentes de outros direitos, nascem,
modificam-se e desaparecem; são inalienáveis, intransferíveis ou inegociáveis,
porque possuem conteúdo econômico-patrimonial, porque são indisponíveis;
são imprescritíveis, não perdem a sua validade, já que estão relacionados às
garantias personalíssimas ou individuais; e ainda podem até não ser exercidos,
mas jamais renunciados.
143
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A Constituição Federal de 1988 subdivide os direitos sociais em quatro
capítulos, classificando-os em espécies o gênero direito e garantias fundamentais,
em direitos individuais e coletivos, prescritos no artigo 5º e seus setenta e oito
incisos; em direitos sociais, compreendidos nos artigos 6º ao 11, e artigo 193; e
os direitos políticos prescritos nos artigos 12 à 17.
O artigo 5º da Constituição arrola direito e deveres individuais e coletivos.
O referido artigo começa enunciando o Direito de igualdade de todos perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza. Neste prisma Silva (2010, p. 189)
lembra que:
Embora seja uma declaração formal, não deixa de ter sentido especial essa
primazia ao direito de igualdade, que, por isso servirá de orientação ao
interprete, que necessitará de ter sempre presente o princípio da igualdade
na consideração dos direitos fundamentais do homem. Em conseqüência,
o dispositivo assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, a
inviolabilidade do Direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos dos incisos que integram este artigo.
Cabe, aqui também, fazer uma breve consideração a respeito da
diferenciação entre direitos individuais e direitos coletivos. Sarlet (2011, p.
170-171) diz que:
Inicialmente, há que fazer ao menos uma breve referência ao significado
dos assim denominados direitos individuais e coletivos – para utilizar
a terminologia da nossa Lei Maior - e de seu enquadramento no
status negativus e libertatis caracterísitcas dos direitos de defesa. A
distinção (ao menos aparente), traçada pelo Constituinte entre direitos
(e garantias) individuais e coletivos representa uma novidade do direito
constitucional vigente, tal que sorte que não encontramos referenciais
no direito constitucional pretérito que possam elucidar a questão, a qual,
além disso, igualmente não foi enfrentada por boa parte da doutrina. A
relevância da distinção se manifesta não somente no que diz com aspectos
procedimentais, ligados à efetivação dos direitos coletivos, mas pode
assumir real importância dependendo da exegese que fizermos do art. 60,
§4º, inc. IV, da CF, que, ao menos segundo a expressão literal do texto,
exclui os direitos e garantias coletivas do rol das “clausulas pétreas”. [...]
Com base na distinção traçada à luz do direito positivo, verifica-se, de
plano, que o constituinte não deixou transparecer uma definição precisa
de direitos coletivos. Inicialmente, cumpre frisar (como reconhece José
Afonso) que a grande maioria dos dispositivos elencados sob o rótulo
144
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
de coletivos são, na verdade, direitos tipicamente individuais, ainda que
de expressão coletiva, no sentido de que são exercidos, não isolada,
mas coletivamente. [...] Neste contexto, cumpre referir a lição de Vieira
Andrade, que oportunamente apontou para a circunstância de que os
assim denominados direitos coletivos não podem ser usufruídos pelo
indivíduo isoladamente, na medida em que pressupõem uma atuação
conjunta de mais de uma pessoa individual, continuando a ser, neste
sentido, direitos individuais, de tal sorte que a coletividade passa a ser
apenas um instrumento para o exercício do respectivo direito “coletivo”.
Para Steinmetz (2010, p. 193), há uma distinção entre três grupos de
direitos individuais, que podem ser agrupados em: Direitos individuais expressos,
tratados no corpo do artigo 5º da Constituição Federal; Direitos individuais
implícitos, condicionados aos regulamentos de garantias interpessoais, como a
vida, a alimentação e outros; Direitos individuais internacionais, recepcionados
e subscritos pelos Tratados externos, não possuindo uma provisão futura ao
regime incorporado, sua caracterização será sempre a posteriori.
Todas essas categorias de Direitos Fundamentais fazem parte de um
conjunto fundamentalista conciliatório de tais ideias, que mutuamente se
influenciam, uma vez que pertencem a uma dimensão coletivo-social.
Ao conjunto sistemático e harmonioso de regras dá-se o nome de
ordem, sendo indispensável ter em conta, em primeiro lugar, que a
ordem humana é uma organização de seres dotados de inteligência e
de vontade. Além disso, trata-se de uma ordem dinâmica, em constante
mutação, não se confundindo com o simples conjunto de regras escritas,
que se pretende que sejam constantes. As leis de um Estado expressam
uma parte dessa ordem, mas não sevem ser confundidas com a própria
ordem, pois esta inclui também os valores sociais que influem sobre os
comportamentos, assim como os costumes tradicionais e a jurisprudência.
Ordem social e ordem jurídica são conceitos muito mais amplos do que
ordem legal. [...] Na consolidação da liberdade individual deve estar
presente a responsabilidade social que deriva da natureza associativa
dos seres humanos. A igualdade democrática deve levar em conta a
igualdade quanto aos direitos fundamentais, mas também a efetiva
igualdade de oportunidades, que é bem mais do que a igualdade apenas
formal ou a igualdade perante a lei. E a escolha de representantes deve
ser verdadeiramente livre para ser democrática, além de não excluir a
possibilidade de controle do desempenho dos representantes pelo povo,
bem como a permanente influência do povo sobre o comportamento dos
145
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
eleitos. Atendidos esses requisitos, a ordem democrática será, ao mesmo
tempo, uma ordem justa e adequada para a proteção e promoção dos
direitos humanos fundamentais e da dignidade de todos os seres humanos.
(DALLARI. 2010, p. 30-31)
Relativamente às pessoas jurídicas é inegável que são destinatárias de
direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, o constituinte originário
declarou, inclusive, direitos que são próprios dos entes abstratos, como a
propriedade de marcas, signos distintivos, nomes das empresas e associações193.
A eficácia dos direitos sociais está diretamente relacionada às ações
políticas praticadas pela Administração Pública, que deve realizar um fim
capaz de concretizar tais direitos, ou seja, tal atuação depende de ações
governamentais e iniciativas públicas. Não seria outra essa razão, posto que,
os direitos fundamentais do homem caracterizam-se como normas de ordem
pública, e inafastáveis para otimização das finalidades e objetivos dos Estados
Democráticos de Direito.
Desta forma tem-se que, para garantia da efetivação dos direitos sociais,
há uma obrigação estatal em relação ao indivíduo não se limitando em eximirse do comportamento prejudicial aos direitos de liberdade, assumindo o
compromisso de promover prestações através de um desempenho positivo194.
A dignidade da pessoa ou simplesmente da garantia humana não se
apresenta de forma uníssona ou generalizada aos diversos entes sociais, pode
então variar conforme a localidade territorial, as condições socioeconômicas ou
ainda características relativas às crenças étnicas e religiosas.
O artigo 5º da constituição federal de 1988, além de assegurar as garantias individuais,
possibilita também à liberdade e o respeitos às personalidades jurídicas, assim estabelecendo
em seus incisos: [...] XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de
caráter para militar; XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas
independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
[...] XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade
para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; [...] XXIX – a lei assegurará aos
autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção
ás criações industriais, à proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes
de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do País;
194
Kelbert (2011, p. 32) bem ressalta que os direitos sociais também podem ser concretizados por
meio da realização, ou possibilidade de realização das liberdades sociais de cunho individualista
ou introspectivo, já que permite a não realização de atividades, ações ou até mesmo do trabalho
para que a dignidade seja almejada, citando como exemplo os períodos regulares de férias dos
trabalhadores celetistas e estatutários, até mesmo da garantia do direito de greve, que nada mais é
que a paralização dos trabalhos com objetivo de impulsionar as negociações coletivas na garantia
de novos direitos de uma determinada categoria profissional.
193
146
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Os direitos fundamentais também devem ser considerados não
como absolutos ou ilimitáveis, e sim em verdadeira relatividade passível de
restrições. Assim, o alcance objetivo (material) de um direito fundamental pode
internamente apresentar limitações, seja através de uma lei infraconstitucional,
ou até mesmo pelas próprias diretrizes constitucionais, por meio de uma
justificação plausível para sua não concretização.
Tal justificativa ocorre quando se depara com a colisão ou conflito
normativo constitucional que protege, ao mesmo tempo, dois ou mais bens que
se contradizem, e demonstram a inocorrência de uma hierarquia de direitos, já
que todos eles estão ensejados no corpo maior da norma positiva interna.
Desta forma, analisar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais
compreendera uma breve análise do conflito existente acerca das ações políticas
de efetivação dos direitos de segunda geração, já que a variabilidade do elemento
mínimo garantidor da dignidade humana tem por vezes sido confrontado com
as limitações orçamentárias estatais.
2. O MÍNIMO EXISTENCIAL E A DIGNIDADE HUMANA: O CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O direito alemão em 1949 (Sarlet, 2010, p. 192) sobrepesou o
reconhecimento dos debates político-administrativos no tocante à garantia
mínima de uma vida plena, nas três esfera de poderes do Estado, com o intuito de
se relacionar a sobrevivência social à materialização dos direitos fundamentais.
Inicia-se a ideia de que todas as necessidades mínimas do ser humano
devem ser sanadas para que lhe seja proporcionado uma vida digna, o mínimo
existencial não está relacionado apenas com o mínimo vital para que o indivíduo
mantenha-se saudável, mas sim com tudo que o faça viver dignamente. Nesse
sentido, Silva (2011, p. 204):
A simples ideia de um conteúdo essencial dos direitos sociais remete
automática e intuitivamente ao conceito de mínimo existencial. Essa
intuição em considerar ambas as figuras como intercambiáveis ou
sinônimos deve, no entanto, ser vista com cautela. Não é o caso, aqui,
de fazer uma aprofundada análise do chamado mínimo existencial, mas
é preciso ter em mente, em primeiro lugar, que o conceito de mínimo
existencial é usado com diversos sentidos, e pode significar: (1) àquilo
que é garantido pelos direitos sociais – ou seja, direitos sociais garantem
apenas um mínimo existencial; (2) aquilo que, no âmbito dos direitos
147
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
sociais, é justiciável – ou seja, ainda que os direitos sociais possam
garantir mais, a tutela jurisdicional só pode controlar a realização do
mínimo existencial, sendo o resto mera questão de política legislativa;
e (3) o mesmo que conteúdo essencial – isto é, um conceito que não
tem relação necessária com a justiciabilidade e, ao mesmo tempo, não se
confunde com a totalidade do direito social.
Ainda sobre este contexto histórico germânico, após grandes debates
sobre o tema o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha decide acerca do
direito subjetivo das pessoas que carecem de ajuda do Estado como mecanismo
de efetivação dos mais elementares direitos (liberdade, vida, saúde, moradia,
alimentação) como titular de direitos e obrigações, o que resulta na conservação
de suas boas condições de existência.
Então, depois de aproximadamente duas décadas da mencionada decisão
do Tribunal Administrativo Federal, o Tribunal Constitucional Federal também
reconhece como direito fundamental a prestação dessas condições para o
alcance de uma vida digna.
Depreende-se desse contexto histórico duas importantes características
sobre o mínimo existencial, uma vez que este não pode ser confundido com
um mínimo de sobrevivência, e sua direta e correlata relação com a garantia e
qualidade de vida dos indivíduos.
No Brasil, o texto constitucional, mesmo não expressamente ressaltado
o direito ao mínimo existencial, traça caminhos interpretativos para garantia
do reconhecimento de sua efetivação, ao transcrever em seu artigo 7º, inciso
IV195, que é direito de todos os trabalhadores o recebimento de salário capaz
de garantir as suas necessidades básicas vitais, bem como a de seus familiares,
estabelecendo em seguida um rol exemplificativo dessas supostas necessidades.
Na visão de Marinalva Schluncking as prestações do Estado como
meio de garantia ao principio da dignidade humana não pode ser esquecida ou
sobreposta nos discursos acadêmicos e jurídicos,
[...] a questão do ‘mínimo existencial’ ou ‘mínimo vital’ tem sido
amplamente debatida na doutrina, como também nos tribunais. Trata-se
de direito constitucional com fundamento no princípio da dignidade da
pessoa humana, segundo o qual são assegurados aos indivíduos direitos
Da Constituição Federal de 1988, temos então na integra o enunciado do dispositivo legal:
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social: [...] IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de
atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação,
saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.
195
148
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
sociais, os quais, ao menos em seu conteúdo, devem ser prestados pelo
Estado. (SCHLUCKING, 2009, p. 15)
O Estado é, então, o promotor196 dos direitos fundamentais, seja desde a
educação, a saúde, a moradia e a alimentação, e não apenas como mero interlocutor do
mínimo de direitos necessários ao desenvolvimento de uma vida digna. Em decisão
proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.185.474, o
ministro Humberto Martins, assim considerou em seu voto como relator:
[...] o mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o
mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial
abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão
da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção
na ‘vida social’. [...] o que distingue o homem dos demais seres vivos não
é a sua condição de animal social, mas sim de ser um animal político. É
a sua capacidade de relacionar-se com os demais e, através da ação e do
discurso, programar a vida em sociedade. (STJ, RE nº 1,185.474, Min,
Humberto Martins, publ. 29.04.2010)
O desenvolvimento social é um reflexo natural da própria evolução
humana, que, cotidianamente, passa a exigir ou criar novos desafios a serem
rompidos na busca de soluções para os problemas da vida em sociedade. Não
somente busca-se soluções para problemas novos, mas, também, para antigos
conflitos ainda não sanados.
O elemento central a cerca da dignidade da pessoa humana deve ser
pautado na condição da autonomia e autodeterminação da cada pessoa, como
uma qualidadem inata pura e simples. Para Sarlet (2009, p. 55) trata-se de uma
preatação do Estado, que deve guiar as suas ações no sentido de preserver a
pessoa, criando condições que possibilitem o pleno exercício da vida.
Ao análisar do conceito de mínimo existencial, Simone de Sá Portella (2007) reflete através
das definições de John Rawls, Ricardo Lobo Torres e Ana Paula de Barcellos, assim prolatando:.
“A prestação estatal é obrigatória quando caracterizada a necessidade. Assim é resistente à crise
financeira e não se confunde com os incentivos fiscais. De diversas formas se dá a proteção do
mínimo existencial. Em primeiro lugar pela entrega direta de prestações de serviço público
específico e indivisível, gratuitas através da atuação das imunidades das taxas e dos tributos que
dependem de prestações, como nos casos da educação primária e da saúde pública. A proteção da
liberdade pode se dar, também, por subvenções e auxílios financeiros a entidades filantrópicas e
educacionais, tanto públicas como privadas. A entrega de bens públicos, como roupas, remédios
e alimentos, nos casos de calamidade pública, ou como forma de assistência social a pessoas
carentes, através do fornecimento de merenda escolar, leite, etc, não depende de pagamento,
porque se trata de proteção do mínimo existencial. No entanto, é necessário ressaltar que a ação
estatal deve se restringir à entrega de bens necessários à sobrevivência dos pobres, pois ao Estado
não compete a concessão de bens e serviços a toda a população”.
196
149
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
E nesse sentido a Constituição de 1988 no Brasil pode ser considerada
o momento da quebra do paradigma liberal civilista da propriedade, que fora
substituído pela estruturação do fortalecimento da solidariedade à pessoa
humana. Ingo Sarlet (2010a, p. 268) defende que os vários direitos fundamentais,
consagrados na Carta Magna brasileira, possuem aplicabilidade197 imediata, ou
seja, de norma auto-aplicáveis.
[...] todas as normas constitucionais sempre são dotadas de um mínimo
de eficácia, no caso dos direitos fundamentais, à luz do significado
outorgado ao art. 5º, § 1º, de nossa Lei Fundamental, pode afirmar-se
que aos poderes públicos incumbem a tarefa e o dever de extrair das
normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia
possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente
às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar
a circunstência de que a presunção da aplicabilidade imediata e plena
eficácia que milita a favor dos direitos fundamentais constitui, em
verdade, um dos esteios de sua fundamentabilidade formal no âmbito da
Constituição[...]. (SARLET, 2010, p. 271)
O argumento da falta de recuroso para efetivação de políticas positivas
de direitos sociais decorre do Direito Constitucional comparado internacional,
contudo a situação social brasileira nos remete a uma interpetração diferenciada,
posto que, conforme elucidado, a garantia do mínimo existencial não pode ser
feita de forma objetiva, e sim analisando o contexto da efetiva condição da
dignidade da pessoa humana.
Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas
(transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação
não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais dohomem:
sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode
levar a ‘ponderações’ perigosas e anti-humanistas do tipo ‘por que gastar
dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELS. 2002, p. 53)
Os direitos fundamentais estão na essência da Constituição e um programa
de governo deve respeito aos ditames constitucionais, mormente, àqueles que
Para Virgilio Afonso da Silva (2011, p. 211): a questão da aplicabilidade é uma questão relativa
à conexão entre a norma jurídica, de um lado, e fatos, atos e posições jurídicas, de outro. Em outras
palavras: “Aplicabilidade é (...) um conceito que envolve uma dimensão fática que não está presente
no conceito de eficácia”. Não se pretende [...] analisar a aplicação dos direitos fundamentais a
situações concretas ou modelos que pretendam reconstruir essa forma de aplicação. [...]
197
150
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
se referem à dignidade da pessoa humana. Para efetivar direitos dentro de um
mínimo existencial necessário faz-se alocar recursos e é neste patamar que
torna-se possível e legítima a intervenção dos órgãos jurisdicionais a fim de
imporem ao poder público a satisfação das prestações demandadas.
A dignidade da pessoa esta atrelada à sua condição humana individuale
também em sua dimensão social (coletiva). Por serem todos iguais em direitos,
também o são em dignidade, partindo do pressuposto da necessidade de
promoção das condições de uma contribuição ativa para proteção de um conjuto
de direitos e liberdades de ampla abrangência. Em outras palavras a dignidade
deve respeitar a vida, e a integridade física e moral do ser humano.
Para Luis Roberto Barroso (2011, p. 17) a dignidade da pessoa tem seu
berço secular na filosofia. Caracterizando-se, primeira mente como um valor
axiológico, vinculado aos fundamentos da bondade e da justiça. Assim, estaria ela
situada juntamento com outros valores importantes do Direito, como equidade,
segurança e solidariedade. É nesse plano ético que a dignidade se torna, para muitos
autores, a justificação moral dos direitos humanos e dos direitos fundamentais.
Apenas no final do século XX é que ocorre aproximação da dignidade
humana com a Ciência do Direito, tornando-se um conceito jurídico, a partir da
expressão de um dever-ser normativo, e não apenas um dogma moral ou politico.
Consequentemente, ao transmutar da filosofia para o Direito, ganha carater de
princípio jurídico, sem contudo de afastar por completo da fundamentalidade ética.
Vale ressaltar que os limites fáticos e jurídicos à efetivação judicial dos
direitos fundamentais, condiciona aos órgãos do Estado o dever de planejar198
previamente a disponibilidade de recursos para erradicar os prejuízos causados
por essa limitação. Para Sarlet e Figueiredo (2008, p32) muitas vezes a falta
de recursos “tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da
intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da
efetivação dos direitos fundamentais especialmente os de cunho social”.
Quando se trata da atuação do Poder Judiciário é relevante ressaltar o
problema da sua cautelosa e resposável auto-limitação funcional, que deve
sempre estar de acordo com a sua legitimação, para atuar de forma organizada
O Min. Celso de Mello, ao julgar o Agravo em Recurso Extraordinário nº 410715-5, assim
entendeu: “Cumpre advertir, desse modo, na linha de expressivo magistério doutrinário (OTÁVIO
HENRIQUE MARTINS PORT, “Os direitos sociais e econômicos e a discricionariedade da
administração pública”, p. 105/110, item n. 6, p. 209/211, itens 17-21, 2005, RCS Editora Ltda.),
que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente
aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se constitucionais,
notadamente, quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou,
até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial
fundamentalidade. (STF, RE 410.715-5 Agr, Min Celso de Mello, 2ª Turma, 22.11.2005, p.
1541/1542).
198
151
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
no controle das ações do poder público em favor de uma excelente realização
dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, tem enorme importância o princípio da proporcionalidade,
que sempre deverá guiar a atuação dos orgãos estatais, e também os particulares,
quando exercerem função caracteristicamente do orgão do Estado. Sarlet e
figueiredo (2008, p. 33) afirmam que “a proporcionalidade haverá de incidir sua
dupla dimensão como proibição do excesso e de insuficiência, além de, nessa
dupla acepção, atuar sempre como parâmetro necessário de controle dos atos do
poder público”. Ou seja, os responsáveis pela concretização dos direitos sociais,
cuja a insuficiência devido a omissão plena ou parcial traz grandes prejuízos,
deverão analizar os critérios como adequação, necessidade, proporcionalidade
e razoabilidade, respeitando sempre o núcleo essencial dos direitos.
Ao analisar-se a palavra proporcional199 encontra-se a seguinte definição:
em que há proporção correta, equilíbrio, harmonia. E é neste sentido que se
utiliza o princípio constitucional da proporcionalidade, ou seja, como uma
ponderação correta e harmoniosa entre dois interesses que estejam em conflito
perante um caso concreto, em uma hipótese real e fática.
Cleve e Freire (2004, p. 135) afirmam que o princípio da proporcionalidade,
aliado aos demais princípios da interpretação da Constituição, exige uma
ponderação dos direitos fundamentais ou bens de natureza constitucional que
estão em jogo, alcançando-se, assim, a aplicação das medidas corretas e justas
à solução do caso concreto.
Os doutrinadores apontam que a existência do princípio da
proporcionalidade no nosso sistema não depende, assim, de estar contido em
uma formulação textual na Constituição. Desde que exista a possibilidade de
sua verificação e coexistência com os demais fundamentos constitucionais,
estará este caracterizado e, consequentemente, sua aplicação será demonstrada
nas decisões dos Tribunais.
Para Melo (2008, p. 247), enuncia-se com o princípio da razoabilidade
que o governo, ao atuar no exercício da discrição, terá de obedecer a critérios
aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de
pessoas equilibradas e respeitosas às finalidades que presidiram a outorga da
competência exercida.
Vale dizer que se pretende colocar em claro que não serão apenas
inconvenientes, mas também ilegítimas as condutas desarrazoadas, bizarras,
incoerentes ou praticadas em desconsideração às situações e circunstâncias que
seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e
disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada.
Significado retirado da obra de HOUSSAIS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2011.
199
152
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Sarlet e Figueiredo (2008, p.35) asseguram que o controle das decisões
políticas sobre a alocação de recursos, principalmente quando se trata da
transparência dessas decisões e da possibilidade de realização do controle
social sobre o aproveitamento dos recursos reservados podem ser amenizados
na esfera do processo político. Dessa forma, é relevante lembrar do princípio
da inafastabilidade do controle jurisdicional, que garante o acesso ao judiciário
sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a direitos, não excluindo qualquer
direito nem qualquer lesão ou ameaça, mesmo que aconteça por meio de
políticas públicas ou da falta delas.
Como já exposto, mínimo existecial é a parte do direito fundamental
que o homem necessita para sobreviver com dignidade. Também sabe-se que
o limite de recursos é relevante limite para a realização dos direitos sociais.
Para Ana Paula de Barcellos (2002, p. 252-253) o mínimo existencial poder
residir com a reserva orçamentária, desde que sempre guiados pelo princípio da
dignidade da pessoa humana.
Os direitos fundamentais estão na essência da Constituição e um programa
de governo deve respeito aos ditames constitucionais, mormente, áqueles
que se referem à dignidade da pessoa humana. Daí, porque, há legitimidade
do Poder Judiciário ao apreciar demandas que envolvam pedidos de
revisão ou alteração de políticas públicas. Para efetivar direitos dentrto de
um mínimo existencial necessário se faz alocar recursos e é neste patamar
que se trona possível e legitima a internvenção dos ´rogãos jursidicionais a
fim de imporem ao poder público a satisfação das prestações demandadas.
Neste sentido, a pr´veia dotação orçamentária, apesar de prevista na
legislação, não pode ser tida como uma regra absoluta que não comporta
exceções a fim de impossibilitar a efetivação de direitos fundamentais
constitucionalizados. (MOTTA; MOTTA. 2011, p. 357)
Dimoulis e Martins, em relação aos direitos sociais, entendem que a
reserva de recursos somente poderia predominar sobre o mínimo existencial
se ficasse comprovada a completa impossibilidade fática da concetização da
prestação material, ou seja a falta da reserva natural dos recursos. Tratando-se
da reserva jurídica associada à distribuição de recursos, os autores posicionamse da seguinte forma:
A impossibilidade de o Estado atender demandas de despesas não pode
servir como limite constitucional ao seu dever de concretizar um direito
social tanto no plano geral (controle abstrato das políticas públicas de
saúde, habitação, educação etc.), quanto individual (pretensão concreta
153
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
exigida pelo titular do direito à saúde, por exemplo). Isso se deve a razões
processuais. No primeiro caso ao legislador fixar o “como” (intensidade
do investimento) o direito social há de ser concretizado, faltando ao juiz
competência para tal constatação. No segundo caso, é de competência
jurisdicional verificar a procedência de um pedido com base em um direito
social, condenando o Estado à prestação específica, independentemente
de alegações sobre a “impossibilidade da prestação”. [...] Doutrinadores
que admitem a figura da “reserva do possível” procuram amenizar seus
efeitos limitadores do vinculo estatal (originalmente legislativo e, é
claro, também executivo e jurisdicional, sendo estes últimos vinculados
ao modo fixado, pela primeira função) aos direitos prestacionais com
duas afirmações. Primeiro, consideram que o Judiciário deve verificar
as “decisões políticas” distributivo-orçamentárias dos demais Poderes.
Segundo, indicam o ônus da prova da impossibilidade financeira
cabe a autoridade que a alega. [...] A alegação de impossibilidade de
cumprimento de dever estatal pode ter relevância jurídica no momento da
execução judicial de condenações à prestação pelo Estado de um direito
social, tendo em vista a ordem de cumprimento das prestações em face
de critérios orçamentários. Mas neste caso temos um clássico problema
de tratamento desigual de titulares de direitos fundamentais e não uma
justificativa da reserva do possível como forma de relativizar a aplicação
imediata dos direitos sociais. (DIMIOULIS, MARTINS. 2010, p. 95-96)
Ou seja, é impossível a redução do direito fundamental e a concretização
integral de tal direito pode e deve ser assegurada, em último caso, pelo Poder
Judiciário. Sabe-se que a vida é direito de todos e que é dever do Estado
pomover a saúde. Nesse sentido, Sarlet (2010, p. 352-353) afirma que negar
às pessoas os recursos materias necessários para a sua sobrevivência pode
ser a condenação à morte, por inércia, por falta de alimentação adequada,
atendimento médico e outros necessários. Pode-se sustentar “que ao menos
na esfera das condições mínimas encontramos um claro limite à liberdade de
conformação do legislador”.
Não apenas o mínimo existencial se mostra argumento relevante para a
concretização dos direitos fundamentais sociais diante da reserva do possível,
mas o princípio da dignidade da pessoa humana também se faz importante. Nesse
mesmo sentido afirma Ingo W. Sarlet (2010, p. 353) que o princípo da dignidade
da pessoa humana pode ostentar relevante papel demarcatório, estabelecendo o
limite que se designa padrão mínimo no âmbito dos direitos sociais.
Dessa forma, é possível imaginar o mínimo exitencial como uma
importante ferramenta jurídica, quando se trata de conter a reserva do possível
154
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
enquanto argumento limitador dos direitos fundamentais sociais. Mesmo não
sendo adequado ter o mínimo existencial como fator ocasionador da exigibilidade
dos direitos fundamentais sociais, sabe-se que diante da atuação da reserva do
possível, que alcança o campo de proteção das normas fundamentais e reduz a
responsabilidade do Poder Publico para com as prestações materiais, o mínimo
exitencial é compreendido como condições básicas para a sobrevivência
do homem e tem direta relação com a dignidade da pessoa humana, assim,
não podendo ser ignorada, pois pode comprometer a legitimidade do Estado
Democrático de Direito.
3. DIREITOS SOCIAIS E IMPOSSIBILIDADE DE RETROCESSO SOCIAL: O NOVO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A democracia fundamenta sua finalidade na existência humana proba,
colocando a dignidade da pessoa como centro referencial desse regime político.
Os Estados que se regimentam pelos fundamentos democráticos não pode buscar
como fim senão a concretização de políticas públicas que revelem ao homem
a melhor situação sociopolítica para o bem de todos que compõem a família
humana, em respeito à sua individualidade e em benefício da coletividade.
Desta forma, a dignidade da pessoa humana não é simplesmente um
princípio fundamental da democracia, mas sim o seu valor existencial. Sem
o respeito à dignidade também não há que se falar em legitimidade de Poder
Estatal, pois o legítimo tem sua única expressão no homem respeitado em sua
essência e em sua transcendência.
A palavra democracia tem sua origem na Grécia antiga e vem dos termos
demos (povo) e kratia, de krátos (governo, poder, autoridade). Giovani Sartori
(1994, p. 45) retoma a origem etimológica da palavra ao expor a importância
de ter-se uma definição clara do conceito de democracia e a dificuldade em
conceituá-la de forma adequada.
Na Grécia antiga, apenas uma parcela da população tinha direitos
políticos, assim, intitulada como cidadãos. Excluíam-se as mulheres, os
escravos, estrangeiros e crianças, restando apenas os proprietários de terras para
decidir sobre o governo. Sob essa ótica, Aristóteles (2000, p. 59) conceituou
democracia como “o Estado que os homens livres governam”, enquanto as
oligarquias eram governadas pelos ricos.
A história da conceituação de democracia é abordada por Oliveira
(2001, p. 112). A autora aponta que os significados que a prática e a teoria da
democracia traçaram mostram que houve uma transformação de seus princípios
ao longo do tempo. Nesse percurso há o embate ao tentar definir se a democracia
representa alguma forma de poder popular, ou se significa um meio de legitimar
as decisões dos eleitos para governar.
155
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Avritzer (2002, p. 82) faz uma análise histórica e apresenta que a
democracia passou a ter destaque no campo político apenas no século XX. Para
o autor, o debate na primeira metade do século estava voltado para o desejo
de utilizar a democracia como forma de governo. Ao final das duas guerras
mundiais, a proposta hegemônica restringia as formas de participação, focando
em um consenso quanto ao procedimento eleitoral que formaria os governos.
Assim, depois da 2ª Guerra Mundial, esta proposta estava imersa na
visão do elitismo competitivo e da supervalorização da função dos mecanismos
representativos, prejudicando as formas de participação popular.
Em virtude disso, a concepção de democracia ficou atrelada à democracia
representativa, dando preferência às questões processuais, como o ato de votar,
e ignorando as formas mais ativas de participação. A participação mais ativa,
quando permitida, passou a envolver processos formais convocados pelo
governo, como plebiscitos e referendos. Essa visão hegemônica dá foco ao
impasse do funcionamento da democracia em grande escala. Ela baseia-se na
ideia de que a única solução para esse impasse é a representatividade, às vezes
não levando em consideração outras dimensões da representação.
Para Lüchmann (2002, p. 62), esse modelo possui um caráter instrumental,
individualista e competitivo, que transforma o processo de escolha política em
uma competição entre partidos, podendo-se comparar a dinâmica política à
dinâmica comercial.
Ao final da década de 60, começou-se a questionar a concepção hegemônica
da democracia. Os motivos foram o surgimento de movimentos sociais que
buscavam maior participação e uma crise de representação devido à tendência de
diminuição do espaço para a participação popular por parte dos governos.
Já Avritzer (2002, p. 97) tece uma crítica quanto à democracia
representativa carregar a deterioração das práticas democráticas devido a duas
patologias: a da participação e a da representação. Essa está relacionada ao
fato dos cidadãos não se sentirem bem representados pelos eleitos, e aquela diz
sobre aumento da abstenção dos eleitores no processo decisório.
Dentro dessa linha, Pateman (2005, p. 72) apresenta que o fato do estado
democrático ser em larga escala não dificulta a participação ao acreditar que
esta, de certa forma, é educativa. Assim, por meio de um processo de capacitação
e conscientização, é possível desenvolver a cidadania dando fim às injustiças
sociais e aos padrões de subordinação. A participação leva à conscientização e à
formação de opinião que farão possível a entrega do poder legítimo à sociedade.
Na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, um
novo paradigma de poder é realizado, o qual é definido pelas tecnologias
que reconhecem a sociedade como o reino do biopoder [...] quando o
156
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
poder se torna inteiramente biopolítica, todo o corpo social é abarcado
pela máquina do poder e desenvolvido em suas virtualidades [...] O
poder é dessa forma expresso como um controle que se estende pelas
profundezas da consciência e dos corpos da população – e ao mesmo
tempo através da totalidade das relações sociais. (HARDT & NEGRI.
2005 p. 234)
Giorgio Agamben (2006, p. 81) narra que o novo poder deve ser
considerado algo não derivado da sociedade atual e sim mais antiga, já que pode
ser observada desde os primórdios das relações sociais. Sua ligação é marcante
com a condição de existência do Estado, qual seja a soberania, elemento
estruturador de toda vida particular. O controle dos indivíduos relaciona-se
à própria exaltação daquela condicionante, diferenciando politicamente os
membros e os não-membros.
Ainda para o autor, o Leviatã200 (Estado) exerce seu domínio sem a
prática da força para doutrinar a vida coletiva dos homens em sociedade. E
neste aspecto questiona sobre as maneiras de se esquecer os ditames do poder
maior do Estado frente ao indivíduo, respondendo que enquanto um governa,
cria e edita regras de convivência mutua, o outro deve obedecê-las.
Aproveitando a análise de Hobbes (2004, p. 346) ao afirmar que a
igualdade dos homens reside na igual capacidade de matar ou morrer, para
ele a metáfora do Leviatã, está na própria formação de sua estrutura corporal,
formada por todos os indivíduos. O corpo do Estado Ocidental é composto pela
individualidade mortal de seu povo.
Aqui acrescenta-se a seguinte ideia, narrada por Scharamm (2005, p.
325): “em um sentido particular, mas realíssimo, todos os cidadãos apresentamse virtualmente homines sacri, isto somente é possível porque a relação de
bando constituía desde a origem a estrutura própria do poder soberano”.
O bando – que na sua origem medieval se refere ao bandido banido e,
portanto, que vive, ao mesmo tempo, à mercê de e livre de todos – reúne a vida
nua e o poder. A fundação do estado civil não é um instante originário finito,
sendo, no entanto, algo que o bando soberano realiza continuamente.
Para Agamben (2009, p. 73) nos regimes democráticos atuais, tem se
tornado cada vez mais permanente o dispositivo do “estado de exceção”, que
pode ser caracterizado como um mecanismo permissor do poder soberano
capaz de manter uma autonomia relativa com relação aos seus sujeitos na
sociedade civil. Tal técnica de governo, que juridicamente é concebida como
O Leviatã foi citado por Thomas Hobbes, ao analisar em 1651 a natureza humana e a necessidade
da existência do governo e do Estado para controlar o “estado natural” que os homens possuem,
justificando, por conseguinte a dominação e atitude na época dos Estados Absolutistas. O termo
Leviatã faz referente ao monstro bíblico mitológico que aterrorizava os oceanos. (HOBBES. 2004)
200
157
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
um dispositivo transitório, tem sido correntemente utilizada para manter a
sociedade em um constante “estado de emergência”.
O Estado social de direito, desenhado a partir da Primeira Guerra
Mundial, manifesta-se, sobretudo a partir do Segundo conflito mundial.
O que está em causa agora são os valores da solidariedade e da justiça
social. Partindo-se das desigualdades reais, procura-se “articular direitos,
liberdades e garantias (direitos cuja função imediata é a proteção da
autonomia da pessoa) com direitos sociais (direitos cuja função imediata
é o refazer das condições materiais e culturais em que vivem as pessoas)”.
De alguma forma, o Estado passa a desempenhar também uma função
ortopédica, procurando corrigir os excessos do individualismo econômico.
Sem se perderem de vista as liberdades individuais procura-se superar o
entendimento abstrato de que estas são alvo. Colhe vencimento a ideia de
que os direitos sociais os direitos individuais “perdem o seu sentido”. [...]
Os direitos fundamentais, ao invés de resguardarem os indivíduos da ação
discricionária do Estado, são agora concebidos com um significativo fator
de integração na vida da sociedade. É como se o cidadão tivesse créditos
face a esta. (MARQUES, apud SILVA. 2011, p. 69-70)
No Estado Social Democrático, portanto, cabe uma atuação mais efetiva
do Poder Judiciário na administração da justiça. Não há que se falar em
neutralidade axiológica/valorativa das regras processuais, o que fica superado,
considerando que as regras processuais constituem-se num meio para atingir os
fins do processo, e este deixa, portanto, de ser entendido apenas como um meio
ao dispor dos titulares dos direitos e interesses violados ou ameaçados.
O ser humano, enquanto sujeito político, participa de uma cultura, mas se
encontra sempre passível da exclusão. Tal possibilidade paira no imaginário dos
membros da comunidade, onde a condição de validade da ordem jurídica e da
autoridade estatal é sempre posta em discussão nos condicionantes da premissa de
validade dos direitos necessários e existenciais a serem garantidos pelos governantes.
Ao Estado é imposto o dever da prestação jurisdicional. A ação, ao ser
proposta, exige primeiramente do Estado a prestação jurisdicional, e num
segundo momento, da parte adversa o dever de suportar os atos inerentes à
tutela jurídica e, em vindo a sucumbir, o ônus da prestação jurisdicional e do
cumprimento do devido ao autor. Assim, o sujeito lesado em um direito tem o
direito à defesa do seu direito subjetivo.
4. ASSISTÊNCIA SOCIAL: DIREITO CONSTITUCIONAL SOCIAL TIPIFICADO PELA
CONSTITUIÇÃO DE 1988
No Texto Constitucional de 1988, os Direitos Sociais são tratados no
Capítulo II, Título II, destinado aos Direitos e Garantias Fundamentais. O artigo
158
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
6º201 elenca como direitos sociais o direito à educação, à saúde, à alimentação,
ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, proteção à
maternidade e infância, e assistência aos desamparados.
Ademais, conforme o artigo 5°, parágrafo 1° do mesmo texto constitucional
estabelece, os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata. Decorrendo
destes fatos que o Estado, ao se omitir na implementação dos direitos sociais
fundamentais, poderá ser condenado à obrigação de fazer, por meio do que se
conhece como “judicialização das políticas públicas”, conforme discutido nos
itens anteriores.
Respeitar os direitos humanos de cada pessoa é reconhecer a
individualidade única de cada ser e que suas características devem ser usadas
pra direcionar a medida de ações a serem feitas pelo Estado. Respeitar os direitos
humanos é tomar consciência de que todos, e todas, nós somos diferentes, e isto
é a grande riqueza da humanidade.
Sem a vida em sociedade as pessoas não conseguiriam sobreviver, pois
o ser humano, desde que nasce e durante muito tempo, necessita de outros
para conseguir alimentação, abrigo e outros bens e serviços indispensáveis. E,
no mundo moderno, com a grande maioria das pessoas morando nas cidades
e o aumento das populações, persistiram e ganhou maior volume as antigas
necessidades, e a elas acrescentaram-se outras em consequência de hábitos e
modos de vida que tornaram necessários muitos outros bens.
Os direitos sociais, por estarem garantidos no corpo constitucional,
determinam que tais regulamentos e garantias do homem fossem consagrados
pelo Estado Democrático como um direito fundamental. Entretanto, como já
debatido anteriormente, sua condição de validade e existência não está vinculada
ao formalismo das ciências jurídicas. A relação de garantia do princípio da
dignidade da pessoa humana é sobreposto aos demais poderes administrativos.
O movimento da sociedade civil, nos últimos anos, vem produzindo
e constituindo novos direitos na defesa e no respeito às diferenças e pela
superação das desigualdades. Quando se estuda e trabalha-se sob o ponto de
vista educacional, dos seus indicadores, essas diferenças estão claramente
marcadas pelas condições de gênero, raça, etnia, idade, local de moradia, etc. As
desigualdades estão demarcadas fundamentalmente pelas condições econômicas
dos grupos sociais. As condições de desigualdade social e as diferenças entre
grupos estão inter-relacionadas, produzindo impactos nos indicadores.
Para José Afonso da Silva os direitos sociais são:
Artigo 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma dessa Constituição.
201
159
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
[...] prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou
indiretamente enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam
melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar
a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que
se ligam ao direito de igualdade. Podem ser classificados: a) direitos
sociais relativos ao trabalhador; b) direitos sociais relativos à seguridade,
compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social; c)
direitos sociais relativos à educação e à cultura; d) direito social relativo
à família, criança, adolescente e idoso; e) direitos sociais relativos ao
meio ambiente. (SILVA. 2010, p. 289)
Na prática dos direitos sociais no Brasil, sua aplicabilidade, há que se
reconhecer a efetividade imediata do disposto na norma Constitucional prevista
no artigo 6º, ainda está longe de corresponder à realidade social brasileira,
tendo em vista a enorme desigualdade social reinante no país e a precariedade
da prestação por parte do Estado na esfera da saúde pública, da educação, da
segurança, da moradia, da alimentação e do trabalho.
Os direitos podem ser considerados como responsáveis pela concretização
da dignidade do homem. Para que um ser humano tenha direitos e possa exercêlos, é indispensável que seja reconhecido e tratado com a devida dignidade.
Reconhecer e tratar alguém como pessoa é respeitar sua vida, não submetêla ao trabalho escravo de outra, não humilhá-la ou permitir que seja agredida
por outro, não obrigá-la a viver em situação de que se envergonhe perante os
demais ou que os outros considerem indigna ou imoral.
Nesse sentido,
[...] o desrespeito está presente em todas as situações sociais em que
alguém é obrigado a ficar em posição humilhante ou de inferioridade
moral perante outras pessoas. Isso acontece, por exemplo, quando uma
pessoa é forçada a viver em tal estado de pobreza que precisa mendigar
para obter alimentos e outros bens essenciais para a sobrevivência ou a
vida em sociedade. A mesma coisa se verifica quando pessoas ou famílias
inteiras são obrigadas, por sua pobreza, a morar em favelas ou cortiços, a
se vestir com roupas esfarrapadas e a revelar, em cada situação, que são
muito mais pobres do que as outras. (DALLARI. 2010, p. 40)
Percebe-se assim, que não pode existir respeito à pessoa humana e ao
direito de ser pessoa, se não forem respeitadas, em todos os momentos, em
todos os lugares e em todas as situações, a integridade física, psíquica e moral
da pessoa. E não há qualquer justificativa para que umas pessoas sejam mais
respeitadas do que outras.
160
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
No que tange ao direito social à saúde, não se trata exclusivamente de
se pregar a não ocorrência de doenças, uma vez que para que se diga que uma
pessoa é saudável necessária se faz uma análise ampla do pleno gozo de seu
bem-estar físico, mental e social. Desta forma, a saúde varia desde a condição de
um meio ambiente equilibrado, a uma boa moradia e até mesmo a possibilidade
de boa alimentação.
Ao condicionar-se como direito fundamental o direito a saúde202, o
legislador preocupou-se em determinar que o Estado seja responsável por
promover permanentemente o trabalho para garantir boas condições de vida
para todos. Em especial, tomando os cuidados com a prevenção de doenças
(realizando campanhas de vacinação), cuidando da qualidade da água fornecida
à população, construindo redes de esgoto e eliminando focos de endemias.
Nesse sentido, Barroso explica que:
Com a redemocratização, intensificou-se o debate nacional sobre a
universalização dos serviços públicos de saúde. O momento culminante
do “movimento sanitarista” foi a Assembléia Constituinte, em que se deu
a criação do Sistema Único de Saúde. A Constituição Federal estabelece,
no art. 196, que a saúde e “direito de todos e dever do Estado”, alem de
instituir o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”. A partir da Constituição Federal de
1988, a prestação do serviço público de saúde não mais estaria restrita
aos trabalhadores inseridos no mercado formal. Todos os brasileiros,
independentemente de vinculo empregatício, passaram a ser titulares do
direito a saúde (BARROSO, 2006, p.14)
A Constituição Federal de 1988 dispõe no artigo 196203 que a saúde no
Brasil, é um direito de todos, complementando e positivando a idéia de proteção
integral de saúde como obrigação estatal. Sob este aspecto dois modelos de
O direito à saúde agrega o conceito de qualidade de vida, porque as pessoas que possuem uma
boa saúde são aquelas que moram em casas salubres, fazem uma alimentação saudável, vivem
emlugares que permitem nascer, crescer, trabalhar e morrer com dignidade, dessa forma o bem
estado de saúde não depende exclusivamente apenas de um bom atendimento médico (MORAES,
2010, p.137), pois existem também outros elementos relevantes que integram o conceito de saúde
e devem sempre ser levados em consideração como, por exemplo, a educação e a assistência social.
A saúde é um processo sistêmico que tem como finalidade não só a cura, mas tambéma prevenção
de doenças, visando uma boa qualidade de vida, de formaa levar sempre em consideração a
realidade de cada pessoa e as hipóteses de efetivação e as probabilidades desse indivíduo ter o
indispensável estado de bem-estar (SCHWARTZ, 2001, p. 42).
203
CF/88 - Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
202 161
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
oferta de saúde pública são adotados pelos governos em geral, o universal e o
segmentado.
O primeiro, corresponde ao atendimento amplo e irrestrito de todos
os cidadãos independentemente de sua classe social, financiada pelos órgãos
públicos, alcançando uma enorme gama de vertentes da saúde, abrangendo
desde tratamentos até mesmo procedimentos específicos. O segundo, por sua
vez, atinge apenas determinadas categorias distintas da sociedade, como os mais
pobres ou determinados grupos profissionais, misturando, por conseguinte, as
questões do financiamento e atendimento, pelo setor público e o privado.
Dessa forma, como na maioria dos países, o modelo vigente no Brasil é o
universal. Cada país escolhe seu modelo de acordo com a ideologia dominante,
ou até mesmo a mistura dos dois.
Sabe-se que todos esses sistemas recebem críticas em virtude do
desembolso de impostos pela população para sustentá-los. Nos países de
economias subdesenvolvidas e de industrialização atrasada a OMS e a
Organização Panamericana de Saúde (OPAS) encontram dificuldades de
estender e aplicar o direito à saúde para todos (PALUMA, ANDRADE,
CARVALHO, 2009, p.443).
No Brasil, a Lei 8.080/90 estruturou o Sistema Único de Saúde - SUS,
institundo os princípios que devem orientar a atuação do Estado na promoção
do direito à saúde, de forma a implementar com a máxima eficácia tal direito de
natureza fundamental. Preocupou-se ainda em deliberar o que exatamente cabe
a cada um dos entes federativos em matéria de direito à saúde.
A previdência social, juntamente com a saúde e a assistência social,
compõe a Seguridade Social, a política de proteção integrada da cidadania. A
mesma serve para substituir a renda do segurado-contribuinte, quando da perda
de sua capacidade de trabalho. Os benefícios oferecidos hoje pela previdência
são: aposentadoria por idade; aposentadoria por invalidez; aposentadoria por
tempo de contribuição; aposentadoria especial; auxílio-doença; auxílio-reclusão;
pensão por morte; salário-maternidade; salário-família; auxílio Acidente.
Resumidamente, conforme narrado por Barroso (2006, p.16), comentando
o texto da supracitada regulamentação, à direção nacional do SUS deu-se a
competência de “prestar operação técnica e finaceira aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios para aperfeiçoamento da sua atuação institucional” (art. 16,
XIII), tendo assim que “promover a descentralização para as Unidades Federadas
e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde de abrangência estadual ou
municipal” (art. 16 XV). Já à direção estadual do SUS delegou a competência de
promover a descentralização para os Municípios dos serviços e dos programas de
saúde (art. 17). E em seu artigo 18, I e III, institui a direção municipal responsável
por porcontrolar, organizar, planejar e realizar os serviços públicos de saúde.
162
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Exigir o respeito e a efetivação de direitos sociais na Justiça é algo novo
(a Lei da Ação Civil Pública, por exemplo, tem 20 anos), mas provocar o Poder
Judiciário a refletir sobre essas questões é muito importante para a consolidação
dos direitos sociais.
Permite-se que os países que tenham ratificado instrumentos de direitos
humanos relevantes avaliem sua própria implementação, identifiquem
deficiências e formulem políticas públicas capazes de satisfazer as prestações a
que o cidadão tem direito.
Certo é que o bem-estar social é uma das finalidades do Estado, não
podendo, ao contrário da justiça e segurança, ser monopólio dele sob pena de
asfixia da liberdade social, admitindo-se por isso, graus diversos de intervenção
que devem ser objeto de decisão política dos órgãos democraticamente eleitos.
A Assistência Social teve suas origens no princípio da caridade, filantropia
e da solidariedade religiosa (SPOSATI, 2009, p. 26). No Brasil a ideia começou
a ganhar espaço nos primórdios do século XX, quando os fundamentos da social
democracia e dos partidos socialistas passaram a responsabilizar o Estado pela
oferta de serviços sociais de qualidade.
No primeiro governo de Getúlio Vargas, relata também Sposati (2009, p.
26) foi criado pelo Decreto-Lei nº 525 de 1938, o Conselho Nacional de Seguro
Social que tinha como função estudar os problemas sociais e funcionar como
órgão consultivo dos poderes públicos e das entidades privadas em todo o país.
Em 1942 é criada a Legião Brasileira de Assistência, que ficou sob a presidência
da primeira dama Dona Darcy Vargas, e tinha como principal função atender,
inicialmente as famílias dos pracinhas brasileiros que se encontravam em
serviço durante a 2ª Grande Guerra, e posteriormente, teve suas ações voltadas
para a população que em estado de miserabilidade, vulnerabilidade e exclusão
social, em especial, crianças, portadores de necessidades e idosos.
Na continuidade da analise histórica narrada pelo autor supracitado, em
1974, é criado o Ministério da Previdência e Assistência Social, assumindo as
ações relativas às suas competências e no desenvolvimento de estratégias no campo
social. Com a edição da Constituição de 1988, novo enfoque foi estabelecido com
a integração da previdência, do trabalho e da proteção assistencial.
O artigo 203 da Carta Magna, estabelece que a assistência social será
prestada a quem dela necessitar, por meio de ações públicas custeadas pelo
Estado, mesmo não havendo qualquer tipo de contribuição prévia do cidadão.
O preceito constitucional possibilita a efetivação do principio da igualdade, por
meio do acesso à programas que tem a finalidade de melhorar a condição de
vida da população carente e necessitada.
Como direito fundamental é dever do Estado promover medidas protetivas
àqueles desprovidos de recursos financeiros, posto que, as necessidades
163
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
individuais quando não atendidas, tem reflexo negativo em toda sociedade,
gerando a exclusão de grupos, a marginalização das famílias e outros tantos
problemas sociais.
A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei nº 8.742 de 1993
é o regulamento que prescreve a proteção à família, maternidade, infância,
adolescência e velhice como objetivo a ser seguido, bem como na promoção da
integração desses ao mercado de trabalho, ao cuidado para inclusão das pessoas
portadoras de deficiência, e o pagamento de benefícios àqueles que comprovem
não possuir meios de suprir a própria manutenção ou de sua família.
Aqui se depara não mais com a certeza da atuação do Estado para
assegurar a igualdade real para todos, eliminando as desigualdades, mas com o
discurso da realização dos direitos fundamentais de seus custos da escassez dos
recursos, logo da construção argumentativa das limitações para efetivação de
políticas sociais contundentes.
Sabe-se que as pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade
social devem ter suas necessidades atendidas de imediato, porque o risco de suas
situações, não podem aguardar medidas de médio ou longo prazo, provocando
um real obstáculo ao princípio da dignidade humana. Assim, Cláudia Gonçalves
(2011, p. 75) comenta que a “dignidade não é um porvir incerto, mas sim
um atributo imanente a cada mulher e homem, que fica desse modo, a exigir
obrigações positivas do Estado.”
A assistência social deve representar a transição para uma vida autônoma,
já que se transcreve como direito fundamental, somente sendo conseguido
quando os beneficiários das ações públicas deixarem de ser apenas destinatários
de bens e serviços fornecidos pela esfera administrativa, e passarem e ser
detentores de uma vida qualificada participativa.
As teorias da argumentação, nesse ponto, compreendem um conjunto de
raciocínios práticos dos prós e dos contras acerca de uma determinada tese,
tendentes ao convencimento e sobreposição de uma ideia sobre outra.
5. CONCLUSÃO
Os direitos fundamentais compreendem um ideal expresso nas normas
de existência de obrigações, direitos e proibições para cada indivíduo. O texto
constitucional tipifica a realização de mecanismos e políticas para efetivação
desses direitos, devendo os incorporar ao dia-dia dos cidadãos. A plena
realização de garantias relativas às liberdades, os direitos individuais e sociais é
o preceito da justiça social e dos valores da dignidade humana.
O Estado de Bem-Estar Social deve se esforçar na criação das condições
necessárias de ações capacitadoras do mínimo de igualdade. A eficácia do
164
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
direitos sociais esta diretamente relacionada às ações estatais que devem ser
assumidos como um compromisso da promoção prestacional por meio de um
desempenho positivo.
A redução dos direitos fundamentais é impossível e a responsabilidade
do Estado deve inclusive efetivar as políticas de prestações materiais e
jurisdicionais. O poder público é o promotor do mínimo existencial, sendo um
reflexo da própria evolução humana, na busca de soluções para os problemas
da vida em sociedade.
As necessidades humanas, compreendidas no campo do estudo do
mínimo existência e da dignidade humana, têm sido debatida por grandes
doutrinadores e até mesmo elas cortes superiores do Brasil, sendo pacificado
apenas a condição de que digno é aquilo que proporciona o efetivo exercício da
cidadania. Assim, as políticas públicas sociais buscam satisfazer as necessidades
básicas da população.
A constituição editou como direitos sociais básicos a educação, a saúde,
o trabalho, a alimentação, a previdência e a assistência social, sendo a partir
desses direitos é que deve partir a atuação estatal para melhoria das condições
básicas de vida.
As desigualdades sociais, reflexo do contexto histórico, político e
econômico nacional condicionou uma grande parcela da população em um
estado extremo de pobreza, configurando uma contradição acentuada do capital
e do trabalho, o que determinando nos últimos anos um papel primordial do
Estado na erradicação dessas condições.
165
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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168
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O DIREITO EM NOVOS PARADIGMAS DE CIDADANIA: DO JUSNATURALISMO
AO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: DELINEAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO
DE UM NOVO PARADIGMA JURÍDICO
Eduardo Rodrigues dos Santos204
Luiz Carlos Figueira de Melo205
RESUMO
A doutrina Positivista do direito vem sendo superada por um novo
paradigma doutrinário: o pós-positivismo jurídico. Como plano de fundo temse a globalização e a pós-modernidade, havendo quem chame o direito póspositivista de direito pós-moderno. Contudo, será que ambas as expressões
simbolizam a mesma coisa? Isto é, o pós-positivismo jurídico pode ser
considerado o movimento pós-moderno do Direito? (ou ainda, qual a relação
entre a Pós-modernidade e Pós-positivismo Jurídico?). Para responder estas
perguntas é preciso mergulhar na história e identificar os fatores de superação
dos modelos doutrinários que já imperaram ao longo dos séculos nas ciências
jurídicas (jusnaturalismo e positivismo jurídico), bem como analisar os
principais contornos da pós-modernidade e do pós-positivismo jurídico.
Palavras-Chave: Jusnaturalismo, Positivismo, Pós-positivismo, Pós-modernidade, Globalização.
JUSNATURALISM TO POST-POSITIVISM JURISPRUDENCE: DELINEATIONS FOR
THE CONSTRUCTION OF A NEW JURISPRUDENCE PARADIGM
ABSTRACT
The Positivist doctrine of law has been superseded by a new paradigm
of doctrine: the post-positivism jurisprudence. As background has globalization
and postmodernity, with those who call the right post-positivist law postmodern.
However, both expressions will symbolize the same thing? That is, the postpositivism jurisprudence can be considered the postmodern movement of the
Law? (or, what is the relationship between post-modernity and post-positivism
Jurisprudence?). To answer this question we must delve into the history and
identify factors for overcoming the doctrinal models that have been prevalent
for centuries in legal sciences (natural law and legal positivism), as well as
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Professor do curso de mestrado em Direito Público da UFU. Doutor em Direito pela UFMG.
204
205
169
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
analyze the main contours of post-modernity and post-positivism jurisprudence.
Keywords: Jusnaturalism, Positivism, Post-positivism, Postmodernism, Globalization.
INTRODUÇÃO
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a ciência jurídica passou por
um profundo processo de mudanças significativas que perdura até hoje. Dentre
essas mudanças, no campo filosófico, visualizou-se a decadência do paradigma
juspositivista, dando início à construção de um novo paradigma, habitualmente
chamado de pós-positivismo jurídico.
O pós-positivismo, por estar ainda em construção, traz consigo uma
série de problemas, sobretudo no campo da definição. Nesse sentido, um
dos mais graves e o qual elegemos para enfrentar neste trabalho consiste
em responder a seguinte pergunta: O Pós-positivismo Jurídico pode ser
considerado o movimento pós-moderno do Direito?
A pesquisa justifica-se por diversos motivos, dentre os quais
se destaca o fato de que a discussão a que nos propomos é plano de
fundo de decisões proferidas pelos tribunais superiores do Brasil e do
Mundo, sobretudo dos tribunais constitucionais, sendo que uma confusão
conceitual entre Direito pós-positivista e Direito pós-moderno poderia
levar a erros gravíssimos de interpretação e legitimidade decisória.
O objetivo geral do trabalho é distinguir o direito pós-positivista
do direito pós-moderno. Já os objetivos específicos consistem em:
a) demonstrar as raízes jusnaturalistas do direito pós-positivista; b)
demonstrar a superação jusnaturalista pelo positivismo jurídico e
posterior decadência deste paradigma após o fim da Segunda Guerra
Mundial; c) demonstrar a ascensão do modelo pós-positivista do direito
e delinear suas bases jurídicas e filosóficas; e d) demonstrar as profundas
diferenças entre o pós-positivismo jurídico e o direito pós-moderno.
A metodologia consiste em pesquisa bibliográfica e descritiva. A
pesquisa bibliográfica concentra-se em obras de Filosofia do Direito, Teoria
Geral do Direito e Direito Constitucional. Já a pesquisa descritiva, concentrase na análise evolutiva do jusnaturalismo, do positivismo jurídico e do póspositivismo jurídico, tendo como foco principal este último.
1. O JUSNATURALISMO
O Jusnaturalismo ou Direito Natural consiste na corrente doutrinária do
Direito que acredita que há direitos, universalmente válidos e imutáveis, que
170
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
são inatos, que independem da vontade humana, que existem em razão de algo
superior206 e que objetivam assegurar a Justiça.
Nesse sentido, Norberto Bobbio define o jusnaturalismo como a corrente
do Direito que tem a convicção de que “uma lei para ser lei, deve ser conforme
a justiça” e completa dizendo que “a teoria do direito natural é aquela que
considera poder estabelecer o que é justo de modo universalmente válido”
(BOBBIO, 2007, p. 35).
No mesmo sentido, Aurora Tomazini de Carvalho afirma que, para
o Jusnaturalismo, “o direito é uma ordem de princípios eternos absolutos e
imutáveis cuja existência é imanente à própria natureza humana”, sendo que
este direito natural é “anterior ao conjunto de leis postas e aprovadas pelo
Estado” (CARVALHO, 2010, p. 72).
Por sua vez, Ronald Dworkin afirma que as teorias jusnaturalistas
“sustentam que os juristas seguem critérios que não são inteiramente factuais,
mas, pelo menos até certo ponto, morais, para decidirem que proposições
jurídicas são verdadeiras” e, segundo o próprio Dworkin, as correntes mais
radicais do Jusnaturalismo afirmam que o Direito e a Justiça são coisas idênticas
(DWORKIN, 2003, p. 44).
Já para o professor Edgar de Godoi da Mata-Machado (1976), o Direito
Natural sustenta-se na concepção de que há um mínimo de coisas que são
devidas ao homem em razão da sua própria natureza humana, como se verifica
nas palavras do autor que se seguem:
Há realmente um debitum, algo devido ao homem, enquanto mesmo
que homem, tendo em vista a essência do homem (aquilo que o
homem é), melhor, sua natureza, raiz dos atos que o homem pratica;
há coisas que se devem ao homem por corresponderem a exigências
concretas de sua natureza [...] A vida, por exemplo, quer se considere
em relação a cada indivíduo, a vida, pois, de cada um, quer se considere
a própria vida social; a propagação da espécie pela união do homem à
mulher, a educação dos filhos, o acesso de todos aos bens da cultura, o
aperfeiçoamento intelectual e moral da pessoa humana, o respeito que
é devido à sua liberdade e dignidade, são direitos naturais, atribuíveis
ao homem, fundamentalmente, pela regra do direito natural... (MATAMACHADO, 1976, p. 39-40).
Partindo das lições de Norberto Bobbio, pode-se afirmar que os Direitos
Naturais consistem em direitos universais, ou seja, válidos para todos e em
todos os lugares; imutáveis, isto é, válidos em qualquer tempo; de cognição
Este algo superior pode ser a natureza, a razão humana ou alguma divindade (Deus).
206
171
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
racional, ou seja, conhecidos através da razão humana; produzidos pela natureza,
ou pela razão humana ou ainda por Deus ou qualquer outra entidade divina;
objetivamente bons, isto é, estabelecem aquilo que é bom para a sociedade, ou
melhor, aquilo que é justo; e por fim, não são indiferentes aos comportamentos
regulados, ou seja, eles os valoram (BOBBIO, 2006).
Norberto Bobbio, utilizando-se de um critério histórico, divide a doutrina
jusnaturalista em três fases: Jusnaturalismo Clássico, Jusnaturalismo Medieval
e Jusnaturalismo Moderno. Vejamo-las.
2. O JUSNATURALISMO CLÁSSICO
O Jusnaturalismo Clássico encontra-se ligado a Antiguidade Clássica
e se desenvolve na Grécia Antiga, através das obras de grandes filósofos,
perdurando até a Roma Antiga, onde ganhou contribuições significativas, tais
como as de Cícero.
Bobbio ensina que o Jusnaturalismo Clássico é aquele que se desenvolve
através das idéias dos filósofos gregos, sobretudo, de Platão e Aristóteles que
trabalhavam com a ideia de uma justiça universal baseada em uma razão natural
– naturalis ratio – e que posteriormente foi adotado pelas escolas do ius gentium
na Roma Antiga (BOBBIO, 2006).
Como ensina Mata-Machado, dentre os filósofos pré-socráticos, merecem
destaque Heráclito e Pitágoras. O primeiro defendia a ideia de que todas as
coisas são eternamente mutáveis, com exceção da “lei natural ‘da qual, todas as
leis humanas tiram sua força’”. O segundo sustentava que a gênese das leis não
se encontrava na vontade dos cidadãos, mas sim em sua “conformidade com as
leis naturais” (MATA-MACHADO, 1976, p. 60).
Dentre os sofistas, destacam-se Protágoras, Hípias, Licófron e Alcidamas.
Conforme leciona Mata-Machado, Protágoras acreditava em um Direito
Natural de caráter permanente e irredutível, sustentando-se no mito de que Zeus
ordenou a Hermes que repartisse entre todos os homens o respeito e a justiça.
Hípias, Licófron e Alcidamas defendiam que o Direito Natural deveria servir
como modelo para adaptação e transformação do direito vigente. Nesse sentido,
para Licófron era inadmissível toda e qualquer forma de privilégios, vez que se
opõem “à igualdade natural dos homens”, e com base no mesmo fundamento,
Alcidamas condenava a escravidão (MATA-MACHADO, 1976, p. 61).
Dentre os Socráticos, vale destacar que Sócrates, como ensina Henri
Rommen citado por Mata-Machado, acreditava em um “‘mundo objetivo
e cognoscível de valores: valores do bem, do belo e do justo’” (MATAMACHADO, 1976, p. 61). Por sua vez, Platão, como demonstra Bruno Amaro
Lacerda, defendia a existência de um Direito imutável e eterno ligado a ideia de
172
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Justiça (LACERDA, 2009). Já para Aristóteles, como leciona Norberto Bobbio,
“o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia”
e que prescreve ações “cuja bondade é objetiva”, ou seja, trata-se de um direito
justo e universal sustentado por pilares, não só jurídicos, mas também éticos
(BOBBIO, 2006, pág.17).
Já entre os Romanos, realça-se a vasta obra de Cícero, para quem o
Direito sempre fora maior que a lei, de modo que a Justiça e o Direito fundamse na própria natureza e não no arbítrio, isto é, nas leis postas. Para Cícero o
Direito Natural liga-se a ideia de virtude e Justiça, de modo que para ele, não
existem apenas Direitos Naturais, mas também Deveres Naturais, por exemplo,
a honestidade, como se confere nos dizeres do próprio Cícero in verbis: “nada
é útil, sendo contrário ao honesto” (CÍCERO, 2007, p. 150).
Em síntese, como se pôde verificar, o Jusnaturalismo Clássico liga-se a
ideia de um Direito Natural eterno, universal e superior advindo da natureza em
si (às vezes humana, às vezes divina [mitológica] e às vezes enquanto essência
de todas as coisas).
3. O JUSNATURALISMO MEDIEVAL
O Jusnaturalismo Medieval é aquele que se desenvolve na Idade Média,
sendo extremamente pautado em fundamentos religiosos, caracterizando-se
por pregar um Direito universal, geral e, sobretudo, que tenha como escopo
fundamental a busca por uma justiça dentro dos liames do cristianismo, ou
melhor, da Igreja Católica.
Dentre as obras de Direito Natural desta época, destaca-se a do filósofo
católico Tomás de Aquino que definia a lex naturalis, como: “Partecipatio legis
aeternae in retionali creatura” – ou seja, aquilo a que o homem é levado a fazer
pela sua natureza racional, entretanto essa natureza racional estaria vinculada
ao seu criador (Deus), que por sua vez, tinha a Igreja enquanto sua “legítima”
representante (BOBBIO, 2006, pág. 20).
No mesmo sentido, Mata-Machado afirma:
Explica Sto. Tomás que todos os seres, enquanto regidos pela Divina
Providência, participam de algum modo da lei eterna pelo fato de
que, recebendo em si a impressão dessa lei, possuem inclinações que
os impelem aos atos e aos fins que lhes são próprios. É a lei natural
considerada genericamente, a qual rege a matéria inorgânica, as plantas,
os animais. Mas a submissão da criatura racional à Providência Divina se
faz de modo super-excelente (excellentiori quodam modo), pois o homem
é co-participe da Providência e capaz, ele próprio, de prover ao que lhe
173
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
convém e aos outros (sibi ipsi et aliis providens). Assim, a participação
à lei eterna, na criatura racional, funda-se em que tal criatura possui
“natural inclinação para o fim e para o ato devidos” (in ipsa participatur
ratio aeterna, per quam habet naturalem inclinationem ad debitum finem
et actum), isto é, para o modo de agir e para as finalidades que se radicam
na sua própria natureza (MATA-MACHADO, 1976, p. 65).
Em síntese e em conformidade com a lição de Jacques Maritain citado por
Mata-Machado, é possível afirmar que Tomás de Aquino enxerga o Direito Natural
como uma “‘ordem ou disposição que a razão humana pode descobrir e segundo a
qual a vontade humana deve agir para por-se em consonância com os fins essenciais
do ser humano’” (MATA-MACHADO, 1976, p. 66), fins estes, obviamente, já préestabelecidos e determinados pelo Evangélio e pela “Santa” Igreja.
Enfim, no pensamento católico, violar o que a Igreja determina é violar
o Direito Natural, pois apesar de ser percebido pela razão, ele é posto pelo
“Divino”. Deste modo, para os filósofos-juristas ou juristas-filósofos da Igreja,
aquele que age contra a “Santa” Igreja, mas de acordo com sua racionalidade,
não age conforme o Direito Natural. Ou seja, nota-se que toda essa construção
doutrinária é extremamente incoerente, ou melhor, consiste em uma grande
falácia, verdadeira forma de domínio dos homens pelo homem justificando-se
em Deus, algo típico da Igreja Católica em toda a sua história.
4. O JUSNATURALISMO MODERNO
O Jusnaturalismo Moderno consiste na doutrina de Direito Natural
fundada, sobretudo, nas ideias dos filósofos racionalistas da Modernidade, que
acreditavam ser possível encontrar, através da razão humana, um Direito justo
que fosse comum a todos os homens (universal).
Neste sentido, conforme afirma Hugo Grócio citado por Norberto Bobbio,
Jusnaturalismo Moderno ou Racional é aquele que busca através de uma justa
razão atingir os ideais de moral e justiça respeitando a natureza racional do
homem (BOBBIO, 2006).
No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso afirma que o Jusnaturalismo
Moderno é aquele que se desenvolve através das ideias dos filósofos racionalistas
do século XVI e que se pauta em uma “lei ditada pela razão”, dando-se ênfase
a natureza e a razão humana, o que “é um dos marcos da Idade Moderna e base
de uma nova cultura laica, consolidada a partir do século XVII” (BARROSO,
2009a, pág. 236).
Durante a Modernidade muitos autores tentaram fundamentar o
jusnaturalismo utilizando-se de outros campos do conhecimento, sobretudo
174
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
da Matemática e da Física. Diversos são os autores que cumpriram bem este
papel, dentre eles Hugo Grotius, para quem o Direito Natural era imutável,
tais quais as leis matemáticas, de modo que “nem Deus poderia modificar as
normas oriundas da conformidade ou não conformidade dos atos humanos com
a natureza, tal como não poderia fazer com que dois e dois não fossem quatro”
(MATA-MACHADO, 1976, p. 77).
Além das ciências exatas, conforme explica Mata-Machado, o
Jusnaturalismo Moderno também fora bastante fundamentado sob a ótica das
diversas ciências humanas, principalmente da Filosofia, da Ética, da História e
da Política. Dentre os vários autores que representam esta corrente, destaca-se
Christianus Thomasius, para quem o Direito Natural abrangeria no campo da
Ética, o honesto; no campo da Política, o conveniente; e no campo do Direito, o
justo. Ainda para Thomasius, o princípio supremo do Jusnaturalismo apresentase da seguinte forma: “‘Deve-se fazer o que em sumo grau prolonga a vida
e a torna feliz, deve-se evitar o que a torna desventurada e apressa a morte’”
(MATA-MACHADO, 1976, p. 81).
Como ensina Mata-Machado, o Jusnaturalismo Moderno é marcado,
dentre diversas características, por pregar que o Direito não se resume às leis
postas, apesar destas serem contidas por ele, além de que as leis injustas não
poderiam ser aceitas como vigentes pelo Direito. Nesse sentido, Gottfried
Wilhelm von Leibniz, citado por Mata-Machado, afirma que “enquanto a
lei pode ser injusta, o direito, este, não o pode ser... Direto justo é expressão
pleonástica; direito injusto, um disparate, uma contradição” (1976, p. 84).
Muitas foram as obras, os autores, e as contribuições para o
desenvolvimento da doutrina do Jusnaturalismo Moderno, contudo a intenção
deste trabalho é apenas demonstrar, de modo geral, as linhas mais fundamentais
do Jusnaturalismo Moderno, não sendo possível abordar todas elas.
5. O ÁPICE E A CONSEQUENTE DECADÊNCIA DO JUSNATURALISMO
A doutrina do Direito Natural sempre sofreu diversas críticas ao longo
de sua existência, entretanto as principais foram feitas pelos representantes da
doutrina do Positivismo Jurídico, que, conforme demonstra a História, superou o
Jusnaturalismo de maneira categórica, positivando os principais direitos naturais.
Dentre os críticos do Direito Natural, merecem destaque Hans Kelsen e
Norberto Bobbio, que inadmitiam a existência de um “Direito Natural”, pois,
segundo Bobbio, não seria possível existir um direito que fosse válido em todos
os lugares e em todos os tempos, enfim, as concepções sociais são mutáveis, de
modo que, o que é bom e justo hoje, não o era ontem e não será amanhã, bem
como, o que é justo para uma sociedade de cultura oriental pode não o ser para
175
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
uma sociedade de cultura ocidental etc. Bobbio afirma ainda que é impossível
existir um ordenamento jurídico que seja completamente justo, ou seja, que não
contenha normas jurídicas injustas e, nesse mesmo sentido, afirma que na seara
jurídica “vale como direito também o direito injusto” (BOBBIO, 2007, pág. 36).
Na linha evolutiva da História, após a cisão entre Igreja e Estado e a
ascensão dos Soberanos, na prática, pouca coisa mudou, os comerciantes
continuaram a se submeter de forma extremada aos governantes, as atrocidades
contra o ser humano não diminuíram, os nobres e o clero continuaram a ter
privilégios, em suma, a realidade social se quedou inerte. Tudo isso despertou
movimentos revolucionários, principalmente da classe burguesa, que com
o apoio do movimento iluminista, se organizou em busca de poder político,
liberdade (comercial), igualdade (formal) e de muitos outros direitos defendidos
pelos jusnaturalistas.
Segundo Barroso, os iluministas e os jusnaturalistas estiveram juntos
no movimento de codificação do Direito, durante o século XVIII, “cuja maior
realização foi o Código Civil Francês – o Código Napoleônico”. Entretanto,
conclusa a Revolução Francesa, com a codificação dos direitos em diversos
países da Europa, o Jusnaturalismo se viu – conforme explica José Reinaldo de
Lima Lopes, citado por Barroso – “domesticado e ensinado dogmaticamente”,
ou seja, a codificação, grosso modo, “cortou as pernas” do Jusnaturalismo,
limitando-o e impedindo-o de se desenvolver livremente como até então se
desenvolvia e, por fim, o “substituiu” por uma nova doutrina (BARROSO,
2009a, pág. 238).
Nessa linha de raciocínio, Norberto Bobbio, Matteucci e Pasquino,
citados por Luís Roberto Barroso, afirmam que “o advento do Estado Liberal,
a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do
movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, o seu
apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, a sua superação histórica”
(BARROSO, 2009a, pág. 238).
Nesse mesmo sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior afirma que a
constitucionalização dos Direitos Naturais, não só “os positivou”, mas
provocou gradativamente sua trivialização, o que, consequentemente, gerou
uma indiferença em relação as suas próprias diferenças, o que culminou na sua
superação (FERRAZ JR., 2003).
Nada obstante é de se ressaltar como muito benéfica a contribuição
do Jusnaturalismo ao Direito, uma vez que foi graças ao Jusnaturalismo que
emergiram os Direitos dos Homens e consequentemente os Direitos Humanos
(em nível global) e os Direitos Fundamentais (em nível Constitucional).
Com base no que fora exposto é possível concluir que o Jusnaturalismo
decai para a ascensão do Positivismo Jurídico, como resultado da positivação
176
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
dos Direitos Naturais, ou seja, quando os jusnaturalista finalmente conseguiram
o reconhecimento dos direitos naturais, deram força a um movimento que os
superou de maneira, até agora, definitiva.
6. O POSITIVISMO JURÍDICO
O Positivismo Jurídico consiste na corrente do Direito que reduz o direito
à norma jurídica válida, ou melhor, à regra jurídica válida, ou seja, que acredita
que não há direito além daquele previsto no texto normativo e que aquilo que
nele está escrito é justo, pois a justiça para o Positivismo Jurídico consiste no
preenchimento do Dever Ser jurídico. Assim, toda vez que a conduta humana
(Ser) está de acordo com a prescrição legal (Dever Ser), esta conduta é boa e
é justa, entretanto, quando esta conduta está em desacordo com a prescrição
legal, ou seja, quando ela contraria a lei, ela é uma conduta má e injusta. O
Positivismo Jurídico também é conhecido como a corrente legalista e formalista
do Direito, que inadmite a existência de lacunas no Ordenamento Jurídico.
Norberto Bobbio conceitua o Positivismo Jurídico como sendo “a doutrina
que reduz a justiça a validade” afirmando que para esta corrente do Direito “só é justo
o que é comandado, e pelo fato de ser comandado” (BOBBIO, 2007, pág. 38 - 39).
Segundo Bobbio as ideias positivistas estão presentes em diversos períodos
da história do Direito, em diferentes sociedades e remontam aos primórdios da
escrita. Nesse sentido, Bobbio explica que o Direito Positivo já se encontrava
no pensamento clássico e foi motivo de muita discussão, principalmente na
Grécia e na Roma Antiga. Para sustentar essa colocação, Bobbio cita um trecho
da obra de Aristóteles: Ética a Nicômaco, no qual o filósofo grego diz que uma
parte da justiça é fundada na lei, chamada por ele de direito legal (nomikón
díkaion) que, guardadas as devidas proporções, corresponde ao Direito Positivo
Moderno, enquanto a outra parte compunha o Direito Natural207, como já fora
demonstrado. Para Aristóteles, conforme explica Bobbio, o Direito Positivo
caracterizava-se por ter eficácia somente nas comunidades políticas em que
era posto, e também, por ser de cumprimento obrigatório, ou seja, aquelas
atividades reguladas por ele deviam ser desempenhadas de acordo com o que
prescrevia a lei (BOBBIO, 2006). Nas palavras de Aristóteles:
Para Hans Kelsen (2010), diferentemente do que afirma Bobbio, a Teoria de Aristóteles não
comporta uma Teoria do Direito Natural, mas apenas uma Teoria do Direito Positivo, vez que,
para ele, o Jusnaturalismo, em verdade, só se funda em figuras divinas (Deus), não admitindo uma
racionalidade pura. Sem tomar posições no que se refere à doutrina de Aristóteles, vale lembrar
que, tanto na Grécia quanto na Roma Antiga, o Direito Natural e o Direito Positivo coexistiram
pacificamente, sem grandes impasses jurídicos (COULANGES, 2009).
207
177
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
como o homem sem lei é injusto e o cumpridor da lei é justo, evidentemente
todos os atos conforme à lei são atos justos em certo sentido, pois os
atos prescritos pela arte do legislador são conforme à lei, e dizemos que
cada um deles é justo. Nas disposições sobre os assuntos, as leis visam
à vantagem comum, seja de todos, seja a dos melhores ou daqueles que
detêm o poder ou algo semelhante (ARISTÓTELES, 2010, p. 100-101).
Já na Roma Antiga, o Direito Positivo, lá chamado de jus civile, também
inspirado nas ideias dos filósofos gregos, inclusive de Aristóteles, referia-se as
estatuições do populus, ou seja, do povo, dos cidadãos208 e caracterizava-se por
ser limitado e posto por um determinado povo, não necessariamente o mesmo,
já que Roma dominava outros povos, além disso, para os romanos, o Direito
Positivo era sujeito a mudanças, ab-rogações e derrogações, pois estabelecia
aquilo que era útil, e não necessariamente aquilo que era justo, de modo que
uma lei poderia ser útil hoje e não mais amanha (BOBBIO, 2006).
Em relação ao pensamento medieval, Bobbio afirma que o Direito
Positivo fora discutido por diversos escritores medievais, tais como teólogos,
filósofos e canonistas. Dentre eles, Abelardo, citado por Bobbio, afirmava que a
característica fundamental do Direito Positivo é a de ser posto pelos homens, o
que ele chama de Lex humana (BOBBIO, 2006).
Dentre os pensadores modernos, Glück, também citado por Bobbio, afirma que
“chama-se direito positivo, o conjunto daquelas leis que se fundam apenas na vontade
declarada de um legislador e que, por aquela declaração, vêm a ser conhecidas”, o
que demonstra uma completa submissão à legalidade e à legitimidade do legislador
(BOBBIO, 2006, pág. 21). Na mesma linha, Thomas Hobbes, para quem:
As leis são as regras do justo e do injusto, não havendo nada que seja
reputado injusto sem ser contrário a alguma lei. Ninguém pode fazer as
leis, a não ser o Estado, pois estamos sujeitos unicamente ao Estado; e as
ordens devem estar expressas por sinais suficientes, pois, de outro modo,
ninguém saberia como obedecer a elas (HOBBES, 2009, pág.188).
Conforme demonstra Bobbio, o Positivismo Jurídico ascende enquanto
doutrina predominante com a positivação do Direito no final do séc. XVIII
e início do séc. XIX. Sendo que, a partir deste momento histórico, o Direito
Positivo passa a ser a única fonte válida do Direito e a Segurança Jurídica
– entendida, principalmente, enquanto previsibilidade – passa a ser mais
importante do que a Justiça (BOBBIO, 2006).
Nessa época para ser considerado cidadão, deveria tratar-se de homem, livre, normalmente
com propriedades ou oficial do exército, nascido em Roma, dentre outras coisas.
208
178
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Durante o seu desenvolvimento, o Positivismo Jurídico contou com
diversas escolas e doutrinadores para formular e sustentar sua doutrina. Dentre
essas escolas, destacamos a Escola de Exegese e, dentre todos os doutrinadores,
destacamos o jurista alemão Hans Kelsen. De modo que, a partir deste ponto, os
veremos com mais detalhes.
7. A ESCOLA DE EXEGESE
A Escola de Exegese foi uma escola de direito francesa, do séc. XIX, que se
limitava a interpretar o Direito de forma literal, mecânica e passiva, entendendo
por Direito apenas as regras jurídicas previstas na legislação vigente.
Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma:
A escola da exegese deve seu nome à técnica adotada pelos seus primeiros
expoentes no estudo e exposição do Código de Napoleão, técnica que
consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de
distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir
tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio Código
(BOBBIO, 2006, p. 83).
Norberto Bobbio traça cinco causas fundamentais que determinaram o
advento da Escola de Exegese, o que ele também chama de causa de fidelidade
ao Código, sendo elas: i) o próprio fato da codificação; ii) a mentalidade dos
juristas dominada pelo princípio da autoridade; iii) a doutrina da separação dos
poderes; iv) o princípio da certeza do direito; e v) as pressões exercidas pelo regime
napoleônico sobre os estabelecimentos de ensino do Direito (BOBBIO, 2006).
O próprio fato da codificação estava ligado diretamente com a
simplicidade e facilidade de se aplicar subsuntivamente o Código, ao invés
de se utilizar formas mais complexas de interpretação ou de se utilizar outras
fontes do Direito, que exigiriam um aprofundamento e uma dedicação maior do
interprete (BOBBIO, 2006).
A mentalidade dos juristas dominada pelo princípio da autoridade
ligava-se, de forma direta, a submissão do jurista à vontade do legislador que
pôs a norma jurídica no ordenamento, uma vez que o legislador era a autoridade
soberana das leis (BOBBIO, 2006).
A doutrina da separação dos poderes impedia o jurista de criar o Direito,
pois se o fizesse “invadiria a esfera de competência do poder legislativo”, devendo
ele, “ser somente a boca através da qual fala a lei”209 (BOBBIO, 2006, p. 79).
Conforme a célebre afirmação de Montesquieu, in verbis: “mas os juízes da nação, são apenas,
como dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não podem nem
209
179
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O Princípio da certeza do direito implicava na necessidade de
previsibilidade do Direito e das consequências jurídicas de sua aplicação, pois
somente assim a decisão do juiz não seria considerada arbitrária, uma vez
que, somente as leis positivas poderiam garantir tal segurança. Nesse sentido,
afirma Bobbio que “a exigência da segurança jurídica faz com que o jurista
deva renunciar a toda contribuição criativa na interpretação da lei, limitando-se
simplesmente a tornar explícito, através de um procedimento lógico (silogismo),
aquilo que já está implicitamente estabelecido na lei” (BOBBIO, 2006, p. 80).
As pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre o ensino do Direito
ocorreram com o objetivo de se desenvolver o ensino positivista do Direito e
suplantar o ensino das demais doutrinas jurídicas. Nesse sentido, Bugnet, autor
da Escola de Exegese, citado por Bobbio, afirma: “Eu não conheço o Direito
civil, eu ensino o Código de Napoleão” (BOBBIO, 2006, p. 82).
Com base nos ensinamento de Bonnecase, Bobbio afirma que a história
da Escola de Exegese pode ser dividida em três fases: primórdios (1804 a 1830);
apogeu (1830 a 1880); e declínio (1880 até o fim do século XIX), tendo como
principais expoentes, durante todo o seu desenvolvimento: Alexandre Duraton,
Charles Aubry, Frédéric Charles Rau, Jean Ch. F. Demolombe e Troplong,
dentre tantos outros (BOBBIO, 2006).
Ainda pautando-se na obra de Bonnecase, Bobbio aponta cinco
características fundamentais da Escola de Exegese, sendo: i) inversão das
relações tradicionais entre direito natural e direito positivo; ii) concepção
rigidamente estatal do direito; iii) interpretação da lei fundada na intenção
do legislador; iv) culto a lei; e v) o respeito pelo princípio da autoridade
(BOBBIO, 2006).
A inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo
consiste na suplantação do Direito Natural pelo Direito Positivo. Nesse sentido,
Demolombe, citado por Bobbio, afirma que o Direito Natural “é irrelevante
para o jurista enquanto não for incorporado a lei”, pois para os exegéticos, o juiz
deve se fundar somente na lei para resolver os casos a ele trazidos, em razão da
completitude das leis (BOBBIO, 2006, p. 85).
A concepção rigidamente estatal do direito210 deriva da onipotência do
legislador, uma vez que, a legislação posta era tida como a única fonte do Direito.
Nesse sentido, Mourlon, citado por Bobbio, afirma que “para o jurisconsulto,
moderar a força nem o rigor das palavras” (MONTESQUIEU, 2010, p. 175).
210
Neste ponto, vale a crítica de Santi Romano, que demonstra que o Direito em nenhuma
época foi totalmente estatal, mesmo nos momentos mais rígidos do positivismo. Para o autor,
tal concepção reducionista do direito (Direito = direito do Estado) é “rigorosamente inaceitável”
por diversos motivos, dentre os quais, destaca-se o fato de o conceito de Direito ser “logicamente
antecedente aquele de Estado” (ROMANO, 2008, p. 141).
180
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
para o advogado, para o juiz existe um só direito, o direito positivo... que se
define: o conjunto das leis que o legislador promulgou para regular as relações
dos homens entre si” (BOBBIO, 2006, p. 86).
A interpretação da lei fundada na intenção do legislador consiste tanto
na vontade real – aquela expressa na lei de maneira clara – como na vontade
presumida – aquela que se encontra implícita na lei – não se admitindo a
existência de lacunas na lei (BOBBIO, 2006).
O culto do texto da lei identifica-se na subordinação do jurista às
disposições dos artigos do Código. Nesse sentido, Demolombe, citado por
Bobbio, afirma:
A minha máxima, a minha profissão de fé é: os textos acima de tudo! Eu
publico um Curso do Código de Napoleão; tenho portanto por finalidade
interpretar, explicar o próprio Código de Napoleão, considerado como lei
viva, como lei aplicável e obrigatória, e a minha preferência pelo método
dogmático não me impedirá de tomar sempre por base os próprios artigos
da lei (BOBBIO, 2006, p. 88).
Por último, o respeito pelo princípio de autoridade, que se identifica na
necessidade de “atribuir a uma pessoa qualquer o poder de estabelecer o que
é justo e o que é injusto, de modo que sua decisão não possa ser colocada em
discussão”, sendo essa pessoa o legislador (BOBBIO, 2006, p. 89).
A Escola de Exegese foi um marco na história do Positivismo Jurídico,
sobretudo no Direito Europeu, influenciando doutrinadores de diversas
nacionalidades e corroborando para o seu desenvolvimento, ficando marcada pelo
seu formalismo excessivo e por seu método de interpretação literal do texto legal.
8. A TEORIA PURA DE HANS KELSEN
A teoria positivista do direito que imperou no séc. XX foi, ao menos nos
países de tradição Civil Law, a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. O jurista
alemão formulou sua teoria do direito tendo como base o formalismo e a rigidez
sistêmica, concebendo o Direito como a Norma Jurídica válida, identificada nas
regras jurídicas previstas na lei vigente.
Neste direcionamento, Kelsen afirma ser o Direito “uma ordem
normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam
o comportamento humano”, pois para Kelsen o Direito se identificava com a
Norma (KELSEN, 2003, p. 5).
Haradja L. Torrens (2004) afirma que Kelsen foi um dos maiores juristas
da doutrina formalista do direito, nomeada por ele próprio como Positivismo
181
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Jurídico e caracterizada por ver o Direito “como uma pirâmide, ou seja, estrutura
hierárquica de normas jurídicas, sistema apto a solucionar o caso concreto sem
a ingerência de outros elementos como a ‘filosofia da justiça’ e a ‘sociologia’”,
isto é, como um sistema fechado, puro e autossuficiente.
Nesse sentido, em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen afirma que o Direito
exige uma teoria pura, uma teoria positiva do direito, que se proponha
a garantir um conhecimento exclusivamente dirigido ao direito, um
conhecimento puro, que exclua “tudo quanto não pertença ao seu objeto,
tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito”, ou
seja, um conhecimento que exclua todos os demais, a fim de que com
estes não se confunda, nem se misture (KELSEN, 2003, pág. 1).
Ao elaborar sua teoria da norma jurídica, Kelsen constrói a base
fundamental da pureza de sua teoria do direito. Para ele, para que um
ato pudesse ser considerado um ato jurídico (ou antijurídico), deveria,
necessariamente, possuir uma correspondência normativa, isto é, deveria
existir uma regra jurídica positiva válida regulamentado (prevendo) tal
ato. Nesse sentido, Kelsen afirma que “a norma que empresta ao ato o
significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida
por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica
de uma outra norma”, que implica no seu fundamento de validade
(KELSEN, 2003, p. 4).
No que tange a validade das normas jurídicas, é de se ressaltar que para
Hans Kelsen “uma norma não é verdadeira ou falsa, mas apenas válida ou
inválida” (KELSEN, 2003, pág. 21), o que em um conflito de normas, significa
dizer “que apenas uma pode ser considerada como válida e não a outra”,
podendo “considerar como válida quer uma quer outra – mas não as duas ao
mesmo tempo” (KELSEN, 2003, p. 20).
Para Kelsen a norma jurídica identifica aquilo que deve ser, ou seja, a
conduta humana devida, prescrita no texto da lei. Sendo que, quando a
conduta humana real (Ser) corresponde à prescrição da lei (dever ser),
tem-se um juízo de valor positivo, o que significa dizer que a conduta
humana é “boa” e está de acordo com aquilo que ela deveria ser. De outro
modo, quando a conduta humana real (Ser) não corresponde à prescrição
da lei (dever ser), tem-se um juízo de valor negativo, o que significa dizer
que a conduta humana é “má” e não está de acordo com aquilo que ela
deveria ser (KELSEN, 2003).
182
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A teoria de Hans Kelsen aparta o Direito das demais ciências, inclusive
da Justiça e da Moral, de modo que, para ele, “a validade de uma ordem
jurídica positiva é independente”, até mesmo porque, para Kelsen, não
existe um pensamento moral absoluto, assim como não existe uma
Justiça absoluta, o que implica em dizer que uma dada ordem jurídica
pode ser vista como moral ou imoral, justa ou injusta, dependendo do que
se entenda por moral e, ou, por justiça (KELSEN, 2003, p. 75).
Em razão dessa relatividade da ordem moral, bem como da concepção do
justo e do injusto, Kelsen propõe que a justo seja tido como aquilo que é
convencionado como justo e positivado em forma de lei, pois, para ele, “o
conceito de ‘bom’ não pode ser determinado senão como ‘o que deve ser’, o
que corresponde a uma norma”, o que implica em dizer que “o que é conformeao-Direito (das Rechtmässige) é um bem” (KELSEN, 2003, p. 75). Vale salientar, como o faz Luís Roberto Barroso (2009a), que, apesar de
algumas variações, o Positivismo Jurídico teve seu ápice no normativismo de
Hans Kelsen. Até hoje Kelsen continua sendo a grande referência do positivismo
jurídico, sendo sua Teoria Pura do Direito, uma leitura obrigatória àqueles que
pretendem estudar o Direito.
9. CRÍTICAS E DECADÊNCIA DO POSITIVISMO JURÍDICO
O Positivismo Jurídico pretendeu criar um sistema jurídico perfeito,
preestabelecido, que fosse capaz de resolver todos os casos de maneira rígida e
formal. Entretanto, isso não é possível, em razão de diversos fatores, tais como a
constante evolução da sociedade e das tecnologias, das diferenças sócio-culturais
das pessoas, dentre outros. Não bastasse isso, ainda, há aqueles que imputam ao
Positivismo Jurídico a responsabilidade por sustentar juridicamente, os regimes
fascistas e suas barbáries. Por último, ainda há de se lembrar que o Positivismo
Jurídico aparta o Direito da Justiça, possibilitando a existência do Direito injusto.
Nesse sentido, Luis Roberto Barroso afirma que “a troca do ideal
racionalista de justiça pela ambição positivista de certeza jurídica custou caro à
humanidade”, pois para ele, “o fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos
do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos e matizes
variados”, em todo o mundo, possibilitados pela ideia de que o debate sobre
Justiça se encerrava quando a norma era positivada e estabelecia o que era justo
para dada situação (BARROSO, 2009a, p. 241).
Segundo Barroso, os regimes fascista e nazista, de Itália e Alemanha
respectivamente, bem como as crueldades cometidas por eles, foram legitimados
183
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
graças ao Positivismo Jurídico e, foi justamente a queda destes regimes que,
também, possibilitou a queda do sistema positivista do Direito (BARROSO,
2009a). Nesse sentido:
Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes
nas primeiras décadas do século, a decadência do positivismo é
emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo
na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder
dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome
da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento
da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Até
mesmo a segregação da comunidade judaica, na Alemanha, teve início
com as chamadas leis raciais, regularmente editadas e publicadas. Ao
fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico
indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente
formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no
pensamento esclarecido (BARROSO, 2009a, p. 242).
Críticas semelhantes às de Barroso faz Haradja Leite Torrens. A jurista
afirma que o paradigma positivista enfrenta sua crise em detrimento de não
encontrar soluções para determinados problemas jurídicos de alta relevância,
o que se evidenciou principalmente no “julgamento das atrocidades praticadas
pelo Estado Alemão levadas ao Tribunal de Nuremberg no segundo pós-guerra”.
A autora critica também, a incapacidade do legislador acompanhar de forma
célere e eficiente a velocidade da evolução técnico-científica, principalmente
nas sociedades “pós-industriais”, ou “pós-modernas” (TORRENS, 2004).
Apesar das árduas críticas ao modelo positivista, é consenso que, por
causa do positivismo, o Direito avançou muito enquanto Ciência e, a partir da
moldura de Hans Kelsen é que se pôde pensar nas complexas noções de sistema
jurídico e entender que neste mundo existe uma linguagem que não pode ser
desprezada pelo intérprete ou operador do Direito.
Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior, ao encerrar seu artigo: por
que ler Kelsen hoje, demonstra a importância da obra de Hans Kelsen para o
Direito. Veja-se:
A obra de Kelsen ainda o mantém vivo, suas implicações para a ciência
jurídica, para a lógica da norma, para a aplicação do direito são tão
fecundas, que, por mais que o critiquemos, não deixam de desvendar
novos ângulos, novos encaminhamentos. Seu sistema cerrado não está
isento de objeções. Estas, contudo, se postas seriamente, nos mostram
184
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
como o seu pensamento é capaz de nos empurrar para diante, evitando
o parasitismo das concepções feitas. Ao contrário do que se supõe, seu
espírito polêmico nunca revelou um obstinado, tanto que, em diversas
ocasiões e até mesmo no fim da vida, não teve medo de enfrentar suas
próprias convicções, mudando-as quando as percebia insustentáveis
racionalmente (FERRAZ JR, 1981).
Nesse mesmo sentido, Norberto Bobbio (2008) dedicou uma obra
inteira – Direito e Poder – para reexaminar a obra de Hans Kelsen à luz das
críticas que lhe eram feitas. Para Bobbio Kelsen foi um dos mais significantes
contribuidores do Direito, colaborando para o seu desenvolvimento em diversas
áreas, tais como, Teoria e Filosofia do Direito, Direito Constitucional, Direito
Internacional e outras.
Nessa mesma linha de raciocínio, Anderson Rosa Vaz afirma que “a teoria
de Hans Kelsen foi a mais fantástica contribuição jusfilosófica já formulada”,
tornando-se um paradigma da Ciência do Direito, de modo que, “já se disse
com propriedade que se estuda o direito antes e depois de Hans Kelsen” (VAZ,
2009, p. 206).
Deste modo, não pode Kelsen ser “crucificado” como se sua obra se
resumisse apenas à sua Teoria Pura e, pior, como se sua Teoria Pura fosse a
fonte dos problemas da humanidade, ou a legitimadora das leis nazistas, o que
não condiz com a verdade. Enfim, apesar dos nazistas terem se utilizado das leis
e da doutrina positivista para justificarem suas barbáries, essas leis, bem como a
doutrina positivista, não foram criadas com esse intuito e, se pensarmos assim,
deveríamos atribuir os ataques terroristas às Torres Gêmeas a Santos Dumont,
afinal não foi ele o inventor do avião?
O Juspositivismo, tal como o Jusnaturalismo, não deixou de existir,
entretanto, nas últimas décadas, vive uma decadência teórico-científica, uma
progressiva superação por uma nova doutrina, o pós-positivismo jurídico, que
ascende aproximando Direito, Justiça e Moral.
10. O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO
A partir da segunda metade do século passado, inicia-se um movimento de
“superação” do Positivismo Jurídico, movimento este que busca incorporar ao
ordenamento jurídico os mais altos valores morais da sociedade, aproximando
o Direito da Moral e da Justiça. Este novo modelo “não-positivista” é concebido
como Pós-positivismo Jurídico.
Como explica Alexandre Garrido, o uso do prefixo “pós” é bastante
impreciso, sobretudo dentro da doutrina jurídica, uma vez que pode designar
185
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
tudo aquilo que veio após o Positivismo Jurídico (SILVA, 2007). Não é nossa
intenção discutir o uso do prefixo “pós”, entretanto não podemos nos abster
diante de tamanha imprecisão.
Em razão da complexidade do tema, faz-se necessário o desenvolvimento
de algumas ideias antes de falarmos diretamente do Pós-positivismo Jurídico
defendido neste trabalho – como sendo a superação do positivismo jurídico
por uma doutrina atrelada aos valores, mas que não se desvincula da razão
humana e não sobrepõe os valores da Segurança Jurídica, da Legalidade e da
Legitimidade, mas apenas os pondera frente a outros valores.
Deste modo, não só tentaremos delimitar, de forma genérica, os liames
do Pós-positivismo Jurídico com fundamento em doutrinas consagradas no
Direito Contemporâneo, mas também o diferenciaremos do chamado “Direito
Pós-moderno”, tendo como base, principalmente, a brilhante contribuição
de Daniel Sarmento (2010), para evitar confusões conceituais, de extrema
relevância, que poderiam comprometer a boa compreensão deste trabalho
caso não fossem estabelecidas.
11. A PÓS-MODERNIDADE
O mundo contemporâneo vive algo que, com toda a certeza, se difere
bastante daquilo que conhecemos como sendo a Idade Moderna (final do séc.
XVI a meados do séc. XX). Nesse contexto surge o que hoje é motivo de grandes
discussões no ambiente acadêmico e científico: A Pós-modernidade, caracterizada,
sobretudo, pela quebra com os paradigmas construídos ao longo da Modernidade,
pelo movimento neoliberalista e pela globalização.
Entretanto, há de se pensar: Apesar das mudanças surgidas ao longo do
tempo, o que seria melhor para a sociedade, uma adaptação da Modernidade à
realidade contemporânea ou uma Pós-modernidade?
A Idade Moderna, como explica Daniel Sarmento, caracterizou-se
pela “aposta na razão secular e na ciência como meios para a promoção do
progresso e da emancipação do Homem”, pelo desenvolvimento dos “valores
de liberdade, igualdade, solidariedade e democracia, em torno dos quais foi
erigido o Estado Moderno” e, através do Iluminismo, pelo reconhecimento dos
direitos dos homens e pela limitação do poder dos governantes, bem como sua
legitimação pelo consentimento dos governados (SARMENTO, 2010, p. 37).
Nesse sentido, não se pode afirmar que a Modernidade está acabada e que,
como alguns afirmam, já se vive uma Pós-Modernidade, como se as grandes
conquistas da Modernidade já tivessem sido superadas. Sarmento explica que
“de fato existe uma crise na Modernidade”, mas isso não significa, até aqui,
que devamos romper com seus paradigmas e viver a tal Era Pós-Moderna
(SARMENTO, 2010, p. 44).
186
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Segundo Jean-François Lyotard a palavra pós-moderna é utilizada
na América por sociólogos e críticos para indicar “o estado da cultura após
as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura
e das artes” (LYOTARD, 2006, p. xv). Nesse sentido, Lyotard explica que
na Modernidade os discursos pautavam-se na racionalidade e na busca do
“verdadeiro” para legitimar as “regras do jogo”, o que ele, assim como os autores
que se intitulam pós-modernos, chama de “metadiscurso” ou “metarrelato”.
Entretanto, na visão pós-moderna, esses “metarrelatos” devem ser
abdicados, devem ser postos de lado, por serem incapazes de solucionar os
problemas que realmente deveriam ser solucionados e por serem incapazes
de dar uma resposta “verdadeira”, pois os pós-modernos não acreditam na
“verdade”, até mesmo porque a “verdade” é um conceito essencialmente
Moderno (LYOTARD, 2006).
O que Lyotard e os pós-modernos propõem é um rompimento com as
Ciências, com os paradigmas construídos ao longo da Modernidade, bem
como com as conquistas das Ciências e desses paradigmas, pois, segundo
eles, o discurso Moderno é impotente e incapaz “de enfrentar os problemas
emergentes em uma sociedade hipercomplexa, globalizada, fragmentada e
descentrada”, como a sociedade contemporânea, também chamada de pósindustrial (SARMENTO, 2010, p. 37).
Nesse sentido, Sarmento explica que o pós-modernismo se desenvolve
na sociedade pós-industrial, na qual “o poder e a riqueza passa a residir na
posse de conhecimento e de informações” que circulam em alta velocidade, o
que gera um paradoxo, no mínimo irônico. Em razão da elevada velocidade, as
informações passam a ser superficiais e sua estética passa a ser mais importante
que seu próprio conteúdo (SARMENTO, 2010, p. 38) e mais do que isso, os
meios de informação passam, ao invés de nos informar, a nos alienar, em razão
de seu conteúdo “bonitinho”, mas vazio.
É nesse sentido que Willis Santiago Guerra Filho, ao referir-se à televisão,
afirma que ela nos mantém isolados, “voluntariamente presos em casa, nos
momentos de lazer, sentindo-nos com a possibilidade de estar, virtualmente, em
qualquer lugar do mundo para onde nos leve o zapping com o controle remoto”
(GUERRA FILHO, 2009, p. 637), de modo que nos tornamos meras estatísticas,
nos desumanizamos para nos virtualizar, deixamos o real para viver o irreal e
quando acordamos estamos com 60 anos, 150 kilos e com um salário mínimo
de aposentadoria que mal paga o remédio da pressão, enquanto o governo não
nos garante mais nada, nem saúde, nem educação, nem cultura, apenas uma
televisão e um acesso rápido à internet (qualquer semelhança com os EUA de
hoje não é mera coincidência), ou seja, estamos dominados, domesticados,
padronizados.
187
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Nesse sentido, Miguel Reale, ao discorrer sobre o fenômeno da
globalização, afirma:
Não podemos deixar de fazer especial referência aos usos e costumes, com
a generalização de padrões de vestir ou de comer, e sobretudo, através da
televisão, do rádio, do teatro e do cinema, do comportamento dos seres
humanos, desde a infância à velhice, com predominante e passiva imitação,
que é uma forma inegável de domínio (REALE, 2006, p. 99).
No mesmo sentido Edward S. Herman e Noam Chomsky demonstram em
sua obra, A Manipulação do Público, como a mídia, principalmente as mídias
de massa, controlam e manipulam as informações com objetivos políticos e
econômicos, alienando as pessoas, fazendo delas verdadeiros fantoches, para
poderem usar como, quando e para o que quiserem (HERMAN; CHOMSKY,
2003). Um legítimo produto do neoliberalismo, da globalização, da pósmodernidade e sua libertinagem de mercado inescrupulosa.
Não fosse só isso (uma imposição de modelos globais), ascende
o Estado Neoliberal e com ele a globalização de mercado, e é obvio que é
preponderantemente de mercado, afinal os Estados ricos querem vender, eles
não querem se relacionar, trocar experiências, compreender, ou ajudar os
demais. Tome-se de exemplo os Estados Unidos que fecharam suas fronteiras
terrestres para impedir que os não americanos vivessem o “sonho americano”,
mas por outro lado, levaram para o mundo seus produtos industrializados, os
mesmos do “sonho americano”, mas é lógico que a um preço nada acessível à
maior parte da população mundial. Um sistema que exclui cada vez mais, uma
manutenção cruel do poder e da riqueza, que exige cada vez mais preparação,
escolaridade, produtividade e o que, consequentemente, faz com que o sistema
educacional abandone a qualidade de ensino e se dedique a emitir certificados
de cursos dos mais variados, mas que essencialmente não ensinam nada: é a
banalização do ensino e do emprego.
Barroso, ao discorrer sobre a pós-modernidade e a globalização, afirma:
A globalização, como conceito e como símbolo, é a manchete que anuncia a
chegada do novo século. A desigualdade ofusca as conquistas da civilização
e é potencializada por uma ordem mundial fundada no desequilíbrio das
relações de poder político e econômico e no controle absoluto, pelos países
ricos, dos órgãos multilaterais de finanças e comércio [...] A obsessão
da eficiência tem elevado a exigência de escolaridade, especialização e
produtividade, acirrando a competição no mercado de trabalho e ampliando
188
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
a exclusão social dos que não são competitivos porque não podem ser. O
Estado já não cuida de miudezas como pessoas, seus projetos e sonhos,
e abandonou o discurso igualitário ou emancipatório. O desemprego, o
subemprego e a informalidade tornam as ruas lugares tristes e inseguros
(BARROSO, 2009b, p. 306-307).
No mesmo sentido, Paulo Bonavides é incisivo ao discorrer sobre o
neoliberalismo e a globalização, afirmando que “o neoliberalismo cria, em
verdade, mais problemas do que insta resolver” e sua filosofia do poder acentua as
desigualdades entre os homens, uma vez que “se move, em certa maneira, rumo
à dissolução do Estado Nacional” (BONAVIDES, 2003, p. 355). Afirma ainda,
que “a globalização serva de um capitalismo de opressão, degrada e corrompe
a natureza humana, esmaga a personalidade, conculca as franquias do cidadão,
nega a soberania, anula a identidade dos povos” (BONAVIDES, 2003, p. 357).
Se isso não bastasse, com a internet, a situação se agrava, pois emerge
uma espécie de globalização pautada na informática que possibilita um
“imperialismo difuso” e que ameaça até mesmo as instituições estatais mais
poderosas. Isso se dá, conforme preleciona Miguel Reale, porque a globalização
da informática “possibilita o deslocamento súbito e imprevisto, de um País ou
mais Países para outros, de investimentos financeiros de caráter meramente
especulativo e onzenário” (REALE, 2005, p. 76), isto é, possibilita e facilita
uma maior e descontrolada manipulação dos mercados, o que se pode notar
perfeitamente na crise estadunidense de 2008.
E não para por aí. O pós-modernismo quer mais, quer romper com tudo,
quer contestar tudo o que é fruto da Ciência, ele “descrê na razão, na qual
vislumbra um instrumento de repressão e intenta desconstruir as principais
categorias da Modernidade, como as ideias de sujeito, de progresso, de verdade
e de justiça” (SARMENTO, 2010, p. 39). Nesse sentido, André-Jean Arnaud
afirma que o pós-modernismo traz consigo as ideias de “desconstrução” e, até
mesmo, de “morte do homem” (ARNAUD, 1999, p. 196).
No mesmo sentido, Stuart Hall afirma que na Pós-modernidade o homem
é descentrado, ou seja, sofre um processo reverso àquele da Modernidade
quando foi levado ao centro (antropocentrismo). Hall intitula um dos capítulos
de sua obra como: Nascimento e morte do sujeito Moderno, e neste capítulo
tenta desfigurar todo o sujeito, de modo a levá-lo a inexistência perpétua
(HALL, 2005), é a morte do homem como o conhecemos, como sujeito de
direitos, como sujeito de valores e virtudes, é o rompimento com tudo o que se
demorou séculos para ser conquistado.
Na sua concepção de mercado, de lucro e poder, a pós-modernidade busca
o distanciamento do Estado e de suas interferências na sociedade, para que o
189
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Capital privado possa tomar conta de tudo e reger a orquestra da desigualdade.
Mandando e desmandando, tendo o Estado como mero garantidor de sua
atividade livre, totalmente livre, sem limites algum. O Estado se torna um
“cão de guarda dos mais ricos”, deixando de ser aquele que buscava equilibrar
as relações. É a passagem do Estado Democrático de Direito para o Estado
Neoliberal. Nesse sentido, são brilhantes os seguintes dizeres de Barroso:
“Quando a noite baixou, o espaço privado invadira o espaço público, o público
dissociara-se do estatal e a desestatização virara um dogma. O Estado passou
a ser o guardião do lucro e da competitividade” (BARROSO, 2009b, p. 307).
Sob esta perspectiva, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que as teses
da pós-modernidade – a globalização, o neoliberalismo e, sobretudo, a “reforma”
do Estado – se propõem a exaltar “o mais desenfreado ‘liberalismo’”, o que,
consequentemente, promove o domínio dos mercados dos países subdesenvolvidos
pelas grandes empresas dos países ricos e o agravamento das exclusões sociais
(BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 1073). Nesse sentido, Michel Chossudovsky,
em sua obra A globalização da Pobreza, demonstra os impactos da globalização,
sobretudo, a intensificação da exclusão social e da pobreza, isto é, a disseminação
da miséria humana, através das políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI)
e do Banco Mundial (CHOSSUDOVSKY, 1999).
Nesta busca descontrolada por poder, dinheiro e status, emerge uma
“sociedade de riscos”, que não tem escrúpulos, nem responsabilidade, que não se
importa com os efeitos colaterais de suas ações. Foi assim que os estadunidenses
arrasaram Hiroxima e Nagasaki, foi assim que os soviéticos colocaram milhões
de vidas em risco no acidente nuclear de Chernobyl, foi assim que o mal da vaca
louca se espalhou da Europa para todo o mundo, sem falar nas “intervenções”
estadunidenses nos países detentores de grandes reservas de petróleo.
Como consequência de todo esse processo, a sociedade se fragmenta,
se divide em pequenos pedaços, mais fáceis de manipular. Nesse contexto
emergem as solidariedades “guetizadas”, pautadas em qualidades étnicas,
sexual, religiosas, ou culturais. “Em certos contextos, a exacerbação deste
processo acaba produzindo sectarismos e fundamentalismos diversos, além
de provocar, como reação, a intolerância dos grupos hegemônicos contra as
minorias” (SARMENTO, 2010, p. 40).
Nessa perspectiva emergem, também, os mais variados movimentos
fundamentalistas, como os movimentos neonazistas na Europa e nos Estados
Unidos, os movimentos homofóbicos por todo o mundo, inclusive no Brasil,
com casos bárbaros de violência despropositada, não só contra os homossexuais,
mas também contra índios, negros, mulheres etc.
As consequências desta pós-modernidade são múltiplas, de modo que não as
podemos esgotar aqui. Passemos agora a discussão da pós-modernidade no direito.
190
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
12. O DIREITO E A PÓS-MODERNIDADE
Como visto, a Pós-modernidade tem como característica o rompimento
com os paradigmas Modernos, por entendê-los como um aprisionamento do
homem pela razão e pela Ciência. No Direito não é diferente, de modo que
os Juristas Pós-modernos pregam a desvinculação do Direito dos institutos e
elementos criados e/ou desenvolvidos durante a Modernidade, bem como a
abdicação dos Direitos reconhecidos nessa época.
Nessa perspectiva, o Positivismo Jurídico é o primeiro a ser negado, assim
como o seu formalismo, sua produção exclusivamente estatal, sua estrutura
rígida e sua acepção de um Direito Puro que buscava acima de tudo a Segurança
Jurídica. Em contrapartida, há a retomada de algumas concepções e conceitos
pré-modernos, tais como a relação entre Direito e Justiça e o retorno da tópica e
da retórica. Fala-se também, em desregulação, na Economia em substituição das
normas do Estado pelas do Mercado, na resolução de conflitos em substituição
do magistrado pelos tribunais arbitrais e assim por diante (SARMENTO, 2010).
Por outro lado, em uma perspectiva sistêmica do Direito, com base nas
ideias de Niklas Luhmann e Günther Teubner, os pós-modernistas vêem o Direito
enquanto um sistema autopoiético, ou seja, fechado em relação à sociedade, de
modo que, para eles, é o próprio Direito que deve escolher aquilo que deve
ou não ser jurídico. Isso não significa negar que o Direito se relacione com
outros sistemas, mas que ele escolhe como, quando e com o que se relaciona,
incorporando aquilo que ele acredita que deva ser jurídico. Desta forma, o
Direito abdica das colaborações éticas e passa a se fundamentar unicamente no
procedimento. Algo que, ironicamente, lembra bastante o modelo positivista
(SARMENTO, 2010).
Em relação ao Direito Constitucional, a pós-modernidade se demonstra
“incompatível com o projeto de Constituição dirigente”, mais ainda, contrária
ao projeto de “Constituição programática, que traça rumos para a comunidade
política com pretensões de transformação do status quo”, algo notoriamente
oposto à ideia de neoliberalismo e manutenção das desigualdades, típicos da pósmodernidade, da globalização e do neoliberalismo (SARMENTO, 2010, p. 43).
A ideia pós-moderna é de que a Constituição seja “concebida
preferencialmente como um estatuto procedimental” e não como uma Carta
de Direitos e Garantias Universais à todos os cidadãos (SARMENTO, 2010,
p. 43). Ou seja, há um reducionismo da Constituição, querendo transformá-La
em uma carta qualquer, que serve meramente para regular os procedimentos,
nesse sentido, vale reproduzir aqui os dizeres de Luhmann, citado por Daniel
Sarmento, que afirma: “não devendo ser o suporte de nenhuma intenção de
justiça, a constituição terá então que ser entendida apenas como uma normação
191
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
da normação, como um regulativo das relações sistema-ambiente do sistema
político da sociedade” (SARMENTO, 2010, p. 44). Mais ainda, os juristas pósmodernos têm “aversão às construções e valores jurídicos universais”, o que
inclui, dentre outras coisas, os “direitos do homem” (SARMENTO, 2010, p.
40). Nesse sentido, André-Jean Arnaud fala em um “ataque dirigido contra os
direitos do homem” (ARNAUD, 1999, p.198).
Luis Roberto Barroso, ao discorrer sobre a relação da Pós-modernidade
com o Direito, resume bem o que expusemos aqui:
No direito, a temática já não é a liberdade individual e seus limites,
como no Estado liberal; ou a intervenção estatal e seus limites, como no
welfare state. Liberdade e igualdade já não são os ícones da temporada.
A própria lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é
a governabilidade. Fala-se em desconstitucionalização, delegificação,
desregulamentação. No direito privado, o código civil perde sua
centralidade, superado por múltiplos microssistemas. Nas relações
comerciais revive-se a lex mercatoria. A segurança jurídica – e seus
conceitos essenciais, como o direito adquirido – sofre o sobressalto da
velocidade, do imediatismo e das interpretações pragmáticas, embaladas
pela ameaça do horror econômico (BARROSO, 2009b, p. 307 - 308).
Retomemos então à pergunta inicial sobre a Pós-Modernidade: Apesar
das mudanças surgidas ao longo do tempo, o que seria melhor para a sociedade,
uma adaptação da Modernidade à realidade contemporânea ou uma Pósmodernidade?
Em primeiro lugar, devemos assumir um posicionamento frente à matéria.
Nesse sentido, somos claros em dizer que nos posicionamos criticamente à Pósmodernidade, de modo a rejeitá-la. Entretanto, não podemos negar a existência
de uma crise da Modernidade, pois de fato, ela realmente existe.
Nada obstante, não acreditamos que seja benéfico à sociedade abdicar
a Modernidade e suas construções, sua racionalidade, suas conquistas, tais
como os Direitos do Homem, o Constitucionalismo, o Estado Democrático de
Direito, a emancipação do homem, a busca da verdade etc. Acreditamos que
o projeto da Modernidade não deve ser abandonado, que a razão não deve ser
posta de lado. Seus erros e desvios que precisam ser corrigidos, para torná-lo
mais abrangente, inclusivo, garantidor e efetivador dos direitos dos homens.
Nesse sentido, afirma Daniel Sarmento:
ao invés de abandonar o ideário da Modernidade, deve-se aprofundálo, sobretudo nas sociedades periféricas – pré-modernas sob certos
192
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
aspectos –, que enfrentam carências já relativamente equacionadas no
1º mundo. É preciso, neste sentido, adotar um conceito mais alargado
de razão, que se proponha a discutir criticamente também os fins da
ação humana, o que a razão instrumental positiva se negava a fazer. E a
partir de uma perspectiva racional, cumpre insistir, mais e mais, na luta
pela implementação dos grandes valores do iluminismo, de liberdade,
igualdade, democracia e solidariedade (SARMENTO, 2010, p. 44-45).
O ataque Pós-moderno, neoliberal, pós-industrial, ou globalizado
à Modernidade, aos direitos do homem, à razão, ao Estado Democrático de
Direito, à Constituição, são propostas que não visam à liberdade, pois, de
fato, tal ataque só pode conduzir à desigualdade, à exclusão e a libertinagem.
A Constituição não pode ser tida como norma meramente procedimental. Sua
supressão só corresponde aos interesses dos afortunados e dos poderosos.
Abdicar de sua substancialidade, de suas garantias e de sua noção de justiça é
legitimar a desigualdade e a exclusão.
No caso brasileiro, a pós-modernidade e seus efeitos são ainda mais graves211,
pois trata-se de uma democracia recente, que só passou a garantir os direitos do
homem de forma ampla à 25 anos. Ceder à libertinagem de mercado, ao global (que
de global só tem a miséria que é distribuída a maioria) e ao pós-modernismo, que só
tem a oferecer a quem tem como pagar, é inconcebível, é trágico.
Deste modo, é de se acreditar, que tenha ficado clara a nossa posição em
relação à pós-modernidade, bem como em relação ao “direito pós-moderno”,
propostas com as quais não nos identificamos e, pelo contrário, intentemos em
combater.
13. O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO PODE SER CONSIDERADO O MOVIMENTO
PÓS-MODERNO DO DIREITO?
Dissemos que a partir da segunda metade do século passado, iniciouse um movimento de “superação” do Positivismo Jurídico, movimento este
que busca incorporar ao ordenamento jurídico os mais altos valores morais da
sociedade, aproximando o Direito da Moral e da Justiça, recebendo o nome de
Pós-positivismo Jurídico.
Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma que as propostas pós-modernas são propostas
perigosíssimas, sobretudo nos estados periféricos como o Brasil, onde largos setores da população
ainda vivem no arcaísmo pré-moderno. Jamais fomos modernos e, de repente seríamos pósmodernos (interessa a quem?). Soa paradoxal que no Brasil exatamente na época em que, findo o
ciclo autoritário, consolida-se a ascensão da Constituição à condição de norma jurídica, pretendase reduzi-La a pó, na esteira do pensamento pós-moderno, desprezando-se a sua dimensão
substantiva e o seu potencial emancipatório (SARMENTO, 2010, p. 45-46).
211
193
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Poder-se-ia pensar, prima facie, que por romper com o Positivismo
Jurídico, o Direito Pós-moderno fosse a mesma coisa que o Pós-positivismo
Jurídico, ou que estivessem, no mínimo, muito próximos. Mas esta é uma ideia
enganosa, pois não é por possuírem características em comum, que estes dois
movimentos sejam próximos, semelhantes ou iguais.
O Pós-positivismo Jurídico busca ampliar o campo cognitivo do Direito
a fim de lhe possibilitar maior eficiência e de lhe aproximar o máximo da justiça
e da equidade. Busca, como explica Daniel Sarmento (2010), potencializar
o caráter emancipatório da Ordem Jurídica, sobretudo, através do Direito
Constitucional, com o escopo de efetivar os direitos e garantias dos cidadãos. O
Direito pós-positivista busca não a degradação das instituições e do Estado, mas
sim o seu aperfeiçoamento, bem como o aperfeiçoamento de suas relações com
os cidadãos. O Pós-positivismo Jurídico acredita na razão humana e no Direito
como ferramenta de transformação social.
Já o Direito Pós-moderno almeja romper com as instituições de Direito
criadas ao longo da Modernidade, quer romper com as garantias e direitos
conquistados ao longo dos séculos, quer sobrepujar os Direitos do Homem, quer
reduzir a Constituição a uma carta meramente procedimental. Sem falar que, sua
teoria do Direito como sistema autopoiético, por um lado “ergue uma barreira
entre o fenômeno jurídico e a moral” (algo com um neopositivismo) e por outro
“condena o Direito a uma posição modesta na sociedade”, algo muito diferente do
que propõe o Pós-positivismo Jurídico (SARMENTO, 2010, p. 42).
Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma:
Cumpre não confundir pós-positivismo com o pós-modernismo no campo
jurídico. Embora possa haver algumas coincidências entre tais concepções
– como a rejeição da visão positivista de racionalidade, que exclua de seu
âmbito a razão prática, e a negação da separação cartesiana entre sujeito
e objeto, com o reconhecimento de que, também no Direito, o observador
influi sobre o fenômeno observado –, existem também marcantes
diferenças entre estas cosmovisões jurídicas. De fato, o pós-positivismo
não desacredita na razão e no Direito como instrumento de mudança
social, e busca, recorrendo sobretudo aos princípios constitucionais e à
racionalidade prática, catalizar as potencialidades emancipatórias da ordem
jurídica. Já o pós-modernismo, como se viu no capítulo precedente, mostrase cético em relação ao Direito, e tende a reduzir o papel das Constituições
a um mero estatuto procedimental (SARMENTO, 2010, p. 57).
É nesse sentido que se defende uma diferenciação entre Direito Pósmoderno e Pós-positivismo Jurídico, pois se entende que sejam, os dois,
194
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
fenômenos bem distintos, que pouco possuem em comum e, mesmo aquilo
que possuem de comum, em essência são diferentes. Tome-se de exemplo o
rompimento com o Positivismo Jurídico, no caso do Direito Pós-moderno propõese um rompimento total, já no caso do Pós-positivismo Jurídico propõe-se a sua
superação, entretanto preservando aquilo que de bom construiu o Positivismo,
em outras palavras, não se propõe uma despositivação, ou desregulação como
no Direito Pós-moderno, mas sim que o Jurista não se atente exclusivamente
àquilo que está escrito no texto da lei.
Ante o exposto, pode-se concluir que o Direito Pós-moderno visa
apequenar o próprio Direito, enquanto o Pós-positivismo visa ampliar a relação
do Direito com a sociedade, utilizando-se de seu potencial de Justiça e equidade.
14. BREVES DELINEAMENTOS SOBRE O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO
Como dito, o Pós-positivismo Jurídico consiste na corrente do Direito
que emerge em meados do século passado com a finalidade de reintroduzir
no Direito as concepções de Moral e Justiça, reaproximando-o das ciências
humanas.
O pós-positivismo jurídico se funda na ideia de que o Direito deve,
sempre, buscar a Justiça. Por isso, Alexander Hollerbach afirma que “a ciência do
direito está obrigada a valores fundamentais éticos e, no ponto mais alto, à ideia
diretriz da justiça, que ela deve trazer à visão e fazer valer (HOLLERBACH,
2010, p. 14).
Nesta perspectiva, nas palavras de Luís Roberto Barroso, o póspositivismo jurídico “inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao
ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade”
(BARROSO, 2009b, p. 328), ou seja, trata-se de uma reaproximação do Direito
com os valores e com a Ética Jurídica, em busca de se atingir, ou pelo menos
chegar o mais próximo possível da Justiça. Nesse sentido, Gustav Radbruch,
já no início do séc. XX, afirmava que o Direito é uma ciência valorativa, não
podendo a ideia de direito ser diferente da ideia de Justiça (RADBRUCH, 1997).
No mesma perspectiva, Ricardo Lobo Torres afirma que fora em meados
do séc. XX, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, que emergiu o que
se convencionou chamar de Pós-positivismo Jurídico ou não-positivismo.
Segundo o autor, tal movimento surge com a retomada da Jurisprudência dos
Valores, “doutrina que aproxima o direito da moral, reconhece a objetividade dos
valores jurídicos e procura legitimá-los pelas vias epistêmicas e pragmáticas”
(TORRES, 2009, p. 525).
O Pós-positivismo Jurídico se desenvolve a partir da ampliação cognitiva
do Direito, em que se passou a entendê-lo como um sistema complexo
195
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que necessita relacionar-se com o ambiente e com as demais matérias do
conhecimento humano, a fim de efetuar uma troca benéfica de conhecimentos,
através de um sistema que envia e recebe informações de forma a corroborar
para o melhor cumprimento de suas funções primordiais, sem ignorar as demais
ciências, tornando jurídico aquilo que delas é essencial ao Direito.
O sistema pós-positivista do direito que emergira no século passado,
ainda se encontra em constante desenvolvimento. Hoje, existem várias teorias
da ciência jurídica que estão relacionadas à doutrina pós-positivista, tais como
as teorias da norma jurídica propostas por Ronald Dworkin, Robert Alexy,
Humberto Ávila etc., bem como as teorias dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, Luis Roberto Barroso afirma:
A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do
positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado
de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O
pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso,
no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e
regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos
fundamentais [...] O pós-positivismo identifica um conjunto de ideias
difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista,
sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua
marca é a ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade
dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. Com ele, a
discussão ética volta ao Direito (BARROSO, 2009b, p. 327-344).
Ante o exposto, pode-se afirmar que o pós-positivismo consiste na
superação do positivismo legalista, pois não busca a justiça da lei, mas a justiça
do direito, que é muito mais amplo do que uma simples prescrição legal, isso
porque, não se pode separar o Direito da Justiça, bem como não se pode reduzir
a justiça ao simples preenchimento de um dever ser, nem reduzir o Direito a
uma simples regra jurídica prescritiva.
15. CONSIDERAÇÕES FINAIS
1) O Jusnaturalismo contribuiu significantemente para o desenvolvimento
do Direito, contudo com o movimento de positivação dos direitos naturais do
final do séc. XVIII, o Jusnaturalismo se viu engessado, amarrado à legalidade e
acabou sendo superado pelo positivismo jurídico.
2) O Positivismo Jurídico pretendeu criar um sistema jurídico perfeito,
completo, que fosse capaz de resolver todos os casos de maneira rígida e formal.
196
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Acabou banalizando-se pela frieza da legalidade e afastando-se dos ideais da
humanidade, servindo de justificativa para atos odiosos contra a raça humana.
3) Apesar árduas críticas ao modelo positivista, é consenso que, por
causa do positivismo, o Direito avançou muito enquanto Ciência e, a partir da
moldura de Hans Kelsen é que se pôde pensar nas complexas noções de sistema
jurídico e entender que neste mundo existe uma linguagem que não pode ser
desprezada pelo intérprete do Direito.
4) Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Modernidade entra em crise
e suas ideias passam a ser questionadas. Com isso surge a pós-modernidade,
estruturada na globalização, na informatização e no neoliberalismo.
5) No âmbito jurídico emerge o pós-positivismo jurídico, doutrina ainda
em construção que visa aproximar o Direito da Moral e da Justiça, pautada
na efetivação dos direitos fundamentais, na proteção da dignidade da pessoa
humana e na reestruturação da norma jurídica.
6) O positivismo jurídico não é a vertente jurídica da pós-modernidade.
O Direito Pós-moderno e Direito Pós-positivista são fenômenos bem distintos,
que pouco possuem em comum e, mesmo aquilo que possuem de comum, em
essência são diferentes. O Direito Pós-moderno propõe um rompimento total
com o positivismo jurídico e com os ideais jurídicos da modernidade, já no caso
do Pós-positivismo Jurídico propõe-se a sua superação, entretanto preservando
aquilo que de bom fora construído pelo Positivismo, com a correção e otimização
dos instrumentos efetivadores dos direitos fundamentais do homem e com a
valorização da Constituição.
197
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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200
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
DA ESTRUTURA À FUNÇÃO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL:
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
João Victor Rozatti Longhi212*
Sumário: 1. Noções introdutórias; 2. A relevância da função social
para o ordenamento jurídico; 3. Função social da empresa; 3.1. Para
além da função social dos contratos e da propriedade; 3.2. Substrato
axiológico: as bases normativas da função social da empresa; 4.Raios
de aplicação; 4.1.Incentivar o exercício da empresa; 4.2. Condicionar
seu exercício; 5. Considerações finais. Referências.
1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
As mudanças por que passa o mundo atual parecem acelerar-se
dia após dia. Se a economia industrial substituiu a agrária há séculos atrás,
hodiernamente, por seu turno, vários setores vêm se adaptando às mudanças
econômico-sociais e dentre eles a própria agricultura. Técnicas rudimentares
vêm sendo substituídas por sofisticados processos de produção em larga escala
também no setor primário.
Asociedade da informação, Era pela qual passamos segundo muitos, refletese na inserção do aparato técnico-científico também em áreas compreendidas
sempre como invariavelmente jungidas à natureza213, ocasionando, outrossim,
drásticos impactos culturais214 em seu bojo.
O Direito tampouco está imune a este processo. Ubi societas, ibi jus e
vice versa, diz o velho brocardo romano. Vertido para sua vocação intrínseca
enquanto ciência social aplicada, o Direito deve estar sempre atento às
transformações.
2. A RELEVÂNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO
Pode-se dizer que vem da sociologia a idéia de função social do Direito
como um todo. O Direito dos dias atuais não pode ser compreendido como um
ramo científico isolado, um fim em si mesmo.
A ideia de função social perpassa os diferentes ramos da ciência jurídica
penetrando em seus respectivos institutos. Dessa forma, a latere de se perquirir
*Professor Assistente-DE da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
Mestre em Direito Civil pela UERJ. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8670544472872110.
213
Cf. TOEFLER, Alvin. The third wave. New York: Banthan Books, 1980. p. 15.
214
Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São 25. ed. Paulo: Saraiva, 2001. p. 23.
212
201
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
acerca da função do Direito como um todo, mister se faz a imersão em cada um
de seus microssistemas, analisando-se as consequências trazidas pela respectiva
funcionalização de cada um deles.
A idéia de funcionalização dos institutos tradicionais ganha certo vulto
no Direito Privado. Isto porque muitos institutos jurídicos privados durante
algum tempo foram compreendidos sem alteração alguma. É o exemplo da
obrigação. Vista por gerações de juristas como categoria neutra, a-histórica, a
relação creditícia vem sendo repensada, principalmente à luz da noção da teoria
da relação jurídica entre as situações subjetivas diversas.215
Dessa forma, a obrigação antes compreendida como rígido e estático
liame entre credor e devedor ensejando direitos a este e deveres àquele passa
a prever, v. g., a incidência de deveres de cooperação decorrentes do princípio
da boa-fé objetiva216, fazendo com que não mais ocupem posições antagônicas
os pólos da relação, mas sim que sejam parte integrante de um processo, cuja
superação de cada um das fases visa ao adimplemento.217
No atual Código Civil brasileiro, a boa-fé objetiva encontra-se inserida,
como princípio de interpretação dos negócios jurídicos nos art. 113 e, na teoria
geral dos contratos, no art. 422218. No Código de Defesa do Consumidor, no
art. 4º, inciso III, que trata do dever de informar e da proteção da boa-fé nas
relações de consumo.
Jean-Yves Goffi dá um passo adiante. Afirma que a sofisticação
tecnológica hodierna faz com que cada vez mais interesses entrelacem-se
mutuamente, ocasionando até mesmo a assunção, hoje, de deveres jurídicos
para com as gerações futuras. Assim, supera o esquema da relação creditória
baseada no consentimento para fundá-la no dever interesse protegido. É o caso
das normas de proteção de bens ambientais, cada vez mais presentes em sede
nacional e internacional.219
Cf. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional: introdução ao direito
civil constitucional. Ed. bras. organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar,
2008. p. 903.
216
V. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Código
Civil na questão da boa-fé objetiva dos contratos. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de
Janeiro. v.1. n.1. p.3-12. jan./mar. 2000. passim.
217
Cf. COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro : FGV, 2007. p. 20.
218
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé.
219
Cf. GOFFI, Jean-Yves. Le destinataire de l’obligation: le cas des génerations futures. Archives
de philosophie du droit. París: Dalloz, t. 44, p. 233-240, 2000. apud HIRONAKA. Giselda
Maria Fernandes Novaes. Direito das Obrigações: o caráter de permanência dos seus institutos,
as alterações produzidas pela Lei Civil brasileira de 2002 e a tutela das gerações futuras. in
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Novo Código Civil - Interfaces no ordenamento
jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, v. 1, p. 51-68. p. 67.
215
202
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
E as transformações do direito das obrigações são só mais um exemplo das
conseqüências do processo de funcionalização dos institutos de direito privado.
Além dele, pode-se dizer que outro princípio vem alterando profundamente
as bases axiológicas dos subssistemas do Direito Civil. Trata-se do princípio
da função social, agora expressamente previsto em nosso Código Civil e
em nossa Carta Magna. Três são as vertentes identificáveis normativamente
no que concerne à aplicação do princípio da função social: função social da
propriedade, função social dos contratos e a função social da empresa.
A propriedade, durante milênios, fora a pedra angular em muitas
sociedades. Constituía verdadeira fonte de cidadania, instrumento legitimador
de detenção do poder político. “A riqueza de um estrangeiro ou de um escravo
não substituía, de modo algum, essa propriedade, ao passo que a pobreza não
fazia com que o chefe de família perdesse seu lugar no mundo e a cidadania
dele decorrente.”220 A propriedade gozava de status sagrado ao lado do
nascimento, da morte.
Os reflexos jurídicos culminam no verdadeiro dogma que o instituto
assume para o Direito Privado, mentalidade carregada até hoje por muitos
juristas. Afirmar-se, dessa maneira, que a propriedade tem uma função social
que lhe é inerente, positivada no rol dos direitos fundamentais, logo em seguida
do próprio direito fundamental à propriedade, como na Constituição brasileira
de 1988 fora um processo de longa construção histórica.
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Silmara Juny
Chinelado identificam lampejos de função social na propriedade em algumas
limitações a seu exercício já na antiguidade.221 Entretanto, é na modernidade
que raízes axiológicas parecem ser melhor delimitadas. Hoje, desde os
primeiros reconhecimentos constitucionais do princípio da função social da
propriedade222, o princípio já faz parte de inúmeros textos constitucionais em
todo o mundo.
Por seu turno, também a função social dos contratos, hoje consagrada
expressamente pelo Código Civil brasileiro no artigo 421, que, segundo Gustavo
Tepedino “definirá a estrutura dos poderes dos contratantes no caso concreto,
e será relevante para se verifica a legitimidade das cláusulas contratuais que,
ARENDT, Hanna. A condição humana. 10. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2008. p.
71-72.
221
CHINELATO, Silmara Juny de Abreu; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes.
Propriedade e posse: uma releitura dos ancestrais institutos. Em homenagem ao professor José
Carlos Moreira Alves. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 4, n. 14, p. 79-114,
2003. p. 93.
222
Cite-se a Constituição Mexicana de 1917 e a da República de Weimar de 1919 com o
famigerado comando normativo do art. 153 que dispunha: “A propriedade obriga e seu uso e
exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social.”
220
203
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
embora lícitas, atinjam diretamente interesses externos à estrutura contratual –
cláusulas de sigilo, de exclusividade, de não concorrência, etc.”223
Frise-se, por derradeiro, que o sistema civilístico nacional parece
realmente ter incorporado os princípios da função social dos contratos como
corolário da nova atmosfera que perpassa as relações jurídicas na atualidade.
Isto porque o parágrafo único do art. 2.035 afirma categoricamente que
nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública,
tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social
da propriedade e dos contratos (grifo nosso), parecendo-se, em exercício de
interpretação sistemática, ser nula de pleno direito qualquer disposição negocial
em tal sentido.
Finalmente, a terceira vertente da função social em nosso ordenamento:
a Função Social da Empresa que, por constituir objeto específico de análise do
atual excerto, merece ser esmiuçada em apartado.
3. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
A terceira vertente da função social no direito privado constitui recente
construção doutrinária que aos poucos vem sendo reconhecida legislativa
e jurisprudencialmente. Conceito que, aliás, reflete a funcionalização de um
instituto jurídico também recente se comparado com a propriedade e o contrato,
essência do direito privado desde os seus primórdios. Trata-se da teoria da
empresa, que, no Brasil, terminou consagrada com o advento do Código Civil
de 2002, cujo escopo principal fora o de unificar o direito privado no país.
Dessa forma, o Código Civil revogou expressamente a primeira parte do Código
Comercial de 1850 restando-lhe apenas a disciplina do Comércio Marítimo.224
Preliminarmente, afirma-se que antes do advento do Código Civil, para a
delimitação de sua função social, muitos se utilizaram do termo “empresa” sem o
devido rigor técnico. Nessa auréola, há de se ressaltar que empresa, juridicamente,
deve ser compreendida como uma atividade e não uma instituição em que se praticam
os atos de comércio, como preteritamente compreendida. Importada da noção
econômica, incorporam-se suas bases para a aferição de seu tratamento jurídico.
No direito italiano, em resumo, procurou-se definir a empresa, para seu
tratamento legislativo após a unificação do Direito Privado em 1942 através dos
TEPEDINO, Gustavo. Notas Sobre a Função Social dos Contratos. in TEPEDINO,
Gustavo; FACHIN Luiz Edson (coords.). O Direito e o Tempo: Embates Jurídicos e Utopias
Contemporâneas — Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 398-405. p. 403.
224
Art. 2.045. Revogam-se a Lei nº 3.071, de 1o de janeiro de 1916 - Código Civil e a Parte
Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho de 1850.
223
204
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
quatro perfis: a) o perfil subjetivo, que equipara a empresa como o empresário;
b) o perfil funcional, que a compreende a partir da atividade empreendedora;
c) o perfil patrimonial ou objetivo, em que o estabelecimento ocupada o papel
central, e; d) o perfil corporativo, que enxerga a empresa como instituição.225
Por outro lado, não tardaram as críticas da noção que viria a ser positivada
no Direito Italiano. E nessa esteira andou o Código Civil Italiano (art. 2082) que
inspirou o atual tratamento pelo Código Civil Brasileiro optando apenas pela
definição de empresário no artigo 966.
4. PARA ALÉM DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E DA PROPRIEDADE
Antes de tudo, faz-se mister ressaltar, outrossim, o princípio da Função
Social da Empresa, a ser extraído axiologicamente de nosso ordenamento, não
se confunde com a função social dos contratos. Nos dizeres de Enzo Roppo, “o
contrato dá vida – como costuma dizer-se – a uma “instituição”, que absorve e
transcende o próprio contrato.”226
Resta concluído que para se buscar a concretização da função social da
empresa, deve-se invariavelmente superar sua ligação com o contrato e, por
conseguinte, com sua função social.
Posto isto, urge, outrossim, segregar a Função Social da Empresa e
Função Social da Propriedade ou do simples controle da instituição empresária.
Sabe-se que, durante muito tempo, principalmente na primeira revolução
industrial, o controle das instituições empresárias confunde-se com a pura e
simples detenção dos meios de produção.
Este fora, por seu turno, o paradigma que fulcrou as normas de Direito
comercial no início do século XX. Explica-nos Fabio Konder Comparato
que tais normas não distinguiam o capitalista do empresário, tratando-os sob
um mesmo regime jurídico, tal como o sócio e o comerciante individual. Não
obstante, afirma que a concepção tradicional sucumbe às diuturnas maneiras
de gestão e controle empresarial, cada vez mais complexas, mormente
corporificadas sob o regime da sociedade anônima, instrumento jurídico ideal
para robustas estruturas empresariais.227
Além disso, o condicionamento do exercício do poder de controle
repercute não só nos interesses externos à sociedade, mas também no outro
Cf. ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Tradução de Fábio Konder Comparato. Revista de
Direito Mercantil. São Paulo, n. 104, p. 108 - 126, out. – dez. 1996. passim.
226
ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. De Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra:
Almedina, 2009. p. 306.
227
Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista Forense, v. 290, a. 81, p.
9-20, abr.-jun. 1985. p. 16-17.
225
205
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
extremo da cúpula social. Nesse diapasão, ganha maior relevância tanto a tutela
jurídica dos interesses dos acionistas minoritários228 como também nas formas
de participação dos colaboradores nas deliberações sociais.229
Conforme se verá, a função social da empresa e função social da
propriedade partem de um mesmo ponto para tomarem rumos diversos. Logo,
somente com a superação do paradigma da detenção da propriedade como
pressuposto ao exercício da empresa é que é possível se delinear com clareza o
formato da função social da atividade em si, não só do domínio.
5. SUBSTRATO AXIOLÓGICO: AS BASES NORMATIVAS DA FUNÇÃO SOCIAL DA
EMPRESA
Delimitadas as diferenças entre a Função Social da Empresa e outras
expressões do princípio da função social no direito privado, chega-se à análise
dos valores que permitem a aplicação de seus postulados à atividade empresarial.
Sabe-se que a atual Constituição Federal consagra a livre iniciativa como
um dos fundamentos da república (art. 1º, IV, in fine). Sendo um “valor” aquilo
que exprime uma orientação em sentido normativo, indicando diretrizes para a
conduta humana, afirma que a livre iniciativa, no Brasil, fica condicionada pelos
valores sociais, dando ao Estado brasileiro um rumo de bem-estar social.230
Fundados na livre iniciativa e na valorização trabalho, outrossim,
estruturam-se os princípios referentes à ordem econômica brasileira (art. 170
e ss., CRFB). Deles, para a extração do conteúdo normativo da função social
da empresa destacam-se a função social da propriedade e a livre concorrência.
“O ordenamento adota um sistema econômico de iniciativa privada, [...] mas
condicionada essa faixa de liberdade, que envolve a própria liberdade de
empresa, ao asseguramento de uma existência digna a todos e à observância da
justiça social.231
O rol dos princípios setoriais do art. 170 dá um norte para o preenchimento
de conteúdo do princípio da função social da empresa. Embora a livre iniciativa
econômica tenha por conseqüência o estabelecimento de um regime econômico
capitalista, o exercício da empresa não deve visar somente o lucro. E a
Cf. ROPPO, Enzo. Cit. p. 308.
Cf. TEUBNER, Günter. “Unitas multiplex”: a organização do grupo de empresas como
exemplo. in Revista da escola de direito de São Paulo [Direito GV] da Fundação Getúlio
Vargas, v. 1, n. 2, p. 77-110. jun-dez, 2005. p. 79.
230
Cf. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 6. ed. atual até a emenda
57, de 18.12.2009. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 35.
231
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno Paiva. Função Social da
Empresa. in GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.). Função Social no direito civil.
São Paulo: Atlas, 2007. p. 49.
228
229
206
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Carta Magna dá a pista para quais outros interesses sejam considerados, não
exaustivamente. São eles os dos consumidores, da proteção do meio ambiente,
dentre outros.
A Constituição Federal, ademais, faz menção expressa à função social
da empresa. Trata-se do dispositivo que compões o art. 173, §1º, inciso I que
versa sobre a empresa pública. Conforme nossa ordem econômica liberal, o
Estado somente atuará positivamente na economia em casos pontuais, movido
por relevante interesse público ou razões de segurança nacional.
O Código Civil de 2002 teve por escopo a unificação de direito privado
no Brasil. E embora a Função Social da Empresa não esteja expressamente
consagrada, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal
aprovou, na I Jornada de Direito Civil, o seguinte enunciado:
53 – Art. 966: deve-se levar em consideração o princípio da função
social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da
falta de referência expressa.
Dessa forma, posto que o princípio da função social da empresa pode ser
extraído hermeneuticamente de nosso sistema normativo, convém avançarmos
na análise de algumas propostas de sistematização já esmiuçadas pela doutrina
para que, por derradeiro, possa-se problematizá-la quanto à Empresa Agrária e
os novos rumos do Direito Agrário na atualidade.
6. RAIOS DE APLICAÇÃO
Postas raízes valorativas do princípio da Função Social da
Empresa, convém descermos em minúcias dos corolários determinam
os deveres positivos e negativos dele decorrente. Conforme aviltado,
robustece-se a sistematização feita por Viviane Perez para que, a
posteriori, possamos aplicá-la às peculiaridades da empresa agrária.
7. INCENTIVAR O EXERCÍCIO DA EMPRESA
O primeiro corolário para a concretização da função social da empresa é
o incentivo do exercício da empresa. Ou seja, tendo a atividade empresária uma
razão de ser para a sociedade contemporânea, gerando empregos e possibilitando
a circulação dos bens de produção e consumo, nada mais natural que o Direito
crie mecanismos para que se preserve ao máximo sua consecução.
Alguns princípios decorrem dessa máxima. É o caso do chamado
princípio da preservação da empresa, cujo significado é o de “preservar,
207
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
sempre que possível, a empresa em razão de sua função social, geradora
de riqueza econômica, emprego e renda, importante para o crescimento e o
desenvolvimento social.”232
A jurisprudência brasileira vem levando a cabo sua concretização.
Afinal, embora haja maior incidência quando se trata de regime de recuperação
extrajudicial, judicial e falimentar233, em outros modos de dissolução da
sociedade empresária e cessação da atividade empresarial, é possível visualizar
sua aplicação.
Outro caso recorrente é o de retirada de sócio em que há pedido de
dissolução da sociedade empresária e conseqüente cessação das atividades,
costumeiramente negado por nossos tribunais.234
Outro ponto interessante é aquele levantado por Fabio Konder
Comparato, para quem parece ser um paradoxo a idéia de o Estado isentar-se
de sua função de concretizar direitos sociais, transferindo sua responsabilidade
para entidades que necessariamente visam o lucro numa economia de mercado.
As empresas visariam somente o lucro, portanto, seria uma falácia imputar à
empresa deveres de se preocupar com interesses externos a ela, ou mesmo a
ela intrínsecos, que não somente a desenfreada luta pelo aumento do capital.235
Entretanto, Viviane Perez apregoa que a função social é plenamente
compatível com o lucro, visto que o desenvolvimento econômico dever ser
perseguido, mas não a todo custo.236 Fato é que essa visão de que a empresa
não tem função social versa-se ultrapassada dia após dia. Numa economia de
mercado globalizada como a nossa é inaceitável afirmar, por seu turno, que a
empresa apenas visa e deve visar o lucro, fazendo-se extremamente unilateral
a primeira corrente.
Assim, conclui-se, com Alfredo Lamy Filho que a empresa é uma
instituição essencial à sociedade capitalista atual.237 Por isso, hoje se fala em
Responsabilidade Social, o que seria um comportamento ético da empresa,
preocupando-se em seus atos de gestão com interesses a ela alheios ainda
AGÊNCIA SENADO. Os princípios que orientaram Tebet na análise da nova Lei de
Falências. Publicado em 14 abr. 2004. Disponível em : http://www.senado.gov.br/agencia/
verNotic ia.aspx?codNoticia=38237&codAplicativo=2&parametros=tebet+lei+falencias. Acesso
em: 07 mar. 2010.
233
Cf. TJRS - Apelação Cível nº 70025278110, Quinta Câmara Cível, Relator: Umberto Guaspari
Sudbrack, Julgado em 18/02/2009.
234
Cf. TJRJ - Apelação cível 2007.001.63564 - Rel Des. SIRLEY ABREU BIONDI - Julgamento:
19/03/2008 - DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL)
235
Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. in Revista dos Tribunais,
São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 85, n. 732, p. 39-46, out. 1996. p. 45-46.
236
Cf. PEREZ, Viviane. Cit. p. 210.
237
Cf. LAMY FILHO, Alfredo. Cit. p. 57.
232
208
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que pertençam a elementos internos a ela (como a garantia da dignidade dos
colaboradores)238.
Porém, alerta-se para o fato de que isso não faz parte do conceito de
função social da empresa. A responsabilidade social, não deve ser algo
obrigatório, ainda que a sanção social, mercadológica dos que não a cumprem
venha naturalmente quando aliada à imagem de sua marca.239 Compelir-se
juridicamente o empresário à prática da responsabilidade social pode ocasionar
o perigoso esvaziamento do princípio da função social, em que facilmente se
apoderarão de um falso discurso ético para a indevida promoção da marca,
ocultando as frequentes injustiças cometidas pelo abuso do poderio econômico.240
Dessa forma, para o incentivo normativo ao exercício da empresa não
basta que se incentive a busca de uma atividade apenas vertida para o lucro.
Mais do que fomentar a empresa é necessário que um Estado fulcrado nos
valores da pessoa saiba qual empresa quer fomentar. Nesse diapasão o segundo
corolário, de limitação de seu exercício.
8. CONDICIONAR SEU EXERCÍCIO
Para a sistematização do segundo corolário do princípio da função
social da empresa imperioso que seja atividade empresarial sob dois ângulos
diversos. Isto porque, conforme já aviltado, outros interesses que não só a busca
pelo lucro deve ser almejados no manejo da atividade empresarial. Em outras
palavras, afirma-se que há tanto interesses internos como externos merecedores
de tutela pelo às luzes do ordenamento que pode ser compelido o empresário a
tender no exercício de sua função.241
Nesse sentido, é Viviane Perez quem distingue os elementos exógenos e
endógenos à empresa contidos na atuação condicionante da função social. Elementos
endógenos corresponderiam às relações entre os agentes internos, tal como o
respeito aos direitos trabalhistas e a consideração de interesses não só de sócios
controladores, mas também sempre se garantindo os interesses dos minoritários,
respeitando-se não somente a situação patrimonial, como credor dos benefícios nos
limites de suas cotas, mas também da própria condição existencial de sócio.
Elementos exógenos, por sua vez, dizem respeito a três outros centros de
interesses constitucionalmente condicionantes da ordem econômica nacional.
Cf. ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo; RIBEIRO, Ademar. A revolução do empresariado. in
Revista de Direito Privado, ano 3, p. 216-225, jan.-mar. 2002. p. 222.
239
Nesse sentido, PEREZ, Viviane. Cit. p. 212. e TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Cit. p. 48.
240
Cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar,
2008. p. 83.
241
Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Estado (cit.). p. 44.
238
209
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Ou seja, das relações com centros de interesses externos a empresa. São eles:
Concorrencial, devendo a empresa ser exercida em correspondência à legislação
correta242 além do respeito às regras ditadas pelo CADE243 dos consumidores244
e ambientais, buscando desenvolvimento sustentável e suportando riscos
atinentes à propensão inovativa do ramo de atividade de que participam.245
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente trabalho, pôde-se apresentar de maneira sistematizada alguns
aspecots acerca do conceito de função social da empresa agrária.
Sabe-se que a Constituição da República elevou a grau máximo a tutela
da pessoa humana, extraindo daí toda a disciplina dos direitos fundamentais e
sociais (art. 1º, III). Outrossim, o texto constitucional consagra espressamente
a função social da empresa quando dispòe acerca da atividade empresarial
empreendida exclusivamente pelo Estado.
Contudo, foi possível verificar de que maneira o sistema jurídico
brasileiro consagra a função social da empresa como corolário de princípios
constitucionais e de que maneira este valor é operacionalizado doutrinária e
jurisprudencialmente.
Aquiescendo-se os valores que devem perpassar o ordenamento
jurídico atualmente, procurou-se compor subsídio à interpretação da atividade
empresarial como aquela que deve atender os escopos de produzir e distribuir
bens fundamentais à população.246
Ressalta-se o Código de Propriedade Industrial – lei 9279/96 – Art. 2º, V e 195 e ss.
Lei 8884/94.
244
Cf. MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe.
Manual de direito do consumidor. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
pp. 103-104.
245
Cf. VINEY, Geneviève. As tendências atuais do direito da responsabilidade civil. in TEPEDINO,
Gustavo (org.). Direito civil constitucional: novos problemas à luz da legalidade constitucional.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 55.
246
Frise-se que esta noção não está imune a críticas. Afinal, Flavia Trentini salienta que
parte significante da doutrina não restringe a empresa agrária àquela que tem como escopo final
a produção de alimentos. Por essa razão, não é apenas a “empresa agroalimentar” que carece de
proteção especial e, portanto, cumpre função social. Cf. TRENTINI, Flávia. Anotações feitas pelo
autor durante a Conferência de trabalhos da IV Semana Jurídica DA Faculdade de Direito
da USP de Ribeira Preto. Ribeirão Preto: USP, 2011. Contudo, a discussão não está fechada.
Apenas introduz críticas à conclusão desta pesquisa, de que o princípio da função social irradia
todo o ordenamento, orientando políticas públicas, produção legislativa e a jurisprudência. Tratar
grandes conglomerados industriais que utilizam matérias primas agrícolas para a produção de bens
de consumo de segunda necessidade em pé de igualdade formal com aquelas que desenvolvem
atividades empresariais de produção de gêneros alimentícios parece, a princípio, consagrar a
igualdade formal em detrimento da igualdade material. Logo, a priori, parece distanciar-se dos
242
243
210
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Afirma-se que nos dias de hoje o intérprete é instado a extrair dos
princípios constitucionais as respostas às demandas sociais. Assim, o jurista do
século XXI mais deve conhecer as normas do que aplicar as regras. E embora o
sistema jurídico brasileiro careça de regras mais sólidas acerca de um tratamento
diferenciado à empresa enquanto atividade essencial à sociedade, do exposto,
infere-se conclusivamente que o princípio da função social da empresa traz a
função contemporânea à estrutura jurídica da atividade empresarial.
valores consagrados pela Constituição da República e até mesmo por Convenções e Tratados de
Direitos Humanos.
211
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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215
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
EL CONCEPTO DE INVERSIÓN BAJO EL SISTEMA INTERNACIONAL
DE PROMOCIÓN Y PROTECCIÓN DE INVERSIONES FORÁNEAS
Ivette Esis V.247
1. INTRODUCCIÓN
El objetivo en el que convergen los más de 2500 Acuerdos Bilaterales de
Promoción y Protección de Inversiones (APPRIs) concluidos en todo el mundo,
además de los tratados multilaterales que en esta materia han sido ratificados
por diversos países, consiste en brindar seguridad jurídica tanto al inversionista
como al Estado receptor para que fluya, en el ámbito transfronterizo, la
circulación de capitales. La inversión, como interés protegido por estos
instrumentos convencionales, por un lado, permite al Estado receptor reducir la
pobreza y mejorar su economía. Por otro, brinda al inversionista la oportunidad
de abrir nuevos mercados y obtener lucro por sus actividades248.
Ante la ausencia de una definición del término inversión por parte del
Convenio sobre Arreglo de Diferencias relativas a Inversiones entre Estados y
nacionales de otros Estados de 1965 (en lo adelante, Convenio de Washington),
los convenios suscritos en la materia, la doctrina y la propia práctica arbitral
en materia de inversión, han ido desarrollando una calificación que, sobre este
vocablo, ha venido evolucionando en el tiempo. En este artículo pretendemos
identificar los criterios convencionales, doctrinales y prácticos bajo los cuales
se ha definido una inversión susceptible de amparo bajo el sistema internacional
de promoción y protección de inversiones.
2. APROXIMACIÓN DOCTRINAL DEL TÉRMINO INVERSIÓN
Tanto el CW y el Informe de los Directores Ejecutivos mantienen
silencio en relación con el significado del vocablo “inversión” con el propósito
de brindar flexibilidad al instrumento multilateral. En particular, el referido
Informe se limita a indicar lo siguiente:
Doctora en Derecho, Universidad de Valencia (España). Diploma de Estudios Avanzados
(DEA) Derecho Administrativo y Procesal, Universidad de Valencia (España). Magister
Scientiarum en Derecho Internacional Privado y Comparado, Universidad Central de Venezuela
(UCV), Abogada, Universidad del Zulia (LUZ). Profesora de Derecho Internacional Privado y
Derecho Comparado y abogada en ejercicio. El presente artículo resume algunas ideas planteadas
en mi tesis doctoral “Expropiación de Inversiones Foráneas: Potenciales Litigios y Arbitraje de
Inversión”.
248
Dugan, C.; Wallace, D.Jr.; Rubins, N. y Sabahi, B., Investor-State Arbitration. Oxford
University Press, New York, 2008, pp. 6-9.
247
216
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
“No se ha intentado definir el término “inversión”, teniendo en cuenta
el requisito esencial del consentimiento de las partes y el mecanismo
mediante el cual los Estados contratantes pueden dar a conocer de
antemano, si así lo desean, las clases de diferencias que estarán o no
dispuestos a someter a la jurisdicción del Centro (artículo 25.4)”249.
Esta ausencia de definición exige al operador jurídico y, particularmente
a cada Tribunal Arbitral, el análisis de las calificaciones contenidas en otras
fuentes igualmente relevantes en este ámbito. Nos referimos a los APPRIS, la
legislación del Estado receptor, la doctrina y las orientaciones que otros paneles
de árbitros han realizado en casos similares.
En un principio se consideraba que la inversión era un término referido
exclusivamente a bienes propiedad de personas físicas o jurídicas, nacionales
de otros Estados250. Con el transcurrir del tiempo, la interpretación de la palabra
“inversión” fue ampliándose ante la necesidad de los Estados exportadores de
proteger no sólo los bienes tangibles, sino también a los bienes intangibles,
Derechos contractuales, así como las licencias o permisos necesarios para la
legal y efectiva operación de la inversión en los Estados receptores de dicho
capital251. Así, la evolución de la definición de este término ha dado lugar a
varias interpretaciones desde el punto de vista económico y, también, desde el
punto de vista jurídico.
1) En primer lugar, desde el contexto económico, una inversión implica
un beneficio pecuniario, que tiene un valor determinado y genera dividendos en
un tiempo prudencial. Dichos dividendos pueden ser estimables, en atención a
complicadas fórmulas contables y al análisis económico del proyecto, pero el
inversor no tiene total certeza de obtenerlos. Es uno de los riesgos que asume252.
Este concepto constituye, además, una fórmula que permite distinguir una
inversión foránea directa de una inversión portafolio, siendo ésta última aquélla
que no genera operaciones de largo plazo253.
2) Ahora bien, bajo la perspectiva jurídica, la calificación del término
“inversión” dependerá en gran medida del instrumento convencional o
legal aplicable, atendiendo a la fragmentada y enorme red de APPRIs y de
A.A.V.V., Informe de los Directores Ejecutivos acerca del Convenio de Washington. Texto
disponible en http://icsid.worldbank.org, p. 44.
250
Sornarajah, M. The International Law on Foreign Investment. 3º ed. Cambridge University
Press, Cambridge, 2010, pp. 7-9.
251
Sornarajah, M. The International Law on Foreign…, cit., pp. 12-15.
252
Bĕlohlavek, A., Arbitration, Ordre Public and Criminal Law (Interaction of private and public
international and domestic law). Vol. I. Taxon, Kiev, 2009, pp. 383-385.
253
Dolzer, R. y Schreuer, C., Principles of International Investment Law. Oxford University
Press, Oxford – New York, 2008, p. 60.
249
217
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
ordenamientos jurídicos nacionales. Por tanto, se hace necesario examinar las
definiciones contenidas en algunos convenios multilaterales, los APPRIs y
algunas legislaciones locales.
3. APROXIMACIÓN CONVENCIONAL
Los instrumentos convencionales regionales y bilaterales contienen
sendas calificaciones del vocablo “inversión”. Un concepto amplio que alude
no sólo a los bienes tangibles, donde el inversionista, como propietario, tiene el
uso, goce y disposición sobre éstos. También se extiende a bienes intangibles,
Derechos contractuales, licencias o permisos necesarios para la legal y efectiva
operación de la inversión.
1) En primer lugar, centrándonos en el nivel de convenios multilaterales,
el Tratado de la Carta de Energía (TCE) establece, en su artículo 1.6, una
definición del vocablo “inversión”, como:
“Cualquier clase de activo, controlado directa o indirectamente por
un inversor, incluyendo bienes tangibles e intangibles, movibles o no,
y cualquier clase de propiedad entregada en calidad de arrendamiento
financiero; la compañía, las acciones o cualquier clase de participación
en ella o en joint ventures contractuales, reclamos en dinero, propiedad
intelectual, así como cualquier clase de Derecho derivado de licencias o
permisos otorgados en materia de energía”.
Por su parte, el Acuerdo ASEAN en materia de protección de inversiones
y que vincula a Brunei, Filipinas, Indonesia, Malasia, Singapur y Tailandia,
define, en su artículo 1.3, como inversión a cualquier tipo de activo, movible
o no, acciones en sociedades mercantiles, participación en contratos de
asociación, reclamos judiciales por la obtención de dinero, propiedad intelectual
y concesiones.
Junto a ello, debemos mencionar el artículo 1 del Protocolo de Colonia,
elaborado en el marco del MERCOSUR, el cual establece también una
calificación autónoma del término inversión como todo tipo de activo propiedad
directa o indirecta de un inversor proveniente de una de las Partes contratantes.
A tal efecto, presenta un listado a título enunciativo de lo que puede calificar
como inversión:
“… Incluye en particular, aunque no exclusivamente:
a) la propiedad de bienes muebles e inmuebles, así como los demás
derechos reales tales como hipotecas, cauciones y derechos de prenda;
218
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
b) acciones, cuotas societarias y cualquier otro tipo de participación en
sociedades;
c) títulos de crédito y derechos a prestaciones que tengan un valor
económico; los préstamos estarán incluidos solamente cuando estén
directamente vinculados a una inversión específica;
d) derechos de propiedad intelectual o inmaterial, incluyendo derechos
de autor y de propiedad industrial, tales como patentes, diseños
industriales, marcas, nombres comerciales, procedimientos técnicos,
know-how y valor llave;
e) concesiones económicas de derecho público conferidas conforme a la
ley, incluyendo las concesiones para la búsqueda, cultivo, extracción o
explotación de recursos naturales”.
2) Contamos con las definiciones contenidas en los APPRIs sobre el
término “inversión”, tal como lo indica la calificación autónoma del APPRI
Modelo de Estados Unidos de 2012254. Bajo dicho concepto, se identifica como
inversión cualquier activo controlado directa o indirectamente por el inversor
una empresa, acciones, cuotas de participación, derechos contractuales, bonos,
empréstitos y títulos valores, concesiones, construcciones, producción,
propiedad intelectual, licencias, autorizaciones, permisos y demás fórmulas
acordadas por el Derecho del Estado receptor. Asimismo, el APPRI concluido
entre el Reino de España y la República de Venezuela contiene una lista de lo
que puede calificar como inversión. Así, su artículo I.2 refiere:
“Por inversiones se designa todo tipo de activos, invertidos por inversores
de una Parte Contratante en el territorio de otra Parte Contratante y, en
particular, aunque no exclusivamente, los siguientes:
a) Acciones, títulos, obligaciones y cualquier otra forma de participación
en sociedades;
b) Derechos derivados de todo tipo de aportaciones realizadas con el
propósito de crear valor económico; se incluyen expresamente todos
aquellos préstamos concedidos con este fin;
c) Bienes muebles e inmuebles, así como otros derechos reales tales
como hipotecas, derechos de prenda, usufructos y derechos similares;
d) Todo tipo de derechos en el ámbito de la propiedad intelectual,
incluyendo expresamente patentes de invención y marcas de comercio,
así como licencias de fabricación, conocimientos técnicos y fondos de
comercio;
Texto disponible en: http://www.state.gov/documents/organization/188371.pdf 20/04/2012
[Fecha de visita: 23/04/2012].
254
219
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
e) Derechos para realizar actividades económicas y comerciales otorgados
por la Ley o en virtud de un contrato, inclusive los relacionados con la
prospección, cultivo, extracción o explotación de recursos naturales”255.
4. APROXIMACIÓN DEL TÉRMINO “INVERSIÓN” CONFORME AL DERECHO DEL
ESTADO RECEPTOR
Junto a la definición convencional del vocablo “inversión”, la doctrina
también ha recomendado la revisión del Derecho del Estado receptor a los
fines de determinar si el bien constituye –realmente- una propiedad bajo dicho
ordenamiento jurídico. Y, de ser así, verificar si dicha propiedad está amparada
bajo la protección brindada por el convenio multilateral o bilateral que resulte
aplicable al caso.
Generalmente la inversión foránea se articula a través de la adquisición
de bienes y Derechos de carácter patrimonial. A su vez, esos activos e intereses
están regulados por el ordenamiento jurídico del lugar donde se ubican256.
Incluso, cuando la inversión no se desarrolla expresamente en el Estado receptor
ni tiene presencia física en él se exige que, al menos, tenga conexión con dicho
Estado por su contribución al desarrollo socio-económico.
Tanto en los convenios multilaterales como en los APPRIs, la ausencia
de normas materiales que permitan identificar la existencia, la clasificación, la
extensión y la extinción de la propiedad257. Generalmente en sede convencional
sólo se limitan a remitirse a la legislación del Estado anfitrión que identifica la
legalidad o no de la inversión258. En consecuencia, el operador jurídico debe
analizar las normas del Derecho del Estado receptor, a los fines de determinar
Acuerdo entre el Reino de España y la República de Venezuela para la promoción y protección
recíproca de inversiones, publicado en el Boletín Oficial Español Nº 245, de fecha 13/10/1997.
Texto disponible en: http://www.sice.oas.org/Investment/BITSbyCountry/BITs/VEN_Spain_s.
pdf [Fecha de visita: 15/05/2011].
256
Douglas, Z., The international law of investment claims. Cambridge University Press,
Cambridge, 2009, p. 52.
257
McLachlan Q.C., C., Shore, L. y Weiniger, M., International Investment Arbitration.
Oxford University Press, Oxford – New York, 2008, p. 69. Véase también Sornarajah, M. The
International Law on Foreign…, cit., p. 224. Respecto a la importancia de revisar el orden jurídico
del Estado anfitrión, véase: Salacuse, J. W., The Law of Investment Treaties. Oxford University
Press, Oxford - New York, 2010, p. 167.
258
García Rodríguez, I., La protección de las inversiones exteriores (Los acuerdos de promocion
y protección recíproca de inversiones celebrados por España). Tirant lo Blanch, Valencia, 2005,
pp. 159-160. Véase también Shepston Overly, M. «When private stakeholders fail: Adapting
expropriation challenges in transnational tribunals to new governance theories», en: Ohio St. Law
Journal, No. 71. Ohio, 2010, p. 350 (disponible en la base de datos Hein online, fecha de visita:
01/04/2011).
255
220
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
la existencia o no de la propiedad que es reclamada por el inversor foráneo259.
Esta tarea de identificación de la propiedad conforme al orden jurídico del
Estado anfitrión comprende el examen de su normativa en varios ámbitos. Nos
referimos a la legislación de índole laboral, administrativa, financiera, societaria
y fiscal existente en dicho país260. Esto obedece a que cada país articula, conforme
a su propio orden jurídico, los vehículos corporativos o societarios para atraer
la inversión extranjera. Y, para no desequilibrar la balanza de pagos, el Estado
receptor puede ofrecer al inversionista, en aras de que éste último pueda repatriar
el capital invertido, una serie de beneficios colaterales a la inversión: incentivos
fiscales, laborales y crediticios. Estos beneficios, de acuerdo a las previsiones de
ciertos APPRIs, constituyen parte de la inversión foránea261.
A efectos de completar el examen de identificación de la propiedad
de acuerdo al orden jurídico del Estado receptor y, al mismo tiempo, dada la
vinculación entre los bienes (sobre todo, los tangibles) y el territorio del país
donde se encuentran ubicados, la doctrina también recomienda el examen del
sistema de Derecho Internacional Privado del país anfitrión de la inversión262.
5. DEFINICIÓN DEL TÉRMINO “INVERSIÓN” EN LA PRÁCTICA ARBITRAL
Las definiciones en sede convencional bilateral del término inversión son
tomadas muy en cuenta por los Tribunales Arbitrales en la práctica, dado que
dichos textos constituyen la muestra de la voluntad de los Estados plasmadas en
estos instrumentos internacionales. Pero también observan –en ciertos casos- el
ordenamiento jurídico del Estado receptor.
La verificación de si, efectivamente, la controversia entre el Estado y
el inversor extranjero versa sobre un problema suscitado en el marco de una
inversión no siempre resulta tarea fácil para cada panel de árbitros. Citamos, a
continuación, algunos asuntos que nos orientan respecto a la interpretación del
término inversión en la práctica y, especialmente, sobre la creación de ciertos
parámetros de identificación del referido vocablo en el marco de la misma.
1) En primer lugar, nos referimos al asunto Fedax N.V. v. Venezuela
(1997)263 el cual constituye un importantísimo precedente. En este caso la
demandante, una compañía constituida y domiciliada en la Isla de Curaçao (que,
para ese momento, formaba parte de las Antillas Neerlandesas), reclamó a la
República de Venezuela el pago de unos instrumentos de crédito denominados
notas promisorias, emitidas por ésta última, y endosadas a favor de la primera.
Douglas, Z., The international law of investment…, cit., p. 171.
García Rodríguez, I., La protección de las inversiones exteriores…, cit., p. 160.
261
García Rodríguez, I., La protección de las inversiones exteriores…, cit., pp. 219-220.
262
Douglas, Z., The international law of investment…, cit., p. 54.
263
Fedax, N.V. v. Venezuela, Laudo sobre Jurisdicción de fecha 11/07/1997, Caso No. ARB/96/3.
259
260
221
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Venezuela objetó la jurisdicción del Tribunal Arbitral al señalar que el
término inversión, de acuerdo al principio de buena fe, debe atender al significado
contenido en los términos del CW, en atención a su objeto y propósito. Las notas
promisorias no calificaban, en su opinión, como una inversión directa toda vez que
no involucraron la transferencia de recursos durante un largo periodo de tiempo,
con el objetivo de adquirir activos en el territorio del Estado receptor. Además,
dicha inversión nunca llegó a desarrollarse en Venezuela, sino en el exterior.
El Tribunal Arbitral aclaró que las notas promisorias son instrumentos
por medio de los cuales se declara por escrito la existencia de un crédito. Fueron
en total 6 notas promisorias suscritas por Venezuela para reconocer su deuda por
los servicios prestados bajo un contrato celebrado con la compañía Industrias
Metalúrgicas Van Dam, C.A. Y, bajo tales circunstancias, la República recibió
un crédito por el monto de esas notas pagaderas en un tiempo específico y con
la consecuente obligación de pagar intereses.
De acuerdo al artículo 5 del APPRI entre Venezuela y el Reino de los Países
Bajos, se incluye bajo la categoría de “inversión” a los instrumentos de crédito y
las transacciones efectuadas con ocasión de éstos. Asimismo, la Ley venezolana
de crédito público vigente para la época definía que este tipo de operaciones como
de interés público, toda vez que involucraban necesidades gubernamentales por
lo cual se excluían de las propias de la actividad comercial ordinaria.
Las notas promisorias son instrumentos separados e independientes de la
relación contractual que dio origen a la transacción de las partes. Emitidas en dólares
americanos, circulan en el mercado internacional y pueden ser endosadas a favor
de personas físicas o jurídicas foráneas, quienes se convierten automáticamente
en beneficiarios. Por tal motivo, los créditos y los instrumentos financieros no son
físicamente transferidos desde el territorio del país de origen. El crédito otorgado al
deudor que, en este caso, fue la República, fue utilizado para financiar proyectos en
pro del interés nacional y satisfacer las necesidades gubernamentales. Al considerar
tales notas como inversión, el Tribunal Arbitral afirmó su jurisdicción.
Un aspecto interesante que planteó este Tribunal fue el análisis de ciertos
elementos que permiten identificar la existencia de una inversión:
a) Que tenga una duración cierta;
b) Que regularmente arroje beneficios;
c) Que enfrente riesgos para el inversionista;
d) Que sea importante y determinante para el desarrollo del Estado
receptor.
Además de atender a los requerimientos propios contenidos en el APPRI
aplicable, hoy día este análisis se considera un “test” ineludible para los
222
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
tribunales arbitrales que, en materia de inversión, se constituyan en el futuro264.
2) En segundo lugar, citamos un caso importante para la definición
del término inversión: Tokio Tokeles v. Ucrania (2004)265. De acuerdo al
APPRI Lituania - Ucrania es calificada como tal cualquier bien propiedad
del inversionista en el territorio de uno de los Estados parte, de acuerdo a
la legislación especial en la materia del país receptor. El Estado Ucraniano
alegaba como defensa que la inversión realizada por la parte demandante no
estaba amparada bajo el citado acuerdo bilateral, toda vez que no demostró que
el capital invertido procedía de Lituania. El Tribunal Arbitral consideró que
el CW estipula que el problema objeto del arbitraje verse sobre una inversión
internacional. Sin embargo, no exige que la inversión sea financiada por parte
de un capital de un específico origen y, por tanto, no es requisito para determinar
la jurisdicción del Tribunal Arbitral.
La otra defensa alegada por el Estado Ucraniano fue que la inversión fue
realizada no estuvo conforme a la legislación vigente, por cuanto hubo errores
en los documentos constitutivos de dicha inversión. El Tribunal dictaminó que
la subsidiaria había obtenido los permisos necesarios para operar legalmente
en Ucrania y durante 8 años estuvo registrada como una inversión lituana en
dicho país. Según el Tribunal, tomar en consideración y estudio el alegato
de la demandada, requeriría examinar detalladamente los procedimientos
administrativos del Derecho ucraniano para excluirla o no como una inversión
sobre la base de los referidos errores y, hacerlo, en definitiva, sería inconsistente
con el propósito y objeto del CW266.
3) En tercer lugar y a diferencia del asunto anterior, nos referimos al
caso Salini y otros v. Marruecos (2001)267, en el cual el Tribunal Arbitral
examinó la propiedad del inversionista conforme al ordenamiento jurídico
del Estado receptor. El problema entre los inversionistas italianos y el Reino
de Marruecos se suscitó por el reclamo que los primeros efectuaron ante una
compañía propiedad del segundo, por el impago de una serie de conceptos que
los demandantes tuvieron que sufragar en la construcción de un tramo de 50
kilómetros de la autopista que comunica las ciudades de Rabat y Fez.
Los inversores alegaban que, bajo las previsiones del APPRI concluido
entre Italia y Marruecos, el derecho a una indemnización por el referido impago
constituía un beneficio económico resultante de una inversión y, por ende,
Dolzer, R. y Schreuer, C., Principles of international investment… cit., pp. 68 y ss.
Tokios Tokeles v. Ucrania, Caso No. ARB/02/18, Laudo sobre jurisdicción de fecha 29/04/2004,
párrafos 74 al 82.
266
Tokios Tokeles v. Ucrania..., cit., párrafo 86.
267
Salini Costrutorri S.p.A and Italstrade S.p.A v. Marruecos, Caso No. ARB/00/4, Decisión sobre
Jurisdicción de fecha 23/07/2001, párrafos 30 y ss.
264
265
223
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
calificaba como inversión. El Reino de Marruecos refutó este alegato señalando
que la definición convencional del vocablo “inversión” debía ser interpretada
conforme a las leyes y regulaciones marroquíes, siguiendo la solución dispuesta
en el artículo 1.e) del referido APPRI268.
El panel de árbitros señaló, atendiendo al criterio presentado por la parte
demandante, que la remisión al ordenamiento jurídico marroquí debe efectuarse
únicamente a los efectos de identificar la legalidad o no de la inversión. De
esta forma, se asegura que el APPRI protege sólo la inversión reconocida
como propiedad legalmente adquirida en el Estado anfitrión. En tal sentido, el
Tribunal Arbitral afirmó:
“The Tribunal cannot follow the Kingdom of Morocco in its view that paragraph
1 of Article 1 refers to the law of the Host State for the definition of investment.
In focusing on ‘the categories of invested assets (…) in accordance with the
laws and regulations of the aforementioned Party’, this provision refers to the
validity of the investment and not to its definition. More specifically, it seeks
to prevent the Bilateral Treaty from protecting investment that should not be
protected, particularly because they would be illegal”269.
4) En cuarto lugar, citamos el caso Ynceysa Vallisoletana, S.L. vs. El
Salvador (2006)270. Llama la atención el estudio desarrollado por el panel de
árbitros respecto al tipo de inversión protegida por el APPRI aplicable al caso.
En esta ocasión, el Tribunal Arbitral al analizar las previsiones del instrumento
convencional identificó que el APPRI sólo ampara a aquellas inversiones
legalmente realizadas conforme al Derecho salvadoreño. Aunque la demandante
de nacionalidad española reclamaba la expropiación de sus activos, el panel de
árbitros consideró que no había realizado sus operaciones en forma lícita. Por
tanto, sus activos no calificaban como una inversión, toda vez que el APPRI la
excluye de su ámbito de aplicación material.
El texto del artículo 1.e) del APPRI concluido entre Italia y Marruecos expresamente señala:
“Per “investimento” si intende, indipendentemente dalla forma giuridica prescelta e dall’ordinamento
giuridico di riferimento, ogni bene investito, prima o dopo l’entrata in vigore dei presente Accordo,
da persone fisiche o giuridiche, compreso il Governo di una Parte contraente, nel territorio dell’altra
Parte Contraente, in conformità delle leggi e dei regolamenti di quest’ultima. In tale contesto di
carattere generale il termine “investimento” include principalmente ma non esclusivamente: e) e.
ogni diritto di natura economica conferito per legge o per contratto, nonché ogni licenza e concessione
rilasciata in conformità a vigenti disposizioni per l’esercizio di attività economica, comprese quelle dì
prospezione, coltivazione, estrazione e sfruttamento di risorse naturali”. Texto disponible en: http://
www.unctad.org/sections/dite/iia/docs/bits/italy_marocco_it.pdf
269
Salini v. Marruecos…, cit., párrafo 46.
270
Ynceysa Vallisoletana, S.L. vs. El Salvador. Caso No. ARB/03/6, Laudo arbitral de fecha
02/08/2006, párrafos 145, 147 y 263.
268
224
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
5) Finalmente, otro caso importante y de reciente data lo constituye el
asunto Cemex Caracas Investments B.V y Cemex Caracas II Investments, B.V.
v. Venezuela (2010), relativo a la nacionalización de las compañías dedicadas a
la producción de cemento. En este asunto, la calificación del término inversión
en el APPRI entre Venezuela y el Reino de los Países Bajos fue fundamental.
La parte demandada argumentó que las demandantes no eran propietarias
directas de los activos ubicados en Venezuela y, por tanto, no calificaba como
inversión directa contemplada dentro del ámbito de aplicación del referido
convenio bilateral. El Tribunal Arbitral desestimó dicho alegato al señalar:
“…Cuando en el TBI se mencionan las inversiones “de” nacionales
de la otra Parte Contratante, ello significa que esas inversiones deben
pertenecer a dichos nacionales a fin de estar comprendidas en el Tratado.
Pero ello no entraña que dichos nacionales deban tener la propiedad
directa de esas inversiones. Análogamente, cuando en el TBI se menciona
a las inversiones hechas “en” el territorio de una Parte Contratante,
todo lo que exige es que el lugar en que se realice la misma inversión se
encuentre en ese territorio. Ello no entraña que esas inversiones deban
ser hechas “directamente” en dicho territorio”271.
6. CONCLUSIONES
Del análisis de estos asuntos que hemos referido podemos puntualizar
que, en definitiva, la interpretación que hacen los distintos Tribunales Arbitrales
resulta muy amplia. Son calificados como inversión los activos de propietarios
indirectos, como muestra el asunto Cemex. Incluso, si el activo circula en el
mercado internacional, sin entrar al Estado receptor y, a pesar de ello, genera
importantes beneficios para éste último, tal como lo reseña el caso Fedax,
también constituye una inversión.
Tanto el asunto Fedax como el asunto Salini, los Tribunales Arbitrales
identificaron un test para determinar la existencia de una inversión, el cual
comprende no sólo el análisis del tipo de bien tangible o intangible que posea
el inversionista, sino también el riesgo que asume el inversionista, la duración
del proyecto, la contribución tecnológica – física – operacional que se despliega
así como la contribución al Estado receptor, quien la acepta como legalmente
constituida bajo su propia legislación nacional.
Si bien la doctrina ha afirmado la importancia del análisis sobre la
existencia, el contenido y la extinción de un bien, para calificarlo como
Cemex Caracas Investments B.V y Cemex Caracas II Investments, B.V. v. Venezuela, Caso No.
ARB/08/15, Laudo sobre jurisdicción de fecha 30/12/2010, párrafo 157.
271
225
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
propiedad del inversor extranjero de acuerdo al Derecho del Estado anfitrión, la
práctica nos demuestra una serie de soluciones diversas que ponen de manifiesto
la ausencia de una línea argumental unitaria sobre este relevante punto.
Para algunos Tribunales Arbitrales la calificación que debe realizarse de
una propiedad como inversión debe atender primariamente al orden jurídico del
país anfitrión o, al menos, demostrar conexión con éste. Como sucedió en el
caso Fedax, los títulos valores se consideraron propiedad y, por ende, inversión,
no en función del lugar de su ubicación, sino conforme a las implicaciones
económicas y a la contribución que éstos podían realizar al Estado receptor, de
acuerdo a las propias previsiones del Derecho venezolano.
Debemos tener también presente que los Tribunales Arbitrales poseen
un alto grado de discrecionalidad para identificar si la propiedad reclamada
constituye una inversión en sede convencional bilateral. La solución contenida en
cada APPRI orienta al operador jurídico en este estudio, tal como nos demuestra
el asunto Inceysa Vallisoletana. En dicho caso, el APPRI establece claramente
que toda inversión puede recibir su amparo siempre que sea legalmente realizada
en el Estado anfitrión. Sin embargo, en los otros asuntos que mencionamos como
Cemex, los paneles de árbitros interpretaron los APPRIs aplicables en atención
a que ninguno de ellos imponía restricciones para calificar como inversión los
aportes de capital a las compañías, constituidas en el Estado receptor, y con
quienes éste último había celebrado contratos de concesión.
226
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
BIBLIOGRAFÍA
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Washington. Texto disponible en http://icsid.worldbank.org
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Sornarajah, M. The International Law on Foreign Investment. 3º ed. Cambridge
University Press, Cambridge, 2010.
227
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
LA SITUACIÓN LEGISLATIVA ARGENTINA FRENTE A
LOS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE RESOLUCIÓN DE CONFLICTOS
Marta G. Pardini272
1. INTRODUCCIÓN
En ocasión de presentar mi anterior trabajo en UNICURITIBA273, se
realizaron algunas apreciaciones generales sobre la situación del Derecho
societario en Argentina y, fundamentalmente, sobre el estado de conflictividad
por el que atraviesan muchas de las sociedades comerciales que funcionan en
nuestro país, teniendo en consideración las características esenciales de las
mismas, las particularidades que revisten su constitución y estructura, la elección
del tipo social y la conformación personal, entre otros rasgos distintivos.
Se advirtió oportunamente que es mayoritaria en el mercado la actuación
de las sociedades anónimas, de las cuales más del noventa y cinco por ciento
reviste la condición de sociedad cerrada o “de familia”, y un importante
porcentaje –que puede llegar a superar la tres cuartas partes de esa masa de
sociedades- lo constituyen sociedades de dos socios, que cuentan con capital
social mínimo, directorios unipersonales y carecen de sindicatura u órgano de
fiscalización.
Por tanto, no es difícil concluir que estas sociedades representan el mayor
entramado de estructuras que explotan emprendimientos de pequeña, mediana
y en muchos casos también de gran envergadura. Significan indudablemente
una parte esencial de la economía argentina, representan un aporte sustancial al
Producto Bruto Interno y emplean en conjunto una gran cantidad de trabajadores
hasta absorber cifras realmente de importancia274.
Esa relación con la economía nacional es similar en otros países
americanos y europeos, en los cuales la participación de las mismas en las
cifras de sus respectivos PBI oscila entre el 70 y el 99%, por lo que se trata
evidentemente de un fenómeno que debe ser atendido con toda prioridad por
Abogada por la Universidad de Buenos Aires (UBA), Profesora de grado y posgrado,
Universidad de Buenos Aires (UBA), Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales (UCES),
Universidad Argentina de la Empresa (UADE). Senior Executive Program, ESADE Business
School, Barcelona, España. Doctoranda Universidad de Valencia, España. Especialista en
Derecho Societario
273
“Algunas consideraciones sobre el Derecho Societario Argentino”, Revista Jurídica, v.2 n° 29
(2012).
274
Sin contar el aumento que tuvo en los últimos años el empleo público en Argentina, se puede
decir que hasta el año 2008, las empresas a cargo de sociedades anónimas concentraban casi el
70% del empleo útil.
272
228
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
los Estados, dentro de sus políticas públicas y de los programas de gobierno
que atiendan a proteger esa economía, brindando a toda la ciudadanía que
participa de la misma –representada por los socios de las sociedades titulares
de dichas empresas, los trabajadores, los terceros con los que se vinculan
(clientes, proveedores, competidores, etc.), las instituciones bancarias con las
que operan, etc.-, las herramientas necesarias para un desarrollo del sistema
cada vez mejor.
Sin lugar a dudas, el normal funcionamiento de las sociedades
comerciales consideradas una base fundamental del progreso de un país, debe
alcanzarse a través de políticas adecuadas, de legislaciones consistentes y de
una serie de mecanismos aptos para resolver, en su caso, los conflictos que
pueden suscitarse en su seno.
Porque a pesar de que muchas de las controversias provenientes de
las relaciones intrasocietarias obedecen a hechos naturales de la vida de las
personas, como pueden ser el matrimonio, el divorcio o la muerte de un socio,
la incorporación de familiares políticos o herederos de un socio fallecido,
las graves desavenencias entre los integrantes de la sociedad, o tantos otros,
no es menos cierto que hay muchos problemas derivados de deficiencias
legislativas y, en el peor de los casos, de una ausencia absoluta de normas
referidas a determinadas materias.
En virtud de la extensión que podría llevar el análisis de cada uno de
los preceptos que, a nuestro entender, la Ley de Sociedades Comerciales
debiera modificar y/o incorporar a su texto, nos parece importante analizar
cuanto menos, y en una abreviada exposición, cuál es la situación en la que se
encuentra nuestro país respecto a los métodos de resolución de conflictos que
debieran existir paralelamente a la instancia judicial en manos de los órganos
jurisdiccionales estatales275, y qué posibilidades existen de reformar y ampliar
la legislación vigente, especialmente por la ocasión que se presenta frente a
la discusión que se está dando sobre el pretensioso proyecto de modificación
integral del Derecho Privado argentino.
El tema de la resolución de los conflictos a través de los tribunales estatales podría ser motivo
de un trabajo especialmente dedicado a la materia, ya que, justamente en este tiempo, se está
implementando una importante reforma judicial, a través de un conjunto de leyes promovidas
por el Poder Ejecutivo y recientemente tratadas en el Congreso Nacional, mediante las cuales se
altera sustancialmente desde el trámite de designación y remoción de jueces por parte del Consejo
de la Magistratura creado constitucionalmente en la década del ’90, pasando por la modificación
de los procesos judiciales (por la creación de nuevas Cámaras de Casación en distintos fueros) y
llegando hasta la reforma del régimen de medidas cautelares dictadas en procedimientos en los
que el Estado sea parte.
275
229
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
2. LA SITUACIÓN ACTUAL EN EL DERECHO ARGENTINO
2.1 EN MATERIA DE CONFLICTOS SOCIETARIOS, LA LEY 19.550 DE SOCIEDADES
Comerciales que es el texto que específicamente rige la cuestión, solo
se refiere al tema en su artículo 15, en donde se establece que cuando en la
ley se dispone o autoriza la promoción de acción judicial ésta se sustanciará
por procedimiento sumario, salvo que se indique otro, es decir, simplemente
se contempla la posibilidad de acudir a la Justicia para ejercer los derechos
emanados de esta Ley, y, eventualmente, dirimir esos conflictos.
Lo cierto es que recurrir al sistema judicial para intentar resolver las
controversias que afectan a los socios, a los administradores y a la sociedad
comercial –y que, por lo que ya dijimos, tienen indudables efectos frente a
esas partes, frente a terceros en general y, en definitiva, frente a la economía
nacional-, es en la mayoría de los casos una tarea infructuosa.
En efecto, podemos reclamar ante los tribunales estatales cuantos
derechos asigna la Ley 19.550: por ejemplo, se pueden impugnar de nulidad
acuerdos sociales o se puede demandar por remoción y responsabilidad a un
administrador infiel; pero eso no significa que la promoción de esas acciones o
el dictado de una sentencia en cada una de esas causas implique la resolución
del conflicto que separaba a las partes.
Además, el tiempo que insume llegar a una decisión judicial definitiva
generalmente atenta contra la solución buscada; por el contrario, la sucesiva
promoción de acciones judiciales no hace más que potenciar el conflicto.
Mientras una sociedad anónima, por ejemplo, celebra año tras año una
asamblea de accionistas pasible de ser impugnada, cada proceso judicial que se
inicia con esas impugnaciones tiene una duración que puede oscilar entre cinco
y diez años; por lo cual, si no se resuelve a tiempo el problema que originó
el primer juicio, lo único que tendremos es un crecimiento exponencial de
expedientes judiciales en trámite mientras los conflictos entre los socios y la
sociedad continuarán indefectiblemente vigentes.
En la Ley de Sociedades no existe ninguna norma vinculada al modo de
resolver esos conflictos, a pesar de haber existido varios proyectos de reforma
legislativa que buscaron incorporar el tema, sin resultado positivo.
II.2. En el año 1995, debido al alto grado de conflictividad reflejado en la
judicialización de numerosas causas existentes sobre todo en los tribunales de
todos fueros de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, se sancionó la Ley 24.573
de Conciliación y Mediación, cuyo artículo 1° instituyó con carácter obligatorio
la mediación previa a todo juicio, la que se dijo iba a regir por las disposiciones
de esa Ley, estableciéndose un procedimiento que debía promover, según
230
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
rezaba textualmente esa norma, “la comunicación directa entre las partes para
la solución extrajudicial de la controversia”. No obstante algunas excepciones
previstas puntualmente en el artículo 2 de esa Ley, el proceso de mediación
prejudicial obligatoria no se eximió para las acciones derivadas del contrato de
sociedad comercial.
La mediación impuesta obligatoriamente en el ámbito de la Ciudad de
Buenos Aires se mantiene vigente276, y se extendió a otras jurisdicciones del
país. Sin embargo, el instituto no resulta ser una herramienta eficaz a la hora de
resolver esas controversias y puede afirmarse que en la temática societaria no
colaboró para reducir la promoción de acciones judiciales ni mucho menos para
morigerar los conflictos entre las partes.
Podemos realizar algunas críticas y advertir que la forma en que se legisló
la mediación, con carácter obligatorio, va a contramano de uno de los principios
esenciales de los sistemas alternativos de resolución de conflictos o ADRs277, esto es,
la autonomía de la voluntad; también podemos cuestionar la falta de especificidad
de la norma en la materia societaria, la falta de especialidad de los mediadores, o
el hecho que su regulación genérica apartada de la Ley de Sociedades no atiende
concretamente a los problemas provenientes de un contrato de sociedad. Más
allá de eso, reiteramos que, por diferentes motivos, la mediación así prevista no
permitió disminuir ni los conflictos societarios ni la cantidad de juicios iniciados
permanentemente en la sede de los tribunales de comercio.
II.3. Por último, debemos referirnos a la situación argentina en el ámbito
del arbitraje, como otro de los modos alternativos al judicial con que puede
contarse para resolver disputas de esta naturaleza.
Argentina no tiene una Ley de arbitraje; ni a nivel local ni a nivel
internacional. Si bien han existido proyectos legislativos para adoptar la Ley
Modelo (UNCITRAL), los intentos no han prosperado.
A cambio de eso, cada uno de los códigos de procedimientos en materia
civil y comercial de cada una de las jurisdicciones en las que se divide el país,
tiene previsto procesalmente el arbitraje o juicio arbitral.
En la Ciudad de Buenos Aires se aplica el denominado Código Procesal
Civil y Comercial de la Nación, que a partir de su artículo 736 contempla el
arbitraje y establece que “toda cuestión entre partes excepto las mencionadas
en el artículo 737 podrá ser sometida a la decisión de jueces árbitros, antes o
después de deducida en juicio y cualquiera fuere el estado de éste. La sujeción
a juicio arbitral puede ser convenida en el contrato o en un acto posterior”. El
Ahora a través del régimen establecido por la Ley 26.589, modificatoria de la anterior.
Highton, Elena I. y Álvarez, Gladys S., “Mediación para resolver conflictos”, Ed. AdHoc, 3ª
reimpresión, 2008, págs..29 y ss; Caivano, Roque J., “Arbitraje”, Ed. AdHoc, 1ª reimpresión, 2008,
págs. 23 y ss.
276
277
231
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
artículo 774 del Código Procesal Civil y Comercial de la Provincia de Buenos
Aires prevé lo mismo.
La única excepción que la Ley contempla al arbitraje la dispone el
artículo 737 (ídem artículo 775 en la Provincia de Buenos Aires), que dice que
“no podrán comprometerse en árbitros bajo pena de nulidad, las cuestiones que
no pueden ser objeto de transacción”.
En lo demás, toda la normativa relacionada al arbitraje no hace referencia
específica al arbitraje societario.
Por lo analizado hasta aquí, puede concluirse que no existen normas
especiales que contemplen en materia societaria la posibilidad de resolver
conflictos emanados de un contrato de sociedad.
Y esto es así, a pesar de que originariamente, la arbitralidad societaria era
la norma general frente al recurso judicial.
Efectivamente, en su versión original, el Código de Comercio argentino
disponía el sometimiento imperativo de los conflictos societarios al arbitraje278,
atribuyendo las fuentes de estas normas a las Ordenanzas de Bilbao y al Código
de Comercio Español de 1829279. Comentando las normas de nuestra legislación,
el profesor Lisandro Segovia opinaba que el arbitraje era un medio excelente
para terminar las cuestiones con economía de tiempo y dinero, aunque reconocía
que en el ámbito local la figura no funcionó porque los árbitros terminaban
actuando como abogados de parte de quienes los designaban280.
En 1889, el Código fue reformado pero el arbitraje se mantuvo como
modo de dirimir conflictos en el contrato de sociedad. Así lo establecía el
artículo 448 que rezaba que “todas las cuestiones sociales que se suscitaren
entre los socios durante la existencia de la sociedad, su liquidación o partición,
serán decididas por jueces arbitradores, a no ser que se haya estipulado lo
contrario en el contrato de sociedad”281.
Durante la vigencia de estas normas y hasta la sanción de la Ley 19.550,
el arbitraje reunió tanto a seguidores como a detractores282; y también la
Artículos 504, 511 y 512 del texto año 1859.
El artículo 299 establecía que “El régimen de las sociedades mercantiles se ajustará a los pactos
convenidos en la escritura del contrato, y en cuanto por ella no se haya prescripto y determinado a
las disposiciones siguientes”, y artículo 323: “Toda diferencia entre los socios se decidirá por jueces
árbitros, háyase o no estipulado así en el contrato de sociedad”.
280
Citado al igual que Juan B. Siburu por Zavala Rodríguez, C., ob. cit. en nota 136, pág. 559.
281
En cuanto a la figura de los árbitros, el artículo 449 establecía que “las partes interesadas
los nombrarán en el término que se haya prefijado en la escritura, y en su defecto, en el que
señalare el tribunal competente. No haciéndose el nombramiento dentro del término señalado, y
sin necesidad de prórroga alguna, se hará de oficio por el tribunal, en las personas que a su juicio
sean peritas e imparciales para entender en el negocio que se disputa”.
282
Decía Zavala Rodríguez que “el arbitraje es el medio al que recurren los socios creyendo que
278
279
232
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
jurisprudencia se expidió sobre las cuestiones que por entonces podían someterse
a arbitraje. En tal sentido, se dijo que no era procedente el arbitraje que versare
sobre la existencia de la sociedad o sobre la validez del contrato283; ni tampoco
si se demandaba por rescisión el contrato284. Pero el arbitraje se admitió
durante la disolución de la sociedad y según lo autorizado por el artículo 448285,
salvo en los casos en los que la disolución se fundaba en el incumplimiento del
contrato por el socio administrador286, o cuando se tratare del cumplimiento de
la cláusula penal inserta en el convenio final de liquidación287. Y se vedó para
casos de exclusión de socios.
Con la aparición de la sociedad de responsabilidad limitada introducida por la
Ley 11.645, y en atención a que el Código de Comercio contemplaba expresamente
la posibilidad de resolver conflictos societarios a través del arbitraje, fue común
hasta 1972 incorporar a los acuerdos societarios la cláusula de sometimiento arbitral
ad hoc. Sin embargo, los debates surgidos entre las partes sobre designación de
árbitros, constitución de tribunal, procedimientos, desarrollo, período probatorio,
incidencias, plazos y recursos, originaron la intervención de los tribunales
jurisdiccionales por aplicación de la normativa procesal288.
De ese modo, y sumado al hecho de que hasta la década de 1960 –con
excepción del Tribunal Arbitral de Obras Públicas- el arbitraje institucional no
se había instalado en el país, este método fue poco a poco siendo dejado de lado.
Y así se llegó a la Ley 19.550 que reguló a todas las sociedades
comerciales y que, definitivamente, abandonó las normas de los artículos 448
y 449 del Código de Comercio, estableciendo la regla del ya citado artículo
15 que, si bien no prohibió el arbitraje, contribuyó para darlo prácticamente
por descartado.
Paralelamente, la jurisprudencia de los tribunales comerciales comenzó a
declarar con más frecuencia y en forma reiterada como excluidas del arbitraje a
cuestiones como: exclusión de socio en SRL, disolución, liquidación, rendición
de cuentas, conflictos entre socio y sociedad, exhibición de libros, impugnación
de las resoluciones sociales289, etc., llegándose a restringir tanto su utilización
enseguida solucionarán sus problemas, para convencerse luego que es un engranaje más pesado y
más caro aún que el de la justicia”, íd. cita anterior.
283
CNCom., JA, t. 1944-IV, pág. 3; LL, t.32, pág. 644.
284
CNCom., JA, t. 76, pág. 399; JA, t. 1945-III, pág. 274.
285
CNCom., Sala B, JA, t. 1954-I, pág. 402; JA, t. 70, pág. 429; íd., Sala A, JA, t. 1957-II, pág.9,
nº 95 (síntesis de jurisprudencia); JA, t. 1952-I, pág. 283; JA, t. 1956-I, pág. 64, con disidencia de
Isaac Halperín.
286
CNCom., LL, t. 37, pág. 488.
287
CNCom., Sala B, JA, t. 1955-III, pág. 66.
288
Robiolo, Jorge A., “Derecho Arbitral”, Ed. La Ley, Buenos Aires, 2007, pág. 66 y ss.
289
CNCom., Sala D, diciembre 22-1997, “Atorragasti, María Cristina c. Atorragasti, Bargués
233
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
como método alternativo de resolución de cuestiones suscitadas en el seno de
una sociedad, que se estableció casi como una regla que la competencia arbitral
era de excepción290.
Esto motivó, por ende, un sostenido abandono de cláusulas arbitrales
y una adecuación de los contratos sociales a las pautas de la Ley. Con ello,
se perdió también el régimen de autonomía de la voluntad para redactar las
cláusulas contractuales, convirtiéndose el contrato original en una suerte de
formulario tipo291.
Sin embargo, conforme fuera anticipado, a pesar de que la Ley 19.550
no contempla en forma expresa al arbitraje como uno más de los sistemas
existentes para resolver conflictos, tampoco lo prohíbe; y siendo esto así, podría
perfectamente pactarse un convenio arbitral entre los socios o en el mismo
contrato social292.
El arbitraje ha tenido un importante apoyo doctrinario en distintos eventos
académicos desarrollados sobre las sociedades comerciales en Argentina293,
en los que se insistió en el arbitraje institucional como una alternativa
complementaria del servicio de justicia, sin que sea considerado una sustitución
de los tribunales judiciales estatales; en la contemplación de cláusulas arbitrales
en los contratos de sociedad pautadas con total libertad a fin de que el arbitraje
pueda ser aceptado sin restricciones de ningún tipo; y en la recomendación de
que los árbitros sean personas de prestigio y especialistas en la materia.
En el ámbito judicial, la mayoría de las Salas que integran la Cámara
Nacional de Apelaciones en lo Comercial siguen evaluando la competencia
arbitral en materia societaria con criterio restrictivo. Una de las disidencias
más importantes expresó que “en la medida que la ley autoriza a sus sujetos
de derecho a constituir su propio juez, mediante la sujeción a árbitros, y que
el tema del diferendo verse sobre materia patrimonial perteneciente a sujetos
capaces, no se entiende por qué la competencia de la llamada ‘jurisdicción
arbitral’, soporta la minusvalía de ser apreciada restrictivamente”294.
Piazza y Cía. SRL”, ED 181-155 y LL 1999-D, 750.
290
CNCom., Sala E, abril 28-2000, en autos “Nova Pharma Corporation SA c. 3MArgentina SA
y otros s/ordinario”, ED, 194-151.
291
Las Normas de la Inspección General de Justicia vigentes en las décadas de 1980 y 1990,
incluso, contenían en anexos modelos de contratos de sociedad clásicos, que simplemente tenían
que ser completados con los datos específicos de cada sociedad.
292
Rivera, Julio César, “Arbitraje Comercial, Internacional y Doméstico”, Ed. Lexis Nexis, Buenos
Aires, pág. 173.
293
Varias fueron las ponencias presentadas en las sucesivas ediciones del Congreso Argentino
de Derecho Societario y Congreso Iberoamericano de Derecho Societario y de la Empresa,
celebradas en 1992 en Huerta Grande (Córdoba), 1995 en Mar del Plata (Buenos Aires), 2001 en
Rosario (Santa Fe) y 2004 en San Miguel de Tucumán (Tucumán).
294
Voto de Dr. Edgardo Marcelo Alberti, integrante de la Sala D, en autos “Expreso Albión SRL
234
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
En Argentina existen distintas instituciones que cuentan con tribunales de
arbitraje, pero en función de su carácter permanente, puede destacarse el Tribunal
de Arbitraje General de la Bolsa de Comercio de Buenos Aires, creado en 1963.
Debido a la confidencialidad que prima en los procesos arbitrales que
se tramitan ante dicho Tribunal, no existen estadísticas oficiales sobre las
cuestiones sometidas a su consideración, en lo que hace a tipo de causas o partes
intervinientes. Es sabido, empero, que no son numerosas las causas vinculadas
al derecho societario que se arriman al mismo para obtener una solución de
las controversias derivadas de esas relaciones. Puede mencionarse que han
llegado al Tribunal de la Bolsa de Comercio, casos que involucran a sociedades
cotizantes, en virtud de que el Decreto 677/01 del Poder Ejecutivo Nacional
estableció en forma obligatoria el procedimiento arbitral para resolver conflictos
desatados en esos entes295, y ello en la medida que no se ha conformado aún el
tribunal cuya creación dispone esa norma.
De cualquier forma, es ilustrativo el dato respecto a la cantidad de
sociedades que hacen oferta pública de sus acciones en nuestro país, las
que no alcanzan siquiera a un centenar y hacen operaciones diarias que no
pueden compararse con las cifras operadas en mercados internacionales. Si
diferenciamos las sociedades cotizantes del resto de las sociedades que
funcionan en nuestro medio, el porcentaje, como dijimos al comienzo de este
trabajo, es ínfimo. De ahí que la norma antes referida –y a la que también
puede criticársele la obligatoriedad que impone- no resulta relevante para la
c. Mercado de Tedesco, Rosa”, JA, 1977-I, 590.
295
El Decreto 677 publicado el 28 de mayo de 2001 y dictado por el PEN en virtud de la
delegación de facultades efectuada por el Congreso Nacional mediante Ley 25.414, denominado
“Régimen de Transparencia de la Oferta Pública”, dispone en su artículo 38 que “dentro del plazo
de seis (6) meses contados desde la publicación del presente Decreto, las entidades autorreguladas
deberán crear en su ámbito un Tribunal Arbitral permanente al cual quedarán sometidos en
forma obligatoria las entidades cuyas acciones, valores negociables, contratos a término y de
futuros y opciones coticen o se negocien dentro de su ámbito, en sus relaciones con los accionistas
e inversores. Quedan comprendidas en la jurisdicción arbitral todas las acciones derivadas de
la Ley Nº 19.550 y sus modificaciones, incluso las demandas de impugnación de resoluciones
de los órganos sociales y las acciones de responsabilidad contra sus integrantes o contra otros
accionistas, as! como las acciones de nulidad de cláusulas de los estatutos o reglamentos. Del
mismo modo deberán proceder las entidades autorreguladas respecto de los asuntos que
planteen los accionistas e inversores en relación a los agentes que actúen en su ámbito, excepto
en lo referido al poder disciplinario. En todos los casos, los reglamentos deberán dejar a salvo el
derecho de los accionistas e inversores en conflicto con la entidad o con el agente, para optar por
acudir a los tribunales judiciales competentes. En los casos en que la ley establezca la acumulación
de acciones entabladas con idéntica finalidad ante un solo tribunal, la acumulación se efectuará
ante el Tribunal Arbitral. También quedan sometidas a la jurisdicción arbitral establecida en este
artículo las personas que efectúen una oferta pública de adquisición respecto de los destinatarios
de tal adquisición”.
235
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
instauración del arbitraje como uno de los métodos posibles para resolver
controversias en materia societaria.
No obstante no haber llegado a la instancia legislativa, puede señalarse
como antecedente significativo el Anteproyecto de Reforma a la Ley de
Sociedades Comerciales del año 2003 que, en punto a las acciones derivadas
del contrato de sociedad, proponía modificar el artículo 15, transitar un proceso
judicial más abreviado, derogar la instancia de mediación previa obligatoria,
permitir el pacto de cláusulas compromisorias para dirimir conflictos entre
socios y entre éstos y la sociedad, incorporar el arbitraje pericial para determinar
valuaciones de participaciones sociales, cuotas o acciones, y mantener el
arbitraje de sociedades cotizadas ante tribunales permanentes organizados por
dichas entidades. Ese Anteproyecto no tuvo avance legislativo.
Y llegamos entonces al momento actual, en donde existe una nueva
posibilidad para modificar la legislación societaria.
3. EL PROYECTO DE REFORMA DEL CÓDIGO CIVIL.
3.1. EL 23 DE FEBRERO DE 2011, POR MEDIO DEL DECRETO 191/2011, EL
PODER EJECUTIVO DE LA REPÚBLICA ARGENTINA CREÓ LA COMISIÓN PARA LA
ELABORACIÓN DEL PROYECTO DE REFORMA, ACTUALIZACIÓN Y UNIFICACIÓN DE
LOS CÓDIGOS CIVIL Y COMERCIAL DE LA NACIÓN, CON EL OBJETO DE REALIZAR
LAS REFORMAS NECESARIAS AL CÓDIGO CIVIL Y AL CÓDIGO DE COMERCIO Y
PRODUCIR UN TEXTO HOMOGÉNEO EN UN MISMO CUERPO NORMATIVO.
La iniciativa se fundamentó sosteniéndose que el sistema de derecho
privado, en su totalidad, había sido afectado en las últimas décadas por relevantes
transformaciones culturales y modificaciones legislativas, que fueron desde la
reforma constitucional del año 1994 hasta la sanción de otras Leyes dictadas en
distintas materias.
La Comisión Redactora de este Proyecto se había propuesto realizar una
significativa reforma a la Ley 19.550 de Sociedades Comerciales, no tanto por
su extensión sino por su incidencia. En tal sentido, y en lo que a nuestro tema
principal respecta, la Comisión intentó innovar fuertemente en los métodos de
resolución de disputas.
Con un renovado texto, los artículos 15 y 15 bis, ter y quáter a incorporarse
a la Ley 19.550, propiciaban unificar en todo el país el criterio para determinar
el procedimiento aplicable a esas cuestiones, para superar las diferencias entre
los códigos de procedimientos provinciales, introducir el arbitraje optativo para
resolver controversias entre socios y entre los socios y la sociedad, e imponer
como obligatorio el arbitraje en caso de venta de acciones cuando existiera
restricción contractual a su transferencia.296
Vítolo, Daniel Roque, “Las Reformas a la Ley 19.550 de Sociedades Comerciales en el Proyecto
296
236
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
En forma muy similar a la adoptada por el anterior Anteproyecto legislativo
del año 2003, en esta ocasión la Comisión intentaba establecer para las contiendas
societarias que debían decidirse mediante una acción judicial, que la misma se
tramitara por la vía del proceso más abreviado en cada una de las jurisdicciones
respectivas; que no resultara obligatorio el trámite de previos procedimientos
alternativos de solución de conflictos; que se admitiera la inclusión de una cláusula
compromisoria en los actos constitutivos de sociedades, contratos sociales o
estatutos; que se permitiera determinar valuaciones de participaciones sociales,
cuotas o acciones por medio de arbitrajes periciales, y que los árbitros pudieran
disponer medidas cautelares, asegurativas y de intervención –salvo pacto en
contrario-, con la colaboración del juez estatal para el cumplimiento o ejecución
de cualquier resolución arbitral, incluido el laudo final.
Todas esas disposiciones se proponían de manera concreta dentro del
ordenamiento societario297, sin perjuicio de las normas atinentes al contrato de
de Código Civil y Comercial de la Nación, Editorial Ad Hoc, 2012, pág. 21.
297
El Anteproyecto establecía los textos siguientes:
Art. 15 - Procedimiento. Norma general. Si en la ley se dispone o autoriza la promoción de
una acción judicial, ésta se sustanciará por el procedimiento más abreviado compatible con
las características del litigio. El procedimiento debe garantizar la defensa en juicio, amplitud
probatoria y doble instancia. Recibida la demanda, en la primera resolución el juez debe decidir
cuál es el procedimiento. En ningún caso la acción queda sujeta a previos procedimientos
alternativos de solución de conflictos, a menos que estén dispuestos en el acto constitutivo, el
contrato o el estatuto.
Art. 15 bis – Arbitraje. Cláusula compromisoria. El acto constitutivo, contrato social o estatuto
puede incluir una cláusula compromisoria que someta en forma obligatoria los diferendos entre
los socios, o entre éstos y la sociedad o los integrantes de sus órganos sociales, al arbitraje o a la
amigable composición. En este caso se debe especificar:
1)el procedimiento por el cual se regirá el arbitraje;
2)la forma de designación de los árbitros;
3)la designación de una entidad que administre el arbitraje, y la previsión, para el caso que ésta
desaparezca, de las reglas que se aplicarán;
4)la sede o domicilio del arbitraje; en su defecto se considera que es el domicilio de la sociedad;
5)los recursos que puedan interponerse contra el laudo, o los que se renuncien en su caso; si en
el acto constitutivo, contrato o estatuto social no estuviera previsto el procedimiento que regirá
el arbitraje o la entidad que lo administre, deberá sustanciarse ante el Tribunal Arbitral de la
Bolsa de Comercio más próximo a su domicilio; si la cláusula compromisoria fuese ambigua, o no
pudiesen ser designados los árbitros, deberá recurrirse a la vía judicial.
Cláusula compromisoria posterior. Son igualmente válidas las convenciones de arbitraje que
celebren las partes en cualquier diferendo, aunque no se incluya una cláusula compromisoria en
el acto constitutivo, contrato o estatuto social.
Art. 15 ter – Valuaciones. Arbitraje pericial. Salvo que el acto constitutivo, contrato o estatuto
social prevea otras reglas, las controversias a que den lugar las valuaciones de participaciones
sociales, cuotas o acciones se resolverán por árbitros peritos.
En tal caso, quien impugne el precio atribuido por la otra parte deberá expresar el que considere
ajustado a la realidad.
237
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
arbitraje que como un contrato especial el Anteproyecto preveía en el cuerpo
principal del Código, artículos 1649 a 1665.
Lamentablemente, la revisión del Anteproyecto por parte del Poder
Ejecutivo significó la eliminación total de la propuesta en la Ley de Sociedades
Comerciales que se intenta mantener vigente aún frente a la derogación del
Código de Comercio, conservándose solamente la regulación del arbitraje en
el texto unificado del futuro Código; normativa que, como veremos, no es
suficiente para atender los conflictos societarios que pueden ser superados a
través de una solución arbitral.
Así las cosas, de prosperar este nuevo Proyecto de Ley, quedaría inalterado
el ya transcripto artículo 15 de la Ley 19.550. Ya hemos advertido que, no
obstante no estar prohibido, con la redacción de esa norma ya desde el año 1972
la Ley de Sociedades Comerciales dio prácticamente por descartado el arbitraje
como mecanismo para resolver conflictos derivados del contrato de sociedad.
Frente al texto legal vigente y la jurisprudencia restrictiva que caracterizó
prácticamente a todos los tribunales de comercio del país durante muchos años,
la implementación de un procedimiento arbitral por medio de una reforma
legislativa era lo más esperado, y sobre todo teniendo en consideración la
situación existente en muchos países de la región en donde el arbitraje se
encuentra en pleno desarrollo, se ampara en leyes arbitrales especiales y en
prestigiosas instituciones que lo administran.
No se entienden los motivos por los cuales la legislación societaria
argentina sigue siendo renuente a incorporar expresamente al arbitraje como
una de las tantas formas posibles para resolver controversias internas y para
disminuir el grado de conflictividad que, como vimos, afecta a todo el entorno
y puede hacer peligrar la actividad económica de un país.
Pero no estará obligado a pagar uno mayor que el afirmado por la contraparte, ni ésta a cobrar uno
inferior al aseverado por el impugnante. Las costas del procedimiento estarán a cargo de la parte
que pretendió el precio más distante del fijado por la tasación arbitral.
Si no estuviere previsto en el acto constitutivo, contrato o estatuto social el procedimiento aplicable
a la pericia arbitral, deberá sustanciarse ante el Tribunal Arbitral de la Bolsa de Comercio más
próximo a su domicilio.
Art. 15 quáter – Medidas asegurativas y compulsorias. Colaboración judicial. Cuando por aplicación
de esta ley o por convenciones de arbitraje se sometan diferendos al arbitraje, podrán los árbitros
disponer medidas cautelares, asegurativas y de intervención, a menos que se las haya excluido
expresamente en las cláusulas compromisorias. Podrá preverse la exigencia de notificación previa
a la otra parte para ser escuchada antes de adoptar la medida.
Colaboración del juez estatal. De ser necesario para el cumplimiento o ejecución de cualquier
resolución del tribunal arbitral, incluido el laudo final, así como para el de las medidas asegurativas
y compulsorias previstas, o las de ejecución que se hayan dispuesto, los árbitros deben requerir la
intervención del juez estatal y éste deberá prestar el auxilio de la jurisdicción para la más rápida y
eficaz sustanciación del proceso arbitral.
238
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Esto no se condice, además, con la manera en que se ha implementado la
mediación y se la ha incorporado a la legislación local, conforme fuera referido
con anterioridad. Si partimos de la premisa que en los métodos de resolución
de disputas que son alternativos, opcionales o extrajudiciales, el principio de
la autonomía de la voluntad se encuentra siempre presente y significa casi la
garantía excluyente de que el mecanismo funcione mejor, no puede compartirse
en esta materia que la mediación instaurada desde el año 1995 obligue a todo
aquél que intente iniciar cualquier acción judicial derivada del contrato de
sociedad a tramitar previamente y en forma obligatoria un proceso de mediación.
Y que, por otro lado, no se legisle sobre el arbitraje societario.
Debemos pues preguntarnos por qué no brindar a los futuros justiciables
todas las herramientas posibles para poder resolver sus conflictos, mediante
cualquier procedimiento que ellos mismos contemplen en el contrato constitutivo
o en el estatuto de la sociedad, entre los cuales debería admitirse el arbitraje. El
interrogante no encuentra respuesta en nuestro ordenamiento legal.
3.2. ES EN OCASIÓN DE CELEBRAR EL CONTRATO DE SOCIEDAD CUANDO LAS
PARTES SE HALLAN EN LA SITUACIÓN IDEAL PARA PAUTAR NORMAS QUE
APLICARÁN COMO LA LEY MISMA –SEGÚN LO DISPONE EL ARTÍCULO 1197 DEL
CÓDIGO CIVIL-, QUE REGIRÁ SUS RELACIONES HACIA ADELANTE Y QUE SERÁN
APTAS PARA RESOLVER, EN SU CASO, LAS DIFERENCIAS QUE NORMALMENTE
PUEDEN SURGIR A LO LARGO DE LA VIDA DE LA SOCIEDAD. DIFÍCILMENTE
ESAS PAUTAS PUEDAN ADOPTARSE UNA VEZ DESENCADENADO EL CONFLICTO
Y COMO PACTO SOBREVINIENTE.
Considerando que el artículo 11 de la Ley 19.550 establece como
requisito esencial no tipificante para toda sociedad comercial la inclusión de una
cláusula que indique el plazo de duración por el cual la misma se constituye, y
en base a la habitual costumbre argentina de dotar a las sociedades –cualquiera
sea su tipo, cualesquiera sean las características personales de sus socios e
independientemente de la actividad a la que se van a dedicar- de un período
mayoritariamente prolongado y excesivo298, no es difícil advertir que durante
la larga existencia de esa sociedad que probablemente supere la de sus propios
socios, surgirán conflictos de variada intensidad que merecerán ser atendidos so
pena de arrastrar al ente a una escalada que puede incluso llegar a su disolución,
con las nefastas consecuencias que esto puede acarrear para todo el mercado.
Frente a esta innegable y perfectamente comprobable realidad, insistimos
en la necesidad de proveer a los socios y a la propia sociedad de mecanismos
Son innumerables las sociedades que adoptan un contrato tipo o modelo y que consignan un
plazo de duración que llega hasta los 99 años.
298
239
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
útiles y eficaces para enfrentar y superar los problemas provenientes de la
relación societaria.
Sobre todo, para aquellas sociedades comerciales que, se reitera,
explotan empresas pequeñas o familiares, en donde la resolución alternativa
de conflictos se presenta como una opción sumamente valiosa, especialmente
frente al procedimiento judicial, que muchas veces no se encuentra preparado
para entender en disputas que, pudiendo tener una sentencia que otorgue la razón
formal a una de las partes, no extingue el conflicto de fondo que generalmente
posee componentes ajenos al meramente legal.299
Sin embargo, como se dijo, una vez más se ha desaprovechado la
posibilidad de introducir legislativamente el arbitraje como un mecanismo
especialmente previsto en el ordenamiento societario.
III.3. Hemos anticipado que, de avanzar en su tratamiento, el Proyecto
de Código Civil y Comercial de la Nación hasta aquí analizado contempla al
arbitraje como uno de los tantos contratos especiales contenidos en ese texto.
Efectivamente, entre los artículos 1649 y 1665, el Proyecto se dedica
a regular el arbitraje como un contrato, y, a decir de algunos autores,
retrocediendo a una concepción prácticamente tan antigua como el arbitraje
mismo, proponiendo una reforma asistemática y poco científica.300
Excede los límites de este trabajo el análisis sobre la naturaleza del arbitraje,
y la evaluación de las posturas de corte contractualista o procesalista-jurisdiccional
que se desarrollaron en relación a este instituto; pero aún pudiendo decirse que el
arbitraje se trata de un contrato, de un procedimiento o de ambos (naturaleza mixta
contractual y jurisdiccional), lo cierto es que, en la forma en que se ha encarado el
tema en esta reforma legislativa, el arbitraje no es apto para resolver las controversias
derivadas de un determinado contrato de sociedad comercial.
En la medida que no se admita expresamente que el contrato constitutivo
o el estatuto de una sociedad pueden prever el arbitraje como mecanismo para
resolver cualquier controversia suscitada en esa sociedad, entonces el arbitraje
no alcanzará el objetivo que necesitamos para superar el conflicto societario.
Un contrato debe distinguirse de un sistema de solución de conflictos.
Y sin perjuicio que el arbitraje nace generalmente de un convenio voluntario,
es decir, de un acuerdo que puede considerarse un contrato, el modo en que la
reforma legislativa lo introduce en la esfera del derecho contractual no resulta
eficaz para ser utilizado como un mecanismo de resolución de diferencias o
conflictos, al menos en nuestra materia.
Marchesini, Gualtiero Martín, “Arbitraje en las Sociedades Familiares”, Revista de Derecho
Comercial del Consumidor y de la Empresa, Año II, número 4, agosto 2011.
300
Rojas, Jorge A., “El arbitraje como contrato en el Proyecto de Código”, Revista La Ley, 19-112012, LL 2012-F, 1003.
299
240
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
El proyectado artículo 1649 dice que “hay contrato de arbitraje cuando
las partes deciden someter a la decisión de uno o más árbitros todas o algunas
de las controversias que hayan surgido o puedan surgir entre ellas respecto de
una determinada relación jurídica, contractual o no contractual”. Del texto
transcripto puede concluirse que, como lo pensó la Comisión, el arbitraje no es
un contrato en sí mismo, sino que se encuentra supeditado a que una relación
jurídica le de vida o no.301
Pero se entienda el arbitraje como un contrato o como un procedimiento,
lo cierto es que, a los fines que nos interesa, la reforma general que incorpora a
la legislación de fondo el arbitraje –que va a coexistir, además, con las normas
de carácter procesal contenidas en los ordenamientos provinciales respectivos,
a las cuales se les asemeja-, no va a modificar la Ley de Sociedades Comerciales
y, por ende, la discusión sobre si el arbitraje es un mecanismo susceptible o
no de ser utilizado para resolver controversias provenientes del contrato de
sociedad no quedará resuelta.
Efectivamente, los artículos 1652 y 1653 proyectados establecen normas
similares a las contenidas en los códigos procesales locales, y esas disposiciones
no ayudarán a despejar el gran dilema del arbitraje societario.
El primero de esos artículos dispone que “pueden someterse a la decisión
de arbitradores o amigables componedores, las cuestiones que pueden ser
objeto del juicio de árbitros. Si nada se estipula en el convenio arbitral acerca
de si el arbitraje es de derecho o de amigables componedores, o si no se autoriza
expresamente a los árbitros a decidir la controversia según equidad, se debe
entender que es de derecho”.
Y el artículo 1653 expresa que “el contrato de arbitraje es independiente
del contrato con el que se relaciona. La ineficacia de éste no obsta a la validez
del contrato de arbitraje, por lo que los árbitros conservan su competencia, aun
en caso de inexistencia o nulidad de aquél, para determinar los respectivos
derechos de las partes y pronunciarse sobre sus pretensiones y alegaciones”.
Como se ve, la incorporación del arbitraje como contrato especial del
proyectado Código Civil no incluye nada que no regulen actualmente los
códigos procesales de las distintas provincias argentinas.
A pesar de las sentencias judiciales favorables al arbitraje que fueron
dictadas en algunas ocasiones y de las normas que pueden encontrarse a
nivel administrativo como las que recoge la Resolución General N° 7/2005
de la Inspección General de Justicia que tiene a cargo el Registro Público de
Comercio en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, la Ley 19.550 debería
contener expresamente una norma de admisibilidad del arbitraje como uno de
los mecanismos a los que las partes puedan acudir para resolver las controversias
Rojas, Jorge A., íd. nota anterior
301
241
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que los separan en torno al contrato de sociedad. De no ser así, y aunque los
socios lo dispongan expresamente en el contrato social, se seguirá discutiendo
en doctrina y en los tribunales si el arbitraje es un método admisible para
resolver todas las controversias que puedan surgir en una sociedad mercantil.
4. LA SITUACIÓN EN EL DERECHO ESPAÑOL, INTERESANTE FUENTE DE INSPIRACIÓN PARA REGULAR EL ARBITRAJE EN ARGENTINA
Resulta interesante analizar lo sucedido al respecto en España, en donde
se sabe que la jurisprudencia fue aceptando poco a poco la arbitralidad de las
cuestiones societarias, hasta que en el año 1998 la Dirección General de los
Registros y del Notariado admitió sin reparo el pacto arbitral estatutario, por
representar no sólo la voluntad de los fundadores sino además por constituir
una regla orgánica una vez que la cláusula es objeto de publicidad registral,
haciéndose vinculante a todos los que sean socios en cada momento por estar
sometidos a los estatutos como conjunto normativo de origen convencional. Esa
admisión del arbitraje societario motivó un importante cambio en la doctrina
tanto del Tribunal Supremo como de aquella Dirección.302
Un avance notable en ese ámbito supuso también la Ley de Enjuiciamiento
Civil 1/2000 que introdujo cambios importantes en relación al arbitraje,
consolidando la opción favorable también a la materia societaria, todo lo cual la
Ley de Arbitraje 60/2003, de 23 de diciembre, terminó de recoger hasta llegar a
la última reforma introducida recientemente.
La Ley 11/2011, de 20 de mayo, apareció para poner fin a la discusión
doctrinaria referida al arbitraje societario, y en especial a la arbitralidad de la
impugnación de los acuerdos sociales.
La referida Ley introduce así en la Ley 60/2003 dos artículos dedicados
al arbitraje societario, bajo los números 11 bis y 11 ter.
En el primero de ellos, y bajo tres apartados, la Ley les reconoce a las
sociedades de capital la posibilidad de “someter a arbitraje los conflictos que
en ellas se planteen”; además, les permite a las sociedades ya constituidas
introducir en sus estatutos sociales una cláusula de sumisión a arbitraje cuando
lo decidan socios que sean titulares “de al menos dos tercios de los votos
correspondientes a las acciones o a las participaciones en que se divida el capital
social”, y finalmente dispone que “los estatutos sociales podrán establecer
que la impugnación de los acuerdos sociales por los socios o administradores
Por Sentencia de abril 18-1998, el Tribunal Supremo concluyó que “la posibilidad de incluir
una cláusula de convenio arbitral en los estatutos de una sociedad mercantil, los cuales quedan
integrados en el contrato, es indudable, pese a que en los últimos tiempos, ciertas posiciones
doctrinales lo han discutido”.
302
242
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
quede sometida a la decisión de uno o varios árbitros, encomendándose la
administración del arbitraje y la designación de los árbitros a una institución
arbitral”, finalizando de ese modo toda discusión sobre la posibilidad de recurrir
al arbitraje en casos de impugnación de acuerdos sociales.
El artículo 11 ter, por su parte, prevé la inscripción en el Registro Mercantil
del laudo que declare la nulidad de un acuerdo inscribible, agregando que, en
caso de encontrarse registrado el acuerdo impugnado, el laudo a inscribirse
deberá determinar la cancelación de aquella inscripción y la de los asientos
posteriores que resulten contradictorios con ella.
En definitiva, fue la propia Ley de Arbitraje la que introdujo la solución a
las discusiones inherentes al tema, apartándose de una modificación específica
en la propia Ley de Sociedades.
5. A MODO DE CONCLUSIÓN
La comparación que forzosamente debemos realizar con la situación
argentina nos permite arribar a las siguientes conclusiones: en primer lugar,
al carecer nuestro país de una Ley especial en materia de arbitraje nos parece
inviable una solución como la alcanzada en España. Recuérdese que las normas
que regulan el arbitraje están contenidas en los ordenamientos procesales locales
y se refieren al instituto como un recurso procedimental; por tanto, siendo
actualmente lejana la posibilidad de acceder a una Ley General de Arbitraje,
creemos que la mejor opción para dar una solución más o menos inmediata
a la problemática societaria es incluir el arbitraje en la Ley de Sociedades
Comerciales, como una vía alternativa disponible para las partes mediante la
cual puedan intentar resolver los conflictos que se pudieren plantear en el seno
de una sociedad.
Y esa posibilidad es la que existe hoy de cara a la reforma legislativa que
se pretende llevar adelante en materia de Derecho Privado.
Pero la pretendida unificación del Código Civil y el Código de Comercio
vigentes, y la incorporación a ese texto de un contrato de arbitraje, no parece ser
la solución apropiada. Por el contrario, si el Proyecto de reforma alcanza también
a la Ley de Sociedades Comerciales que seguirá vigente con las modificaciones
pertinentes, entonces debe ser allí donde se incorpore el arbitraje, de la manera
en que lo tenía previsto la Comisión redactora en el texto de los artículos 15 y
siguientes ya referidos.
La eliminación de esas normas en el Proyecto que recibirá tratamiento
legislativo constituye una equivocación que no hará más que prolongar la
discusión sobre el arbitraje societario, perdiéndose nuevamente una buena
chance de legislar específicamente sobre una temática que merece ser atendida,
243
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
en beneficio de la sociedad, de sus socios, de sus administradores y de todos
aquellos que mantienen vínculos con un ente que, frente al conflicto, puede
correr riegos tales que hasta pongan en peligro su subsistencia.
Los tribunales de comercio tienen un elevado número de expedientes
vinculados a conflictos societarios, y las sentencias dictadas en esas causas
difícilmente impliquen la finalización del litigio. La demora en la tramitación
de los procesos atenta contra la búsqueda de una solución sustentable.
Mientras tanto, en tribunales arbitrales institucionales se pueden encontrar
espacios más adecuados para debatir esos asuntos e intentar resolverlos, en la
medida que la cantidad de procedimientos tramitados en los mismos es mucho
menor, y resulta un ámbito propicio para atender la cuestión de manera más
efectiva, intentando incluso en forma paralela instancias negociadoras o de
autocomposición que se complementen con el procedimiento arbitral y siempre
en pos de resolver esas controversias.
Por tanto, sería de esperar que vuelva a darse una oportunidad al arbitraje
y que en el debate legislativo se atiendan las opiniones de quienes siguen
viendo en ese instituto un mecanismo más para intentar resolver los conflictos
societarios.
244
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
CIDADANIA E ASPECTOS CRÍTICOS DO PROCESSO PENAL:
OPINIO DELICTI MIDIÁTICA E SUA REPERCUSSÃO ÀS AVESSAS
NO PROCESSO PENAL
Leandro Araújo Garcia303
Marco Aurélio Nogueira304
Mário Ângelo de Oliveira Junior305
INTRODUÇÃO
O presente estudo busca a visão crítica da atividade desempenhada
pela mídia no Brasil, desde seu contorno histórico midiático (características
e discursos dominantes) até o influente papel na formação da opinião pública,
especialmente no que diz respeito ao direito e processo penal brasileiro.
De certa forma, atem-se à preocupação em identificar a força em que a
publicidade dos atos processuais ocasiona nas partes diretamente envolvidas na
demanda judicial, bem como nos terceiros que a acompanham. É dizer, transporá
ao estudo da efetiva transparência do processo penal e o não retrocesso da injustiça.
A rigor, necessário se faz, acima de tudo, separar conceitos cognatos
– como ocorre com a “publicidade processual” e a “publicidade social” –
observados nos discursos dominantes da mídia, em que a todo o instante são
encenados para a população com uma carga publicitária voltada ao interesse
de determinada parcela de indivíduos (grupos sociais definidos), em concreto
acordo de interesse político e, quiçá, econômico.
O tema refere-se ao estudo crítico do papel realizado pela mídia no Brasil
e os seus meios de comunicação de massa que ao desempenhar o discurso
midiático, tratam abusivamente do direito criminal o que, por sua vez, acabam
que violando princípios inerentes ao direito penal e, de viés, da Constituição
Federal. Por mais, agenciam a formação de políticas criminais que desobedecem
ao Estado Democrático de Direito, transmutando para um Estado Punitivo,
porquanto atentam diretamente ao princípio da intervenção penal mínima.
A preocupação, por decorrência do aumento da atividade jornalística de
cunho investigativa, absorve a relevância, pois a notícia penal, ou processual
penal, passou a fazer parte do dia a dia do discurso da mídia e, por conseguinte
da cumplicidade social. Inverte-se o papel da legitimação punitiva, ao passo que
o Estado não intervém com mesma liberdade, senão pela clarividente pressão
Advogado. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhaguera/SP.
Doutor em Direito. Professor do CMDIP-FADIR-UFU.
305
Pós-graduado em Direito da Administração Pública e Mestrando em Direito Público pela
Universidade Federal de Uberlândia.
303
304
245
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
da mídia, baseada pela invasão persuasiva e formadora da opinião pública
“manipulada”.
Impende que, a divulgação da notícia criminal nem sempre motiva o
Estado à prestação da justiça punitiva – e entenda justiça punitiva como sendo a
prestação célere da Justiça, bem como a completude do sistema penal, para que
assim não vague por impunidades –, mas de outro norte, a publicação de tais
informações causa prejuízos às partes e a terceiros envolvidos (por exemplo,
suas famílias). Num Estado Democrático de Direito, isso assola as raízes
constitucionais que se pautam por salvaguardar a intimidade dos cidadãos, bem
como presumi-los inocentes.
Constata-se que a mídia embasa a tutela do patrimônio do indivíduo antes
do que a dignidade humana, tendo em vista que considera o Estado Punitivo
ao Estado Democrático de Direito, criminalizando a pobreza e recorrendo
à repressão penal seletiva e esteriotipada. Reflete-se estar discursando
politicamente e voltada a interesses que não o público, mas o de classes
dominantes que buscam por controlar a atividade punitiva estatal, invertendo
completamente os papéis do Estado e governados. O caráter liberal de informar
da mídia, não pode discorrer em desrespeito ao sistema jurídico organizado e
protegido pela Constituição Federal.
Acrescente-se que o Estado Democrático de Direito é uma conquista do
homem como modo de sobreviver no mundo capitalista que se baseava numa
predominância desigual do setor privado, discrepando a distinção social e criando
as diversas classes periféricas. A democracia como conjuntura do ordenamento
jurídico é a proteção às consequências do liberalismo estatal. Mas não é este o
papel que vem desempenhando a mídia, senão um retrocesso ao Estado Liberal;
neste liame, a mídia enraíza o sistema penal como controle da propriedade
(patrimônio), refletindo ideologia legislativa para feitura das normas penais.
Na verdade existem outros meios de controle social que não somente o
sistema penal. Todavia, a mídia não utiliza desde raciocínio, ao passo que utiliza
da encenação sensacionalista e preconceituosa para dilacerar os problemas
criminais. Acredita que o sistema penal seja o meio mais eficaz, e por isso,
utiliza-o olvidando de valores constitucionais e baseando numa política criminal
criada para manipular a massa social.
A atividade midiática versa diretamente no controle social pautado
numa lógica penal esteriotipada, ou seja, controle da classe dos socialmente
“estranhos”, que a própria mídia os designa e os exclui. Influi-se pelos meios de
comunicação capazes de reconstruir os fatos e, montando uma notícia diversa
da fidedigna, ou mesmo retorcida da realidade, implicitamente manifeste
o interesse da classe dominante e influencie a opinião pública acerca de
determinada matéria.
246
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Como resultado desta atividade midiática penal, a valoração do principio
da liberdade de expressão se acresce frente aos mais variados outros princípios
resguardados pela Constituição. Assim, se funda numa norma capaz de pôr
abaixo qualquer outro valor do ordenamento, implicando, por sua vez, numa
total desproporcionalidade de análise sistêmica e inviabilizando a justiça social,
objetivo da República Federativa do Brasil.
1. A PUBLICIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1998
A princípio, dois conceitos são relevantes e devem, de pronto, serem
distinguidos: a publicidade processual e a publicidade social. Não é ilusório dizer
que um dos maiores marcos conquistados pelo Estado Democrático de Direito foi
a publicidade dos atos, em repúdio ao sigilo que várias vezes acobertava condutas
desregradas e, de certo, causadoras de afrontas aos direitos humanos.
Por initio, após a Revolução Francesa e em razão da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, a publicidade detinha de mera “politiquez”.
Valia-se do argumento político, independente de julgamento parcial ou corrupto,
mas que acima de tudo não fosse secreto; antes, em face do público.
O segredo serviu como injustiça e falta de defesa; na época da Inquisição,
por exemplo, o processo penal detinha de segredo absoluto. Contudo, as execuções
eram apreciadas pela multidão que, sem saber do que defluiu do processo para
que chegasse à execução (que à época era execução pessoal), se esbaldavam com
os espetáculos em praça pública (forca, guilhotina, dentre outros).
A publicidade, entretanto, adveio para assegurar os direitos do cidadão,
e mais, para humanizar o processo, vez que possibilita aos indivíduos a sua
participação nos atos jurídicos, portanto, na defesa de seus direitos e interesses.
Desse modo, a publicidade surgiu para render resultados positivos, e clarear a
sombra que o segredo fazia da Justiça.
O princípio da publicidade vige no Brasil desde 1818, em contraposição
ao anterior sistema lusitano, fundado no princípio do segredo. Na Carta
Constitucional de 1988, observamos uma série de dispositivos que consagram a
garantia da publicidade dos atos processuais
Com esse propósito, o ordenamento pátrio brasileiro, garantiu a
publicidade, com normatividade constitucional (artigos 5°, LX e 93, IX),
garantindo-a e, ao mesmo tempo, delimitando-a – com espeque à proteção da
intimidade da pessoa, valor fundamentalmente arraigado pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
Conforme preleciona Daniel Mitidiero que a publicidade é uma das
características do devido processo legal brasileiro, constituindo um dos pilares
constitucionais de nosso formalismo processual (MITIDIERO, 2005, p. 50)
247
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
1.2 PUBLICIDADE COMO FENÔMENO INTERNO
A fim de controlar o exercício do poder, o processo devido é,
necessariamente, exceto em algumas ocasiões, um processo público. No Brasil,
os julgamentos são públicos. É um direito fundamental que possui duas funções:
interna e externa.
A garantia da publicidade como fenômeno interno decorre da própria
natureza dialética do processo. Com efeito, impõe-se a necessidade de que
os atos judiciais se realizem através da obediência ao contraditório, que só se
viabilizará mediante a devida divulgação aos participantes do procedimento
enfrentado. Cuida-se, aqui, do que a doutrina denomina comumente de
publicidade interna, destinada a propiciar o respeito à legalidade e à lisura dos
procedimentos adotados pelo Estado na resolução dos litígios.
Costuma-se classificar a publicidade interna em imediata e mediata,
relacionando-se a primeira com a presença e o contato direto com os atos
processuais, enquanto que a publicidade interna mediata seria verificada através
da divulgação de tais atos pelos meios de comunicação (publicação na imprensa
oficial, por exemplo).
Segundo Roberto Ferreira a publicidade interna imediata é facilmente
observada nos casos de oralidade do processo, enquanto que a manifestação
escrita consolidaria a forma mediata (ALMADA, 2006, p.127). De qualquer
modo, o objetivo da publicidade interna não enseja maiores dúvidas: evitar
qualquer mitigação da garantia ao acesso relativo aos atos praticados no
processo.
1.3 PUBLICIDADE COMO FENÔMENO EXTERNO
No entanto, a publicidade não se limita aos interesses dos envolvidos no
litígio. Conforme já dito, trata-se de uma garantia ao efetivo exercício do poder
de Estado.
A concepção moderna de Estado adota a premissa fundamental de que
ao povo seja claramente demonstrado que todos os julgamentos e atos tomados
pelo Poder Judiciário são realizados de forma democrática e legítima. A
publicidade de tais atos, consequentemente, se revela como o imprescindível
instrumento assecuratório da legitimidade e da própria validade da jurisdição.
Do contrário, a estrutura social de qualquer nação restaria comprometida, visto
que os cidadãos perderiam facilmente a confiança em um Estado exercente de
um poder praticado a portas fechadas.
Neste sentido, bem observa Sérgio Gilberto ao referir que a ordem social é
o fim primeiro da ordem jurídica e garantia constitucional de hierarquia máxima
248
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
e acima de qualquer outra regra, haja vista que representa a sobrevivência da
sociedade juridicamente organizada (PORTO, 2003, p. 30).
A publicidade externa é manifestada, portanto, através da ampla divulgação
à coletividade dos atos e julgamentos oriundos do Poder Judiciário. Cumpre
registrar que a divulgação dos atos possui também outro papel na consolidação
do Estado moderno: além de legitimá-lo, a publicidade contribui para a constante
revitalização do Judiciário e do Estado. Com efeito, a efetividade de um sistema
jurídico depende de sua sustentação perante os cidadãos jurisdicionados, o que
é somente possível através da divulgação transparente dos atos praticados pelos
três Poderes – Executivo, Judiciário e Legislativo.
Nesta esteira, preleciona Habernas, o direito não é bastante apenas de
per si, sendo necessário acoplar aos fundamentos normativos de validade
- legitimidade presumida do processo legislativo sufragado pela soberania
popular - os elementos concretos da vida social, tal como se apresentam nas
expectativas populares cotidianas. Ora, em relação à publicidade dos atos
processuais inexiste qualquer dúvida acerca da influência do cidadão na correção
e no equilíbrio do Sistema Judiciário (HABERMAS, 1997, p. 138-139).
Em regra, o acesso aos autos dos processos, a audiências, sessões de
julgamentos e demais atos processuais é público, sendo ilegal qualquer
restrição imposta ao seu acompanhamento (dentro, obviamente, do critério
da razoabilidade). Abre-se exceção apenas àqueles casos em que a defesa da
intimidade ou o interesse social ou público aconselharem a adoção de uma
publicidade restrita (art. 792, § 1º, do CPP). Ainda nos casos de atos processuais
que corram em sigilo, entretanto, não existe vedação total. O grau máximo de
restrição à publicidade compreende o processo ao qual tenham acesso, além do
juiz, apenas as partes e seus procuradores. Estes em hipótese alguma podem
ficar alijados dos atos processuais
2. OPINIO DELICTI: APESCTOS GERAIS
A persecução penal desenvolve-se em duas fases: uma administrativa
(inquérito policial) e outra jurisdicional (ação penal). O inquérito policial
é uma peça escrita, preparatória da ação penal, de natureza inquisitiva - não
lhe aplicado os princípios da atividade jurisdicional. Quem o preside é o
delegado de polícia que desenvolve atividade administrativa. Sua finalidade é a
investigação sobre a existência de fato criminoso e sua autoria (justa causa para
a ação penal), atendendo a dois objetivos: a) - dar elementos para a formação
da opinio delicti do órgão acusador (convicção do promotor ou do querelante);
b) - dar embasamento fático para que a ação penal tenha justa causa (decisão do
juiz recebendo a acusação). 249
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Portanto, a opinio delicti é a convicção do órgão acusador de que existe
justa causa para o início da ação penal. Uma vez formada a opinio delicti, o órgão
acusador apresenta a denúncia, materializando a opinio delicti, a apresentação
da denúncia ou da queixa ao juiz encerra a fase administrativa da persecução
penal, iniciando-se a fase jurisdicional. A Constituição Federal, art. 129, inc.
I, estabeleceu que é função institucional do Ministério Público promover,
privativamente, a ação penal pública. Logo, se no inquérito policial o fato
investigado foi classificado, pelo delegado, como crime de ação penal pública,
o órgão acusador para a formação da opinio delicti é o Ministério Público.
Na persecução penal, existe um momento no qual ocorre, pelo órgão
acusador e somente por ele, a formação da opinio delicti, isto é, com base nos
elementos apurados no inquérito, o promotor, convencido da existência de justa
causa para a ação penal, oferece a denúncia, encerrando a fase administrativa da
persecução penal (BONFIM, 2012, p. 185). Neste contexto, importante destacar
a influência exercida pela mídia na formação do que denominamos no texto em
tela de opinio delicit midiática.
3. A MÁ INFLUÊNCIA DA MÍDIA PENAL
Impende que por mais que a publicidade buscasse como instrumento de
combate às injustiças, a relação globalizada e crescente entre o discurso da mídia
e o sistema jurídico, especificadamente o direito penal, merece certa posição de
estudo minucioso. Ademais, “não basta que se faça justiça: é preciso que se
veja que está sendo feita justiça” (MOREIRA, 1992, p. 73). A publicidade dos
atos processuais se transmutou para a também publicidade a toda sociedade,
trazendo desconforto jurídico e, desse modo, prejuízos à realização da Justiça
(CARNELUTTI, 1955).
A reflexão se vale pela atuação da imprensa e a veemência com que
expõe e acusa o delito para a sociedade. Ora, não raras vezes, infelizmente,
acontecem crimes bárbaros que chocam todo o país e, nesse momento, que mais
se apercebe como a mídia penal exerce seu poder, isto é, o repórter que cobre
determinada matéria de cunho penal atua como se promotor de acusação fosse,
dando a entender que “todo repórter é Ministério Público” (SILVA, 1984, p.66).
O discurso midiático não se apregoa da inocência, mas sim da acusação.
É por isso, que a partir da notícia de certo ato ilícito praticado por determinado
indivíduo, a mídia lança prejulgamentos que, de mais a mais, influenciam o
pensamento social que se vê com preconceitos (no sentido de preconceituar
uma situação suposta) e discriminações. É, portanto, a mídia, a força contrária
à Justiça; os olhos da sociedade não se atentam à Justiça, mas à imprensa, de
modo que o papel da imprensa se confunde com o papel do próprio juiz.
250
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Vê-se a frente de um choque de princípios, ou melhor, de normaprincípio, que de relevância constitucional, se tornam essenciais para a difusão
da problemática proposta por este estudo. A liberdade de imprensa é valor
constitucional que tem por prerrogativa a não censura. Entretanto, não se trata
de liberdade absoluta o que, neste enfoque abordado, colide com a presunção
de inocência e intimidade.
Por se dizer um discurso elusivo e massificado, a liberdade de imprensa
– por vias da mídia – acaba que, na maioria das vezes, por mitigar ou eliminar
as demais normas-princípio (presunção de inocência e intimidade), o que, à luz
da hermenêutica, não é método eficiente e justo. Contudo, a mídia vale-se de
uma predominância social e com isso, expondo seus ideais e invadindo a vida
privada sem limitações.
Não longe de exemplificar, é notório nas redes de televisão o total
acompanhamento de ações e diligências (por exemplo, de mandado de prisão)
do órgão do Ministério Público. Contudo, a veracidade da noticia veiculada para
população nem sempre pode ter certeza se realmente corresponde à realidade;
pasmem, é difícil saber se a investigação é da policia ou do Ministério Público
ou se da própria televisão que está presente em todos os atos (é possível prever
que a própria noticia gerou a investigação).
O papel da lei é desmantelado e perde a razão de ser (a lei tem o dever de
frear os anseios da população que busca a justiça das próprias razões). Todavia,
é assim que o movimento é utilizado pela imprensa que trabalha impondo
pressão à Justiça e popularizando os casos criminais (das barbáries às simples
contravenções penais). De certo modo, faz a lei, mais uma vez, se ver frente
ao abismo da pressão midiática, deixando de funcionar, tornando-se capaz de
decepcionar o anseio popular – que a cada dia se desencanta pela realização da
Justiça – e contagiado por suas paixões formula – ou na maioria das vezes é
levado a formular – suas próprias convicções sobre o que é justo.
Incansavelmente remonta à análise do significado do discurso midiático
que tem, fortemente, não somente influenciado a atividade do legislador ordinário
– principalmente em matéria penal – mas, observando de forma ríspida, abica, por
conseguinte, na destituição dos direitos humanos deixando de reconhecê-los, não
se importando, ao menos, com direitos e garantias do cidadão.
Não delongando a tamanha problemática, basta por condescender à
conclusão de Nilo Batista em que “[...] uma especial vinculação entre a mídia e
o sistema penal constitui, por si mesma, importante característica dos sistemas
penais do capitalismo tardio” (BATISTA, 2003, p. 251). Ora, é fundamental o
estudo que resvala à forma em que os meios de comunicação em massa têm
cooperado para a deterioração dos direitos humanos legitimados e, por sua vez,
construindo a intervenção punitiva do Estado.
251
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Veja bem, o discurso midiático pautado na sua força social – ou pelo menos
naquilo em que acredita ser o pensamento ideal para a sociedade – controla –
mesmo que, e quase sempre, de forma manipulada – opiniões da sociedade,
ao passo que acaba por se garantir como o mecanismo da manutenção social,
assim, projetando a criação de medidas anormais e repassando ao indivíduo que
o Estado possui função da violência punitiva.
Com a influência do crescimento globalizado, o conhecimento e a
informação, através da mídia, têm chegado e sido repassado com presteza de
serviço, aproximando, numa visão sociológica, a comunicação entre os povos.
Desse modo, a transmissão deste conhecimento e dessa informação, são, senão,
os grandes transformadores da sociedade (KUMAR, 1997).
Destarte, a importância dada ao conhecimento enraizada nos meios
de comunicação verifica como mola propulsora da ampliação quantitativa –
embora pouco qualitativa – da informação, tornando-se fator expressivo para o
crescimento e formação de opinião social.
Ademais, é mais que mera propagação de informação – que aos montes
acabam que por não se penetrarem com a real intenção – antes, consagra o próprio
modo de vida social, concretizando, nos dizeres de Kumar na “moeda do poder”.
Moeda esta valiosa, ao ponto de valer mais que os próprios direitos das pessoas.
Tornar-se-ia mais irônico indagar sobre o valor da informação do modo
com que ela é produzida, por exemplo, na televisão, mas notório é o fato – e
este sim o objeto desse estudo – de que o monopólio da informação incumbe à
mídia. Não só à televisão, que por sua vez é papel importante nessa “jogada”
midiática, mas também os diversos meios de aproximação e indexação de
pensamentos que a internet proporciona.
Não obstante às diversas posições a respeito da sociedade de informação,
frisa-se aqui, considerar, apenas, as alterações referentes ao âmbito jurídico.
Portanto, direciona a visão aos efeitos que o discurso midiático estabelece e
vincula o capitalismo capaz de influir e favorecer aos interesses ideológicos e
político-econômicos próprios, formando e convocando “seguidores” de suas
informações.
A comunicação de massa tecnicamente não é a real comunicação –
em que se tem o emissor, o receptor e a mensagem em debates contínuos e,
porquanto bilaterais. A comunicação de massa a que se refere neste estudo
impede a resposta ou debate do receptor; é unilateral, capaz de conceder ao
público a sua versão, transmitindo-a como verdade absoluta. Por mais que se
vislumbre a benesse da sociedade de informação, no fundo, não se pode deixar
de ressaltar a insegurança que ela nos traz. O excessivo rompimento dos fatos e
o grande volume de informação (manipulada) têm gerado, afinal, uma sociedade
de desinformação (CARVALHO, 2009).
252
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Acrescente-se, num ponto de vista filosófico, que o homem na sociedade
midiática torna-se participante ativo, porém com conhecimento passivo, entrementes,
de maneira dolosa que o discurso midiático difunde no seu modo pensar.
Neste introito, relembrando o valor despendido à “moeda do poder” que,
por si só, refere à informação, do ponto de vista, agora jurídico, nada melhor
que suplantar o seu controle. Tendo em vista seu papel social, não pode ficar
à mercê; a manutenção da ordem social é legitima das pessoas e o dominador
transpassa sua vontade para que os dominados (grande maioria da sociedade)
cumpram como vontade própria – e o dominador não deve ser a mídia.
O monopólio midiático e sua influência no imaginário social – isto é,
aquele que age na prática e no fazer da sociedade, considerado como sentido
organizador do comportamento humano e das relações sociais – só exerce se
reconhecido pela sociedade (CASTORIADIS, 1982).
É aqui que se atracam os poderes da mídia, vez que a produção de
seus efeitos é real, porquanto o dominador (discurso midiático) sobressai aos
dominados (sociedade). O grupo dominador detentor do capital econômico,
idealizado governamentalmente, utiliza estratégias de forma que consolidam a
sua dominação.
Valendo-se deste pensamento e não recaindo em tautologias, no campo
penal os meios de comunicação de massa são fundamentais para a produção da
realidade distorcida, ou seja, a indignação moral e a produção de características
do delinquente.
É por esse modo explanado a fácil constatação e vislumbre existencial
da influência da mídia – através de seu discurso dominante – capaz de impor
a dominação e dissipar a desinformação definido a sociedade, inclusive o
pensamento social, de acordo com interesses que lhe parecem, egoisticamente,
verdadeiros e próprios.
O discurso da mídia não é somente a sua ideologia em buscar dominar;
é, contudo, o corpo explicativo prático que prescreve, normatiza e regula
assegurando à sociedade a explicação – que a seu modo de enxergar é racional
– das diferenças sociais.
No âmbito jurídico, sobretudo penal, o discurso da mídia é punitivo.
Através dos meios de comunicação, a sociedade é bombardeada com
noticias sobre fatos suficientemente atraentes para que desvie a atenção dos
telespectadores e, desse modo, acortine os problemas econômicos do país. É
neste enfoque que os torneios desportivos e os crimes cometidos com crueldade,
têm sido alardeados pela mídia para envolver os receptores em sua discussão e
distraí-los das questões mais relevantes.
Assim, sem acesso às informações que lhe garantam uma “visão de
mundo”, a população tem somente a percepção deformada da realidade,
253
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
passada pela classe dominante, conduzindo a comportar dentro das próprias
balizas impostas.
A ideologia presente no discurso midiático passa a ser, portanto, a função
(o mecanismo) de vedar os olhos da sociedade para a realidade, de forma a
ludibriar as pessoas, fazendo com que acreditem estarem sendo informadas da
verdade. Mas, na real, estão sendo manipuladas com a ocultação.
Por esse óbvio, os meios de comunicação criam a realidade disfarçada,
moldando a sociedade, manipulando a conscientização das pessoas de acordo
com o interesse impregnado. Veja bem, é como afirmar que a mídia possui a
técnica e a matéria-prima para fabricar o produto final (entendendo este como o
pensamento da sociedade).
É denotar, portanto, que o discurso midiático dominante não encontra
barreiras que o impeça de adentrar nas diversas residências, em suma, nos
diversos modos de pensar e agir da população. Desse modo, no que toca ao direito
penal, a criminalidade é difundida como aspecto dilacerado de idéias negativas,
tais quais em que “o criminoso é um ser que na sociedade não deve viver”,
“deve-se haver pena de morte”, “as penas devem ser maiores”, “o cumprimento
da pena deve ser só fechado”, que “deve criar novas leis mais severas”, enfim,
argumentos que ao invés de buscarem um caráter ressocializador reportam-se
ao seu exímio social (a vingança).
Ora, a Constituição Federal de 1988, instituindo o modo de pensar e viver
do Estado Democrático de Direito, prioriza os direitos da dignidade da pessoa
humana que foram conquistados através de lutas políticas e sociais, construindo
a sociedade atual. O discurso dominante sai do Estado Democrático de Direito
e se aproxima do Estado Policial de Direito; assim, o discurso midiático institui
o punitivismo construindo o ideal de que a criminalização, ou seja, a repressão
social é a melhor solução para acabar com os conflitos sociais – principalmente
com a figura do indivíduo delituoso.
Os temas criminais abordados pela mídia impõe a sua própria opinio
delicti, de maneira manipulada pelos seus meios de inserção social – hodierno,
muito comum na figura de apresentadores sensacionalistas que agradam ao
público pelo jeito atípico de conduzir o programa jornalístico, i.é, sem tamanhas
formalidades e textos pré-produzidos. Assim, os programas apresentam aos
telespectadores as ideias de forma como o discurso dominante imponha – e às
vezes com cunho forjado pela vontade político-econômica – sem ao menos se
preocupar com a real verdade do fato.
Apresenta, contudo seu interesse e modo de ver e pensar, cabendo aos
atípicos jornalistas transformarem a notícia num verdadeiro teatro de horrores,
de modo que utilizam de expressões e gírias falaciais para conquistar o público,
porquanto, repassarem o ideal de que a segurança social advirá quando o
254
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Estado resolver por punir severamente (e “severamente” no seu maior linguajar
jornalístico sensacionalista se refere à “pena de morte”) os, na maioria das
vezes, suspeitos de um crime.
Pode se dizer que o poder da palavra se transfere para o poder de persuasão
social que o apresentador faz da noticia, se valendo de encenações e opiniões
pífias, sem insurgência de, no mínimo, respaldo legal. Reportam a ideias
gerais voltadas ao modo de raciocinar da sociedade, i.é, dão ao telespectador a
insegurança e dúvida, vale dizer, o cidadão sem maior discernimento da questão
se deixa levar pela opinião imaculada do discurso, principalmente, quando a
mídia, covardemente, o coloca como “personagem da peça” ao questionar “o
que deve ele fazer”, “aonde ele vai parar” e etc.
Destarte, os domínios do discurso midiático provocam a dependência
do indivíduo, principalmente porque este não detêm do conhecimento técnico
e, nesse sentido, a mídia o aproveita para fazê-lo pensar como ela quer. Nesta
esteira, é fácil concluir que a própria mídia constrói a opinião pública, a partir
do momento em que seleciona os assuntos, transmite sua opinião e a finaliza,
divulgando a reação da sociedade sobre a matéria que ela mesma determinou o
modo de pensar (VIEIRA, 2003).
Assim, resta límpido enfatizar que a noticia manipulada transforma a
opinião pública na própria opinião publicada, de maneira passivamente que
assume como verdadeiro aquilo que é divulgado. Logo, os meios de comunicação
fogem da sua essência – informar – e adentram no âmbito mais interessante e
lucrativo que é formar opinião, de forma que conseguem manipular a massa
social a pensar e agir conforme a força dominadora os queira.
Foge-se da imparcialidade e torna-se o discurso e a influência da mídia uma
comunicação unilateral capaz de produzir na “informação” a verdade inexorável,
mesmo que seja, mentira. Entrementes, a imparcialidade e a veracidade que
por detrás do real significado da expressão “comunicação” acaba que por ficar
esfumaçado pela “realidade” proclamada nos discursos midiáticos.
Não é difícil perceber que a mídia insere sua percepção – que nem
sempre é o correspondente à verdade fática – criando a realidade. Não se
transmite fato (acontecimento do mundo empírico), mas sim notícia (que nada
mais é do que produto do fato, todavia, com carga de interesses próprios).
Contudo, a relevância dos fatos não importa sendo necessário que a notícia
garanta valorização exacerbada, substituindo o interesse público, pelo interesse
publicado. Ora, o que vale é a corrida pela maior audiência (custe o que custar!).
Não caindo ao absurdo de ver a perda da audiência pelo mero transparecer
do verdadeiro fato, a mídia além de impor sua percepção sobre o crime deixa
de pontuar questões esclarecedoras e relevantes do fenômeno, trocando assim a
verdade técnica pelo espetáculo do discurso encenado e propenso a altos índices
255
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
de audiência. Na verdade pensam que o interesse do telespectador não está em
como o procedimento criminal deva acontecer, mas sim a “diversão” está em
punir o agente delituoso.
Não é a toa que a política se volta para os meios de comunicação para
atuarem e decidirem; o medo à represália social atinge o modo de agir da própria
representação política e desse modo o Estado se vê diante de uma trincheira em
guerra, vez que não pode se preocupar em solucionar nos seus verdadeiros e
legais modos, devendo mesmo, causar uma impressão do que se faz ou fora
feito (ZAFFARONI, 1997).
A visão dada no discurso midiático é de Estado Punitivo, que a todo
o momento está em guerra; torna-se a mídia a droga mais dependente da
sociedade, causando um colapso público, informando nocivamente e mais,
geradora da destruição do pensamento e senso crítico – inclusive, reflexivo – do
cidadão social.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por mais que a conquista dos atos processuais restou, com grande efeito,
na realização da justiça limpa, justa e ética, com mesma força, entretanto,
a influência da mídia, em especial no sistema penal, trouxe uma tormenta à
Justiça, tendo em vista as várias discussões principiológicas envolvidas na
relação direito-mídia.
A utilização do apelo emocional do discurso midiático – confirmado pelo
sucesso propagandístico – vincula os próprios interesses a notícia veiculada,
bastando para despertar o alvoroço social. Correlato, o apelo emocional clama
por uma responsabilização que se vincula à esperança de só assim os problemas
sociais estarem resolvidos.
Num contexto populista, a solução da responsabilização corresponde à
manipulação da sociedade (papel este que cabe à mídia). E de maneira simplória,
o debate midiático dota de uma valoração política capaz de manipular o bom
senso crítico da sociedade formando o senso comum. O discurso opõe o ruim do
bom, o certo do errado, o cidadão do criminoso, todavia, valorando aquilo que
o interesse da classe dominante deseja com que a sociedade pense e reflita. Já
trabalha no próprio discurso midiático a conclusão da reflexão proposta. Assim,
atribui a responsabilização ao Estado tornando-o punitivista e prometendo que
assim traria o sentimento de segurança à sociedade.
A política criminal estrutura, portanto, na manipulação da sociedade de
massa. Desse modo, o homem se volta à primeira opção de segurança proposta,
aparentando ser a única existente e eficiente. Essa é a verdadeira função do
populismo generalizado e manipulado pelo discurso midiático dominante –
256
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
político – de maneira bastante a responsabilizar o Estado a dar-lhe a solução
do problema, sob a perspectiva de que é o que a sociedade toda deseja (senso
comum).
Nesse ensejo, outra conclusão não justifica a encerrar o presente raciocínio
senão a de que a opinio delicti midiática exerce o papel dilacerador ao senso
crítico pessoal, formando, exclusivamente, uma opinião geral e incrédula, de
modo a exercer, na massa social, uma influência capaz de pautar os ditames a
serem seguidos e, na maioria das vezes, completamente às avessas do verdadeiro
procedimento a ser seguido e respeitado pelo processo penal.
257
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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de la seguridad nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais.
São Paulo: IBCCrim/RT, n. 20, 1997.
259
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
OS PROGRAMAS BRASILEIROS DE DISTRIBUIÇÃO DE RENDA COMO
MECANISMO DE GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DA CIDADANIA
Jean Carlos Barcelos Martins306
Cícero José Alves Soares Neto307
Alexandre Walmott Borges*
1. INTRODUÇÃO
Os direitos fundamentais compreendem um ideal expresso nas normas
de existência de obrigações, direitos e proibições para cada indivíduo. O texto
constitucional tipifica a realização de mecanismos e políticas para efetivação
desses direitos, devendo ser incorporados ao dia-dia dos cidadãos. A plena
realização de garantias relativas às liberdades, os direitos individuais e sociais é
o preceito da justiça social e dos valores da dignidade humana.
Sob este prisma os esforços do Estado de Bem-Estar Social na criação
das condições necessárias de ações capacitadoras para o mínimo de igualdade
entre os homens. A eficácia dos direitos sociais está diretamente relacionada às
ações estatais assumidas no compromisso da promoção prestacional por meio
de um desempenho positivo.
A constituição editou como direitos sociais básicos a educação, a saúde,
o trabalho, a alimentação, a previdência e a assistência social, sendo a partir
desses direitos é que deve partir a atuação estatal para melhoria das condições
básicas de vida.
A inserção da complementação monetária passa então a representar
uma verdadeira luta de combate ao que impossibilita o mínimo existencial da
maior parte da população brasileira, que seria a fome e a miséria, em seu ciclo
reprodutivo, prejudicial à sobrevivência familiar, a saúde e educação dos filhos.
Assim, segue-se breve estudo sobre os programas de transferência
de renda no histórico nacional, como uma medida de desenvolvimento para
possibilitar o ingresso da população carente no mercado do consumo e da
superação de situações de risco.
2. O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL (WELFARE STATE): CARACTERIZAÇÃO E A
REESTRUTURAÇÃO NO CONTEXTO DAS CRISES GLOBAIS.
As primeiras décadas do século XX foram marcadas por uma série de
acontecimentos nefastos ao desenvolvimento e sobrevivência da humanidade. A
Professor da FADIR-UFU. Mestre em Direito.
Doutor em Sociologia. Professor do mestrado em Direito da UFU.
*
Doutor e Mestre em Direito pela UFSC. Atualmente é professor do programa de pós graduação, mestrado e especialização, e da graduação em direito da Universidade Federal de
Uberlândia UFU. É diretor de pós-graduação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
Pró-Reitoria de pesquisa e de pós-graduação
306
307
260
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
primeira grande guerra nos idos de 1914-1919, a crise de 1929 e, posteriormente,
o desenrolar da segunda guerra mundial entre 1939 e 1945, fizeram surgir a
necessidade da adoção pelos governos mundiais de políticas sociais capazes de
possibilitar aos cidadãos um efetivo bem estar comum.
As políticas sociais administrativas, nesta primeira metade do século,
firmaram-se no sentido da promoção do desenvolvimento econômico e combate
a pobreza e o desemprego. Particularmente, foram implementadas ações que
priorizavam direitos ligados à distribuição de serviços sociais, principalmente,
relativos ao seguro desemprego, saúde, educação, aposentadoria, apoio aos
idosos, crianças e distribuição de renda. (SPICKER, 2008, p. 79)
O termo “welfare” (bem estar), ainda nos dizeres de Paul Spicker (2008,
p. 83) traz consigo ambiguidades, podendo ser utilizado: a) bem-estar, para se
referir ao bem-comum coletivo da sociedade, relativo à boa gerência econômica,
boa utilização de recursos em prol dos cidadãos em seus direitos de ter; b)
bem-estar, referente à concretização de serviços destinados à proteção popular
em condições específicas, como crianças, idosos e doentes; e c) bem-estar, no
sentido de assistência financeira à população carente.
Neste sentido, observa-se a preocupação humanitária das garantias
e direitos do homem, em realce ao da dignidade da pessoa, que deve se
desenvolver a partir da centralização da problemática a cerca daqueles mais
necessitados, combinando atividades de solidariedade ligadas ao setor público e
privado. Confirmando, por conseguinte, os ideais de uma sociedade democrática
de direitos.
Têm-se, então, nos dizeres de Carlos Roberto Siqueira Castro (2010, p.
256), que:
[...] os velhos embates entre os princípios da liberdade e da igualdade,
que a seu tempo empolgaram a filosofia política e estiveram na crista da
onda das revoluções liberais e socialistas da era moderna, extremando
o Estado burguês de Direito e o Estado material de Direito, tornandose correligionários no discurso pluralista e social-democrático da
pós-modernidade, onde as energias dos homens e das instituições
emprenham-se, não mais no sentido das alternativas reducionistas que
privilegiam um desses postulados fundamentais da organização social
e política em detrimento do outro, mas sim em prol de mais liberdade
e de mais igualdade. A bem dizer, a dialética histórica entre os valores
da liberdade e da igualdade acabou banalizada nas ambiguidades do
vigorante protótipo de Estado social de direito, que, sem desviar-se
do leito liberal, abriu-se ao encontro das águas turbulentas do conflito
social. Foi, sem dúvida, na pureza indisfarçável do registro da História,
261
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
com o propósito de preservar o compromisso ideológico com o modelo
de produção capitalista que o Estado Liberal transmudou-se em Social,
ensejando o intervencionismo publicista como guinada estratégica para
salvaguardar o ideário e as fontes de acumulação burguesas.
Mundialmente os ideais públicos sociais podem ser exemplificados pelas
políticas administrativas do “Welfare State”, adotada pelos Estados Unidos da
América, ou por programas de equivalência europeia baseados na terminologia da
“Proteção Social”. Ambos se diferenciam no aspecto da tipificação do beneficiário
em questão e de como deveriam agir os governantes, variando, conforme avaliam
Paul Spicker (2008, p. 91) e Richard Titmus (1974, p. 234), no provimento das
necessidades da população através do provimento Estatal daquilo que não conseguiam
por si só (welfare residual); no provimento baseado na solidariedade de ações entre
Estado e sociedade (solidariedade social); no atendimento não apenas à população
carente, mas a todos que procurassem pelos serviços ofertados pelo Estado, formando
um verdadeiro sistema institucional do bem-estar social; e por fim, na ajuda à força
trabalhadora como mecanismo regulador e articulador da economia.
Cabe aqui apontarmos as considerações do referido autor e professor da
Universidade Britânica Robert Gordon, comentando que os diversos tipos de
Estado do Bem-Estar Social podem agir em miscelânea de ações, benefícios e
serviços à população, sendo, ao mesmo tempo, institucional e residual.
Para Spicker (2008, p. 93) os benefícios universais e serviços são os
benefícios disponíveis para todos como um direito, ou, pelo menos, categorias
inteiras de pessoas diferenciadas, como os idosos ou crianças. Em contra ponto
os benefícios seletivos e serviços são reservados para pessoas em necessidade.
Tais argumentos referem-se às mesmas questões que o bem-estar institucional
e residual, mas há uma diferença marcante que não pode ser esquecida: bemestar institucional e residual são princípios, ao passo que a universalidade e
seletividade são métodos. Um sistema residual pode usar um serviço universal
se for o caso, por exemplo, de cuidados de saúde associado com a saúde pública
universal, e um sistema institucional precisa de alguns benefícios seletivos para
garantir que as necessidades sejam atendidas.
O mesmo autor complementa suas análises, reforçando que os serviços
universais podem alcançar a todos nos mesmos termos. Este é o argumento
para os serviços públicos realizados nos anos de 1940, como estradas e esgotos
e posteriormente estendidos aos serviços de educação e saúde (SPICKER,
2008, p. 93). A principal objeção defendida pelo Poder Público, relaciona-se
ao custo dos serviços universais. A seletividade, entretanto, é muitas vezes
apresentada como sendo mais eficiente, já que, menos dinheiro é gasto e
apresentando um melhor resultado.
262
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Porém, há problemas com serviços seletivos, porque os beneficiários têm
que ser identificados, o que motivaria uma demanda executória administrativa
complexa e cara para ser cumprida, e, muitas vezes há problemas causados pela
​​
tentativa de incluir algumas pessoas, porém excluindo outras.
Apesar desses modelos serem utilizados quando se trata de formular
conceitos diferenciadores, sua aplicação prática restringe-se apenas aos estudos
acadêmicos, já que a dicotomia institucional/residual não pode ser tida como
oposicionista, como foi demonstrado alhures. O que realmente deve ser notado é
a extensão da responsabilidade pública na manutenção do bem-estar social, não
conseguindo determinar bases estratégicas para o alcance da intervenção estatal.
Numa melhor tentativa de descrever os modelos de welfare, EspingAndersen (1990, p. 4), propôs uma conceituação para os regimes do Estado
do Bem-Estar Social, evitando a equivocada equiparação entre aquele e as
políticas de melhoria das condições sociais. Seu enfoque preconiza as variáveis
e os critérios da desmercantilização, ou seja, a possibilidade dos indivíduos
particulares e principalmente as famílias, terem uma sobrevivência digna e
aceitável, mesmo não participando diretamente no mercado. Atrelado temse, também, o condicionante da estratificação social, que acentua uma nova
institucionalização capaz de corrigir as desigualdades, fundada na valorização
das relações sociais.
Para Esping-Andersen (1990, p. 26-29), os Welfare States deveriam
formar três tipos de regimes, descrevendo papéis atribuídos à junção de ações
do Estado, mercado e da família. Sendo eles, o Regime liberal, regime no qual
predomina o emprego de benefícios proporcionados mediante a comprovação
da carência, sendo as transferências universais modestas. A assistência pública
é mantida em um nível mínimo, a fim de não se constituir desestímulo à
participação do indivíduo no mercado de trabalho. O Estado incentiva o
mercado a prover o bem-estar, seja pelo fato de garantir apenas uma pequena
provisão pública direta, ou por subsidiar mecanismos privados de bem-estar
e de proteção social. Dos países que se agrupam neste arquétipo podem ser
citados os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália.
No Regime “conservador” ou “coorporativista” o mercado não é visto
como o único responsável pela provisão de bem-estar e dos direitos sociais,
permanecendo o papel integralizador estadista na distribuição exclusiva dos
benefícios. A concessão de direitos, portanto, manteve uma continuidade de
classe e de status. Historicamente, tinha uma forte influência da Igreja, mantendo
o seu compromisso de preservação dos valores tradicionais da família. Esta
devia ter precedência sobre o Estado na provisão de bem-estar, que deveria
priorizar outros serviços. Os países da Europa continental como Alemanha,
França, Itália e Áustria, seguiram esse modelo.
263
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Como último regime de Estado de Bem-Estar, Esping-Anderson, pontua
o Regime “social-democrata”, que reconhece o papel necessário de reformas
sociais nos países, evitando o dualismo entre mercado e Estado, e também
entre os trabalhadores, representantes da classe operária, e a classe média,
estabelecendo um padrão maior de igualdade de benefícios e serviços sociais.
Neste regime há uma disponibilidade de serviços de alta qualidade, atrelada
à concessão de benefícios generosos, possibilitando uma integral participação
dos grupos sociais carentes aos direitos usufruídos pelos de melhor situação.
O autor resume o ideal da social-democracia na seguinte frase: “todos
se beneficiam; todos são dependentes e todos supostamente se sentirão no
dever de contribuir” (1990, p. 28). O objetivo é incentivar a capacidade de
independência dos cidadãos e não favorecer sua ligação com o mercado ou com
a família. O pleno-emprego é o fator condicionante para sustentar os elevados
níveis de benefícios e serviços, mantendo assim um total equilíbrio. Dentre
os países onde estas características são destacadas encontram-se a Suécia, a
Dinamarca e a Noruega.
Nos anos de 1970 o Estado de Bem-Estar Social evidenciou enormes
mudanças sociopolíticas e econômicas, em razão das transformações globais
baseadas na substituição da responsabilidade daquele como produtor de bens
e serviços e da necessidade de diminuir o dispêndio de recursos públicos para
financiar as políticas sociais, tendo em vista, principalmente, o choque do
petróleo e a menor arrecadação econômica, levaram a um novo tipo de Estado
e de sociedade pautado na forte valorização do trabalho e do emprego e na
distribuição da riqueza através de políticas públicas intervencionistas.
O antigo Estado do Bem-Estar Social torna-se, em síntese, obsoleto e
incapaz de resolver os problemas que essa nova ordem econômica globalizada
fez surgir. Neste aspecto, François Merrien (In: DELGADO; PORTO. 2009,
p. 119) comenta que economistas e especialistas internacionais propuseram
políticas monetaristas de combate a inflação, a diminuição da pressão fiscal e
dos encargos sociais, flexibilizando o mercado de trabalho, com recomendações
no sentido da privatização de estatais, reforma das prestações sociais e da
associação de entes públicos e privados.
O professor de políticas sociais comparadas da Universidade de Bergen,
Noruega, Stein Kuhnle (In: DELGADO; PORTO. 2009, p. 88) analisa que com
o advindo da globalização econômica, a partir do final de 1980, vários países
desenvolveram regimes de Estados de Bem-Estar Social que reagissem aos
diferentes desafios vivenciados pela sociedade. Ressalta que se destacam os países
de economia tipicamente aberta, como os Escandinavos, nos quais o setor público
é grande, a tributação é elevada, mas as políticas sociais encontram-se entre as mais
amplas do mundo, considerando as necessidades cobertas e a população abrangida.
264
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Kuhnle comenta ainda que os EUA, Reino Unido e Hong-Kong, adotam
regimes diversos, com diferentes graus de abertura econômica, focando-se
nas limitações das finalidades das políticas sociais, o que tem levado a uma
divergência sobre quais as melhores políticas a serem seguidas. Já o aspecto
econômico de cada nação deve ser somado às diferenças culturais e sociais.
Já para Maurizio Ferrera (2007, p. 131), professor da Faculdade de
Ciências Políticas da Universidade de Milão, a grande problemática vivida
por todos os governos reside no saber em disciplinar a política orçamentária,
monetária e fiscal, no contexto internacional, e continuar com o financiamento
dos direitos sociais para minimizar os efeitos da crise, em especial, no combate
ao desemprego, pobreza e exclusão social.
No mesmo momento em que os recursos diminuíram de maneira drástica
e que não é mais possível recorrer ao déficit orçamentário, os Estados de
Bem-Estar Social são obrigados a financiar maciçamente as medidas de
adaptação, a ajudar as reconversões industriais, a favorecer a formação
profissional e a reciclagem dos trabalhadores, a assegurar uma renda
mínima aos menos favorecidos. (2007, p. 131)
Desta forma, com o enfrentamento de dificuldades de manutenção
do Estado provedor do bem coletivo, forma-se a ideia de uma sociedade
providencia, com responsabilidade de participar diretamente na produção de
bens e serviços para satisfação das necessidades básicas e propiciar a proteção
de redes de relações de reconhecimento mútuo no âmbito da sociedade.
A crise do Welfare State, não ocorreu apenas nos países centrais, mas
também nos países periféricos como o Brasil, que atrelado aos problemas
internos do militarismo e à transição democrática, vivenciou nas décadas de
70 e 80, enormes problemas relativos ao endividamento econômico, uma má
distribuição de renda e o considerável aumento da inflação que impossibilitava
a manutenção de políticas capazes de sanar a problemática. Não seria outra a
consequência, senão o aumento da pobreza, do número de desempregados e dos
serviços públicos em geral. (BEHRING e BOSCHETTI. 2006, p. 167)
3. O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO BRASIL: DO CLIENTELISMO AOS
PROGRAMAS DE RENDA MÍNIMA
No Brasil, a proteção social pode ser, primeiramente, evidenciada a
partir das décadas de 1920, 1930 e 1940 com ações governamentais de políticas
públicas de legislação em favor dos trabalhadores, com a criação do fundo de
aposentadoria e pensões pela Lei Eloy Chaves e pelos regulamentos populistas
da era Vargas, culminando em 1943 na Consolidação das Leis do Trabalho,
265
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
nacionalizando medidas restritivas à duração da jornada do trabalho, à segurança
e medicina do trabalho, ao trabalho do menor e a adoção do salário mínimo.
Em 1942, ainda no governo de Getulio Vargas é criada a Legião Brasileira
de Assistência – LBA, a primeira instituição assistencialista nacional, a cargo da
primeira dama do Estado, com a finalidade de promover ações emergenciais às
famílias dos soldados pracinhas e posteriormente estendido à população carente, em
especial, idosos e crianças, através da distribuição de alimentos, roupas e remédios.
Contudo, embora houvesse ocorrido um avanço no campo das questões
sociais estas ainda se restringiam a direitos apenas aos trabalhadores urbanos
formais, ficando excluídos aqueles em atividades informais ou aos trabalhadores
do campo, que compunham a maioria da população brasileira.
Apenas nas décadas de 60 e 70 os trabalhadores rurais passam a ter direitos
sociais, com a edição do Estatuto do Trabalhador Rural (1963), posteriormente
revogada pela Lei do Trabalhador Rural, Lei 5.889 de 1974 e a criação do Fundo
de Assistência Rural (FUNRURAL) em 1971.
Neste mesmo período houve a unificação dos sistemas de previdência
social em 1966 com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)
para os trabalhadores da iniciativa privada, a criação do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), de contribuição compulsória dos empregadores, com
dupla finalidade: (i) de garantir em caso de dispensa imotivado do trabalhador
uma indenização pelo tempo de serviço prestado; e (ii) fomentar recursos para
utilização pelo governo federal de políticas habitacionais, em parceria com o
Banco Nacional de Habitação (BNH) também criado naquele mesmo ano.
Longe de se constituir um sistema universalista de políticas públicas, Annova
Carneiro (2010, p. 68) salienta que até os anos de 1970, verificou-se no Brasil uma
centralização e concentração de ações exclusivas do governo federal, que formulava
e implementava uma tendência ao clientelismo e favorecimento de uma classe.
Demonstrado, claramente pelos beneficiários das políticas sociais, qual sejam, os
trabalhadores, contribuintes obrigatórios, seja de contribuições sociais, seja de imposto
sobre a renda, ou pela participação do patronato no fomento de recursos ao Estado.
As ações públicas são caracterizadas por Marcelo Medeiros (2001, p.
12) como uma relação fundamentada entre Estado e trabalhadores, objetivando
unicamente o patrimonialismo, a coopção e o corporativismo. Assim, a proteção
social seria moldada num esquema que atenderia a classe operária pelo sistema
de previdência social.
Ainda nesse sentido, conclui Medeiros (2001, p. 13), que
De acordo com Malloy (1979, p. 17), o sistema da previdência social
reforçou, por um lado, o padrão geral do poder do Executivo federal e,
266
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
por outro lado, para a transformação do Estado em um Estado patrimonial
moderno. [...] Ao favorecer o fenômeno do corporativismo, a estrutura
de seguridade criada teve o papel de minar a possibilidade de a classe
trabalhadora organizar um movimento de oposição autônomo ao regime
capitalista regulado pelo Estado. A previdência social contribuiu para
a criação de divisões na classe trabalhadora e incentivou entre os
trabalhadores uma mentalidade particularista e essencialmente dependente
do clientelismo do Estado. [...] Como a institucionalização do Welfare
State no Brasil teve como meta a regulação da força de trabalho em uma
indústria de dimensões limitadas, apenas os grupos pertencentes ao núcleo
capitalista da economia fizeram parte do compromisso. A base da exclusão
dos demais grupos é a satisfação da demanda por força de trabalho
(mercadoria do sistema). À medida que a indústria se expande e demanda
maior volume de trabalho, aumenta a inclusão de grupos sociais na história
do Welfare State brasileiro, independentemente do regime político [...].
Durante o governo da ditadura militar, o modelo para o desenvolvimento
e o crescimento do país necessitava de um maior acumulo de renda, e
consequentemente, uma menor distribuição de verbas em gastos sociais. O
que se segue então é a repressão aos movimentos populacionais de cobrança,
gerando uma maior concentração de renda, e a adoção de políticas de natureza
meramente assistencialistas, de combate às doenças de massa, à melhoria da
educação. (MARTINE, 1989, p. 169)
Para Carneiro (2010, p. 68) a melhor ideia sobre o modelo de
Estado de Bem-Estar Social no Brasil, até a promulgação da Constituição de
1988 é de que houve uma verdadeira incompatibilidade entre as políticas de
assistência e os reais direitos fundamentais sociais da população, posto que,
as práticas clientelistas, sem qualquer forma de sistematização e o seu foco
minimalista em apenas uma parcela dos cidadãos, não deixa dúvidas sobre sua
total característica de ação restrita de bem-estar social.
Com fim da ditadura militar e a estruturação do governo da “Nova
República”, baseada no slogan do “tudo pelo social”, questões sociais colocadas
em pauta, principalmente no combate a pobreza, passam a ter prioridade,
além de programas de distribuição de alimentos e cestas básicas (Programa
de Abastecimento Popular - PAP e Programa de Distribuição Emergencial de
Alimentos – PRODEA), merenda escolar (Programa Nacional de Alimentação
Escolar – PNAE), e leite para crianças por meio de entrega de vales e cupons
(Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes – PNLCC).
Contudo, a instabilidade financeira e os seguidos planos econômicos dos
anos 1985-1990, levaram ao interromper ou minimização dessas políticas logo
267
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
após sua criação. Neste cenário, é fortalecida a retomada dos movimentos da
sociedade civil brasileira, principalmente com a autonomia dos sindicatos e os
novos partidos políticos, ambos de fundamentação social e protecionista dos
valores da dignidade humana e do trabalho, cujos avanços
obtidos no texto constitucional refletiram as demandas dos movimentos
oriundas da sociedade civil, a saber, no plano social, o avanço dos
direitos das mulheres, das crianças, dos índios e a inclusão do conceito
de Seguridade Social, compreendendo direitos à saúde, à previdência
e à assistência social. Além disso, foram introduzidos, instrumentos
de democracia direta como o plebiscito, referendo e iniciativa popular,
abrindo-se a possibilidade [...] de estabelecimento de mecanismos de
democracia participativa. [...] Por conseguinte, a retomada do Estado
democrático brasileiro de direito na década de 1980 teve como aspecto que
merece destaque a consagração na Constituição dos direitos sociais como
parte da demanda do novo movimento operário e popular. A assistência
social, através da demanda destes movimentos, incluído os trabalhadores
desta área, tinha como proposta a instituição de uma política pública,
com via democrática e universalizante, compondo o tripé da seguridade
social. (SILVA. 2010, p. 94/95)
A Constituição Federal de 1934, introduziu no país a política do
Bem Estar Social, ainda que de forma insipiente, estabeleceu no campo dos
direitos política uma reforma estrutural a assecuratória desse direito, com
a implementação do voto secreto e o voto feminino. Foi criada a Justiça do
Trabalho com fixação máxima da jornada diária de trabalho em 8 horas, do
repouso semanal remunerado, das férias remuneradas.
Posteriormente a Era Vargas, o novo Estado Democrático promulga o
texto de 1946, que manteve os antigos direitos fundamentais da carta de 34, mais
assegurando o direito de greve e de livre associação sindical. Condições essas que
se mantiveram quase inalteradas durante o regime militar de 1964 a 1985.
Mas foi a Carta Constitucional de 1988, que realizou a ampliação e
tipificação dos direitos sociais revitalizam a necessidade de mecanismos de
garantia da dignidade humana pautada no direito à saúde, à alimentação, ao
trabalho, à assistência e à previdência social, responsabilizando o Estado pelo
amparo à população de baixa renda e o fortalecimento da família.
Ressurge, nesse contexto, o papel primordial da família como entidade
centralizadora do enfoque da reestruturação social baseada na solidariedade e
no provimento pluralístico do bem-estar, providos parte pelo Estado e por uma
intrigada rede familiar, com um objetivo comum de minimizar os problemas
268
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
relacionados à pobreza, à racionalização de gastos e ao próprio desenvolvimento
das nações.
Sob este aspecto a família, e em especial a mulher, tem uma maior
participação na vida cotidiana dos cidadãos, posto que, já naquele período, o
mercado de trabalho apresenta uma significativa parcela do sexo feminino de
forma ativa, retirando-a do âmbito do domicílio, modificando e gerando conflitos
que abalam a existência da tradicional entidade familiar, já que a mulher agora
não mais queria se responsabilizar pela sobrevencia material do grupo (marido,
filhos, idosos) e abdicar do seu espaço no campo laboral.
[...] a definição da família, como centro de atenção das políticas sociais
brasileiras, também é preconizada, em decorrência da minimização do
Estado, baseada na racionalização de ações e restrições, inclusive para a
área social, o que repercute diretamente na implementação das políticas
sociais. Entendo, portanto, que a família passa a ser considerada instância
detentora de funções que ultrapassam as funções básicas de cuidado e
proteção de seus membros, depositando nestas responsabilidades que, na
maioria das vezes, são de competência do Estado e que por esse motivo
deveriam ser por ele assumidas. (CARNEIRO. 2010, p.58)
Assim, quando ocorre o afastamento do Estado para realização de
compromissos importantes na manutenção do bem-estar dos cidadãos, já que
a unidade pública institucional também se encontra no foco da crise socialeconômica, a família é chamada para assumir funções, que deveriam ser
desempenhadas por aquele, mas que se encontram improvidas ou insuficientes.
Para Simonato (2005, p. 184), a tendência cada vez maior de diminuição
de gastos públicos, e a forma minimalista de intervenção estatal, apenas naquilo
que não pode ser suprido pela entidade familiar, nada mais é que a afirmação
do modelo Mix do Estado do Bem-Estar, cuja finalidade se baseia no princípio
da subsidiariedade e na participação mútua dos sujeitos públicos e privados
para o mercado privado social e enfrentamento da pobreza e diminuição da
desigualdade e exclusão.
A transferência de responsabilidade dos compromissos estatais com a
proteção social para a família traz consigo a necessidade de reestruturação desta
tão antiga instituição social, agora que precisa preencher as lacunas deixadas na
proteção das crianças, adolescentes, idosos, deficientes e outros indivíduos a ela
vinculados, levando-se em consideração que a participação do Estado somente
se daria onde aquela não conseguisse alcançar.
Neste aspecto Dalva Gueiros (2002, p. 171) relata que o contexto de
subsidiariedade traçado pela junção de responsabilidades da Família e do
269
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Estado, minimiza cada vez mais a perspectiva protecionista do segundo e
sobrecarrega, por vez, a primeira que também enfrenta um cenário critico em
virtude das suas condições socioeconômicas miseráveis.
Pereira (1988, p. 65) defende que esses fatos tiveram suma importância
na proteção social, já que o Estado, até então clientelista, deve distorcer do seu
caráter eminentemente contratual e contributivo, da previdência, para abarcar
uma universalidade de benefícios e assistência não apenas aos trabalhadores
segurados, e sim à totalidade da população pobre, mesmo que os que não se
enquadram como segurados contribuintes.
A erradicação da pobreza no Brasil começa a ser debatida como forma
de estabelecer uma garantia de crescimento econômico e bem-estar coletivo,
sendo necessária uma gradual intervenção estatal no sentido de proporcionar
um nível de subsistência digna à população carente. A assistência social deveria
então ser um direito de todos e não exclusivamente da classe trabalhadora. A
complementação monetária das famílias pobres, independentemente de uma
contribuição prévia, foi vinculada como mecanismo de redistribuição de renda.
4. OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NO CENÁRIO NACIONAL:
AS AÇÕES DE PROTEÇÃO ÀS FAMÍLIAS POBRES, FILHOS E IDOSOS.
A partir do novo paradigma da proteção às famílias pobres, e da atenção
especial às crianças e idosos, a assistência passa a ser vista como uma normativa
governamental que promoveria a prestação social e diminuiria as tensões
sociais, com o reconhecimento da questão social como uma verdadeira política,
em especial a de racionalização e reforma da Seguridade Social, que encontrase em fase de expansão, mas incapaz de alcançar os segmentos da população
que deveriam ser o foco das referidas políticas. (MARTINS, 2004, p. 82)
O artigo 203 da Constituição Federal de 1988, prescreve que a
assistência social é direito de quem dela necessitar, e deve ser prestado pelo
Estado, independentemente de qualquer tipo de contribuição, com objetivo de
zelar pela proteção do grupo familiar (pais, filhos e idosos), a integração dos
cidadãos ao mercado de trabalho, a habilitação e reabilitação dos portadores de
necessidades e a garantia de um salário mínimo mensal aos idosos e pessoas
portadores de necessidades, desde que comprovada a insuficiência de recursos
para manutenção de sua subexistência e de sua família.
Em 1991, com a apresentação do Projeto de Lei do então senador Eduardo
Suplicy, inicia-se o desenvolvimento do Programa de Garantia de Renda Mínima
– PGRM, que beneficiaria os brasileiros maiores de 25 anos de idade com
renda de até pouco mais de 2 salários mínimos, projeta uma cadeia de estudos
e planejamentos de ações do governo com objetivo de minimizar a pobreza,
270
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
estabelecendo o foco de sua atuação e o público prioritário que almeja beneficiar.
O PGRM foi a primeira proposta nacional de distribuição de renda, que
mesmo apresentada em 1991 somente aprovada em 1997, regulamentada em
1998 e implementada no segundo semestre do ano seguinte. Nos dizeres de
Vera Telles (1998, p. 13) foi um projeto que levantou dúvidas quanto a sua
concepção e eficácia, mas ao mesmo tempo conseguiu com a polêmica se firmar
como uma referência importante nos anos que se seguiram à sua aprovação.
Os avanços trazidos pela Constituição Federal de 1988, com o crescimento
dos direitos e garantias fundamentais, bem como da tipificação de um conjunto
de direitos sociais, contudo, somente foram se concretizando ao longo dos
anos de 1990. Sendo que a crise fiscal do Estado que ainda existia neste
período impossibilitou um plano de redimensionamento das políticas sociais e
atendimento das necessidades do povo para redução das desigualdades.
A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS308 somente foi publicada
Lei 8.742 de 7 de dezembro de 1993: Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do
Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada
através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o
atendimento às necessidades básicas.
Art. 2o A assistência social tem por objetivos: I - a proteção social, que visa à garantia da vida, à
redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente: a) a proteção à família,
à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; b) o amparo às crianças e aos adolescentes
carentes; c) a promoção da integração ao mercado de trabalho;d) a habilitação e reabilitação das
pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e) a garantia de 1
(um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem
não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família; II - a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva
das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos; III
- a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões
socioassistenciais. Parágrafo único. Para o enfrentamento da pobreza, a assistência social realizase de forma integrada às políticas setoriais, garantindo mínimos sociais e provimento de condições
para atender contingências sociais e promovendo a universalização dos direitos sociais. Art. 3o Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas sem fins lucrativos que,
isolada ou cumulativamente, prestam atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos
por esta Lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de direitos. § 1o São de atendimento
aquelas entidades que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços, executam
programas ou projetos e concedem benefícios de prestação social básica ou especial, dirigidos
às famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos
desta Lei, e respeitadas as deliberações do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS),
de que tratam os incisos I e II do art. 18. § 2o São de assessoramento aquelas que, de forma
continuada, permanente e planejada, prestam serviços e executam programas ou projetos voltados
prioritariamente para o fortalecimento dos movimentos sociais e das organizações de usuários,
formação e capacitação de lideranças, dirigidos ao público da política de assistência social, nos
termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art.
18. § 3o São de defesa e garantia de direitos aquelas que, de forma continuada, permanente
e planejada, prestam serviços e executam programas e projetos voltados prioritariamente para
308
271
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
05 anos após a promulgação do texto constitucional, e tinha como fundamento
prover os mínimos sociais por meio de ações conjuntas de iniciativa pública e
privada para garantia das necessidades básicas e proteção às famílias vulneráveis
e vitimizadas. Ainda no ano de 1993 foi instituído o Plano de Combate à
Fome e à Miséria (PCFM), que mobilizou o movimento nacional da parceria,
descentralização e solidariedade para defesa das famílias pobres.
As ações públicas no campo da assistência social, consagrada pela
carta constitucional como direito social fundamental do cidadão ganharam
maior alcance com a edição da Lei Orgânica de 1993, representando um novo
significado para a assistência social na sociedade brasileira.
Tanto LOAS quanto PCFM, criaram propostas de transferência de renda
que pudessem complementar o ganho monetário daquelas famílias, articulado
paralelamente à manutenção das crianças na escola e no desenvolvimento da
educação. Desta forma, seria minimizado outro grande problema brasileiro,
que era o do trabalho infantil, já que como as famílias não conseguiam renda
suficiente para o seu sustento havia necessidade da submissão dos menores no
mercado de trabalho.
Esse fato acabava ocasionando, nos dizeres de Ana Maria Fonseca (2001,
p. 47), um círculo vicioso no quadro da pobreza brasileira, o que poderia ser
reduzido com o oferecimento de complemento de renda às famílias pobres, desde
que suas crianças e adolescentes, entre 05 e 16 anos, estivessem matriculadas e
frequentando a escola pública. Foi esse o ideal que referenciou os programas de
transferência de renda a partir de 1995.
A tutela legislativa do trabalho infantil tem caráter não apenas de cunho
ético-social, e sim de função higiênica e fisiológica. É sabido que o trabalho em
determinadas circunstâncias poderá promover o anormal desenvolvimento de crianças
e adolescentes. Esses fatores não fogem é claro do aspecto humanitário que também
fundamenta no âmbito interno e externo, uma proteção especial sobre as condições
dessa forma de trabalho, impondo cada vez mais restrições à sua realização.
O direito brasileiro, desde a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT
regulamentou em seu Capítulo IV, artigos 402 a 441, a proteção do trabalho
do menor, além da ratificação de inúmeras Convenções Internacionais da OIT
sobre a temática, em especial as de número 138 e 182, que dispõem sobre o
limite de idade mínima para admissão e a eliminação de toda forma degradante
de trabalho infantil. Além da proibição estabelecida pelo art. 7º da Constituição
Federal, inciso XXXIII, que determina a “proibição de trabalho noturno,
a defesa e efetivação dos direitos socioassistenciais, construção de novos direitos, promoção da
cidadania, enfrentamento das desigualdades sociais, articulação com órgãos públicos de defesa de
direitos, dirigidos ao público da política de assistência social, nos termos desta Lei, e respeitadas
as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art. 18.ões do CNAS, e II do art. 18.
272
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) anos e de qualquer trabalho a
menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14
anos (quatorze) anos.
Ao mesmo tempo, mudanças quanto à assistência à saúde, sobretudo com
a implementação do Programa Saúde da Família – PSF, no ano de 1994, para
fazer frente ao antigo modelo tradicional de assistência primária. A estratégia
Saúde da Família reafirma as diretrizes fundamentais do Sistema Único de Saúde
(SUS), valendo-se da universalização, descentralização, e participação dos
cidadãos, que passam a ter um responsável pelo acompanhamento permanente
da saúde de um número determinado de indivíduos e famílias que moram no
espaço territorial próximo. (LOURENÇÃO; SOLDER. 204, p. 159)
As políticas sociais implementadas no Brasil na década de 1990, podem
ser consideradas como contrárias aos ideais universalistas, já que se focavam no
caráter de benefício daqueles em situação de extrema pobreza, a exemplo dos
programas de distribuição de renda até então efetivados e citados no item anterior.
Maria Lúcia Lopes Silva (2006, p. 93) destaca que novamente a
reestruturação produtiva e a corrosão das bases do Estado de Bem Estar Social
são colocadas em questão, já que não foi possível ainda atingir o equilíbrio
do mercado produtivo e os problemas sociais. Assim, mais uma vez indagase o que pode ser feito pelas políticas públicas para garantir a sobrevivência
de pessoas deslocadas do mercado de trabalho, já que este não se encontra
disponível a todos.
E a autora, relembrando os dizeres de Esping-Anderson (1990, p. 46)
discorre ainda que os Estados que se baseiam nos modelos do Welfare States,
são responsáveis pela garantia do bem-estar básico de todos os cidadãos,
implicando na institucionalização da plena capacidade do indivíduo de se
manter independentemente de sua inclusão no emprego. As necessidades
básicas relacionam-se então, à concepção de garantia de um mínimo necessário
para a existência da dignidade da pessoa humana.
No campo do direito internacional, a distribuição de renda tem sido
defendida por vários países, desde 1980, como reflexo das mudanças econômicas
e do mercado de trabalho, que ocasionaram um aumento no desemprego e na
intensificação da pobreza, conforme narrado anteriormente quando falado sobre
a crise nos modelos do Welfare States.
Os programas de transferência de renda passam então a significar
uma alternativa particular dos Estados ao possibilitar que a população pobre
participasse do comércio, já que se encontravam marginalizadas e excluídas
pela falta de trabalho, constituindo-se verdadeiramente num ato compensatório.
Em alguns países como Inglaterra, Alemanha e Holanda, as famílias com
crianças até idade de 16 anos e consideradas de baixa renda, tinham direito a
273
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
um benefício mensal monetário. A “renda inserção” foi instituída na França em
1988 e nos Estados Unidos, desde 1975 foi estabelecida uma forma de imposto
de renda negativo, para aqueles que tivessem uma renda mínima e determinado
números filhos, recebendo valor monetário ao invés de terem de pagar tributado.
(MONTEIRO, 2008, p. 25)
A autora ressalta ainda que os programas de transferência de renda
brasileira, adotados a partir de 1990 concretizaram o desígnio da luta contra os
mais variados indicadores negativos vivenciados ao longo da trajetória histórica
social do país. Doraliza Monteiro (2008, p. 27) relata que a concessão de ajuda
financeira às famílias carentes, apresentam diversidades formais e de resultado
se comparados aos mesmos projetos ofertados na Europa, seja pelos critérios
de seleção, pelos valores dos benefícios e até ao fim das desigualdades sociais.
Neste mesmo propósito Maria Ozanira Silva (2004, p. 11), comenta que
o pressuposto central de orientação dos programas de transferência de renda
no Brasil tem uma justificativa objetiva de interrupção do ciclo de reprodução
da pobreza, quando os filhos de famílias pobres são transferidos da rua ou
do trabalho para a educação regular, por meio do recebimento do benefício
monetária, estruturando-se nos dizeres do artigo 6º da Carta Maior, integrando
as políticas básicas sociais da educação, saúde, trabalho e alimentação.
O governo federal passa então a promover gradativamente programas de
transferência de renda, descentralizando ações aos municípios que agiriam como
executores e fiscalizadores dos recursos enviados para o repasse às famílias.
Dentre eles destaca-se a seguir 08 programas que podem ser considerados
precursores ao programa do Bolsa Família, objeto de estudo deste trabalho.
Assim, foram escolhidos para uma sucinta apresentação apenas sob o aspecto
evolutivo das ações públicas.
O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, instituído em
1996, em alguns Estados (Mato Grosso, Pernambuco e Sergipe), foi abrangido a
todos os demais entes federativos, em 1999, trata-se de programa que objetiva
erradicar o trabalho infantil, atendendo famílias com renda per capita de até ½
salário mínimo, que possuam filhos com idade entre os 07 e 16 anos, possibilitando
a estes frequentar e permanecerem na escola. Fora do horário normal de aula,
em centros municipais especializados, usufruem de ações sócio-educativas, tipo
recreação, reforço escolar, artes, músicas, esporte, e também complementação
alimentar. Para os pais existe ainda, uma complementação de renda mensal que
varia de R$ 25,00 a R$ 40,00 por criança/adolescente.
Este programa reforça as políticas diretivas de erradicação da pobreza, do
trabalho infantil e do estímulo à educação, já que a intenção é manter crianças
ocupadas durante todo o dia, impedindo-os de procurar trabalho. A concessão do
benefício fica condicionada à frequência regular à Escola cessando o benefício
274
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
quando o adolescente atinge a idade de 16 anos. (NAHAS. 2006, p. 39)
O regulamento jurídico que criou o PETI é um derivado da Lei Federal
8.743/93 – LOAS, e do artigo 24 do referido dispositivo, sendo considerado
um programa de proteção social especial, e que encontra-se, desde 28 de
dezembro de 2005, integrado com o Programa do Bolsa Família, conforme
Portaria GM/MDS nº 666.
O PETI tem demonstrado sua contribuição para a diminuição do trabalho
infantil em suas mais variadas formas, sendo considerado por Annova Carneiro
(2010, p. 74) como um reflexo positivo na retirada de crianças e adolescentes do
mercado de trabalho com inserção integral nas atividades educacionais. Mas,
em razão da amplitude da problemática envolvendo a questão não pode ser
considerado como fator de eliminação plena do mesmo.
O Benefício de Prestação Continuada – BPC, implantado também 1996,
foi previsto pela Carta Constitucional de 1988 e regulamentado diretamente
pela Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, como forma de transferência
de renda no valor de 1 salário mínimo, à pessoas idosas com mais de 65 anos de
idade ou para as pessoas acometidas por alguma deficiência, que provem não
possuir meios de prover sua subsistência ou ser ela feita pela sua família, nos
termos do artigo 20309 da referida lei.
Lei 8.742/93 - Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um saláriomínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais
que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por
sua família. § 1o Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o
cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos
solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto. § 2o Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas. § 3o Considera-se incapaz de prover a
manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja
inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. § 4o O benefício de que trata este artigo não pode
ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro
regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória. § 5o A
condição de acolhimento em instituições de longa permanência não prejudica o direito do idoso
ou da pessoa com deficiência ao benefício de prestação continuada. § 6º A concessão do benefício
ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o § 2o, composta
por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais
do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS. § 7o Na hipótese de não existirem serviços no
município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma prevista em regulamento, o seu
encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura. § 8o A renda familiar
mensal a que se refere o § 3o deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal,
sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.
§ 9º A remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para
fins do cálculo a que se refere o § 3o deste artigo. §10. Considera-se impedimento de longo prazo,
309
275
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A incapacidade de prover sua própria manutenção fica condicionada ao
limite de rendimentos per capita familiar, do idoso ou deficiente, não superior
a ¼ do salário mínimo, e desde que não exista vinculação, ou esteja recebendo
benefícios de qualquer regime de previdência social, salvo os da assistência
médica e da pensão especial de natureza indenizatória.
Por ser pago diretamente pelo Instituto Nacional da Seguridade Social –
INSS, que recebe e defere os pedidos do benefício, é comumente confundido
com o benefício da aposentadoria por idade ou incapacidade, sendo, entretanto,
institutos jurídicos completamente diversos, já que os benefícios da aposentadoria
são regulados pela Lei 8.213/92, e somente são concedidos àqueles que pagam
regular contribuição e possuam a condição de segurado.
Desta, forma o BPC, não garante aos beneficiários o pagamento de
gratificação natalina (13º salário) ou o direito aos dependentes do recebimento da
pensão em virtude de morte. Ainda, a cada dois anos, deve ser feita reavaliação
das condições do beneficiado, podendo ocorrer a cessação no momento em que
ocorrer a recuperação da capacidade laborativa, no caso de pessoa portadora de
deficiência ou das condições econômicas do idoso ou deficiente.
A Aposentadoria Rural ou Previdência Social Rural foi determinada
pela Constituição brasileira, nos termos do artigo 195, parágrafo 8º, podendo
ser considerada como um Programa de Transferência de Renda pelo fato
impactante na redução à pobreza da população idosa rurícola por meio de uma
proteção especial, aposentadoria, para as famílias de trabalhadores do campo,
independentemente da comprovação de tempo de contribuição como segurado,
fixado pela Lei de Seguridade.
O beneficio da aposentadoria, de valor equivalente a 1 salário mínimo
seria admitido às mulheres com a idade de 55 anos e para os homens de 60
anos, que comprovassem que tenham trabalhado em atividades rurais, por no
mínimo 15 anos, ainda que de forma descontínua e mesmo sem a realização de
contribuição como segurado obrigatório.
Assim, como os demais benefícios previdenciários, o trabalhador rural
deveria comprovar sua condição especial, com a indicação de no mínimo
para os fins do § 2o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos. Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação
da continuidade das condições que lhe deram origem. § 1º O pagamento do benefício cessa no
momento em que forem superadas as condições referidas no caput, ou em caso de morte do
beneficiário. § 2º O benefício será cancelado quando se constatar irregularidade na sua concessão
ou utilização. § 3o O desenvolvimento das capacidades cognitivas, motoras ou educacionais e
a realização de atividades não remuneradas de habilitação e reabilitação, entre outras, não
constituem motivo de suspensão ou cessação do benefício da pessoa com deficiência. § 4º A
cessação do benefício de prestação continuada concedido à pessoa com deficiência não impede
nova concessão do benefício, desde que atendidos os requisitos definidos em regulamento.
276
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
03 provas da realização de atividade rural no período de carência até 31 de
dezembro de 2010, para ter direito ao recebimento da aposentadoria. Após
esse período seguiu-se as regras gerais para concessão do benefício mediante
contribuição obrigatória.
O Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação –
Bolsa Escola, instituído pela Lei n. 10.219 de abril de 2001, o Bolsa Escola
teve como objetivo beneficiar famílias com crianças e adolescentes entre 06
e 15 anos de idade, com a transferência de renda de R$ 15,00 por criança, até
o máximo de três filhos, desde que comprovada a frequência mínima escolar
de 85%, que seria mensalmente averiguada como elemento essencial para o
recebimento dos recursos.
O programa necessitava, entretanto, de uma integração de atividades
envolvendo União e Municípios, que gerenciavam o atendimento às famílias e
crianças, bem como uma padronização do sistema educativo, o que significou
uma reestruturação de todo aparelhamento administrativo estatal para que os
objetivos específicos do mesmo pudessem ser atingidos, sendo que o valor
limitado de seu componente monetário não conseguiria efeito significativo para
alterar a condição de pobreza das famílias.
O Programa Bolsa Alimentação tinha como objetivo estabelecer um
programa de redução das deficiências nutricionais e da mortalidade infantil
nas populações mais pobres do Brasil, por meio de complementação da renda
mensal para famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo. Vinculado
ao Ministério da Saúde deveria beneficiar mulheres gestantes ou em fase de
amamentação ou pais com crianças de 06 meses a 06 anos de idade.
Instituído no ano de 2001, pela Medida Provisória n. 2.206-1 de 06 de
setembro, correspondia à transferência de valores entre R$ 15,00 até R$ 45,00
mensais para cada família, que poderiam cumular até três bolsas-alimentação. A
assistência alimentação era complementada por uma equipe do Programa Saúde
da Família, que desenvolvia ações de saúde como medida de compromisso pelo
recebimento do auxílio financeiro.
Como condicionante ao uso dos valores poderiam as famílias aplicálos na aquisição de alimentos ou para compra de sementes, adubos e demais
produtos para, por exemplo, empregá-los em uma horta doméstica, que
possibilitassem melhoria na qualidade de vida das crianças e dos membros
familiares. (TELLES, 1998, p. 25)
Com a fixação de uma agenda de compromissos a serem seguidas pelas
famílias, que poderia incluir desde a realização de consultas de pré-natal para
as gestantes até a manutenção regular de vacinações e comparecimento nas
unidades de saúde, firmada pelos beneficiários a permanência no programa
poderia ser de até 06 meses, permitida a renovação.
277
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Outro programa de transferência de renda criado em 2001, foi o Agente
Jovem direcionado aos jovens que se encontravam fora da escola e integrantes
de famílias com renda até ½ salário mínimo, entre idade de 15 e 17 anos, com
situação social de risco, e que já tenham participado de outros programas sociais.
Sua aplicação também se estendia aos jovens que estivessem sob medida
protetiva determinada pelo Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90)
ou portadores de deficiência.
A transferência de renda correspondia a um benefício de R$ 65,00
mensais, desde que comprovada, além da situação de risco narrada acima,
também uma frequência escolar de no mínimo 75% nas aulas e demais atividades
estabelecidas pelo programa, perdurando até o ano de 2003.
Neste ano, com a entrada em vigor do programa Bolsa Família, a
metodologia do Agente Jovem foi readaptada, sendo priorizados jovens que
estejam fora da escola, proporcionando-lhes capacitação prático-teórica em
cursos com 300 horas aulas além da participação em atividades desenvolvidas
na comunidade. (BRASIL - MDS. 2012)
Em janeiro de 2002, a Lei Federal 10.453, cria o Programa Auxílio Gás,
como forma de subsidiar a compra de gás de cozinha para as famílias que se
encontravam cadastrada em outros programas federais ou possuíam renda per
capita de até ½ salário mínimo. Como transferência monetária seria concedido
o valor de R$ 15,00 a cada dois meses.
A justificativa desse benefício, nos dizeres de Ana Oliveira (2007, p.
29), fora uma medida compensatória pela retirada das isenções tributárias do
governo federal ao gás de cozinha e impossibilidade de ser custeada sua compra
pelas famílias mais carentes. Em 2003, também foi incorporado ao programa
Bolsa Família.
O Programa Cartão-Alimentação, criado pela Medida Provisória n.
108 de 27 de fevereiro de 2003, convertida na Lei n. 10.689 de 23 de junho
daquele ano, inicia as medidas do grande programa estatal Fome Zero e do
Programa Nacional de Acesso à Alimentação, cujo objetivo era o combate
à fome e suas causas, por meio de várias ações promocionais da segurança
alimentar, considerada o pior dos efeitos da pobreza.
O Cartão-Alimentação foi feito com a vinculação conjunta nas três esferas
administrativas (União, Estados e Municípios), bem como a permanência do
caráter de solidariedade da sociedade civil. Previa a transferência de renda no
valor de R$ 50,00 para as famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo,
através do Cartão Cidadão, emitido em favor da mulher, considerada a responsável
pelo grupo familiar (SILVA. 2004. p. 128). Contudo, conforme determina o artigo
4º da Lei 10.689/03, o programa tinha caráter temporário, não gerando direito
adquirido, por seis meses prorrogáveis por até mais dois períodos.
278
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Percebe-se que no período de 1995 até 2003, vários programas de
transferência de renda foram introduzidos pelo governo, como medida de garantia
do desenvolvimento e combate a pobreza no Brasil, fortalecendo a estrutura
familiar, referência em todos eles. Assim, observa-se sua natureza compensatória
representada em seu aspecto de transferência monetária, como garantidor da
sobrevivência imediata das famílias pobres, e sua medida de universalidade de
acesso às políticas públicas condicionantes a uma autonomia futura dessas.
No final de 2003, o fundamento de existência do Estado brasileiro, tipificado
no artigo 3º da Constituição Federal, retorna ao debate do cenário político,
posto que, a erradicação da pobreza, das desigualdades sociais e a promoção do
bem de todos, pautado no desenvolvimento nacional, leva ao direcionamento
das políticas administrativas de otimização de gastos orçamentários, gestão
única dos programas de distribuição de renda e um planejamento gerencial
para alcance do público alvo e dos direitos jusfundamentais, em especial da
dignidade da pessoa humana.
Surge então o Programa Bolsa Família e em 2004 o Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate a Fome – MDS, em substituição ao antigo
Ministério da Assistência Social, realizando a unificação de alguns programas
de transferência de renda, abarcando o Bolsa Educação, Bolsa Alimentação,
Auxílio Gás e Cartão Alimentação. Através, da Medida Provisória nº 132 de
20 de outubro de 2003, posteriormente convertida na Lei Federal nº 10.836
de 09 de janeiro de 2004, foi criado do Programa Bolsa Família (PBF), com
o objetivo de fortalecer de forma imediata as ações governamentais contra a
pobreza e miséria da população, através da consolidação de direitos sociais
básicos relacionados à Educação e à Saúde, e ao desenvolvimento de todo o
grupo familiar (pais e filhos) por meio de medidas complementares de geração
de renda, trabalho, alfabetização e outros.
O programa está destinado ao atendimento dos grupos familiares
considerados pobres sob o fundamento da renda mínima auferida pela entidade.
São tidas como famílias extremamente pobres aquelas com renda mensal per
capita inferior a R$ 70,00 e famílias pobres desde que a renda mensal per capital
encontre entre os R$ 70,01 e até o limite de R$ 140,00. (MDS, 2012).
Como tentativa de racionalização público-administrativa, financeira e
gerencial capaz de englobar as famílias pobres independentemente de estarem
trabalhando, ou possuírem filhos e idosos no grupo familiar, o Bolsa Família
unificou os antigos programas de transferência monetária em vigor, nos termos
do parágrafo único do artigo 1º da Lei 10.836/2004, em especial o Programa
Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação - Bolsa Escola, criado em
de 2001, o Programa Nacional de Acesso à Alimentação - PNAA, de 2003, o
Programa Bolsa Alimentação, instituído em 2001, o Programa Auxílio-Gás, de
279
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
2002, do Cadastramento Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto
nº 3.877, de 24 de julho de 2001. Em dezembro de 2005, o Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil – PETI foi integrado também ao Programa
Bolsa Família, com a edição da Portaria GM/MDS nº 666.
5. CONCLUSÃO
O Estado de Bem-Estar Social deve se esforçar na criação das condições
necessárias de ações capacitadoras do mínimo de igualdade. A eficácia do
direitos sociais esta diretamente relacionada às ações estatais que devem ser
assumidos como um compromisso da promoção prestacional por meio de um
desempenho positivo.
A redução dos direitos fundamentais é impossível e a responsabilidade
do Estado deve inclusive efetivar as políticas de prestações materiais e
jurisdicionais. O poder público é o promotor do mínimo existencial, sendo um
reflexo da própria evolução humana, na busca de soluções para os problemas
da vida em sociedade.
Para o Estado do Bem Estar Social os programas de transferência de renda
tornam-se uma medida a ser desenvolvida para possibilitar o ingresso da população
carente no mercado do consumo e da superação de sua situação de risco.
A inserção da complementação monetária passam então a representar uma
verdadeira luta de combate ao que impossibilita o mínimo existencial da maior
parte da população brasileira, que seria a fome e a miséria, que constitui um ciclo
reprodutivo, prejudicial à sobrevivência familiar, a saúde e educação dos filhos.
Assim, a partir do final da década de 1990, vários programas foram
instituídos pelo governo federal destacando-se o PETI, o PBC, o Bolsa Escola,
o Cartão Alimentação, o Auxílio-Gas, o Bolsa Alimentação, o Agente jovem,
todos destinados a consolidar a assistência social aos menos afortunados.
Em 2003, entretanto, um novo programa é editado para suprir as falhas
estruturais nas antigas políticas governamentais, sendo criado o Programa Bolsa
Família, que reunia vários programas já em vigência para serem controlados e
gerenciados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome.
A grandeza orçamentária e a amplitude de atuação do Bolsa Família,
faz entretanto, colocar em debate os reflexos e objetivos desse programa,
sendo colocado como um instrumento fútil de incentivo ao ócio e da
manutenção da condição de pobreza. Também são apontando argumentos
perversos e ameaçadores aos direitos já conquistados pela nação, levando a um
questionamento de sua validade ou não.
280
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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282
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
PROCESSO LEGISLATIVO COLABORATIVO: A PARTICIPATIVIDADE PELA
INTERNET NO TRÂMITE DO PROJETO DE LEI Nº 2.126/2011
(MARCO CIVIL DA INTERNET)
THE COLABORATIVE LEGISLATIVE PROCEDURE: PARTICIPATIVITY
TROUGH THE INTERNET DURING THE DRAF BILL NUMBER 2.126/2011
(BRAZILIAN CIVIL RIGHTS FRAMEWORK FOR THE INTERNET)
Rubens Beçak310*
João Victor Rozatti Longhi311**
RESUMO
As potencialidades do uso das tecnologias da comunicação e informação
(TICs) para a construção de formas diferentes de expressão dos valores
democráticos são grandes. O Marco Civil da Internet no Brasil já demonstrou
que são verificáveis os corolários da democracia participativa pela construção
colaborativa de um projeto de lei pela Internet, que inovando quanto ao exercício
dos instrumentos constitucionais de democracia direta ou semirrepresentativa.
Entretanto, a participação popular pela Internet avançou também durante as
discussões no Poder Legislativo. Este trabalho procura analisar alguns resultados
desta participação, em especial no que concerne à redação dos dispositivos que
tratam da responsabilidade dos provedores por conteúdo inserido por terceiros.
Palavras-chave: Internet – democracia participativa – Marco Civil – responsabilidade civil – liberdade de expressão
ABSTRACT
The potentials of information and communication technologies (ITCs)
to help people express the democratic values are great. The Brazilian Internet
Civil Rights Framework has shown that it is possible to make true some
thesis about participatory democracy, especially after the experience of a
collaborative draft bill that was all debated by the Internet, whch is considered
an innovative instrument beyond the constitutional forms of direct democracy
Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo e do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Secretário Geral
da USP.
311 **
Professor Assistente-DE da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
Professor convidado em programas de pós graduação. Mestre em Direito Civil pela UERJ.
310 *
283
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
or semi-representational in Brazil. However, popular participation through the
Internet was also possible during the discussions in the Parliament. This paper
tries to analyze some results of that involvement, especially the articles about
the liability of the Internet Service Providers for content inserted by the user.
Keywords: Internet – participatory democracy – Brazilian Civil Rights
Framework for the Internet – civil liability – freedom of expression
SUMÁRIO: 1. A experiência de discussão colaborativa do Marco Civil
e a submissão do projeto de lei como expressões da democracia participativa na Internet 2.A participação popular durante o trâmite na Comissão Especial da Câmara dos Deputados 2.1 Comissões parlamentares
e sua função: breves assertivas 2.2 As audiências públicas e o portal
e-democracia da Câmara dos Deputados: da proposição colaborativa à
construção colaborativa 3. O sistema de retirada de conteúdo e responsabilidade dos intermediários: desafios à tutela do usuário
INTRODUÇÃO
Muitos preconizam que a democracia, na atualidade, deve fazer
dialogar a complexidade de interesses políticos, que vão desde a tutela dos
direitos fundamentais dos cidadãos até os anseios dos agentes econômicos
que compõem o mercado.
Por essa razão, afirma-se que o sistema democrático hodierno não pode
ser uma democracia excludente, em que Estado e Sociedade Civil caminham
separados. Ao revés, além dos sujeitos mencionados, agentes privados,
fundações, associações de consumidores e outras entidades devem somam
forças para a consecução dos princípios constitucionais.
O Marco Civil da Internet no Brasil é apontado como um exemplo da
concreção desta nova faceta da democracia. Isto porque inaugurou uma forma
inovadora de exercício da soberania popular, sem precedentes na história
legislativa brasileira.
Como se sabe, por intermédio de plataformas púbicas de participação
popular, a iniciativa contou com a maciça presença de inúmeras entidades e
a possibilidade de manifestação livre por qualquer internauta, sugerindo-se
inclusive a redação de dispositivos para uma lei que visasse trazer princípios
norteadores das relações civis na Internet.
O Marco Civil foi submetido à apreciação do Legislativo, tornando-se o
projeto de lei nº 2.126/2011 da Câmara dos Deputados.
Este trabalho tem por escopo principal analisar brevemente a experiência
do marco civil como uma possível superação do tradicional modelo de
representação política também em sede de produção legislativa.
284
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Mônica Salem Caggianno, analisando as nuances do atual modelo
representativo e os possíveis entraves que enfrenta o Poder Legislativo atualmente,
uma vez que sempre fora um lócus tradicional de discussão e produção de regras
jurídicas do Estado moderno, levantou o seguinte problema: com a popularização
da Internet, será possível um dia vivermos sem o Paramento?312
Assim, mais especificamente, este estudo busca perquirir acerca de
algumas das consequências da evolução dos debates sobre o Marco Civil
também em sede do Poder Legislativo, aferindo os resultados da participação
popular pelo portal eletrônico e-democracia da Câmara dos Deputados, das
audiências públicas e das discussões em outros fóruns sobre o texto do projeto.
Por isso, a primeira parte procura elaborar um breve contraponto
entre o sistema tradicional de representação política e algumas experiências
de democracia direta ou semi direta fomentadas pelo uso das Tecnologias da
Informação e Comunicação, revelando alguns aspectos teóricos que levaram à
iniciativa do Marco Civil.
Em um segundo momento, procura-se descrever as discussões e sua
importância durante o trâmite na Comissão Especial da Câmara dos Deputados,
que contou com a possibilidade de participação popular durante o trâmite no
Poder Legislativo.
Por último, destaca a estrutura do projeto de lei que tem por objetivo
declarar direitos civis de usuários e analisa brevemente a aparente opção
legislativa adotada quanto ao sistema de responsabilidade dos intermediários
por conteúdo gerado por terceiros constante do atual texto.
1. A EXPERIÊNCIA DE DISCUSSÃO COLABORATIVA DO MARCO CIVIL E A SUBMISSÃO DO PROJETO DE LEI COMO EXPRESSÕES DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA INTERNET
O Marco Civil da Internet no Brasil tem sido objeto de diversos estudos
aqui e no exterior, sendo observado por muitos pelo pioneirismo da iniciativa,
pela amplitude das discussões e pela pluralidade de visões abordadas durante a
fase que antecedeu a elaboração do texto original do projeto de lei.313
A concepção deste projeto de cunho inovador foi fomentada pela
Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com a
Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.
Cf. Anotações em aula proferida na disciplina “Direito parlamentar”, ministrada no curso de
Pós Graduação Strictu Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em conjunto
com o Prof. Dr. Rubens Beçak, no segundo semestre de 2011.
313
V. por todos BECAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti . Tendencies for participatory
democracy: the influences of the internet on the political representation’s profile and on the
Participatory Budgeting. In: Law and Society Association International Meeting, 2012, Honolulu.
Sociolegal Conversations across a sea of oceans, 2012.
312
285
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Vários tópicos foram postos em discussão aberta pelo portal do Marco
Civil314 e também por sites de redes sociais. Milhares de postagens, advindas de
diversos segmentos, levaram à redação de uma minuta de projeto, terminandose a primeira fase de debates.
A minuta foi novamente submetida à apreciação popular pela Internet.
Desta vez já era possível se ter por base a redação específica de cada um dos
dispositivos que seriam enviados à apreciação do Poder Legislativo.
Após, o texto final do Marco Civil tornou-se o Projeto de Lei nº 2.126/2011
que iniciou seu trâmite pela Câmara dos Deputados, por iniciativa legislativa do
Poder Executivo.
Preliminarmente, destaca-se que José Afonso da Silva afirma ser a
democracia participativa algo entre a democracia direta e indireta, mesclando
elementos de ambas.315 Por outro lado, Paulo Bonavides leciona que a
democracia participativa deve ser necessariamente uma democracia direta,
direito fundamental de natureza transnacional e que deve ser garantido a todos
os povos. In verbis:
Um terceiro momento, todavia, já se vislumbra com formação de
uma teoria constitucional que nos aparta dos modelos representativos
clássicos. Pertence à democracia participativa e faz do cidadão-povo a
medula da legitimidade de todo o sistema. Acaba, então a intermediação
representativa, símbolo de tutela, sujeição e menoridade democrática do
cidadão – meio povo meio súdito.316
Finalmente, Joaquim Falcão demonstra uma terceira via. Para o autor,
um modelo constitucional verdadeiramente democrático em uma sociedade
multifacetada e marcada pela complexidade de interesses em jogo, não só
mescla elementos de democracia representativa e direta, com partidos políticos
e eleições proporcionais de um lado e plebiscitos, referendos e projetos de
iniciativa popular de outro.
Pelo contrário, afirma Falcão que a democracia neste ambiente complexo
também é realizada pelos conselhos municipais, ONGs (OSSCIPs e OSs),
entidades paraestatais, fundações públicas e privadas, dentre outras, razão pela
CULTURA DIGITAL. Marco Civil. Disponível em: http://culturadigital.br/marcocivil/. Acesso
em 18 ago 2012.
315
Cf. SILVA, José Afonso da. O sistema representativo e a democracia semi-direta: democracia
participativa. In: CANTÚ, Hugo A. Sistema representativo y democracia semidirecta. Memorial
del VII Congreso de Derecho Constitucional. Mexico: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la
Universidad Autónoma de Mexico, 2002. pp. 2-3.
316
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros,
2001. p. 37.
314
286
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
qual os modelos de democracia nem são sequenciais nem excedentes, mas
complementares. É o que denomina de democracia concomitante.317 E uma
das principais características deste ambiente político é a paulatina erosão dos
limites entre Estado e Mercado, ou entre o estatal e a sociedade civil.
Muitos são os estudos, desde os primórdios da Internet, em que se
reconhece na Rede das Redes um ambiente possivelmente profícuo para a
concretização das premissas desta democracia contemporânea. Especificamente
quando analisada a fusão entre público e privado operada pela massificação da
Internet, assevera Pierre Levy:
No que diz respeito aos efeitos sobre a democracia, essa transformação
da esfera pública me parece afetar positivamente os quatro domínios
estreitamente independentes, que são as capacidades de aquisição de
informação, de expressão, de associação e de deliberação dos cidadãos.
Em suma, a computação social aumenta as possibilidade de inteligência
coletiva e, por sua vez, a potência do “povo”.318
O Marco Civil parece ser uma experiência de concretização destas
premissas, podendo ser observado como uma expressão diversa do próprio
processo legislativo tradicional, cuja participação popular deu base à iniciativa
legislativa e não se esgotou nesta fase, adentrando ao Legislativo.
Sobre o conceito e objeto do processo legislativo contido no arts. 59 e
seguintes da Constituição da República, leciona José Afonso da Silva:
Por “processo legislativo” entende-se o conjunto de atos (iniciativa,
emenda, votação, sanção, veto) realizado pelos órgãos legislativos
visando à formação das leis constitucionais, complementares e ordinárias,
resoluções e decretos legislativos. O procedimento legislativo é o modo
pelo qual os atos do processo legislativo se realizam. Diz respeito ao
andamento da matéria nas casas legislativas. As regras básicas sobre o
processo legislativo aplicam-se a Estados e Municípios.319
O Marco Civil representa uma experiência em que as discussões
colaborativas avançaram também em sede do Poder Legislativo, integrando,
Cf. FALCÃO, Joaquim. Democracia, direito e terceiro setor. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2006. p. 87.
318
LEMOS, André; LEVY, Pierre. O futuro da Internet: em direção a uma ciberdemocracia
planetária. São Paulo: Paulus, 2010. p. 14.
319
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 6. Ed. São Paulo: Malheiros,
2009. p. 437.
317
287
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
portanto, o próprio processo legislativo. Algumas de suas peculiaridades,
principalmente a participatividade nas audiências públicas promovidas no
portal e-democracia da Câmara dos Deputados e em outros fóruns de discussão,
determinantes na redação de certos dispositivos e determinadas opções
legislativas, serão analisadas a seguir.
2. A PARTICIPAÇÃO POPULAR DURANTE O TRÂMITE NA COMISSÃO ESPECIAL
DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
“Nunca um projeto de lei foi objeto de tanta participação
popular na história da Câmara dos Deputados”
Deputado Alessandro Molon (PT-RJ)320
Contemporaneamente, não raras são as vozes que levantam um possível
esvaziamento da função típica exercida pelo Poder Legislativo. O Parlamento,
conforme salientado, foi concebido na teoria da separação das funções do poder
como um local ideal para o exercício da representação política.
A concentração de atribuições estratégicas na figura do Poder Legislativo,
no início do Século XX, levou muitos a sustentarem a necessidade de se limitar os
poderes concedidos ao Parlamento. Neste sentido, Raymond Carré de Malberg:
A razão de a limitação dos poderes é mais difícil em uma Constituição
como a francesa em que o órgão supremo, ou seja, aquele que deve ser
limitado, é o Parlamento, o mesmo corpo que, por suas leis, ode conferir
a si mesmo novos poderes por tempo indeterminado. Neste regime, todas
as limitações parecem ser dirigidas exclusivamente contra as autoridades
que não tenham sido eleitas. Assim, a autoridade judiciária é fortemente
limitada pela proibição de invadir a competência legislativa ou a esfera
de competência própria dos administradores. Igualmente, há também
uma estrita limitação contra o Executivo, que não pode, em princípio,
praticar mais atos do os que a lei autoriza, e cujo chefe não pode, ademais,
em razão do regime parlamentarista, exercer o seu poder por si ou
mediante um ministro de estado em estreita dependência das câmaras do
parlamento. Mas, em relação a este último, parece carecer efetivamente
de qualquer limitação. Afinal, não só são capazes de fixar suas leis e suas
próprias competências legislativas, como o próprio regime parlamentar
O deputado é o relator da Comissão Especial e autor do projeto substitutivo ao do Marco Civil
na Câmara (Projeto nº2.126/2011). As afirmações foram feitas em evento realizado na Americam
Chamber, em 17 de agosto de 2012. Marco Civil da Internet é tema de evento na Amcham Rio 20/08/2012 Disponível em: http://amchamrio.com/. Acesso em 29 ago. 2012.
320
288
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
tende a aumentar o seu poder ao assegurar a sua supremacia sobre o
executivo, fazendo depender dele toda ação do governo.321
A doutrina aponta, desta maneira, alguns mecanismos constitucionais
trazidos à tona como forma de limitação a tal vocação expansiva natural do
poder do parlamento. Dentre eles, podem ser citados: a separação entre poder
constituinte originário e derivado e os limites materiais e procedimentais à
criação das normas infraconstitucionais; mandatos parlamentares limitados
no tempo; limitação de números de mandato a um mesmo indivíduo, dada a
necessidade de renovação dos membros do parlamento; a divisão do órgão
parlamentar em câmaras alta e baixa, sendo aquela com predileção à função
de câmara moderada, com mandatos mais largos, por exemplo; proibição de
acúmulo com outros cargos e, finalmente; a divisão do órgão deliberativo
em comissões especiais de perfil técnico, com intuito de aprimoramento do
conteúdo das normas a serem produzidas.322
Na atualidade, verifica-se uma fragmentação crescente dos parlamentos
em comissões permanentes e transitórias, direcionadas ao exercício da função
típica de legislar ou de outras, atípicas, como a de fiscalizar os outros poderes,
sendo certo que justificam a preocupação da doutrina, principalmente quanto
à sua composição, ao jogo de poder323 que determina sua criação, extinção e a
condução de seus trabalhos.
3. AS COMISSÕES PARLAMENTARES, SUA COMPOSIÇÃO E FUNÇÃO: BREVES
ASSERTIVAS
Postas genericamente algumas noções de Parlamento, desemboca-se na
análise específica da composição das comissões parlamentares, órgão de suma
MALBERG, Raymond Carré de. Teoría general del Estado. Trad. José Lión Depetre. México:
Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 856
322
CAGGIANO, Mônica Salem. Cit.
323
Para Roberto Amaral, a fragmentação do órgão legislativo pode ser uma ameaça aos interesses
legítimos dos eleitores. Nesse sentido: Daí, em nossos parlamentos, a proliferação de bancadas de
interesse de nominata inesgotável, organizadas erga partidos: são a ‘bancada’ dos evangélicos, a
da saúde, a da medicina privada, a dos radialistas, a do ensino privado, a dos ruralistas e, até, a
dos policiais-militares. São esses interesses, acima da representação do eleitorado ou do programa
partidário, que determinam as votações em Plenário. AMARAL, Roberto. Apontamentos para
a reforma política: a democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. In:
Revista de Informação Legislativa. n. 151. jul. / set. 2001. Brasília, 2001. p. 51.Disponível em: http://
bd.camara.gov.br/bd/bitstream/ handle/bdcamara/461/analise_partidario_lima.pdf?sequence=8.
Acesso em: 11 set. 2011. Contudo, a crítica do autor revela-se mais quanto aos agrupamentos
que não necessariamente compõem a estrutura constitucional da função legislativa e indicam o
déficit de democracia na representação política do que propriamente uma crítica à estrutura das
Comissões Parlamentares.
321
289
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
importância para o exercício das funções do parlamento nas circunstancias
atuais. Acerca, Jose Maria Serna de la Garza:
As comissões são o cerne da estrutura organizacional e funcional do
Legislativo [...]. Constituem o núcleo dos trabalhos parlamentares ou do
Congresso. Sem seu trabalho, as legislaturas não podem ter nenhuma
ordem específica nas suas deliberações, nem os seus acordos poderiam
ter a qualidade adequada, além de que não haveria tempo para discutir os
assuntos submetidos a sua consideração. A sua existência obedece então,
a critérios para a divisão do trabalho e câmaras de especialização em suas
atividades.324
No Brasil, a fonte normativa primária das comissões parlamentares na
Constituição da República é o artigo 58 e parágrafos, dispondo seu caput que: O
Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias,
constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento
ou no ato de que resultar sua criação.
Por sua vez, extrai-se da análise dos parágrafos subsequentes o que
se enumera como espécies de comissões. Quanto à duração, do caput do
dispositivo já está a distinção entra comissões temporárias e permanentes, além
das comissões parlamentares de inquérito (§3º) e as representativas, formadas
obrigatoriamente durante o recesso parlamentar, (§4º), que por sua própria
função, são também de natureza temporária, ainda que esta última seja de
caráter obrigatório.
Com relação à função que exerce cada comissão, evidentemente que é sua
estrutura que reflete no desempenho de sua predileção institucional. Afinal o §2º
do artigo 58 enumera as funções de cada comissão parlamentar, condicionando
seu exercício à sua respectiva matéria ou competência.325
No original: Las comisiones parlamentarias son la parte medular de la estructura orgánica
y funcional del Poder Legislativo [...]. Constituyen el núcleo fundamental del quehacer político
parlamentario o congresional. Sin su trabajo, las asambleas legislativas no contarían con orden
alguno en sus deliberaciones, ni sus acuerdos podrían tener la calidad debida, además de que no
tendrian tiempo para analizar los asuntos sometidos a su consideración. Su existencia obedece, pues,
a los criterios de división del trabajo de las cámaras y de la especialización en sus actividades.”
GARZA, José Maria Serna de la Garza. Derecho Parlamentario. Mexico: UNAM, 1997. pp. 13-14.
Tradução livre.
325
São elas: I - discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência
do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; II - realizar audiências
públicas com entidades da sociedade civil; III - convocar Ministros de Estado para prestar
informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; IV - receber petições, reclamações,
representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou
entidades públicas; V - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI - apreciar
324
290
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Insta salientar alguns aspectos na disciplina jurídica da destinação das
comissões parlamentares.
Primeiramente, José Afonso da Silva destaca a possibilidade de que um
projeto de lei seja discutido e aprovado por uma Comissão, interna corporis.
Narra o autor que tal dispositivo guarda suas raízes no artigo 72 da Constituição
Italiana326, trazendo a hipótese de uma espécie de delegação do exercício da
função típica do órgão, ainda que conclua que tal instituto mais se assemelhe
uma espécie anômala de substituição condicional.327
Por último, salienta-se que, conforme dispõe o parágrafo primeiro
do mesmo dispositivo: “Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é
assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos
ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa.”
A noção do que seria um bloco parlamentar, por seu turno, pode ser
extraída, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Isto porque, o artigo
12 do Regimento traz a noção de bloco parlamentar como uma união de partidos
que passam a se agrupar, dentro daquela legislatura, como uma única bancada
e sob uma liderança comum.
Comissão, ademais, se diferencia de bloco parlamentar. A comissão tem
função constitucional e regimental específica. No caso da Câmara dos Deputados
brasileira, por exemplo, o Regimento Interno as Disciplina nos artigos 22 a 60.
O artigo 23 dispõe especificamente sobre sua composição, asseverando
que: Na constituição das Comissões assegurar-se-á, tanto quanto possível,
a representação proporcional dos Partidos e dos Blocos Parlamentares que
participem da Casa, incluindo-se sempre um membro da Minoria, ainda que
pela proporcionalidade não lhe caiba lugar. Parágrafo único. O Deputado que
programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir
parecer.
326
Articolo 72 - Ogni disegno di legge, presentato ad una Camera è, secondo le norme del suo
regolamento, esaminato da una Commissione e poi dalla Camera stessa, che l’approva articolo per
articolo e con votazione finale. Il regolamento stabilisce procedimenti abbreviati per i disegni di legge
dei quali è dichiarata l’urgenza.Può altresì stabilire in quali casi e forme l’esame e l’approvazione dei
disegni di legge sono deferiti a Commissioni, anche permanenti, composte in modo da rispecchiare
la proporzione dei gruppi parlamentari. Anche in tali casi, fino al momento della sua approvazione
definitiva, il disegno di legge è rimesso alla Camera, se il Governo o un decimo dei componenti della
Camera o un quinto della Commissione richiedono che sia discusso e votato dalla Camera stessa
oppure che sia sottoposto alla sua approvazione finale con sole dichiarazioni di voto. Il regolamento
determina le forme di pubblicità dei lavori delle Commissioni. La procedura normale di esame e
di approvazione diretta da parte della Camera è sempre adottata per i disegni di legge in materia
costituzionale [cfr. art. 138] ed elettorale e per quelli di delegazione legislativa [cfr. artt. 76, 79
], di autorizzazione a ratificare trattati internazionali [cfr. art. 80], di approvazione di bilanci e
consuntivi [cfr. art. 81].
327
SILVA, José Afonso da. Comentários (cit.). p. 432.
291
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
se desvincular de sua bancada perde automaticamente o direito à vaga que
ocupava em razão dela, ainda que exerça cargo de natureza eletiva.
Por seu turno, é o artigo 27 que traz normativamente os quocientes
numéricos de sua composição, acompanhado de procedimentos regimentais
para garantia do seu fiel cumprimento.328 Contudo, tais normas são consideradas
pela jurisprudência como de natureza de ato interna corporis, razão pela qual
caberia apenas à própria casa a determinação de que fossem cumpridas.329
Portanto, é fato que a proporcionalidade é de índole democrática,
devendo-se ater aos comandos da representação política. Nesse diapasão, a
composição das comissões deve atender ao princípio da proporcionalidade de
fato, não apenas em âmbito formal. A Comissão Especial Transitória para a
análise do Marco Civil parece ter cumprido a contento estes requisitos, sendo
composta por lideranças de ambas as bases.
4. AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E O PORTAL E-DEMOCRACIA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS: DA PROPOSIÇÃO COLABORATIVA À DELIBERAÇÃO COLABORATIVA
Primeiramente, destacam-se as lições de Orides Mezzaroba et alli acerca
da importância de canais democráticos que fomentem a participação popular
durante o processo legislativo, como o e-democracia:
[...] o Portal e-Democracia é uma iniciativa que avança no sentido de
Art. 27. A representação numérica das bancadas em cada Comissão será estabelecida com a
divisão do número de membros do Partido ou Bloco Parlamentar, aferido na forma do § 4° do
art. 8° deste Regimento, pelo quociente resultante da divisão do número de membros da Câmara
pelo número de membros da Comissão; o inteiro do quociente assim obtido, denominado quociente
partidário, representará o número de lugares a que o Partido ou Bloco Parlamentar poderá concorrer
na Comissão. (“Caput” do artigo com redação dada pela Resolução nº 34, de 2005, em vigor a partir
de 01/02/2007)
329
Nesse sentido, “Mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente da Câmara dos
Deputados, que indeferiu, para fins de registro, candidatura ao cargo de 3º Secretário da Mesa,
alegação de violação do art. 8º do Regimento da Câmara e do § 1º do art. 58 da Constituição. Ato
do Presidente da Câmara que, tendo em vista a impossibilidade, pelo critério proporcional, defere,
para fins de registro, a candidatura para o cargo de Presidente e indefere para o de membro titular
da Mesa. Mandado de Segurança impetrado para o fim de anular a eleição da Mesa da Câmara
e validar o registro da candidatura ao cargo de 3º Secretário. Decisão fundada, exclusivamente,
em norma regimental referente à composição da Mesa e indicação de candidaturas para seus
cargos (art. 8º). O fundamento regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar
solução no âmbito do Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário.
Inexistência de fundamento constitucional (art. 58, § 1º), caso em que a questão poderia ser
submetida ao Judiciário. Mandado de segurança não conhecido, por maioria de sete votos contra
quatro. Cassação da liminar concedida.” (MS 22.183, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em
5-4-1995, Plenário, DJ de 12-12-1997.) Grifamos.
328
292
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
dar ao cidadão finalmente o direito de se expressar, a oportunidade de
interagir e opinar, permitindo que ele promova debates e compartilhe
conhecimento no processo de elaboração de políticas públicas e projetos
de lei de interesse estratégico nacional.330
O Congresso Nacional é inspirado em modelos parlamentares bipartidos,
como o inglês, por exemplo. A Câmara dos Deputados brasileira representa
a casa do povo, a câmara baixa do Legislativo nacional. Por isso, é um local
propício para a participação popular no processo legislativo, sem prejuízo
daquela que também pode ocorrer em sede do Senado Federal. Soma-se a tal
o fato de que, dentre as funções típicas das Comissões Legislativas, está a de
promover audiências públicas.
A experiência participativa do projeto de lei 2.126/2011 foi narrada pelo
Relator da Comissão Especial para o tema na Casa. O Deputado Alessandro Molon
(PT-RJ) relatou que foram promovidas sete audiências públicas e outros seminários
em capitais de quatro das cinco regiões do país, além de Brasília. Além disso,
foram ouvidos sessenta e dois especialistas e dezenas de instituições acerca dos
temas propostos, que encaminharam inúmeras moções com sugestão de texto.
Em metodologia semelhante àquela adotada na fase anterior à propositura,
foram estabelecidos os princípios fundamentais a serem abordados e os temas
primordiais a serem discutidos. Outrossim, relatou que a pedra de toque em
termos de inovação durante o trâmite na Comissão Especial foi o a participação
popular pela Internet:
Além disso, como estamos tratando do estabelecimento de um marco
civil para a Internet, não poderíamos deixar de utilizar essa fantástica
plataforma para estimular a mais ampla participação popular. Assim, foi
criado pela Câmara dos Deputados um espaço especial de discussões
sobre o tema no sítio e-Democracia (http://www.edemocracia.camara.
gov.br), que incluiu um “wikilegis” para recebimento de propostas de
nova redação ao projeto, um fórum de discussões, sessões de bate-papo
em tempo real durante as audiências e seminários, e uma biblioteca
virtual com legislações, artigos, publicações, notas e vídeos. Também
surgiu, de forma espontânea, a hashtag #marcocivil nos micro blogs
Twitter e Identi.ca que citamos anteriormente, por meio da qual
SANTOS, P. M.; BERNARDES, M. B.; MEZZAROBA, O. . Democracia Eletrônica: Desafios
e Perspectivas. In: Encontros Internacionais do PROCAD, 2009, Florianópolis. Colóquio sobre
a Sociedade da Informação: Democracia, Desenvolvimento e Inclusão Tecnológica, 2009.
Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/artigo_edemocracia_procad_
final_ultimo.pdf. Acesso em: 22 ago. 2011.
330
293
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
recebemos incontáveis contribuições, algumas das quais terminaram por
integrar este relatório. No dia 13 de junho, também de forma espontânea,
teve início uma blogagem coletiva sobre o marco civil, que trouxe ao
público diversos artigos aprofundados sobre o tema. A exemplo do que
ocorreu no âmbito do Executivo, o texto do Projeto de Lei 2.126/2011
foi disponibilizado na íntegra na Internet, no sítio do e-Democracia.
Durante os trabalhos da Comissão, a página especial do marco civil da
Internet no e-Democracia recebeu aproximadamente 45 mil visitas. Os
fóruns que discutiam temas relativos ao marco civil receberam mais de
200 postagens. Além disso, exatas 140 propostas de alteração ao texto do
Projeto de Lei foram apresentadas por internautas no Wikilegis - algumas
delas agregadas ao texto do substitutivo que ora propomos [...]. Durante
os bate-papos em tempo real promovidos durante as audiências públicas
e os seminários realizados pela comissão, outras 2.215 mensagens com
contribuições foram transmitidas. Finalmente, milhares de mensagens
sob a hashtag #marcocivil circularam – e ainda circulam – nos micro
blogs Twitter e Identi.ca, contendo inclusive sugestões acatadas na
confecção do substitutivo.331
Aires José Rover ressalta que: “hoje a rede internet já é uma boa mídia
para a participação na política na medida em que pode ajudar as pessoas a
interagirem com seus governantes, [...] de forma mais rápida e econômica.” Ao
salientar que não necessariamente os meios de participação popular devam ser
os oficiais, o autor adverte, porém, que “os agentes governamentais devem estar
aptos para ouvir e processar o que os cidadãos têm a dizer.”332
O Marco Civil fez verificar também estas premissas. Afinal, as
discussões antes e durante o tramite do texto no Legislativo ocorreram muitas
vezes de forma espontânea e por meio de redes sociais que não somente o
portal e-democracia, influenciando na elaboração do projeto substitutivo que
delimitou melhor a redação de determinados dispositivos. Porém, conforme
se verá, deve-se perquirir se esgotam suficientemente o tema ou se sugerem
ainda mais dúvidas quanto à sua operatividade, em especial os dispositivos
que tratam da responsabilidade civil dos intermediários pelo conteúdo inserido
por terceiros.
Disponível em: http://edemocracia.camara.gov.br/documents/679637/277cc749-e543-46369ddb-736144a9b654. Acesso em: 23 ago. 2012.
332
Cf. ROVER. Aires José; MEZZAROBA, Orides. Novas tecnologias: o governo eletrônico na
perspectiva da governança. In: (Org.) Vladimir Oliveira da Silveira e Orides Mezzaroba. Empresa,
sustentabilidade e funcionalização do Direto. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
(coleção Justiça, Empresa e Sustentabilidade; v.2). Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/
sites/default/files/novas_tecnologias_-_uninove.pdf. Acesso em: 23 ago. 2012.
331
294
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
5. O SISTEMA DE RETIRADA DE CONTEÚDO E RESPONSABILIDADE DOS INTERMEDIÁRIOS: DESAFIOS À TUTELA DOS BENS DA PERSONALIDADE DO USUÁRIO
Antes de se adentrar especificamente no tema da responsabilização pelo
conteúdo inserido por terceiros, devem ser destacados brevemente alguns
aspectos pontuais do Marco Civil, a fim de se ilustrar seus alicerces axiológicos.
Ou pelo menos aqueles declarados pelo texto legal.
Primeiramente, o caráter principiológico e enunciativo de direitos civis é
um contraponto às iniciativas que, muito antes de pontuar quais são os agentes
na Rede, visavam criminalizar condutas dos usuários, em especial para a defesa
de interesses patrimoniais.333
O texto legal enuncia como fundamentos: I - o reconhecimento da escala
mundial da rede; II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade
e o exercício da cidadania em meios digitais; III - a pluralidade e a diversidade;
IV - a abertura e a colaboração; e V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a
defesa do consumidor; e VI – finalidade social da rede (art. 2º).
No que concerne aos princípios, enumera-os em rol exemplificativo334: I garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento,
nos termos da Constituição; II - proteção da privacidade; III - proteção aos
dados pessoais, na forma da lei; IV - preservação da garantia da neutralidade
da rede; V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede,
por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e
pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI - responsabilização dos agentes de
acordo com suas atividades, nos termos da lei; e VII - preservação da natureza
participativa da rede (art. 3º).
Destaque para a inclusão, no substitutivo proposto pelo relator da
Comissão Especial, ao desenvolvimento da personalidade e à finalidade social
da rede nos respectivos rols, além da falta de delegação à regulamentação
posterior do tema da neutralidade da rede.
Ademais, deve-se salientar que a finalidade primordial da lei é a de
garantir a privacidade do usuário. Segundo Stefano Rodotà, o “corpo”, na era
da informação, não se resume ao corpo físico, mas abrange principalmente o
conjunto de dados pessoais sobre os indivíduos, principalmente os chamados
dados sensíveis. Estes são parte de nosso “corpo eletrônico” e, portanto, carecem
Nesse sentido, V. LONGHI, João Victor Rozatti. A teoria dos sistemas dos sistemas de Niklas
Luhmann e o direito à informação no direito brasileiro. O “furto” de camelos jurídicos reais na
domesticação do direito da propriedade intelectual no âmbito da Internet. Artigo aprovado
para publicação no XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. São Paulo, 2009. Passim.
334
Art. 3º ...omissis... Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros
previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria, ou nos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte
333
295
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
de tutela diferenciada por representar um aspecto diferenciado da dignidade da
pessoa humana.335
O Marco Civil procura também evitar as más práticas de vigilância
que hoje compõem a estrutura do modelo de negócios de muitos provedores
de hospedagem e conteúdo, a quem a lei prefere chamar genericamente de
“provedores de aplicações da Internet” (art. 3º, VII).
Postas as linhas gerais, chega-se ao ponto mais controverso do texto
proposto. Trata-se do sistema de responsabilidade civil consagrado pela lei,
supostamente visando à proteção da privacidade do usuário.
Afinal, é possível identificar-se que a estrutura da Internet tem sofrido
alterações basilares nos últimos tempos. No início dos anos 2.000, os modelos
de negócio da Rede passaram a se basear no desenvolvimento de plataformas
que propiciassem a inserção de conteúdo pelos usuários, o que se denominou
pelo slogan comercial de web 2.0.336
A remuneração dos intermediários é feita não somente por anúncios em
banners e links patrocinados, mas principalmente pela chamada publicidade
dirigida, baseada nos cadastros de consumidores feitos através das preferências
do usuário. O marketing direcionado ou cross marketing, vai muito além de
banners e links patrocinados, mas decorre da estrutura de toda a Rede, que
se baseia no conteúdo inserido pelos usuários como o principal capital a ser
explorado pelos intermediários.
Primeiramente, é de se salientar que a jurisprudência brasileira tem frisado
como premissa básica a aplicação do CDC aos provedores de hospedagem e de
conteúdo pela remuneração indireta que caracteriza a relação entre fornecedor
e consumidor.
Por essa razão, a orientação predominante atualmente no STJ parte
da proteção do consumidor para construir jurisprudencialmente um sistema
próximo ao do notice and takedown, previsto na regulamentação estrangeira –
mormente a americana e europeia. Nesse sentido, já decidiu a corte:
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE
CONSUMO. [...] FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. [...] DISPONIBI Cf. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organização,
seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Doneda e Luciana
Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 17.
336
Cf. O’RELLY. Tim. O que é Web 2.0? Padrões de design e modelos de negócios para a
nova geração de software. Publicado em http://www.oreilly.com/. Tradução: Miriam Medeiros.
Revisão técnica: Julio Preuss. Novembro 2006 Disponível em: http://www.cipedya.com/web/
FileDownload.aspx?IDFile=102010. Acesso em: 09 ago. 2012.
335
296
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
LIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. [...]3.
A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos
do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens
nele inseridos. 6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita
que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de
conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada
manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência
média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que,
conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu
alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. 7. Ainda que não exija os
dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo, que registra o
número de protocolo na internet (IP) dos computadores utilizados para o
cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente eficiente
de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde
à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de
internet. 8. Recurso especial a que se nega provimento.337-338
REsp 1193764/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
14/12/2010, DJe 08/08/2011
338
Em recente decisão, publicada em informativo sem publicação do acórdão, o STJ reiterou
o posicionamento que confirma a sistemática do notice and takedown, decidindo como prazo
razoável para o bloqueio do conteúdo o de vinte e quatro horas.
Informativo nº 0500 - Período: 18 a 29 de junho de 2012 - Terceira Turma - REDES SOCIAIS.
MENSAGEM OFENSIVA. REMOÇÃO. PRAZO. A Turma entendeu que, uma vez notificado de
que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor deve retirar o material do
ar no prazo de 24 horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, pela
omissão praticada. Consignou-se que, nesse prazo (de 24 horas), o provedor não está obrigado
a analisar o teor da denúncia recebida, devendo apenas promover a suspensão preventiva das
respectivas páginas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações, de modo
que, confirmando-as, exclua definitivamente o perfil ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o
seu livre acesso. Entretanto, ressaltou-se que o diferimento da análise do teor das denúncias não
significa que o provedor poderá postergá-la por tempo indeterminado, deixando sem satisfação o
usuário cujo perfil venha a ser provisoriamente suspenso. Assim, frisou-se que cabe ao provedor,
o mais breve possível, dar uma solução final para o caso, confirmando a remoção definitiva da
página de conteúdo ofensivo ou, ausente indício de ilegalidade, recolocá-la no ar, adotando,
na última hipótese, as providências legais cabíveis contra os que abusarem da prerrogativa de
denunciar. Por fim, salientou-se que, tendo em vista a velocidade com que as informações circulam
no meio virtual, é indispensável que sejam adotadas, célere e enfaticamente, medidas tendentes
a coibir a divulgação de conteúdos depreciativos e aviltantes, de sorte a reduzir potencialmente a
337
297
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Determinados conteúdos, entretanto, carecem de tratamento diferenciado,
principalmente pelos riscos que apresentam à tutela dos direitos da personalidade
dos usuários.
É o caso de alguns interesses em especial, como o de crianças e
adolescentes, que já vem sendo objeto da atenção especial dos tribunais e de
políticas legislativas, como a do art. 241-A, § 2º, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, que responsabiliza criminalmente o responsável pela manutenção
em seu domínio de conteúdo relativo a pedofilia se, oficialmente notificado, não
proceda à sua efetiva retirada.339
Em sentido semelhante, visando à tutela de interesses análogos, já decidiu
o E. STJ, mantendo a tutela antecipada que determinou não só o bloqueio de
comunidades no site Orkut em que se veiculava material ofensivo a crianças e
adolescentes (uma delas vítima de crime sexual) como a obrigação de impedir
a criação de novas com o mesmo intuito. Em seu voto, consignou o Ministro
Relator Herman Benjamin:
PROCESSUAL CIVIL. ORKUT. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BLOQUEIO
DE COMUNIDADES. OMISSÃO. NÃO-OCORRÊNCIA. INTERNET
E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ASTREINTES. ART. 461,
§§ 1º e 6º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE OFENSA. 1. [...]Orkut [...]
O Ministério Público Estadual propôs Ação Civil Pública em defesa de
menores – uma delas vítima de crime sexual – que estariam sendo ofendidas
em algumas dessas comunidades. 2. Concedida a tutela antecipada pelo
Juiz, a empresa cumpriu as determinações judiciais (exclusão de páginas,
identificação de responsáveis), exceto a ordem para impedir que surjam
comunidades com teor semelhante. [...] 5. A internet é o espaço por
excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem
disseminação do insulto, a fim de minimizar os nefastos efeitos inerentes a dados dessa natureza.
REsp 1.323.754-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012.
339
Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por
qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo
ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008) Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e
multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que
trata o caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008); II – assegura, por qualquer meio,
o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste
artigo.(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008); § 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do §
1o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente
notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.
(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
298
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
lei e infenso à responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer. 6.
No mundo real, como no virtual, o valor da dignidade da pessoa humana é
um só, pois nem o meio em que os agressores transitam nem as ferramentas
tecnológicas que utilizam conseguem transmudar ou enfraquecer a
natureza de sobreprincípio irrenunciável, intransferível e imprescritível
que lhe confere o Direito brasileiro. 7. Quem viabiliza tecnicamente,
quem se beneficia economicamente e, ativamente, estimula a criação de
comunidades e páginas de relacionamento na internet é tão responsável pelo
controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade
de internautas e terceiros como os próprios internautas que geram e
disseminam informações ofensivas aos valores mais comezinhos da vida
em comunidade, seja ela real, seja virtual. 8. Essa corresponsabilidade –
parte do compromisso social da empresa moderna com a sociedade, sob o
manto da excelência dos serviços que presta e da merecida admiração que
conta em todo mundo – é aceita pelo Google, tanto que atuou, de forma
decisiva, no sentido de excluir páginas e identificar os gângsteres virtuais.
Tais medidas, por óbvio, são insuficientes, já que reprimir certas páginas
ofensivas já criadas, mas nada fazer para impedir o surgimento de outras
tantas, com conteúdo igual ou assemelhado, é, em tese, estimular um jogo
de Tom e Jerry, que em nada remedia, mas só prolonga, a situação de
exposição, de angústia e de impotência das vítimas das ofensas. [...] 11.
Recurso Especial não provido.340
Deve-se salientar que, em parte significativa dos Tribunais dos Estados,
há incluso decisões que se valem da responsabilidade objetiva e solidária dos
provedores para além dos casos de pedofilia na Internet.341
Contudo, o Marco Civil, originalmente, procurou introduzir sistemática
diversa. Os artigos 14 e seguintes trazem a necessidade de notificação judicial
do provedor para a retirada de qualquer conteúdo. Além disso, dispõe também
(REsp 1117633/RO, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em
09/03/2010, DJe 26/03/2010).
341
Nesse sentido, o E. TJRJ: Apelação Cível. Rito Ordinário. Criação de perfil falso em
site de relacionamentos denominado “Orkut”. Legitimidade da Google Brasil e Google Inc.
Responsabilidade objetiva que decorre da disponibilização do conteúdo na rede mundial de
computadores. As rés, como administradoras do site de relacionamentos, permitem a inserção
de conteúdos pelos seus usuários, sem nenhuma espécie de filtro ou controle, o que remete o fato
ofensivo à seara dos riscos do negócio, exsurgindo daí a responsabilidade objetiva da ré. Dano
moral configurado. Quantum indenizatório excessivamente fixado, que merece ser reduzido
ao patamar de R$ 9.000,00, em obediência aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade.
PROVIMENTO PARCIAL DO SEGUNDO RECURSO, PREJUDICADO O PRIMEIRO. TJRJ PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL - APELAÇÃO CÍVEL nº 2009.001.41528 - Relator: Desembargador
Ernani Klausner – Julg.: 1808/2009 – Public.: 24/08/09.
340
299
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que poderá o provedor, a pedido do usuário que inseriu as informações objeto
da decisão judicial, substituir o conteúdo pelas razões que o motivaram.
O sistema adotado tem por princípio, nos termos do relator do substitutivo,
a inimputabilidade da rede.342 As razões da opção legislativa foram explicitadas
pelo relator. Afirma que “tal medida visa a proteger os diversos intermediários
responsáveis apenas pela transmissão e roteamento de conteúdos,” asseverando
que “a responsabilidade por eventuais infrações por danos decorrentes de
conteúdo gerado por terceiros cabe àqueles que a cometeram, e não àqueles que
mantém a infraestrutura necessária para o trânsito de informações na Internet.”
Além disso, afirma expressamente que o sistema traz uma garantia à
“indevida responsabilização de intermediários na Internet”, protegendo-se “o
potencial de inovação na rede”, exceto por ordem judicial com determinação
específica. Defende que o sistema procura evitar “ordens genéricas de supressão
de conteúdo, com a obrigação de que a ordem judicial indique de forma clara
e específica o conteúdo apontado como infringente, de forma a permitir a
localização inequívoca do material.”
Por derradeiro, ressalta que o substitutivo fez constar na nova redação
do dispositivo a expressa menção à proteção da liberdade de expressão, afim
de se “evitar a censura, explicitando a preocupação da manutenção da Internet
como um espaço de livre e plena expressão, assim como, enfatiza que “a
responsabilidade de que trata o caput do artigo tem natureza civil.”
Duas últimas ressalvas devem ser feitas quanto aos riscos do sistema
adotado para a tutela dos direitos da personalidade do usuário.
A primeira diz respeito à necessidade de se indicar especificamente o local
das informações na Internet. No caso de danos à personalidade perpetrados pela
REde, é comum que as informações se multipliquem rapidamente pela Rede.
Quando o usuário efetua o pedido para a retirada, indica URLs que encontra e
que estão naquele momento na Rede mundial de computadores. Por essa razão,
já decidiu o E. STJ que incumbe a quem administra o site o dever técnico de
impedir a divulgação do conteúdo ilícito, não lhe impondo a tarefa hercúlea de
indicar precisamente as URLs:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. MENSAGENS OFENSIVAS À HONRA DO AUTOR VEICULADAS EM REDE SOCIAL NA INTERNET
(ORKUT). MEDIDA LIMINAR QUE DETERMINA AO ADMINIS Cf. BRASIL, Congresso Nacional – Câmara dos deputados. Relatório da Comissão Especial
destinada a proferir parecer sobre o Projeto de Lei nº 2.126, de 2011, encaminhado ao Congresso
Nacional pelo Poder Executivo por meio da Mensagem nº 326, de 2011. Disponível em: http://
edemocracia.camara.gov.br/documents/679637/277cc749-e543-4636-9ddb-736144a9b654.
Acesso em: 30 ago. 2012. pp. 44-45.
342
300
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
TRADOR DA REDE SOCIAL (GOOGLE) A RETIRADA DAS MENSAGENS OFENSIVAS. FORNECIMENTO POR PARTE DO OFENDIDO DAS URLS DAS PÁGINAS NAS QUAIS FORAM VEICULADAS
AS OFENSAS. DESNECESSIDADE. RESPONSABILIDADE TÉCNICA EXCLUSIVA DE QUEM SE BENEFICIA DA AMPLA LIBERDADE DE ACESSO DE SEUS USUÁRIOS. 1. O provedor de internet administrador de redes sociais -, ainda em sede de liminar, deve retirar
informações difamantes a terceiros manifestadas por seus usuários, independentemente da indicação precisa, pelo ofendido, das páginas que
foram veiculadas as ofensas (URL’s).
2. Recurso especial não provido.343
Além disso, o segundo ponto a se destacar é a justificativa do tratamento
legal dado a todo e qualquer provedores de aplicação, afirmando-se que a
ausência de responsabilidade é um corolário do direito fundamental à liberdade
de expressão. A liberdade de expressão não pode ser considerada em absoluto,
como se fosse o único valor a ser tutelado pelo ordenamento jurídico. Nesse
sentido, Rosely C. M. Maia e Wilson Gomes:
No momento da mais inflamada retórica emancipatória da Internet, a
rede era entendida como uma reserva ambiental protegida por qualquer
injunção de controle e filtro, e dedicada a cultivar a plena liberdade de
expressão. Liberdade que, automaticamente, deveria ser considerada
automaticamente como uma virtude democrática. O modelo de
democracia liberal-individualista conhecido como libertarianismo
encontrava na forma do ciberlibertarianismo, a sua ponta-de-lança.
Rapidamente se descobriu, entretanto, que a equação segundo a qual
a liberdade sempre está do lado da democracia e controle do lado da
tirania é só um artifício retórico do libertarianismo na sua forma mais
extremada. Há informação má, perigosa, criminosa, ofensiva à dignidade
humana, injuriosa e antidemocrática, e defender seu direito de existir
não é o mesmo que lutar por direitos civis no ciberespaço. Ao contrário,
pode significar o engajamento na proteção ao hate speech, ao racismo
publicado, à discriminação de minorias (Gomes, 2002). E se na Internet
de fato floresce um espaço da liberdade de expressão e de experiência
democrática, ela igualmente se transformou no paraíso dos conservadores,
da ultradireita, dos racistas e dos xenófobos, um refúgio que, aliás, tem REsp 1175675/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em
09/08/2011, DJe 20/09/2011
343
301
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
lhes sido mais seguro e próspero que o mundo offline.344
Os dispositivos sobre a responsabilidade do provedor pelo conteúdo
gerado por terceiro tiveram por duas vezes sua redação original modificada.
A primeira, antes da elaboração da minuta do projeto de lei a ser encaminhada
pelo Executivo, incumbia o provedor do dever de manter um canal em seu site
para receber notificações e contranotificações de usuários visando a remoção
de conteúdo ilícito, em sistema semelhante a sistemas estrangeiros. A redação
original também equiparava usuários que administravam páginas de divulgação
de conteúdo e exerciam o controle destas informações a provedores para tal fim.
O sistema engendrado foi substituído pelo atual, que contém a necessidade de
ordem judicial específica para a retirada. Durante as discussões é possível identificar
que, ainda que haja um forte apelo à liberdade de expressão, outros interesses estão
em jogo, principalmente o dos grandes intermediários da Internet, hoje responsáveis
pela maioria esmagadora das lides sobre conteúdo gerado por terceiros.345
A sistemática que parte da inimputabilidade da rede como um princípio
trata de maneira genérica toda e qualquer espécie de provedor, não se atentando
nem à robustez da empresa que desempenha, nem da possibilidade técnica de
controle que pode exercer por intermédio dos filtros que administra.
Eli Pariser, ao analisar a contradição existente entre o discurso dos
programadores de software acerca da necessidade de proteção dos direitos
individuais e da grande aglutinação de poder que o controle dos meios tecnológicos
proporciona, adverte: “Se o código é a lei, como na famosa declaração de Larry
Lessig, é importante entendermos o que os novos legisladores têm em mente.
Precisamos entender aquilo em que acreditam os programadores do Google e
do Facebook.”346 Em outro trecho, é enfático ao afirmar quais acredita serem as
reais intenções dos grandes intermediários ao preconizar uma liberdade absoluta
e irrestrita como base de suas condutas na Rede:
Com muita frequência, os executivos do Facebook, Google e
outras empresas socialmente importantes se fazem de bobos: são os
revolucionários sociais quando lhes convêm e empresários amorais
quando não. E as duas posturas deixam muito a desejar.347
GOMES, Wilson; MAIA, Rosely C. M. Comunicação e democracia. Problemas & perspectivas.
São Paulo: Paulus, 2008. pp. 321-322.
345
Nesse sentido, V. as discussões sobre os artigos 19 e seguintes da primeira versão do Marco
Civil, onde é possível se os autores da proposta de reforma. Disponível em: http://culturadigital.
br/marcocivil/debate/. Acesso em 29 ago. 2012.
346
PARISER, Eli. O filtro invisível. O que a Internet está escondendo de você. Trad. Diego Alfaro.
Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 23.
347
Id. p. 156.
344
302
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
As asseverações do autor, ainda que baseadas em declarações específicas
de inúmeros especialistas estrangeiros sobre o tema, ainda carecem de
verificação e, caso verdadeiras, podem ser contornadas quando transpostas à
realidade nacional. Principalmente se aprovada a atual redação proposta no
substitutivo proposto pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
Afinal, as duas ressalvas expressas no corpo do caput artigo 15, podem
nortear os futuros trabalhos hermenêuticos acerca do tema. O primeiro diz
respeito à menção expressa à garantia da liberdade de expressão e o segundo é
a frase ao final que ressalva acerca da possibilidade de coexistência com outros
sistemas de responsabilização em legislações diversas.
A pré-ponderação de valores que dá maior peso à liberdade de expressão, em
abstrato e sem prejuízo de outros valores do ordenamento igualmente relevantes
que podem prevalecer no caso concreto, é de grande valia para o intérprete. Valores
como a tutela de aspectos da personalidade como imagem atributo, privacidade,
dentre outros não podem ser simplesmente deixados de lado na Internet.
Eis a importância, portanto, do Parlamento para o abrandamento
dos interesses em jogo na elaboração do texto legal. Criar um sistema de
responsabilidade civil que parte do pressuposto da irresponsabilidade por todo
e qualquer conteúdo, fazendo depender o dever de retirá-lo do ar de provimento
judicial específico sobre o exato local da informação, pode deixar sem proteção
alguma o elo mais fraco desta corrente: o usuário.
Utilizar como subterfúgio o caráter absoluto da liberdade de expressão
para acobertar modelos de negócio irresponsáveis parece ser a subversão
completa dos valores constitucionais, que sempre tiveram as situações
subjetivas existenciais como corolário do epicentro axiológico do ordenamento:
a dignidade da pessoa humana. Em outros termos, usar o direito fundamental
à liberdade de expressão como base da “inimputabilidade” de todo e qualquer
intermediário da rede esconde a tutela de um único direito fundamental em
detrimento de todos os outros: a livre iniciativa.
Por esta razão, ainda que com maciça participação popular, a experiência
do Marco Civil ainda não parece ser a personalização da preconizada morte
do Poder Legislativo, mas apenas a evidência de uma de suas muitas funções
constitucionais, qual seja, a de promover a participação popular como elemento
enriquecedor e fortalecedor da deliberação.
CONCLUSÃO
A Internet, de fato, trouxe inúmeras mudanças na forma como cidadão
compreende o Estado e com ele interage. As possibilidades para a participação
popular são muitas e várias experiências são apontadas como bem sucedidas no
exercício da cidadania neste novo milênio.
303
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O Marco Civil da Internet no Brasil é visto como uma manifestação da
democracia participativa. As fases anteriores à propositura do projeto de lei
pelo Executivo nacional contaram com milhares de participações das mais
variadas vertentes.
A participação popular pela Internet não se restringiu a este momento,
adentrando aos debates também em sede legislativa. Várias foram as audiências
públicas e a participação popular pela Internet foi maciça tanto no portal
e-democracia da Câmara dos Deputados como em outros fóruns de discussões
pela Rede
Portanto, é possível se afirmar que se o Marco Civil da Internet no Brasil já
havia inovado como exemplo de democracia participativa na instrumentalização
de mecanismo sui generis de exercício da iniciativa popular e apresentou
uma espécie de projeto de lei colaborativo, também pode ser observado pela
influência da participação dos cidadãos nas deliberações legislativas.
Por isso, pode ser analisado não só pelo prisma da colaboratividade na
confecção do projeto de lei, mas, outrossim, pela interatividade entre o cidadão
e os representantes durante os trabalhos da Comissão Especial da Câmara, em
um verdadeiro processo legislativo colaborativo.
Desta maneira, enquanto muitos preconizam a perda de sentido no
Parlamento, deve-se partir da premissa de que é necessário a compreensão de
quais as atuais funções do Poder Legislativo.
O aprimoramento dos dispositivos acerca da responsabilização dos
intermediários da Internet pelo conteúdo inserido por terceiros contido no
substitutivo ao projeto de lei, ainda que tímido, abre maiores possibilidades
para a efetiva tutela de aspectos da personalidade do usuário, como sua imagem
atributo, imagem retrato, honra, identidade, dentre outros.
Logo, é possível se verificar que o uso da Internet na construção da
Democracia hoje não pode ser tratado de maneira superficial. Não se pode aceitar
acriticamente elucubrações acerca de uma possível “morte” do Legislativo.
Pelo contrário. Deve-se sim enaltecer as possibilidades que o uso da
tecnologia inaugura para a estruturação de uma forma diversa de legislar, mais
colaborativa e participativa.
304
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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307
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
SISTEMA CONSTITUCIONAL DE CRISES
NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
(ESTADOS DE SÍTIO E DEFESA)
Alexandre Walmott Borges348
Carlos Eduardo Artiaga Paula349
Moacir Henrique Júnior350
RESUMO
O presente trabalho visa estudar o sistema constitucional de crise na
Constituição de 1988 em uma perspectiva históricas, sistemática e analítica e,
para tanto, serão analisados os princípios basilares e fundamentadores do sistema
jurídico de crises, além da realização de comparações entre as Constituições
brasileiras pretéritas e a atual Carta Magna. Por fim, será realizada descrição
normativa minuciosa dos institutos jurídicos dos estados de sítio e defesa.
Palavras-Chave: sistema – crise – constituição – sítio – defesa.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho denomina-se sistema constitucional de crise na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a realizará descrição
normativa da legislação constitucional especial dos estados de sítio e defesa,
bem como das disposições que lhes são comuns. Este estudo utilizou como
princípio as normas da Constituição de 1988, comparando-a com os sistemas
das constituições anteriores. Foram consolidados argumentos típicos do direito
constitucional e de teoria da constituição sobre uma perspectiva analítica,
utilizando como meio de pesquisa obras doutrinárias de teoria da constituição
e direito constitucional positivo, bem como de outros ramos do direito, como
o direito criminal e o direito administrativo dos quais se extraem conceitos e
definições. O tema é exposto e problematizado sobre uma perspectiva analítica,
histórica e sistemática.
Professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fº - UNESP. Graduação
e mestrado. Professor da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Graduação e mestrado.
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. [email protected].
349
Mestrando em direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. [email protected].
350
Doutorando em Direito pela Universidade de Barcelona.
348
308
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
1. ABERTURA DO TEXTO
O Estado Democrático de Direito pressupõe um ordenamento rígido,
cuja alteração deverá submeter-se a um processo mais dificultoso e solene
que o previsto para as leis ordinárias, pois possui aversão às lacunas e vazios
supridos pelo arbítrio de autoridades governamentais. Neste prisma, as
constituições rígidas possuem grande importância como elemento necessário
à estabilidade das instituições fundamentais, pois elas capacitam definir,
com certa exatidão, a competência dos poderes governamentais; impedem
a modificação de dispositivos que, por sua natureza, estão sujeito a ligeiras
circunstâncias sociais. “Colocam o direito acima da lei. Contribuem, também,
para que o conteúdo das Constituições se faça mais facilmente compreensível
para o comum dos homens, educando-os civicamente” (MELLO, 1980: 67).
Ademais, as constituições rígidas prevêem estipulam os preceitos fundamentais
a determinado ordenamento e proporcionam uma base eficaz para a sua
permanência e continuidade. Nesse prisma, o direito constitucional possui
grande relevância, pois “rege a organização do Estado. Dá-lhe uma forma
determinada, e fixa os princípios cuja observância é necessária para que essa
forma não se altere (MELLO, 1980: 71).
O Estado é instituição fundamental na organização constitucional rígida,
todavia, não é a única, pois há outras que agem em campos diversos e não
são menos indispensáveis ou menos dignas. A declaração de direitos, portanto,
não deve compreender só os direitos individuais, mas, outrossim, os direitos
humanos, sociais e políticos. Portanto, o Estado não deve intrometer-se na
parte que não lhe diz respeito e, para isto, são postos limites nas Constituições
evitando abusos por parte dos governantes.
No ordenamento jurídico brasileiro, a constituição prevê limites rígidos
às mudanças constitucionais, os quais podem ser formais, materiais ou
circunstanciais. O primeiro grupo refere-se à iniciativa para propor emendas;
ao quorum de aprovação e, por último, à vedação de propor a mesma emenda
constitucional por mais de uma vez em uma única sessão legislativa. Os
materiais resumem-se nas cláusulas pétreas que são normas que o Constituinte
Originário buscou proteger, impedindo que seu conteúdo fosse suprimido. Por
fim, os circunstanciais que são períodos em que é vedado realizar emendas à
Constituição Federal, como a intervenção federal o estado de defesa e o estado
de sítio, sendo que os dois últimos são objetos do presente trabalho.
O ordenamento jurídico, por vezes, esbarra em situações de “anormalidade”
em que está em risco a sobrevivência da própria ordem jurídica e, portanto,
deve valer-se de instrumentos rápidos e efetivos utilizados para se restabelecer
a “normalidade”. Conforme Ferreira Filho (1999 apud FACCIOLLI, 2002), a
309
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
experiência histórica ensina que todos os povos, inclusive os cultos e prósperos,
passam por motivos de agitação, de desordem, de insubmissão, que não podem
ser sufocados pelas medidas ordinárias de polícia e que não podem ser extintos
dentro do respeito absoluto às garantias dos direitos fundamentais. Nestes
estados, pode o poder público dilatar o seu campo de atuação definidos pelo
legislador constituinte, conferindo ao Poder Executivo a prerrogativa de agir
sem observar certos direitos e garantias ordinárias.
Conforme Maximiliano (1956), as leis ordinárias vigem em períodos
ordinários em que se presumem determinadas condições de paz, tranqüilidade
e concórdia social relativa. Os esparsos distúrbios existentes não deixam de
ser ordinários, pois já estão previstas na própria ordem jurídica e permitem ao
Estado a devida prevenção e repressão. Caso esta condição de “normalidade”
mude, em situações como guerra civil, externa ou mesmo a existência de
expressivo grupo que não observa os princípios constitucionais, é necessário
permitir a relativização de certos direitos e garantias para que tais grupos
não utilizem os freios legais e a lentidão estatal como meios favoráveis à
instabilidade constitucional.
Os estados de crise constitucional lidam com os paradigmas da ordem
e liberdade, não conseguindo conciliá-los de forma plena, apesar de ambas
estarem intrinsecamente ligadas. A segurança, ou seja, a ordem é condição
indispensável da liberdade.
Os estados de crise constitucional além de estarem previstos em normas
constitucionais rígidas devem, mesmo em situações extremas, prever balizas
mínimas para garantir a segurança e não suprimir os direitos e garantias
individuais, como a vida, acesso à justiça e dignidade da pessoa humana.
2. TERMINOLOGIA
No Estado Democrático de Direito, a organização social é regulada por
normas jurídicas que submetem não apenas os cidadãos, mas o próprio Estado
e devem ser observados os direitos e garantias individuais e coletivos. Ocorre
que, para resguardar o próprio Estado Democrático de Direito, a ordem jurídica
prevê soluções para os momentos de tormenta institucional e política que,
conforme Motta Filho e Santos (2004: 556) constituem fórmulas preventivas ou
repressivas para atender as contingências da crise que “visam à estabilização e a
defesa da Constituição contra processos violentos de mudança ou perturbação da
ordem constitucional, mas também a defesa do Estado quando a situação crítica
derive de guerra” (SILVA, 2004:741). Tratam-se dos sistemas constitucionais
de crise que constituem “o conjunto coordenado de normas constitucionais que,
informadas pelos princípios da necessidade e temporalidade, tem por objetivo
310
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
as situações das crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da
normalidade constitucional” (SANTOS, Aricê Moacyr Amaral, 1989 apud
Silva, 2004, 741).
O presente trabalho intitula-se estado de sítio e estado de defesa que são
nomenclaturas utilizadas pela Constituição da República Federativa do Brasil
do qual são espécies do gênero do sistema constitucional de crises. Canotilho
(2000) utiliza a expressão estados de necessidade constitucional e “suspensão
do exercício de direitos fundamentais”. O ilustre Doutrinador ainda observa que
várias outras expressões são utilizadas para referir-se a esta mesma questão, tais
como, “defesa da República”, “suspensão de garantias fundamentais”, “defesa
de segurança e ordem pública”, “estado de exceção constitucional”, “proteção
extraordinária do estado”, mas que todas levam a um único significado.
Motta Filho e Santos (2004) oportunamente observam que a terminologia
“estado de exceção” não coaduna com o Estado Democrático de Direito, pois
implicam em uma situação de “supressão” ou “vazio de direito”. Adotam
como terminologia correta os “estados de legalidade extraordinária” (MOTTA
FILHO; SANTOS, 2004: 562) ou, ainda, sistemas constitucionais de crise.
3. O DIREITO DE NECESSIDADE CONSTITUCIONAL
O constitucionalismo do século XIX, apesar de haver precedentes,
inclusive fora do âmbito constitucional, como no direito romano na teoria
do jus extremae necessitatis e em salus rei publica suprema lex esto que
exprime um direito de exceção em casos de crise estatal e social, defende que
o estado de exceção deve ter como alicerce a Constituição e remissão de sua
regulamentação para a lei infraconstitucional, evitando lacunas que permitiriam
uma complementação legislativa sensivelmente subversora dos próprios
princípios constitucionais.
Trata-se do direito de necessidade constitucional que visa garantia a
própria vida do Estado face a uma agressão externa ou comoção intestina grave.
Todavia, este estado deve ser implementado por um período determinado,
conforme princípio da temporariedade e não pode haver supressão total de
direitos. Portanto, em situações de crise e de emergência (guerra, tumultos,
calamidades públicas), utiliza-se os próprios recursos constitucionais
necessários, adequados e proporcionais, para se obter o restabelecimento da
“normalidade”, sendo utilizado por tempo determinado e as garantias são
apenas suspensas, não podendo ser extintas ou suprimidas. Portanto, não se
visa obter uma causa de justificação para uma excludente de culpa por fatos ou
medidas praticadas para a defesa da ordem constitucional351, mas uma causa
Diferente do modelo inglês que confere prerrogativas ao Executivo em momento de crises por
351
311
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
justificativa que exclua a idéia de ilicitude dos mesmos fatos ou medida, ou
seja, supera a idéia de “ilicitude constitucional” para reconhecer o direito e
dever das autoridades constitucionalmente competentes para recorrer a meios
excepcionais, necessários, adequados e proporcionais para afastar perigos
graves ou situações de crises que ameaçam a ordem constitucional.
Há uma inserção do direito dos sistemas de crise na órbita do direito
constitucional para limitar o arbítrio dos executores das medidas de crise.
José Joaquim Gomes Canotilho (2000) enfatiza que é essencial ao estado
constitucional impor a regulamentação do estado de necessidade na órbita
constitucional e não há direito excepcional alheio à constituição.
Ademais, o direito de necessidade constitucional encontra paralelos
no âmbito do direito internacional (estado de guerra), do direito penal (p.ex.,
legítima defesa), do direito civil (p.ex., legítima defesa e direito de resistência)
e do direito administrativo (p.ex., estado de necessidade administrativa).
O direito de necessidade é jurisdicizado por meio de indicação dos órgãos
de soberania competentes para a adoção de medidas necessárias e apropriadas
ao restabelecimento da normalidade constitucional.
Nesta linha, seguem a Constituição Portuguesa de 1976, a Constituição
Sueca de 1975, a Constituição Espanhola de 1978 e a Constituição Brasileira
de 1988.
4. DIREITO DE CRISE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Diego Valadés (1977 apud SILVA, 2004) e David Easton (1968 apud
SILVA, 2004) observam que o equilíbrio constitucional implica em uma
distribuição de poder de certa forma eqüitativa a ponto de nenhum grupo
sobrepor-se aos demais. Este equilíbrio é gerado por um rígido sistema
constitucional, sem o qual o estado de exceção não passará de uma simples
ditadura352. Quando se rompe com este balanço de poderes, um próprio órgão
previsto constitucionalmente, geralmente o Executivo, absorve grande parcela
de um poder ilimitado e, por conseguinte, implantam um regime ditatorial. Diego
Veladés (1977 apud SILVA, 2004) observa que este regime é, com freqüência,
utilizado para preservação do domínio de uma determinada classe dominante.
No Brasil, o sistema de crises era mais utilizado “com o intuito de
reprimir simples divergências político-partidárias que de defesa constitucional”
meio do documento do Bill de Indemnidade que serve para “apagar” a responsabilidade penal ou
civil dos membros do Executivo e seus subordinados, quando, em casos de emergência, violem as
constituições ou as leis.
352
Ditadura é compreendida como amplos e diversos poderes outorgados a determinado ente
político que, apesar das prerrogativas, submete-se a preceitos mínimos da ordem jurídica. Diferese dos estados totalitários em que o soberano não está inserto na ordem que impõe e, portanto,
possui poder total.
312
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
(SILVA, 2004: 742). A Constituição de 1937 implantou a ditadura de Vargas,
declarando em todo o país o estado de emergências (art. 186). Em 1964 a 1978,
o Brasil viveu um permanente estado de exceção, consubstanciado nos Atos
Institucionais. Com o AI n.º 5 de 13 (treze) de dezembro de 1968 que vigorou
até 10 (dez) de outubro de 1978, foi permitido fechar Casas Legislativas,
cassar mandatos populares, demitir funcionários, suspender direitos políticos,
aposentar e punir magistrados e militares; tudo com o fito de coibir adversários
políticos, sustentar os detentores do poder e os interesses da classe dominante.
Esta normatividade perdurou com a Emenda Constitucional de 1969 e com a
Emenda Constitucional 11/78, incorporando mecanismos de poder substitutivos
dos atos institucionais.
O ordenamento jurídico brasileiros possui uma predileção pelo estado
de sítio por inserir a medida de defesa no âmbito constitucional; por suspender
certos direitos e não toda a Carta Magna e também por prever limites legais e
jurisdicionais para limitar o âmbito de atuação das autoridades responsáveis por
executar a medida, conforme será explanado abaixo.
4.1 CONSTITUIÇÃO DE 1824
A Carta de 1824 admitia a hipótese de suspensão de garantias
constitucionais quando houvesse “rebelião e invasão inimigos”. Esta suspensão
competia o Legislativo, mas em seu recesso cabia ao Executivo instaurá-lo,
prestando contas à Assembléia na primeira oportunidade. Ademais, permitia-se
que as Assembléias Provinciais instaurassem o estado de sítio.
4.2 CONSTITUIÇÃO DE 1891
A Carta de 1891, como sistema constitucional de crise, utilizava
expressamente o termo estado de sítio em seu art. 34. A competência para
decretá-lo era do Congresso Nacional e, na sua ausência, do Presidente da
República. Difere-se da Constituição de 1824 que permitia aos Entes Federados
decretar a medida de crise. O estado de sítio “suspende garantias constitucionais
(art. 80), traz conseguintemente a suspensão de uma parte da Constituição, e
o acto de declaral-o estabelece uma lei de excepção” (CAVALCANTI, 2002:
118, sic). O alcance da medida e os direitos que ficarão suspensos estavam ao
arbítrio das autoridades instituidoras, porém, estas deverão observar critérios
de razoabilidade e proporcionalidade, conforme observado por Cavalcanti
(2002: 121, sic): “a extensão dessa providencia extraordinária ha de medirse pela gravidade e grandeza do perigo da patria”. Deve, ainda, observar o
princípio da temporalidade, pois se assim não fosse seria conferido ao arbítrio
313
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
da “autoridade constituir-se em dictadura por todo o tempo que lhe parecesse”
(CAVALCANTI, 2002: 121, sic).
É instituído quando a segurança pública o exigir e correndo a pátria
iminente perigo nos casos de emergência por força estrangeira ou de comoção
interna. Quando a agressão estrangeira ou a comoção intestina assumiam
grandes proporções, ameaçando a República com grande risco, o estado de
sítio podia ser declarado de imediato, independentemente da autorização do
Congresso. Conforme Cavalcanti (2002: 119-120), o código penal da época
permitia, em casos de motim, tumulto, assuada ou sedição, a autoridade policial
utilizar-se de força armada e prisão preventiva, independentemente de mandado
judicial. Era vedado coibir as imunidades parlamentares e as do Presidente da
República.
Era conferido ao Congresso o controle da medida, podendo aprovar ou
suspender o estado de sítio decretado pelo Executivo, por intermédio do Chefe
do Executivo ou por seus agentes, sendo que as autoridades que ordenaram
a medida respondiam pelos abusos cometidos. A Constituição de 1891 é
omissa quanto à obrigatoriedade de convocar o Parlamento durante o recesso
parlamentar e ainda prevê que o Presidente e os Executores da medida deverão
apresentar relatório motivado após o ato legislativo especial, não lhe impondo
o ônus de apresentar documentos ou provas, nem prevendo sanções rígidas para
crime de responsabilidade.
4.3. CONSTITUIÇÃO DE 1934
A Constituição de 1934 manteve o estado de sítio nas mesmas linhas,
porém cuidou-se de regular minuciosamente certas providências, a fim de evitar os
abusos praticados pela Constituição anterior. O Presidente da República declara o
estado de sítio com a prévia autorização do Legislativo. Em recesso do Congresso
Nacional, o Chefe do Executivo poderá decretar a medida com a aquiescência da
Seção Permanente do Senado Federal e, nos próximos 30 (trinta) dias a Assembléia
Legislativa deverá se reunir, independente de provocação, para averiguar os
motivos determinantes da instauração da medida, mantendo-a ou rejeitando-a. É
decretado por 90 (noventa) noventa dias prorrogáveis por igual período de cada
vez, permitidos a restrição de direitos e garantias concernentes à liberdade física,
à correspondência e às publicações em geral, à liberdade de reunião e de tribuna e
à inviolabilidade de domicilio. Permanecia, em qualquer hipótese, as imunidades
parlamentares. Cessada a medida, devem seus executores apresentar relatório
minucioso das medidas adotadas e estes poderão ser responsabilizados civil e
criminalmente pelos abusos cometidos. Permitiu ao legislador infraconstitucional
editar lei regulamentar para a guerra ou de emergência de guerra.
314
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Com a intentona Comunista de 1935, as normas constitucionais do
estado de sítio foram emendadas, implementando um tipo específico do estado
de sítio, utilizado quando houvesse comoções intestinas graves com finalidades
subversivas das instituições políticas e sociais. Este último é equiparado ao
estado de guerra e nele estariam suspensas todas as garantias constitucionais,
com exceção daquelas a que se fizesse menção expressa o decreto de instauração.
4.4 CONSTITUIÇÃO DE 1937
Utilizava a denominação estado de emergência e estado de guerra
para referir-se ao Estado de sítio (art. 166), decretado pelo Presidente
independentemente de autorização do Parlamento, durante o qual deixaria “de
vigorar a Constituição nas partes indicadas pelo Presidente da República” (art.
171). Na realidade, trata-se de sistema de suspensão da Constituição e não
estado de sítio.
4.5 CONSTITUIÇÃO DE 1946
A Constituição de 1946 trata do sistema constitucional de crise em seus
artigos 206 a 215. Ela retorna ao sistema tradicional, prevendo duas modalidades
de estado de sítio: a primeira aplicada em casos de comoção intestina grave ou
de sua ameaça, admitindo-se a suspensão de algumas garantias constitucionais
e na segunda, utilizada em casos de guerra externa ou guerra civil que admitiria
maior suspensão de direitos e garantias, desde que especificadas em lei
específica. A medida de crise é instituída por intermédio de lei pelo Congresso
Nacional e na ausência deste por meio de decreto do Presidente da República
que deverá, de imediato, convocar o Legislativo para se reunir dentro de quinze
dias, a fim de aprovar ou não o estado de sítio.
Na hipótese de comoção intestina grave, a medida somente poderá vigorar
por 30 (trinta) dias prorrogáveis por igual período e os direitos a serem restritos
estão expressamente previstos na Constituição. Na hipótese de guerra externa
poderá ser instituído o estado de sítio por todo o tempo em que a ameaça perdurar
e a Carta Magna é omissa quanto aos direitos restringidos. Durante o estado de
sítio subsistem as imunidades parlamentares, mas poderão ser suspensas caso
o parlamentar atue de forma incompatível com a defesa da nação, o que será
apurado com a deliberação de dois terços dos membros da Câmara ou do Senado.
Expirado o estado de sítio, cessam os seus efeitos, obrigando o Presidente
da República especificar e justificar as providências adotadas. O controle do
Poder Judiciário permanece durante toda a medida, mas abarca somente os atos
ilegais e não os discricionários.
315
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
4.6 CONSTITUIÇÃO DE 1967
A Constituição de 1967, em sua redação primitiva, consagrou o estado
de sítio em casos de grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção e
guerra, durante o qual era previsto a suspensão de certas garantias (art. 152), tais
como: a) obrigação de residência em localidade determinada; b) detenção em
edifícios não destinados aos réus de crimes comuns; c) busca e apreensão em
domicílio; d) suspensão da liberdade de reunião e de associação; e) censura de
correspondência, da imprensa, das telecomunicações e diversões públicas; f) uso
ou ocupação temporária de bens das autarquias, empresas públicas, sociedades de
economia mista ou concessionárias de serviços públicos, assim como a suspensão
do exercício do cargo, função ou emprego nas mesmas entidades.
Permitia criação de lei regulamentar que autorizasse outras medidas em
crises graves decorrentes de fatores de subversão ou corrupção (art. 152, § 3º). A
competência para decretar era exclusiva do Presidente da República, sujeitando
o ato à apreciação do Congresso.
Permanecia por no máximo sessenta dias, podendo ser prorrogada por
igual prazo com justificação do Presidente da República ao Congresso Nacional.
Caso este não esteja reunido, será convocado imediatamente pelo Presidente do
Senado Federal.
As imunidades dos Parlamentares prevalecem, exceto quando suspensa
por voto secreto de dois terços dos membros da Casa a que pertencer o
congressista. Ademais, subsiste o controle pelo Poder Judiciário dos atos ilegais.
Com a emenda do Ato Institucional n.º 5 de 13 de dezembro de 1968,
permitia-se a decretação do estado de sítio sem a aprovação do Congresso ou
quaisquer outras limitações primitivamente previstas no texto constitucional.
A Emenda Constitucional n.º 1 de 17 de outubro de 1969, em seu artigo
182, previu uma suspensão transitória e parcial da Constituição, instaurando um
estado de extraordinário, análogo ao estado de guerra da carta de 1937, com o
fito de debelar a subversão e extinguir a corrupção.
4.7 EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 11/1978
A Emenda n.º 11 de 13 de outubro de 1978 deu nova redação à matéria
inovando no ordenamento jurídico brasileiro ao mesmo tempo em que revogou
o Ato Institucional n.º 5. O sistema constitucional de crises somente era
instaurado para preservar ou prontamente estabelecer, em locais determinados
e restritos, a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por calamidades ou
graves perturbações, quando estas últimas não implicarem em medidas mais
drásticas (art. 155).
316
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O estado de sítio é decretado pelo Presidente da República com
a aprovação do Congresso nos casos de “guerra ou a fim de preservar a
integridade e a independência do País, o livre funcionamento dos poderes e de
suas instituições, quando gravemente ameaçados ou atingidos por fatores de
subversão” (art. 156). As hipóteses de sua decretação são taxativas, bem como
os direitos a serem restringidos, admitindo outras hipóteses regulamentadas em
lei específica (art. 156, § 6º). Persiste por 180 (cento e oitenta) dias renováveis
até durar a situação que gerou sua decretação.
Outra inovação é o estado de emergência, declarado pelo Presidente da
República, mas não sujeito à apreciação do Legislativo (art. 158), utilizado
em casos de guerra ou para repelir atividades subversivas. As medidas são as
mesmas aplicadas no estado de sítio, com a diferença de que o prazo é de 90
(noventa) dias renovável por uma só vez por igual período. Para ser ouvido
sobre sua decretação, previu o Conselho Constitucional (art. 159), composto
pelo Presidente da República, o Vice-Presidente, os Presidentes do Senado
Federal e da Câmara dos Deputados, o Ministro da Justiça e um dos Ministros
das Forças Armadas.
5. DIREITO CONSTITUCIONAL DE CRISE NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
O processo de elaboração da Nova Carta Magna atualmente em vigor
buscou ao máximo reagir em desfavor do autoritarismo vivido durante o período
militar. Isto se reflete no tratamento dado à questão da emergência, a começar
pelo nome do título V: “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”
que manifesta não apenas a proteção do Estado, mas também da Soberania
Nacional e a Pátria em sua manifestação mais concreta, consubstanciada pelas
instituições democráticas.
A defesa do Estado difere-se sobremaneira da defesa de um determinado
“sistema político”, pois, por detrás de um sistema político há diversos interesses
privados que visam utilizar dos poderes extraordinários em seu próprio benefício
(Baracho, 1987 apud Ivo Dantas, 1989). O sistema brasileiro constitucional
de crises não mais visa “a defesa deste ou daquele regime político ou de uma
particular ideologia ou de um grupo detentor do poder” (SILVA, 2004: 740-741).
A nova Constituição de 1988 estabelece um sistema geral de exceção que
não se afasta muito do que adotou a Emenda n.º 11/78, prevendo dois sistemas
de resposta: um mais brando – o estado de defesa – e outro mais rigoroso, o
estado de sítio.
O primeiro se destina a “preservar ou prontamente restabelecer, em locais
restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave
317
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes
proporções da natureza” (BRASIL, 1988, art. 136, caput). Já o segundo volta-se
para a “ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia” das medidas tomadas
no estado de defesa, e, também, para os casos de “declaração de guerra” ou de
“resposta a agressão armada estrangeira” (BRASIL, 1988, art. 137, I e II). A
diferença entre o estado de sítio e de defesa encontra-se no grau de gravidade.
Enquanto o primeiro cabe a situações de gravidade mais elevada, no segundo,
o problema é menor. Ademais, o estado de defesa possui abrangência territorial
pontual, enquanto o estado de sítio poderá ser limitado a uma determinada área
do território nacional (art. 138, caput).
5.1 DO ESTADO DE DEFESA
Conforme Ivo Dantas (1989) o art. 136, que regulamenta o estado de
defesa, corresponde ao art. 152 caput do texto constitucional de 67/69, embora
este se utilizava da expressão “medidas de coercitivas”.
A medida está inserida no título V, “Da Defesa do Estado e das Instituições
Democráticas” e, no capítulo I, há a previsão legal: “Do Estado de Defesa e
do Estado de sítio” (BRASIL, 1988, grifos nossos). Neste título, Estado uma
forma de organização política. Já, no art. 136, quando se refere a estado de
defesa, “estado” refere-se a uma “situação”, circunstância”, “conjuntura”, um
Ser em um dado momento; achar-se (em certa condição). Esta segunda noção é
compatível aos estados de sítio e defesa, por estarem lastreados pelos princípios
da necessidade e temporalidade.
5.1.1 INSTAURAÇÃO DO ESTADO DE DEFESA
Da expressão decretar o estado de defesa entende-se que a espécie
legislativa que instaura o estado de defesa é o decreto manifestador do chefe do
Poder Executivo que nada mais é do que a determinação do Chefe do Estado,
nos termos da CF, art. 84, IV. O controle do Congresso Nacional ainda subsiste,
pois é de sua competência exclusiva “sustar os atos normativos do Poder
Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação
legislativa”, nos termos do art. 49, V, CR/88.
O estado de defesa trata-se de faculdade pessoal do Presidente, advindas da
expressão “O Presidente da República pode (...)” (BRASIL, 1988). Deste texto,
todavia, há uma indagação crucial ao afirmar que “o Presidente da República
ouvirá os Conselhos da República e ao Conselho de Defesa Nacional” (Brasil,
1988, art. 136, caput), ou seja, a decisão final do Chefe do poder executivo
subordina-se a estes órgãos ou a decisão de ambos em nada vinculará a decisão
318
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
do Presidente da República? Conforme interpretação sistêmica, em que se
analisa o todo constitucional, Ivo Dantas (1989) afirma que pela análise do
“espírito constitucional”, havendo divergência entre a posição dos Conselhos
e do Presidente da República deve-se preponderar a decisão daqueles. Dantas
(1989) ainda observa que, caso haja divergência entre o Conselho da República
e o Conselho de Defesa Nacional, a posição daquele (Conselho da República)
deve preponderar por ter uma composição mais eclética.
Contudo, a doutrina majoritária, como Mota e Spitzcovsky (2004), Ferreira
Filho (2009), Chimenti (2005), Capez (2008), entende que o parecer de ambos
Conselhos não é, senão, opinativo, pois não vincula o Presidente da República que,
mesmo contra o parecer, poderá solicitar a autorização do Congresso Nacional
para aprovar o estado de defesa (ou decretar o estado de sítio). José Afonso da
Silva (2004) entende que a audiência dos Conselhos da República e de Defesa
Nacional é obrigatória, sob pena de inconstitucionalidade da medida. Todavia, são
apenas órgãos consultivos que não vinculam o Presidente da República, mas caso
este decida contra aqueles, poderá ensejar hipótese de crime de responsabilidade.
Em 24 (vinte e quatro) horas o decreto deverá ser encaminhado ao
Congresso com a respectiva justificativa que, no prazo de 10 dias deverá
aprová-lo (conforme art. 49, IV da CF) ou rejeitá-lo (art. 136, §§ 4º, 6º e 7º da
CF), sempre por maioria absoluta. “Por se tratar de medida de exceção, creio
que o decurso do prazo sem manifestação do Congresso implica em imediata
suspensão do decreto” (CHIMENTI, 2005: 132). Ivo Dantas (1989) ressalta
que, quando o texto constitucional menciona que rejeitada a medida pelo
Congresso, cessa imediatamente o estado de defesa, não há que se esperar a
publicação no Diário Oficial do Congresso, bastando somente a comunicação
escrita do Presidente da República ao executor da medida.
Caso o Congresso esteja em recesso, será convocado no prazo de
cinco dias para apreciar a matéria nos dez primeiros dias de seu recebimento
e funcionar durante todo o tempo que vigorar o estado de defesa, conforme
art. 136, § 6º. Na sessão legislativa extraordinária, o Congresso somente
poderá deliberar sobre a matéria, conforme art. 57, § 7º, cabendo-lhe ainda,
por iniciativa da “Mesa, e ouvidos os líderes partidários, designar Comissão
composta por cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução
das medidas”, sejam elas referentes ao estado de defesa ou ao estado de sítio
(art. 140, CF/88). Todavia, conforme Ivo Dantas (1989), o Congresso não
poderá apresentar emendas aditivas ou supressivas ao decreto do Presidente
da República que instituir o estado de defesa, por trata-se de ato privativo do
Chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 84, IV da CR/88. Ademais, como
limites materiais fixados constitucionalmente o decreto presidencial não poderá
inovar, cabendo ao Congresso acatar ou rejeitar a medida. Daí a importância da
justificativa presidencial.
319
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O Congresso Nacional assume participação efetiva face à decretação do
estado de defesa, diferente da Constituição de 1967, com a emenda n.º 1 de
1969, que em seu art. 158 estipulava que o Presidente deveria apenas informar
o Congresso sem ter qualquer posição contrária às medidas adotadas. O § 4º
do art. 136 da CF/88 menciona que o Presidente da República submeterá o
decreto a decretação do estado de defesa ao Congresso Nacional que apreciará
por maioria absoluta. Por fim, rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado
de defesa (art. 136, § 7º), e, em conseqüência, se o Congresso voltará ao seu
período de recesso.
5.1.2 REQUISITOS PARA A OCORRÊNCIA DO ESTADO DE DEFESA
Ao decretar a medida, devem-se fixar, de maneira clara e objetiva, os
objetivos reais ao serem alcançados os quais devem preservar ou prontamente
restabelecer a ordem pública em locais restritos e determinados. Infere-se,
portanto, que a medida já pode ser aplicada a partir da ameaça, não sendo
necessário que sejam atingidas a paz social e a ordem pública.
Para a ocorrência do estado de defesa, é necessária a ocorrência de grave
e iminente instabilidade institucional, sendo que esta deriva de obra humana ou
por calamidades de grandes proporções da natureza. Frise-se que a instabilidade
institucional deve ser grave e iminente, enquanto a calamidade da natureza deve
ser em grandes proporções. Sem estes requisitos, o Congresso Nacional deverá
rejeitar a medida. Portanto, não há que se considerar a greve como algo fora da
normalidade para justificar a implantação do estado de defesa, pois primeiramente
é direito constitucionalmente previsto no art. 9º da Constituição que preceitua:
“É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a
oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”
(BRASIL, 1988) e, portanto, não está “fora da normalidade”. Em segundo lugar,
a calamidade é sempre uma situação de desajuste no âmbito de sua verificação.
Esta medida se justifica, pois, em situações de calamidade, seja natural
- ciclone, tornado, furacão, terremoto, maremoto, inundação, seca prolongada
- ou ato derivado do homem – peste, epidemia, fome, incêndio -, poderão as
autoridades públicas ver dificultados os esforços para instalar hospitais, postos,
depósitos e abrigos, permitindo ao Poder Público tomar medidas mais rígidas
para remediar a situação.
5.1.3 REQUISITOS DO DECRETO QUE INSTITUIR O ESTADO DE DEFESA
As restrições de direitos e garantias a viger durante o estado de defesa
observam os parágrafos primeiro e segundo do art. 136 da Constituição da
320
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
República de 1988 que preceituam que apresentam o aspecto material do estado
de defesa, apontando o conteúdo da norma jurídica proferida pelo Poder Executivo
que deve limitar-se ao parâmetro legal. Além disso, conforme Ivo Dantas (1989) a
Constituição ao utilizar a expressão “nos termos e limites da lei” está a requerer a
elaboração de lei que discipline a utilização desta norma de crise.
O primeiro ponto a ser estipulado no decreto de defesa é o tempo de
duração que será de trinta dias, prorrogáveis uma só vez por igual período.
Este prazo não é absoluto, pois, caso o Congresso Nacional rejeite a medida
de defesa, cessa desde logo os efeitos, conforme verifica-se nos §§ 4º e 5º do
art. 136, CF/88. O prazo de 30 (trinta) e 60 (sessenta) dias são limites máximos
a serem observados. Caso haja a expiração deste prazo, “o remédio será a
decretação do estado de sítio, com base na autorização legal prevista no art.
137, I, da Constituição Federal”. (ALEXANDRINO e PAULO, 2007: 862)
O segundo item será fixar as áreas a serem abrangidas que, na verdade,
trata-se do desdobramento do próprio caput, quando menciona “locais restritos
e determinados”. Conforme Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2007), por
uma interpretação constitucional sistemática, o estado de defesa não poderá
abranger todo o território nacional, pois, se assim fosse, a medida a ser adotada
seria o estado de sítio. Ademais, neste estado, somente após a publicação do
decreto, as áreas serão especificadas.
O último aspecto é a menção das medidas coercitivas a vigorarem,
pois é facultado ao Presidente da República utilizar algumas das medidas ou
todas, mas não pode exasperar os limites constitucionais estipulados. O texto
constitucional é omisso em não determinar ao Poder Executivo as pessoas
encarregadas da execução do estado de defesa.
A constituição de 1988 além de diferenciar a duração dos dois estados,
estabeleceu restrições quanto às matérias, além de dividi-las em dois grupos, o
primeiro utilizado na hipótese de grave e iminente instabilidade institucional,
com as restrições de reunião, ainda que exercida no seio das associações; sigilo
de correspondência; sigilo de comunicação telegráfica e telefônica (art. 136,
I, a, b e c) e o segundo na hipótese de calamidades de grandes proporções na
natureza, que cheguem a comprometer a ordem pública e a paz social em que se
aplica a hipótese do art. 136, II.
Os direitos não são suprimidos ou extintos e sim limitados, apertados o
que os torna estreito. Os limites deverão ser definidos em lei e não no decreto do
estado de defesa. Como esta regulamentação ainda não existe, resta a alternativa
do Poder Executivo utilizar-se da medida provisória, prevista no art. 62, CR/88,
em razão da relevância e urgência da matéria.
A reunião, compreendida como “agrupamento voluntário de diversas
pessoas que, previamente convocadas, acorrem ao mesmo lugar com objetivos
321
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
comuns” (CRETELLA JÚNIOR, 1992: 3359) poderá ser restringida, limitando
os direitos previstos no art. 5º, XVI, XVII e XIX. Ivo Dantas (1989) entende
que esta restrição atingirá também a associação profissional e sindical prevista
no art. 8º, caput.
Poderá o decreto determinar restrições ao sigilo de correspondência ou
ao sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, sendo que estas deverão ser
utilizadas concomitantemente, conforme se depreende pelo uso na conjunção
“e” no texto constitucional, relativizando o disposto no Art. 5º, XII.
Na hipótese de calamidade pública, o decreto que instituir o estado de
defesa indicará quais os bens e serviços públicos que serão objeto de ocupação
e uso temporários, buscando-se minorar os efeitos provocados pelo desastre
público. Esta ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos não
eximem a União da responsabilidade prevista pelo art. 37, § 6º, CR/88.
5.1.4 LIMITES CONSTITUCIONAIS DO ESTADO DE DEFESA
O parágrafo terceiro do art. 136 e seus respectivos incisos voltam-se para
os limites constitucionais da medida, com respaldo nos princípios fundamentais
da República Federativa do Brasil. Assim, mesmo existindo uma legalidade
especial, o Presidente da República e os executores do decreto de exceção não
estão isentos de responsabilidade.
O inciso I prevê que “a prisão por crime contra o Estado determinada
pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz
competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame
de corpo de delito à autoridade policial” (Brasil, 1988). Inicialmente, observase a utilização do termo “crime contra o Estado” enquanto no restante do texto
constitucional, utiliza-se a expressão “crime político”, conforme de averigua do
art. 102, II, b e art. 109, IV.
Ivo Dantas (1989) acredita que a nível doutrinário há uma indefinição
quando a diferença entre crime político e crime contra o Estado, embora aquele
(crime político) é utilizado quando se trata de lesão à ordem política ou as
instituições públicas, enquanto o crime contra o Estado seria uma espécie
daquele atrelada à soberania estatal.
O responsável pela lesão deve comunicar de imediato ao Juiz competente,
ou seja, a comunicação deve ser instantânea, sem que haja espaço entre a prisão
e o ato comunicativo, o que, não sendo realizado, caracterizará ato ilícito e
abuso de poder, garantindo-lhe o direito ao habeas corpus. Não havendo a
possibilidade da comunicação escrita e formal, esta pode ser feita por outros
meios, tais como telegrama, telefone e serviços radiofônicos. O juiz, ao
verificar aspectos de ilegalidade da prisão realizará o relaxamento ex officio,
322
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
determinando de imediato a expedição de alvará de soltura que também deverá
ser cumprido de imediato pela autoridade competente. Ademais, é facultado ao
preso realizar o exame de corpo de delito, haja visto o impedimento à tortura
nos termos do art. 5º, XLIX. Ivo Dantas (1989: 62) critica tal dispositivo por
o requerimento deveria ser feito à autoridade judiciária competente e não à
autoridade policial.
A comunicação da prisão ao juiz deverá, obrigatoriamente, ser
acompanhada por declaração relatando as condições físicas e mentais do detido
no momento em que foi autuado, visando assegurar a sua integridade física.
Mota e Spitzovsky (2004) observam que esta exigência terá grande efeito
quanto à responsabilidade da autoridade tendo em vista de eventuais abusos
cometidos, pois esta declaração terá presunção de legitimidade, cabendo à parte
prejudicada realizar prova em contrário.
O Executor da prisão poderá ter à sua disposição o detido pelo prazo
máximo de dez dias, a partir do qual a medida torna-se ilegal, dando ensejo
a habeas corpus. O juiz, sendo provocado pela autoridade policial, poderá
prorrogar o prazo, determinando período específico “que, cremos, não poderá ser
renovado”. (DANTAS, 1989: 64). Em virtude da prisão ser por motivos políticoideológicos (crime contra o Estado) , é vedada a incomunicabilidade do preso.
Como nos estados de crise constitucional vedam a incomunicabilidade
do detento, Tourinho Filho e Mirabete (2003 apud MOTTA FILHO e
SANTOS, 2004: 562) entendem que o art. 21 do Código de Processo Penal
que permite a incomunicabilidade estaria revogado, pois se nos estados de
legalidade extraordinária esta prática estaria vedada, quanto mais nos estados
de normalidade. Em sentido oposto, entendem Greco Filho e Damásio E. de
Jesus (2003 apud MOTTA FILHO e SANTOS, 2004: 562) afirmando que a
incomunicabilidade do preso é vedada nos estados de crise constitucional, pois
neles são restringidos outros direitos individuais, sendo esta vedação como
salvaguarda para o cidadão. Todavia, alegam que a incomunicabilidade, em
nenhuma hipótese, se estende ao advogado e sua ocorrência configura crime de
abuso de autoridade (Lei 4.898/65).
5.2 ESTADO DE SÍTIO
O ordenamento jurídico brasileiro para a regulamentação do estado
de sítio utiliza-se o sistema rígido que prevê limites específicos das medidas
utilizadas nesse estado, traçando-lhes os detalhes. Difere-se do sistema da
common law que utiliza o sistema flexível da martial law.
Conforme Silva (2004: 748), o estado de sítio consiste em instaurar uma
legalidade extraordinária por determinado tempo e em certa área, objetivando
323
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
preservar a normalidade constitucional, perturbada por motivo de comoção grave
de repercussão nacional ou por situação de beligerância com Estado estrangeiro.
5.2.1 – INSTAURAÇÃO DO ESTADO DE SÍTIO
Para se instaurar o estado de sítio, o Presidente da República e somente ele
(pois trata-se de ato pessoal) deve ouvir o Conselho de República e o Conselho
de Defesa Nacional. A manifestação destes dois conselhos é obrigatória, sob
pena de inconstitucionalidade da decretação da medida. Todavia, conforme a
doutrina majoritária, sua manifestação é meramente opinativa e não vincula do
Chefe do Poder Executivo. Há um controle prévio que não pode ser suplantado
por ser uma conditio sine qua non, sob pena do decreto estar eivado de
inconstitucionalidade formal, por lhe faltar requisito essencial e não facultativo.
Ivo Dantas (1989) critica o controle prévio por ser demorado e, no estado de
sítio, necessita-se de respostas prontas e imediatas.
Após ouvidos os Conselhos, o Presidente da República deve solicitar
a concordância prévia do Congresso Nacional. Trata-se de decisão política,
cujo controle de legalidade pode ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal.
O Congresso deverá deliberar por maioria absoluta, conforme previsto no
parágrafo único do art. 137.
O art. 57 da Constituição Federal prevê que “o Congresso Nacional reunirse-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de
agosto a 22 de dezembro” (BRASIL, 1988). Qualquer reunião fora deste prazo
será extraordinária e observará o disposto nos parágrafos sexto e sétimo deste
mesmo artigo. Apesar da maior gravidade e urgência que no estado de defesa,
o Constituinte manteve o prazo de 5 (cinco) dias para o Presidente do Senado
Federal convocar o Congresso a fim de apreciar o ato. Ivo Dantas (1989), partindo
da premissa do controle prévio do Congresso ser essencial ao decreto do estado
de sítio, critica o dispositivo, afirmando que, pela crise constitucional expressa
pela proposta do estado de sítio, o Congresso deveria reunir-se em, no máximo,
quarenta e oito horas ou seu controle deveria ser posterior. A constituição não
prevê prazo específico para apreciar o ato, como o faz no estado de defesa.
Em sentido contrário, Ferreira Filho (1989) admite que, estando em
recesso o Congresso Nacional, o estado de sítio poderá ser decretado pelo
Presidente da República, mas deverá ser imediatamente convocado o Congresso
para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato (art. 138, § 2º).
“O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término
das medidas coercitivas” (BRASIL, 1988, ART. 138, §3º). Trata-se de garantir
a representação do povo, acompanhando todas as medidas e acontecimentos,
além de evitar convocações na hipótese de prorrogação de prazo.
324
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Após a publicação do estado de sítio, com prévia aprovação do
Congresso, o Presidente da República designará o executor das medidas e as
áreas abrangidas. Esta decisão, por ser posterior, não se submete à apreciação
do Congresso Nacional.
5.2.2 – REQUISITOS PARA A OCORRÊNCIA DO ESTADO DE SÍTIO
Nos termos do inciso I do art. 137, o estado de sítio surge com comoção
de grave repercussão nacional, ou seja, deve haver uma subversão profunda
que ponha em perigo as instituições, a tranqüilidade e vida dos cidadãos,
ameaçando-lhes os direitos. Não são suficientes simples desordens e motins, pois
estes podem ser suprimidos pela ordem constitucional ordinária. A repercussão
geral deverá ter seus efeitos irradiados por todo o território nacional, embora
não se deve exigir uma igualdade perfeita na proporção de tais efeitos, pois
os fenômenos político-sociais, em circunstâncias excepcionais, não podem ser
mensurados materialmente.
Alternativamente, o inciso I do art. 137 permite a decretação do estado
de sítio quando as medidas adotadas durante o estado de defesa tornamse ineficazes. Não é medida imposta ao Presidente da República, mas uma
faculdade posta à sua disposição que deverá ser apreciada previamente pelo
Congresso Nacional.
Nas hipóteses do inciso I do art. 136 ARAÚJO e NUNES JÚNIOR (2001,
apud CHIMENTI, 2005) denominam de estado de sítio repressivo.
O inciso II do art. 137, denominada por CHIMENTI (2005: 132) por
“estado de sítio defensivo”, prevê a hipótese de “declaração do estado de guerra
ou resposta a agressão armada estrangeira” (BRASIL, 1988). Conforme Capez
(2008), o termo guerra significa agressão armada estrangeira. A guerra em
questão deve ser aquela declarada, pois, “sendo regime de exceção o estado de
sítio deve ser interpretado restritivamente” (DANTAS, 1989: 83).
5.2.3 – REQUISITOS DO DECRETO QUE INSTITUIR O ESTADO DE SÍTIO
O art. 138 caput e respectivo § 1º tratam do conteúdo material do decreto
do estado de sítio que indicará, obrigatoriamente, a) sua duração; b) as normas
necessárias a sua execução e c) as garantias constitucionais que ficarão suspensas.
Na hipótese de declaração de guerra ou resposta à armada estrangeira
(art. 137, II) poderá o estado de sítio ter uma vigência igual ao período em
que perdurar os fatos que a fundamentaram. Todavia, não impede o Presidente
da República de estipular prazo determinado para a vigência das medidas.
Ademais, caso o pressuposto, como a guerra, deixe de existir antes do término
do prazo, será desde logo suspenso o decreto.
325
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A duração máxima do estado de sítio dependerá da causa de sua decretação.
Na hipótese do art. 137, I da Constituição Federal, o prazo poderá ser de trinta
dias e sua prorrogação, de cada vez, só será possível por igual período. A cada
dilação de prazo, o Presidente deverá submeter sua intenção ao crivo do Congresso
Nacional, consoante art. 137, parágrafo único. Na hipótese de declaração de
guerra ou resposta à armada estrangeira (art. 137, II) poderá o estado de sítio ter
uma vigência igual ao período em que perdurar os fatos que a fundamentaram.
Todavia, não impede o Presidente da República de estipular prazo determinado
para a vigência das medidas. Ademais, caso o pressuposto, como a guerra, deixe
de existir antes do término do prazo, será desde logo suspenso o decreto.
Quanto às normas necessárias a sua execução, Ivo Dantas (1989) critica a
expressão “garantias fundamentais que ficarão suspensas”, pois, por ser o Estado
de sítio uma forma de legalidade especial rígida, somente poderão ser atingidas
aquelas matérias constitucionalmente previstas. Assim, nenhuma garantia poderá
ser “suspensa”, pois os direitos individuais e coletivos, cujo exercício e gozo
poderão ser assegurados pelas Garantias Constitucionais, tais como mandado de
segurança, mandado de injunção, habeas corpus e habeas data, serão suspensos.
Todavia ainda são cabíveis as garantias, caso seja aplicada medidas além daquelas
previstas no art. 139 da Constituição. Este dispositivo era expresso na Constituição
de 1946 que previa em seu art. 215: “A inobservância de qualquer das prescrições
dos arts. 206 a 214 tornará ilegal a coação e permitirá aos pacientes recorrerem ao
Poder Judiciário” (BRASIL, 1946). Na constituição atual, todavia, este preceito
ainda subsiste de forma implícita.
Em sentido contrário, Ferreira Filho (2007) afirma que é intrínseco ao
estado de sítio a suspensão de garantias constitucionais (de garantias –limite ou
defesa), ou seja, a proteção específica de determinados direitos fundamentais”,
as quais deverão também ser indicadas no decreto instaurador.
Conforme art. 137, I, para a decretação do estado de sítio, a repercussão
deverá ser nacional. Todavia, não é necessário ter como área atingida todo o
território nacional, já que a constituição se refere a “áreas abrangidas”. Estas podem
ser ampliadas ou reduzidas ao arbítrio do Chefe do Poder Executivo, posto que não
se submete à apreciação do Congresso. Esta unilateralidade de escolha também
aplicam-se ao executores do estado de sítio. Este aspecto, todavia, não exime a
responsabilidade pelos atos ilícitos praticados durante o período em que estiveram
respondendo pela Legislação excepcional, conforme art. 141 da Carta Magna.
5.2.4 MEDIDAS RESTRITIVAS CABÍVEIS DURANTE O ESTADO DE SÍTIO
Na vigência do estado de sítio ou estado de defesa, a Constituição de
modo geral continua em vigor, porém admite certas restrições delimitadas
326
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
taxativamente nas normas sobre os estados excepcionais. Estas serão regidas
pelo decreto presidencial. O artigo 139 enumera as medidas restritivas cabíveis
quando da verificação da hipótese de “comoção grave de repercussão nacional”,
como previsto no art. 137, inciso I, mas nada diz acerca da possibilidade aventada
no inciso II daquele mesmo artigo, ou seja, a de “declaração de estado de estado
de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Ivo Dantas (1989) afirma
que o texto constitucional só admite restrição à ordem constitucional normal se o
decreto estiver baseado no inciso I do art. 137, já que nenhuma referência é feita
à hipótese do inciso II do mesmo artigo. A interpretação deverá ser restritiva,
pois o sistema jurídico brasileiro adota o sistema rígido de legalidade especial.
Em sentido contrário, CAPEZ (2008) e CHIMENTI (2005:133) defendem que
“o estado de sítio decretado com base no inc. II do art. 137, em tese, admite a
suspensão de qualquer direito ou garantia constitucional, desde que prevista na
autorização do Congresso Nacional”.
É evidente que o estado de sítio, com fulcro no inciso II do art. 137
demanda de extrema rigidez, por tratar-se de situação crítica. Todavia, a
inexistência de limites materiais expressos ou cujo reconhecimento seja
claro e evidente corresponde a um verdadeiro vazio constitucional e acarreta
implicações negativas na proteção dos direitos constitucionais, fornecendo
uma perigosa margem a interpretações de conveniência de forças políticas
eventualmente no comando.
A questão poderia ser sanada pelo exercício do “poder reformador”, ou
seja, pela apresentação de emenda constitucional que estabeleça de maneira
adequada seus limites ou que os equipare aos já previstos para os casos do
“inciso I” (as demais situações em que pode ocorrer estado de sítio). Todavia,
a inexistência desta emenda constitucional demanda árduo trabalho dos
operadores do direito.
Algumas balizas mínimas devem ser observadas. Elidio Alexandre Borges
Marques (2009) afirma que estes limites “mínimos” estariam estabelecidos
em tratados internacionais sobre direitos humanos no Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ou seja, os direito a vida, proibição à
tortura e escravidão, reconhecimento da personalidade, liberdade religiosa e a
legalidade penal.
As exceções temporárias previstas no art. 139 abrangem somente
as pessoas e não atingem o funcionamento dos Poderes do Estado, seja o
Legislativo, seja o Judiciário que poderá ser acionado por aquele que julgue
atingido por medida não prevista no art. 139 da Constituição.
Nos termos do art. 139, I, no estado de sítio, pode-se determinar a
permanência de alguém em local previamente estabelecido, sustando a vigência
do direito individual de locomoção, com fulcro no art. 5º, XV da Constituição,
327
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
garantido pelo habeas corpus, o qual também fica suspenso, mas não por
completo. Ivo Dantas (1989) bem analisa que a suspensão deste instituto
processual constitucional somente será possível nos casos referentes aos incisos
I e II, mas será aplicado, em todo o seu conteúdo, se, por exemplo, alguém for
preso por determinação de qualquer autoridade, em virtude de dívida civil que
não abrange as hipóteses de pensão alimentícia e depositário infiel.
No inciso II do art. 139: “detenção em edifício não destinado a acusados
ou condenados por crimes comuns” (BRASIL, 1988), relativiza-se o princípio
contido no art. 5º, inciso LXI, o qual “ninguém será preso senão em flagrante
delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,
salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos
em lei” (BRASIL, 1988). A detenção e reclusão distinguem-se pela gravidade
do crime, da lesão ou do perigo, ficando a reclusão reservada aos crimes mais
graves e a detenção para os crimes mais leves. Ademais, a reclusão é cumprida
em regime fechado, aberto ou semi-aberto; ao passo que a detenção, em regime
semi-aberto ou aberto, salvo a necessidade de transferência a um regime
fechado (BRASIL, 1984). No estado de sítio, aplica-se a detenção a qualquer
pessoa a quem o executor da medida excepcional entender que deverá afastar
do convívio social.
Caso não se aplique a reclusão ao invés da detenção, ou seja, há o
recolhimento da pessoa em penitenciárias, colônias agrícolas, industriais ou
estabelecimentos similares destinados a presos ou condenados por crimes
comuns em detrimento da detenção em locais especiais, há o ensejo ao habeas
corpus. A detenção, portanto, deve ser realizada em algum outro local destinado
para tal fim, tal como os quartéis das forças armadas. Esta norma deve ser
interpretada restritivamente por tratar-se de norma restritiva de direitos.
O inciso III do art. 139 permite “restrições relativas à inviolabilidade
da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e
à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei” (BRASIL,
1988). Trata-se de exceções permitidas durante este estado ao art. 5º, XII, XIV
e ao art. 220, §§ 1º e 2º da própria constituição.
Nestas restrições não se inclui a difusão de pronunciamento dos
parlamentares em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva
mesa, consoante parágrafo único do art. 139. A correta compreensão desde
dispositivo vincula-se à concepção de imunidade parlamentar. As imunidades
pertencem não à pessoa do parlamentar, mas sim ao mandato que exercem em
nome do povo nos sistemas representativos. Tem o liame de garantir que as
funções dos membros do Legislativo sejam exercidas sem qualquer restrição,
seja do próprio Poder ou dos particulares. A garantia do parágrafo único do
art. 139 está indissoluvelmente ligada ao § 8º do art. 53. O legislador agiu
328
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
corretamente ao estender as imunidades parlamentares para o estado de sítio,
primeiramente, pois a subsistências da imunidades é algo indispensável para
efetivo controle pelo Congresso Nacional.
Todavia, conforme Ivo Dantas (1989), há um grande equívoco na
continuação do § 8º do art. 53 que permitem a suspensão das imunidades “(...)
mediante o voto de dois terços da casa respectiva, nos casos de atos, praticados
fora do recinto do Congresso, que sejam incompatíveis com a execução da
medida” (BRASIL, 1988). Inicialmente, mesmo fora do espaço físico do
Congresso, o parlamentar poderá estar no exercício do mandato, como, por
exemplo, quando desloca-se para verificar as detenções realizadas conforme
art. 139, II. Por outro lado, o Parlamentar, mesmo inserto no espaço físico do
Congresso, poderá não estar atuando no exercício do seu mandato, quando,
por exemplo, apresenta-se como orador em um comício político ou dando uma
entrevista coletiva, considerado nestes atos como um mero cidadão e como tal
responsável pelos seus atos. Em segundo lugar, a Imunidade não pertence à
pessoa do parlamentar e sim à função e, portanto, são irrenunciáveis, já que são
meros usuários daquilo que, em essência, pertence a todos os que estão sob o
império soberano do Estado. Por fim, é incongruente vincular as exclusões de
restrições do art. 139, III com um juízo de valor da Mesa diretora dos trabalhos,
mesmo porque não se prevê recurso desta decisão à apreciação do Plenário e,
“mesmo que os Regimentos, ora em fase de elaboração, o façam, não temos
muita certeza de sua constitucionalidade”. (DANTAS, 1989: 110)
O inciso IV do art. 139 que prevê a suspensão total à liberdade de reunião
torna esta medida mais rígida que as restrições a este direito previstas no estado
de defesa (art. 136, §1º, I, a).
A busca e apreensão em domicílio prevista no art. 139, V, relativiza
a inviolabilidade domiciliar, contida no art. 5º, XI. Ivo Dantas (1989) adota
uma concepção ampla de domicílio, compreendendo-o como casa, escritório,
repartição ou outros análogos, considerados com algo concreto e não mero
conceito jurídico.
A intervenção nas empresas e serviços públicos (art. 139, VI) é outra
hipótese permitida durante o estado de sítio. Ivo Dantas (1989) entende que o
conceito de serviço público deve ser amplo, abrangendo o serviço público direto,
exercidos por entes da Administração Pública direta, como a União, estados,
Distrito Federal e municípios e também o indireto exercido por permissionários
e concessionários de serviços públicos, visando manter a continuidade na
prestação do serviço. Facultará ao executor da medida excepcional afastar de
seus cargos aqueles que dirigem a empresa, colocando à sua frente, enquanto
durar a situação, pessoa de confiança, que, ao final do período, será igualmente
responsável pelas medidas que adotar.
329
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Durante o estado de sítio, é facultado ao Estado requisitar bens,
relativizando o princípio da função social da propriedade, prevista no art. 170, III
da Constituição. Trata-se de hipótese de intervenção do estado na propriedade.
5.3 ELEMENTOS COMUNS AOS ESTADOS DE SÍTIO E DEFESA
Nesta última seção que trata sobre os estados de sítio e defesa o legislador
estipula regras jurídicas de caráter genérico aplicadas todas as normas de exceção.
Inicialmente, conforme observa Pedro Lenza (2005), as medidas
excepcionais somente poderão ser aplicadas dentro dos limites constitucionais
e em hipótese fática de crise constitucional. “Se as medidas de exceção forem
aplicadas em tempos de normalidade democrática, a Constituição estará sendo
violada, configurando-se autêntico golpe de estado” (ARAÚJO e NUNES
JÚNIOR, 1999 apud LENZA, 2005: 422).
O Art. 141 garante à Mesa do Congresso Nacional, após ouvidos os líderes
partidários, designar Comissão composta por cinco de seus membros. Serão
membros compostos de ambas casas, tanto o Senado Federal quanto a Câmara
dos Deputados. Decorre do controle concomitante à duração da medida conferido
ao Congresso no art. 58 da Constituição, in verbis: “O Congresso Nacional e
suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e
com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar
sua criação” (BRASIL, 1988). Nos estados de legislação especial de crise, as
comissões são temporárias, já que são caracterizados pela delimitação temporal.
O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento durante toda
a duração das medidas emergenciais e este, conforme observa CHIMENTI
(2005) pode a qualquer momento suspender o estado de defesa e o estado de
sítio (art. 49, IV da CF).
O estado de defesa não será superior a trinta dias, prorrogáveis por mais
trinta (art. 136, § 2º) e o estado de sítio possui período variável de duração
de acordo com a fundamentação do decreto (art. 138, § 1º). Neste raciocínio,
vencido o prazo, vence também todos os efeitos que tenham sido gerados por ela,
retomando a sociedade à regulamentação constitucional em sua plenitude. Após,
haverá responsabilização dos executores da medida pelos ilícitos cometidos.
Ora, os estados de emergência são limitados aos parâmetros constitucionais,
não podendo exorbitá-los sob pena da responsabilidade prevista do art. 141
da Constituição. A responsabilização é compreendida em seu sentido amplo,
incluindo tanto a cível, criminal e administrativa.
Após cessar o estado de sítio e defesa, as medidas aplicadas serão
informadas pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, especificando
e justificando as providências tomadas, a fim de demonstrar a legalidade dos
330
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
atos praticados pelos agentes e executores da medida, podendo o Congresso
ouvir a Comissão especial que as acompanhou e fiscalizou. Segundo CAPEZ
(2008), caso o Congresso não aceite as justificativas, estará caracterizado
crime de responsabilidade, regulado pela Lei 1.079/50. Trata-se do controle
posterior do Congresso Nacional. Este controle possui ainda um caráter
público para notificar os interessados para saber o total de atingidos pelas
medidas de emergência e ter elementos suficientes para acionar os executores
e agentes. Ainda, conforme Motta Filho e Santos (2004) verifica-se que a
responsabilidade dos agentes estatais é objetiva (art. 37, § 6º da Constituição
Federal de 1988), sem prejuízo das penalidades passíveis de aplicação aos
executores e seus agentes.
Ademais, subsiste, o acesso à via judiciária por ser meio de defesa típico
do Estado de Direito.
Os abusos e ilegalidades poderão ser reprimidos por intermédio de
mandado de segurança e habeas corpus, pois “a excepcionalidade da medida
não possibilita a total supressão dos direitos e garantias individuais, e tampouco
configura um salvo-conduto aos agentes políticos para total desrespeito à
constituição e às leis” (MORAES, 2004: 671).
Não cabe ao judiciário analisar a conveniência ou oportunidade da
medida, pois é decisão essencialmente política e não se sujeita à apreciação do
Poder Judiciário.
CONCLUSÃO
Em suma, o presente trabalho propõe a analisar o sistema constitucional
de crises na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, utilizando
obras doutrinárias de teoria da constituição e direito constitucional positivo sob uma
perspectiva analítica, realizando comparações entre diversos sistemas de crise.
No primeiro capítulo, verifica-se que o sistema estatal está sujeito a
crises, como guerras civis e externas, comoções intestinas, bem como desastres
naturais, os quais são cada vez mais iminentes e ameaçam a integridade do
Estado. Todavia, o sistema para a superação destas crises deve estar inserido
em um ordenamento constitucional rígido que preveja direitos e garantias
individuais ainda que mínimos. O presente trabalho utiliza a terminologia
sistema constitucional de crise a qual considera sistemas previstos em uma
constituição rígida, bem como os direitos e garantias que ficarão restritos
nestes estados excepcionais. A Constituição de 1988 prevê dois institutos de
crise, quais sejam: estado de sítio e defesa. Dever-se-á evitar expressões como
“estado de exceção” que implica em uma situação de “vazio de direito”, a qual
não coaduna com o Estado Democrático de Direito.
331
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
No segundo capítulo, observa-se que o direito do estado de defender-se
é tão primitivo quanto o direito à legitima defesa para repelir ameaça atual,
iminente e injusta. Daí, advém o direito de necessidade estatal o qual deverá ser
limitada por balizas como a necessidade da medida, temporalidade e obediência
irrestrita aos comandos constitucionais.
Em uma análise histórica das constituições brasileiras, verifica-se que o
sistema de crises era na verdade utilizado para reprimir divergências políticopartidárias e não para a defesa do Estado, conforme se observa nas Constituições
de 1937 e 1967/69. Ademais, possui uma predileção ao estado de sítio, prevendo
os estados críticos inseridos na constituição.
Na Carta Magna Brasileira de 1988, no Titulo V, há a previsão da
“Defesa do estado e das Instituições Democráticas”. Por este nome, verificase a preocupação do constituinte em preservar não apenas o estado, mas o
ordenamento democrático e a ordem jurídica. O sistema constitucional de crise
brasileiro prevê os institutos do estado de defesa e estado de sítio. Inicialmente,
verifica-se que o estado de defesa é utilizado para preservar, em locais
determinados, a ordem pública quando ameaçadas por instabilidade ou atingidas
por calamidades de grandes proporções naturais. É instituído pelo Presidente
da República por meio de decreto, após ouvir, previamente, o Conselho da
República e o Conselho de Defesa Nacional, cujo parecer é, conforme a doutrina
majoritária, opinativo. Vinte e quatro horas após a decretação, o ato deverá ser
submetido ao Congresso que decidirá, por maioria absoluta, a permanência ou
não da media. São previstos os direitos a serem restringidos, bem como os
limites constitucionais da medida.
Caso apresente ineficaz o estado de defesa ou ocorram fatos de comoção
grave de repercussão nacional (art. 137, I) ou declaração de estado de guerra
ou resposta a agressão armada estrangeira (art. 137, II), a Constituição prevê
o estado de sítio, o qual é decretado pelo Presidente, ouvidos os Conselho da
República e o Conselho de Defesa Nacional, mas a aprovação do Congresso
Nacional deverá ser prévia. Na hipótese do art. 137, I, a medida é aprovada
por trinta dias, podendo ser prorrogada, de cada vez, pelo mesmo prazo. A
hipótese do art. 137, II poderá ser decretada por todo o tempo que perdurar
a guerra ou agressão armada estrangeira. A constituição prevê os direitos a
serem restringidos na hipótese do art. 137, I. Todavia, é lacunosa com relação
ao art. 137, II sem prever os direitos a serem restringidos e, conforme a doutrina
majoritária, cabe a adoção de qualquer medida. Todavia, ainda que extrema a
crise constitucional, balizas mínimas deverão ser preservadas.
Durante os estados de sítio e defesa, permanecerá controle concomitante
do Congresso Nacional que poderá designar Comissão para acompanhar
e fiscalizar as medidas que estão sendo adotadas. Os agentes das medidas
332
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
responderão civil e criminalmente pelos abusos e ilegalidades praticados e,
findo o estado de crise, o Presidente da República comunicará ao Congresso
Nacional as providências adotas de forma completa e minuciosa, indicando os
nomes dos atingidos pelos estados e indicando as restrições adotadas. Subsiste
o controle pelo Poder Judiciário que abrange apenas os atos ilegais e não os
discricionários.
Portanto, conclui-se que na Constituição de 1988 se busca superar as
situações de crise para garantir a ordem democrática e não mais permitir o
império do arbítrio do Estado, haja vista que este somente pode agir nos estritos
termos e limites estabelecidos pela lei. Assim, caso os preceitos constitucionais
não sejam observados, a medida é nula e seus executores serão responsabilizados
cível e criminalmente. Implica, também, que nem todos os direitos e garantias
fundamentais dos indivíduos serão restringidos ou suspensos, mas somente
aqueles em relação aos quais há expressa autorização legal. Valores basilares
como o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à honra e ao acesso ao
Poder Judiciário deverão ser preservados, pois os sistemas constitucionais de
crise não tratam de situação de arbítrio estatal, mas sim de uma legalidade
extraordinária, minuciosamente regulamentada pela Constituição Federal.
As lacunas legislativas deverão ser interpretadas de forma restritiva, sob uma
análise histórica, sistemática e analítica, evitando abuso por parte dos executores
da medida. Os limites da necessidade, temporalidade e obediência irrestrita
aos comandos constitucionais deverão ser sempre observados garantindo não
apenas a superação de crise, mas também a sobrevivência do ordenamento
jurídico democrático.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Deus, à CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico) e à Faculdade de Direito “Professor Jacy de Assis”
por proporcionar condições suficientes para desenvolver este trabalho.
333
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
REFERÊNCIAS
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Descomplicado. Rio de Janeiro: Impetrus, 2007.
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334
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336
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
UNA APROXIMACIÓN A LA TUTELA INTERNACIONAL DE LOS
DERECHOS DE LOS AGRICULTORES
Francisco Gómez Fonseca353
1. CUESTIONES PREVIAS
Como es sabido, con la domesticación de los animales y las plantas se
produce un gran giro en el sistema agrario, sustituyéndose la mera recolección
y caza por la verdadera explotación agrícola y la relación entre las plantas y los
seres humanos se convierte en una relación de estrecha dependencia. Nuestros
ancestros, por lo tanto, realizaron una labor de selección de plantas salvajes
para su reproducción y de esta forma consiguieron (mediante la clasificación de
aquellas variedades que mejor resistían y mejor se adaptaban a las condiciones
climáticas, de irrigación, etc.) producciones no solo de mejor calidad sino de
mayor cantidad.
A partir de esta selección y de la organización de los grupos sociales
en comunidades con fines de supervivencia, el conocimiento y las semillas
mejoradas a través de los procesos empíricos fueron compartidos libremente
llevando aparejada la expansión simultánea a la de las poblaciones humanas,
logrando una propagación regular en todos los continentes y entornos
ambientales –en los que se repetían los procesos de selección y clasificación de
semillas y animales-.
La expansión del fenómeno agrícola ha conducido a la especialización de
los roles en la agricultura, por lo que estos agricultores primarios fueron también
los primeros obtentores vegetales, al separar las semillas que reproducían en
mayor cantidad los rasgos deseados, guardándolas para las siguientes cosechas.
Por un lado, el intercambio de semillas desarrollado a partir de la
actividad agrícola fue dando lugar a la combinación, mediante la plantación
mixta de las semillas intercambiadas, de las especies y creando, por ende,
nuevas variedades vegetales354.
Por otro, el incremento demográfico produjo un aumento proporcional de
la demanda alimentaria, obligando a la sistematización de la agricultura hasta
convertirla en un fenómeno a gran escala, produciendo entonces un cambio
profundo del modelo agrícola. Este cambio determinó a los gobiernos a destinar
DEA. Doctorando en Derecho Internacional Privado (Universitat de València). Profesor
Asociado de Derecho Internacional Privado de la Facultat de Dret de la Universitat de València.
PEPP Scholar
354
DHAR, Bisjawit. Sui Generis Systems for Plant Variety Protection. Options under TRIPS. A
discussion paper. Quaker United Nations Office. Geneva, 2002. p. 5.
353
337
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
enormes recursos para la investigación en el campo de la agricultura, permitiendo
la producción de semillas mejoradas para entregar a los agricultores y de esta
forma hacer más eficiente el sistema productivo industrializado. Gracias a la
intervención gubernamental en el proceso productivo, los agricultores, en la
mayoría de los casos, compraban las semillas mejoradas o las recibían de las
instituciones encargadas de su mejoramiento, fenómeno que dio como resultado
el que los agricultores no tuvieran que volver a seleccionar y conservar sus propias
semillas y haciéndolos dependientes, entonces, de los productores de semillas y
separando para siempre los roles de los agricultores y de los obtentores vegetales.
Como es usual en los procesos productivos, y en mayor medida en aquellos
sectores que resultan de máxima importancia para la supervivencia humana, la
industrialización del sector alimentario lleva aparejado el surgimiento de un
negocio generador de ganancias millonarias pero que a la vez implica enormes
riesgos e inversiones en el desarrollo de nuevas semillas capaces de producir
cada vez mayores cantidades de alimentos de mejor calidad. La necesidad
de proteger estas grandes inversiones impone diversas restricciones a las
actividades llevadas a cabo por los agricultores, prohibiendo, por ejemplo, la
práctica de compartir las semillas compradas, o cultivadas por ellos mismos e
incluso la prevención del acto de volver a plantar aquellas semillas resultantes
de sus cosechas355. Los avances tecnológicos resultantes de estas inversiones, es
necesario reconocerlo, han hecho posible la manipulación de rasgos específicos
en las semillas, permitiendo por ejemplo, incrementar la producción o la
resistencia a enfermedades y plagas356.
2. LA PROTECCIÓN DE LOS DERECHOS DE LOS AGRICULTORES: LA NECESIDAD DE ADAPTAR LOS ESQUEMAS JURÍDICOS A LA REALIDAD AGRÍCOLA.
Debido a las enormes inversiones y los grandes riesgos a los que se
enfrenta el sector, el fenómeno de la comercialización de la agricultura conlleva
una necesidad de mayor protección de los derechos y de restricción de la
utilización de los productos, generalmente en forma de Derechos de Propiedad
Intelectual357 (DPI), tales como patentes, obtenciones vegetales y otros.
A través del tiempo, se han expresado serias dudas en relación a la viabilidad
y funcionalidad, a largo plazo, del sistema productivo agrícola industrializado.
Un uso agrícola desde tiempos inmemoriales, pero además de suma importancia para la
supervivencia y , por supuesto, la seguridad alimentaria.
356
DHAR, Bisjawit. Op.cit. p.6
357
Para efectos del presente trabajo, nos referiremos a los derechos de Propiedad Intelectual tal
y como se concibe en el derecho anglosajón, es decir, englobando tanto el concepto de propiedad
intelectual como el de propiedad industrial utilizado en los sistemas de derecho continental.
355
338
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Buena parte de los expertos son escépticos sobre todo en lo que se refiere a la
expansión de este modelo hacia los países en vías de desarrollo. Ahora bien, si
tomamos en cuenta que de la viabilidad de este modelo depende la seguridad
alimentaria de todos los habitantes del planeta, entonces debemos reconocer
que nos encontramos ante una situación que reviste una máxima importancia.
Así, podemos destacar las soluciones que las corrientes principales proponen,
que son básicamente tres: en primer lugar encontramos aquella vertiente que
agrupa a los que proponen la implantación de sistemas sostenibles, erigidos
alrededor de la biodiversidad y la ecología. En segundo lugar, podemos señalar
aquella corriente a la que pertenecen los que se muestran seguros de la capacidad
inventiva de los seres humanos y por tanto consideran que el sistema actual
puede seguir evolucionando y adaptándose de forma tal que logre los objetivos
planteados en el momento de su creación, aún con las limitaciones que plantea.
Por último encontramos aquellos que responden a los intereses económicos de
las grandes industrias productoras, y por tanto promueven modelos y visiones
agrícolas mucho más intensas e industrializadas como la senda a seguir358.
Sin embargo, no debemos perder de vista que el desarrollo de la mayor
parte de la biodiversidad agrícola existente se debe a las actividades creativas
de los agricultores tradicionales a través de los años y este aporte debe ser,
cuanto menos, reconocido y recompensado359.
Ahora bien, la seguridad alimentaria es un aspecto de especial relevancia
al hablar de los DA. Como se ha señalado, de la producción agrícola depende,
en gran medida, el sustento mundial, especialmente en aquellas zonas que
mayoritariamente cuentan con sistemas agrícolas de subsistencia, y por esto es
absolutamente necesario proteger a los agricultores de la amenaza que supone
la destrucción del material fitogenético autóctono, y en mayor medida ante el
difícil acceso a las semillas cuando éstas han sido modificadas genéticamente
y por ende, protegidas por derechos de propiedad intelectual360. Otro de los
factores por mejorar es la absoluta falta de reconocimiento del aporte de los
agricultores al mejoramiento agrícola, es decir, la creación e implementación
de sistemas legales de protección que se ajusten a la realidad y las necesidades
del colectivo agrícola y al mismo tiempo logren compensar adecuadamente los
aportes del mismo a la sociedad.
Sistemas estos que analizaremos con mayor profundidad en líneas posteriores.
CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options
surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Quaker United Nations
Office. Geneva, 2001. p. 7
360
DRAHOS, Peter. Developing Countries and International Intellectual Property StandardSetting. Volume 5, Issue 5. The Journal of World Intellectual Property. Blackwell Publishing Ltd.
UK, 2002. p. 15
358
359
339
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
3. DE LO GENERAL A LO ESPECIAL: UNA TUTELA ESPECÍFICA EN FUNCIÓN
DE CADA SECTOR
Así las cosas, podemos dividir las necesidades específicas de la
seguridad alimentaria según su rango de acción, teniendo en cuenta que estás
probablemente variarán, por tanto, de acuerdo con las situaciones con las que
cada rango deba lidiar. De esta forma, podemos afirmar que encontramos una
variedad de situaciones y/o acciones a nivel global, a nivel regional/nacional y
en el plano de las pequeñas comunidades y ámbitos domésticos que debemos
analizar361.
A. EN EL PLANO GLOBAL
En primer lugar, en el plano global debemos, desarrollar de la mejor forma
posible nuestra habilidad para minimizar, administrar y reaccionar al fenómeno
del cambio climático y las disrupciones en la producción alimentaria. Una de
las maneras consiste en la utilización y la provisión de niveles adecuados de
almacenamiento para que a partir de éstos, se pueda lograr la implementación de
planes de distribución de alimentos en momentos de emergencia. En segundo
lugar, debemos asegurarnos que la utilización de las tecnologías modernas no
se convierta en un elemento más de disrupción en el proceso de producción y
distribución de los alimentos, evitando que su aplicación constituya, entre otros
factores, un riesgo ecológico con consecuencias imposibles de prever362.
B. EN EL PLANO REGIONAL Y NACIONAL
En el plano regional y nacional, debemos asegurar, primero, la
capacidad de los países para producir y/o importar los alimentos requeridos
por la población, implementando, de nuevo, un modelo de distribución y de
aseguramiento de los derechos de los habitantes que permita producir o adquirir
los alimentos necesarios (mediante la producción propia, la compra e incluso el
trueque, como ya indicamos o mediante la implantación de sistemas especiales
que aseguren la disponibilidad de los alimentos).
La creación y consolidación de un aparato funcional de Investigación y
Desarrollo (I+D), que incluya a la totalidad de los agricultores del territorio y
que también permita lidiar con las variabilidades agro-ecológicas y económicas
DRAHOS, Peter. Op. Cit, p. 11
LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Intellectual Property Rights and Plant Genetic Resources:
Options for a Sui Generis System. Number 6. Issues in Genetic Resources. International Plant
Genetic Resources Institute. Rome, 1997. p. 9.
361
362
340
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
y el fenómeno del cambio climático es, en definitiva, uno de los pilares
necesarios para cumplir con los objetivos trazados363.
Por otro lado, tanto a nivel comunitario como a nivel doméstico debemos
poner en marcha todos aquellos programas que nos permitan instruir y desarrollar
las habilidades necesarias para la producción de alimentos y la satisfacción de las
necesidades alimentarias de forma tal que estas resulten cubiertas apropiadamente,
garantizando el sustento alimentario para estos grupos sociales básicos. Con estos
programas debemos utilizar tácticas de administración y prevención de riesgos
que puedan adaptarse a las costumbres y necesidades de los grupos locales para la
disminución de la pobreza y programas que permitan su prevención y eliminación,
prestando apoyo a los habitantes de áreas o ambientes marginales, con la intención de
incrementar su productividad. En caso de ser necesario, debemos incluso considerar
el desplazamiento interno de los habitantes, asegurándonos de lograr su reinserción
en el sistema productivo social y consiguiendo su sustento alternativo. Sin embargo,
es también de suma importancia la puesta en marcha de proyectos educativos que
incidan en la importancia de la igualdad de género y la redistribución de las labores
domésticas y no domésticas, ya que se ha demostrado que el papel de la mujer en
los sistemas de producción agrícola reviste una enorme importancia y por tanto es
necesario ocuparnos de la concienciación social en relación con este tema.364
Por último, y no por ello menos importante, debemos lograr la prevención
de conflictos civiles armados, que como regla general afectan de manera especial
a las poblaciones agrícolas, entre otras cosas debido a su ubicación geográfica365,
y lograr que la alimentación, y en específico el acceso y la producción de
alimentos, deje de ser utilizada como un arma más en el conflicto.
4. DEFICIENCIAS DEL SISTEMA DE PROTECCIÓN DE LOS DERECHOS
AGRÍCOLAS
Algunos de los problemas que distan a la agricultura de una tutela jurídica
eficaz son, entre otros:
Primero, la falta de una definición conceptual completa -y aceptada de
forma general- de los DA y el desarrollo de su contenido.
HELFER, Laurence R. Derechos de Propiedad Intelectual sobre variedades vegetales.
Regímenes Jurídicos Internacionales y opciones políticas para los gobiernos. FAO Estudio
Legislativo 85. Organización de las Naciones Unidas para la Agricultura y la Alimentación. Roma,
2005. p. 11
364
Ver el informe de FAO sobre el rol de la mujeres en la agricultura moderna: FAO. El estado
mundial de la agricultura y la alimentación. Las mujeres en la agricultura. Cerrar la brecha de
género en aras del desarrollo.” Organización de las Naciones Unidas para la Agricultura y la
Alimentación. Roma, 2011.
365
Las zonas agrícolas se encuentran fuera de los centros poblacionales, tienen menos habitantes
como regla general y se encuentran aisladas en muchas ocasiones por obstáculos naturales que
dificultan su protección, por lo que son más vulnerables en caso de acciones de guerra.
363
341
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Segundo, la gran diversidad de regulaciones, normas y reglas de diversa
naturaleza y contenido que podrían serles aplicados y que en muchos casos se
encuentran en uso y vigentes, lo que produce un solapamiento de regulaciones
que genera problemas de aplicación práctica.
Tercero, el auge del fenómeno de la biopiratería, que implica la
apropiación, sin que medie compensación o remuneración alguna, de los
recursos naturales de un Estado. La biopiratería se ha convertido en uno
de los mayores males que afectan a la agricultura tradicional, violando de
manera directa los DA. La biopiratería, entonces, hace más necesaria la
introducción de alguna forma de protección de los derechos de aquellos
que administran o manejan los recursos biológicos de las comunidades
dueñas de los conocimientos agrícolas366.
Con todo, y más allá de los problemas que pueda causar la biopiratería,
la protección de las nuevas variedades de plantas refleja la tendencia a la
conversión de todos aquellos derechos y conocimientos que en algún momento
fueron considerados como pertenecientes a todos los individuos y naciones,
a elementos pertenecientes al ámbito de la propiedad privada. Es así como
nos encontramos ante el hecho de que el fenómeno de la privatización de los
recursos, conocimientos y medios de producción ha ido ganando fuerza en las
últimas dos décadas. Esta tendencia se refleja en el campo de la agricultura con
el desarrollo progresivo de un sistema legal internacional cada vez más tendiente
a favorecer la propiedad privada sobre semillas modificadas genéticamente
por sobre el acceso público a las mismas y el intercambio de conocimientos
relacionado a estas367.
Desde el punto de vista mercantil, la introducción de la protección de las
variedades vegetales encuentra justificación en el hecho de que dicha protección
promueve la seguridad alimentaria. Por descontado, la ingeniería genética es
una gran oportunidad para incrementar la productividad de las cosechas en un
mundo que encuentra una grave carestía de tierras de arado y cuya población
crece a un ritmo muy acelerado. Partiendo de la misma premisa, la seguridad
alimentaria también justifica la protección de los DA sobre sus propias
variedades, ya que la protección de los intereses de este grupo es garantía del
sustento a largo plazo para la mayoría de la población de los países en vías de
desarrollo. Otras razones que pueden esgrimirse para justificar la introducción
La introducción de derechos de propiedad intelectual en los procesos de ingeniería genética,
si bien no contrarresta completamente la biopiratería, por lo menos visibiliza el problema de la
protección de los conocimientos tradicionales.
367
LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Op.cit. p. 9
366
342
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
de la protección de las variedades vegetales incluye el rol que juegan los
agricultores en el desarrollo, conservación y aumento de la biodiversidad
agrícola, y por supuesto, en la utilización sostenible de dichos recursos.
DIFERENTES MODOS DE PROTECCIÓN
Así las cosas, los sistemas de cada Estado podrían elegir entre diversas
opciones de protección de los DA. Pueden elegir, por ejemplo, proteger únicamente
los intereses económicos de los obtentores comerciales mediante la introducción
de un sistema de patentes, que se encuentre en pleno cumplimiento de las
obligaciones impuestas por el ADPIC. Este sistema de patentes resulta excluyente
por su naturaleza y sus efectos, al utilizar la creación de monopolios de explotación
sobre bienes que forman parte de los DA368. Puede también otorgar derechos sobre
obtenciones vegetales y de esta forma introducir derechos que incluyan algunas
excepciones a favor de los diversos obtentores y agricultores, tal y como se recoge
en el Convenio Internacional para la Protección de las Obtenciones Vegetales
(UPOV). Puede también decidir otorgar derechos únicamente a los obtentores,
introduciendo al mismo tiempo un esquema de repartición de beneficios que
tenga en cuenta, por ejemplo, las obligaciones derivadas de el Convenio sobre
la Biodiversidad (CBD), cuyo principal objetivo es lograr la consecución de un
sistema sostenible y respetuoso de la naturaleza. Finalmente, puede ir más allá de
las opciones precedentes y proteger a todos los actores relevantes en el campo de
la administración de la agricultura, desde los agricultores y las comunidades, hasta
los obtentores comerciales y los gobiernos estatales, otorgando una protección
que incluya no solamente las obligaciones derivadas del Acuerdo de la OMC
sobre los Aspectos de los Derechos de Propiedad Intelectual relacionados con el
Comercio (ADPIC), sino también las obligaciones y derechos contenidos en los
diversos tratados internacionales existentes sobre el tema369.
La posibilidad de desarrollar un régimen sui-generis de protección de
las variedades vegetales de los agricultores dentro del marco de ADPIC370 debe
considerarse como una alternativa válida también. Como hemos señalado, la
implementación de la protección de los DPI en relación con las nuevas variedades
de plantas surge como un aliciente para la investigación y desarrollo de estas
variedades. Sin embargo, no todos los sistemas de protección de los DPI son
aplicables a todos los sistemas de producción agrícola ni a todos los países,
MARTÍNEZ CAÑELLAS, Anselmo. La Protección Dual de la propiedad industrial de las
plantas transgénicas: como invenciones y como variedades vegetales. 1/2011, InDret. Barcelona,
2011. p. 6.
369
HELFER, Laurence R. Op.cit. p. 15
370
Artículo 27 ADPIC.
368
343
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
puesto que para su implementación debe tomarse en cuenta las necesidades y
características de cada uno de los sistemas productivos, así como de los sistemas
legales en los que se pretende implementar tales DPI . Para la creación de los
sistemas de DPI en relación con los derechos de los agricultores, es necesario
tomar en consideración la naturaleza del sistema productivo y las especificidades
del mismo. Asimismo, debemos reconocer también que la función alentadora de
la investigación se ha desvirtuado con el transcurrir del tiempo, y es cada vez más
frecuente que el principal objetivo perseguido por los obtentores resulte ser de
naturaleza meramente comercial. En la práctica, comprobamos como cada vez
con mayor asiduidad se ignora la contribución de los agricultores tradicionales a
la diversidad fitogenética de la que se nutren esas nuevas variedades371.
LOS DERECHOS DE LOS AGRICULTORES
Nos aventuraremos a definir los DA como todos aquellos derechos de
reproducción y utilización de material fitogenético, así como del reconocimiento,
en forma de compensación monetaria, o de cualquier otro tipo, de la contribución
de los agricultores a la creación de nuevas variedades vegetales. Es un concepto
que se encuentra íntimamente ligado a todas las aportaciones que en el transcurso
del tiempo han llevado a cabo los agricultores mediante la utilización de una
gran variedad de técnicas tradicionales propias.
Esta definición no resulta completa sin integrar el concepto de los
conocimientos tradicionales, que por su propia naturaleza es un elemento
imprescindible para la configuración tanto de la protección legal, como del
tratamiento práctico que debe implementarse en relación con los DA. Los
conocimientos tradicionales, como veremos con mayor detenimiento en líneas
posteriores, son todos aquellos conocimientos que se derivan de prácticas
tradicionales y que constituyen un cúmulo de información sumamente
importante para el desarrollo de los recursos fitogenéticos (en el caso que nos
ocupa) y de las variedades vegetales utilizadas en la agricultura.
Como colofón, y cada vez con mayor frecuencia, la utilización tanto
de las nuevas técnicas industriales, como de las nuevas variedades vegetales
hace que se desarrolle un mercado sustitutivo de los cultivos tradicionales,
que persigue mayores beneficios y se basa en la idea del libre mercado, pero
que tiende a no reconocer la importancia de los aportes de los agricultores
tradicionales para su desarrollo. Los DA, por tanto, deben tomar en cuenta
todos aquellos aspectos relacionados con la agricultura tradicional y su
evolución para resultar efectivos372.
DHAR, Bisjawit. Op.cit. p. 8.
CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options
371
372
344
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
OPCIONES DE PROTECCIÓN DE LAS VARIEDADES VEGETALES: SISTEMAS. CUÁLES?
A lo largo del tiempo se han realizado variados intentos por lograr la
implementación de un sistema que logre proteger las variedades vegetales,
reconociendo y regulando al mismo tiempo la importancia de los aportes
de los DA en relación con estas. Por la diversa naturaleza de los elementos
que los componen, encontramos también una gran variedad de instrumentos
internacionales que, de una forma u otra, se refieren a la regulación de los DA373.
Así, en primer lugar debemos señalar que dentro de los esfuerzos
realizados, encontramos tanto el Convenio sobre la Diversidad Biológica
(CDB) como el Tratado Internacional sobre los recursos fitogenéticos para la
agricultura y la alimentación (TIRFAA).
El CDB se refiere, como veremos más adelante, a aspectos específicos
sobre la utilización de los recursos biológicos de los Estados y por esto, es de
aplicación en relación con las variedades vegetales y los DA.
La posibilidad del desarrollo de un régimen sui-generis de protección
de las variedades vegetales de los agricultores, dentro del marco de ADPIC, es
decir, como DPI, es también una alternativa a considerar. La implementación de
la protección de los DPI en relación con las nuevas variedades de plantas parte
de la idea de los DPI como un aliciente para la investigación y desarrollo de
estas variedades. Sin embargo, es claro que no todos los sistemas de protección
de los DPI son aplicables a todos los sistemas de producción agrícola ni a todos
los países, puesto que para su correcta implementación debe tomarse en cuenta
las necesidades y características de cada uno de los sistemas productivos374, así
como de los sistemas legales en los que se pretende implementar tales DPI . Para
la creación de los sistemas de DPI se debe, entonces, analizar profundamente la
naturaleza del sistema productivo y las especificidades del mismo para lograr
una regulación adecuada. Es necesario reconocer también que el papel aliciente
de la investigación se ha venido desvirtuando con el transcurrir del tiempo, y
en la práctica deja de lado las contribuciones de los agricultores a la diversidad
fitogenética de la que se nutren las nuevas variedades.375
EL CONVENIO SOBRE LA DIVERSIDAD BIOLÓGICA
La ratificación de este Convenio afirma la soberanía de los países sobre
sus recursos biológicos, introduciendo el concepto de “interés común”, que
surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Op.cit. p. 20
373
DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 13
374
LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Op.cit. p. 7
375
DHAR, Bisjawit. Op.cit. p. 24.
345
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
implica que la protección de la biodiversidad de los distintos países es no sólo
interés de cada país en particular, sino también de la comunidad internacional
en términos generales.
Aspecto a destacar del Convenio es el reconocimiento que realiza de la
necesidad de la conservación, al tiempo que reconoce también la legitimidad de
la utilización de los recursos biológicos que cubren, por ejemplo, las necesidades
básicas de alimentación de los individuos. Asimismo, el convenio regula el acceso
a los recursos biológicos y la repartición de los beneficios que de su utilización se
desprendan. Pretende el convenio establecer un marco que reconozca y respete los
derechos soberanos de los países que aportan los recursos genéticos y biológicos,
facilitando, al mismo tiempo, el acceso por parte de los usuarios. El acceso a
los recursos, por tanto, debe ser en las “condiciones mutuamente convenidas”
y es sujeto al “consentimiento fundamentado previo” del país de origen de los
recursos. De la misma forma, el convenio es uno de los pocos tratados que ofrece
una declaración sobre la relación del tratamiento y administración de los recursos
biológicos y los derechos de propiedad intelectual376.
Establece asimismo, el concepto de diversidad biológica como bien
mundial de valor inestimable para la supervivencia de las generaciones
presentes y futuras.
En las zonas con mayor potencial productivo del mundo se han sustituido
las variedades autóctonas con variedades o cultivos modernos, pasando de
sistemas de subsistencia a sistemas de mercado u orientados hacia el mercado.
ACUERDO SOBRE ASPECTOS DE LA PROPIEDAD INTELECTUAL RELACIONADOS CON EL COMERCIO
La idea es implementar un sistema de protección de las nuevas variedades
vegetales que tome en cuenta tanto los aportes realizados por los agricultores
mediante sus técnicas agrícolas tradicionales a lo largo de los años, como la
innovación y la inversión realizada por los obtentores comerciales, que mediante
la utilización de la biotecnología logran mejorar las especies vegetales y adaptarlas
de forma tal que rindan mejores y mayores frutos.
Estos dos conceptos, es decir, los DA y los DOV, no tienen porqué estar
reñidos o ser antagónicos, debido a que el convenio ADPIC en su redacción es
sumamente flexible y permite la implementación, por los Estados parte, de un
sistema de protección sui – generis377. La posibilidad de implementar un sistema
sui-generis en los términos del convenio, es que se implica que dicho sistema
puede ser desarrollado ajustándose a la realidad y a las necesidades específicas
Artículo 16.5 Convenio sobre Diversidad Biológica.
DHAR, Bisjawit. Op.cit. p. 14.
376
377
346
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
tanto de los sistemas legales, como de los sistemas productivos y económicos de
los diversos estados. Esto es sumamente importante, y beneficioso para el caso de
los países en vías de desarrollo, que de esta forma logran un sistema que no resulta
demasiado oneroso o restrictivo para sus intereses sociales y económicos378.
Desde hace poco más de dos décadas, surge una tendencia muy
marcada de privatización de los recursos, el conocimiento y los medios de
producción. Durante la llamada “Primera Revolución Verde”, la inyección
de fondos públicos para la investigación e innovación en materia vegetal fue
sumamente importante, y permitió el crecimiento del sector agrícola, pero
también el mejoramiento sustancial de las variedades vegetales y por tanto, de
los productos provenientes de este sector. La inversión pública, motivada por
el bien común, y encaminada precisamente a lograr la seguridad alimentaria,
fue poco a poco reemplazada por la inversión del sector privado, que vio en
el sector biotecnológico alimentario, una fuente de abundantes ingresos y por
tanto, un nicho de mercado emergente379.
“El concepto de derechos del agricultor es más amplio, de naturaleza
distinta a los DPI, y su aplicación plena exigiría contar con otros instrumentos
a nivel nacional.”380
- definición precisa de la materia bajo protección, el convenio TRIPS
menciona las variedades vegetales, pero no las define, por lo que deja a
discreción de los legisladores nacionales la delimitación de este concepto.
- Establecimiento de un sistema dual: para las variedades modernas,
y bajo un sistema UPOV, se deben incluir los requisitos de novedad,
uniformidad, estabilidad, y un carácter diferenciable. Sin embargo, en
aras de lograr un efectiva protección de las variedades podría establecerse
para las variedades agrícolas tradicionales, algunos requisitos menos
estrictos, y limitarse, por ejemplo, a que exista una caracterización
adecuada y diferenciable381.
“La inclusión de las variedades campesinas como materia susceptible
de protección implicaría apartarse radicalmente de los regímenes de DPI
LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Op.cit. p. 10.
Como sabemos, los seres humanos podemos prescindir de realizar gastos en diversos rubros,
pero no podemos prescindir de los alimentos, lo que hace que esta industria sea más importante
aún. Es durante la llamada “segunda revolución verde”, entonces, que las compañías de capital
privado empiezan a apostar fuertemente por el sector y a realizar una gran inversión económica
en el mismo, esperando obtener réditos mucho mayores y relegando la inversión pública a un
segundo plano –aunque no eliminándola completamente-.
380
CORREA, Carlos M. Elementos para la protección legal de las variedades vegetales de los
agricultores. número 1. Revista La Propiedad Inmaterial. Bogotá, 2000. p. 44
381
MARTÍNEZ CAÑELLAS, Anselmo. Op.cit. p. 6.
378
379
347
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
existentes. Una de las dificultades más serias para proteger esas variedades, es
su naturaleza esencialmente variable”382
La implementación de los DA debe verse como un medio vital para
detener la erosión genética y como una ayuda invaluable para la seguridad
alimentaria. De la misma forma, puede verse también como parte del eje central
de la lucha contra las desigualdades en el mundo, y por tanto, como un elemento
importante de la lucha contra la pobreza.
El objeto de los DA es, en primer lugar, las variedades vegetales
tradicionales y el conocimiento y las innovaciones relacionadas a estas. Sin
embargo, esto no implica que los agricultores deban constituirse en los
dueños de estas variedades y conocimiento de manera individual. Entre otras
consideraciones, porque un enfoque individualista de los DA resultaría en un
sistema excesivamente oneroso, que anularía totalmente los beneficios que
resultarían de la protección de los derechos. En cualquier caso, parece que
también este sistema individual iría en detrimento de los mismos derechos
que pretenden protegerse, es decir, el conocimiento comunitario y el derecho
fundamental y práctica ancestral de intercambio de semillas para el cultivo.
El acceso de los agricultores a los recursos tecnológicos en materia agrícola,
los incentivos económicos o de otra naturaleza, dirigidos a las comunidades
agrícolas, la conservación in situ y la capacitación de los agricultores, son las
medidas principales en los que la mayoría de los autores concuerdan que deben
conformar el sistema de DA, puesto que es a partir de estas ideas, que puede
construirse un sistema efectivo y consciente de protección tanto de los recursos
agrícolas y del conocimiento tradicional generado a lo largo de los años, como
de los intereses económicos derivados de estos.
No podemos soslayar la importancia del derecho al libre acceso y
escogencia de los recursos genéticos agrícolas, que debe, necesariamente,
ir de la mano con la libertad de compartir y mejorar dichos recursos y la
libre venta de los productos derivados, dentro de cualquier esquema de
protección de los DA. Estos elementos son una parte fundamental del sistema
de conservación e innovación agrícola. Asimismo, es necesario incluir, en
cualquier esquema de protección y reconocimiento de los DA, junto con
las variedades tradicionales, las variedades producidas por los obtentores
mediante la utilización de medios tecnológicos.
La utilización de los derechos de propiedad intelectual en relación con
los DA, debe ser cuidadosamente sopesada y matizada, y es que diversos
autores consideran que estos derechos resultan insuficientes para la adecuada
protección de los recursos genéticos vegetales y por tanto estiman que un sistema
CORREA, Carlos M. Elementos para la protección legal de las variedades vegetales de los
agricultores Op.cit. p. 44.
382
348
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
de protección sui generis - ajustado a las diversas necesidades y componentes
de los sectores agrícolas - de los DA, es la opción a considerar por su extrema
flexibilidad y adaptabilidad383.
El reconocimiento de la contribución de los agricultores al fondo genético
mundial es visto, por una parte de la doctrina, como un medio compensatorio
por el uso de los recursos y del conocimiento generados de manera tradicional.
Sin embargo, en el momento de la repartición de los beneficios y de la efectiva
implementación de un sistema de DA, debe tenerse en cuenta cuáles pueden ser
los aspectos negativos generados a partir de la regulación y protección mediante
uno u otro sistema.
EL TRATADO INTERNACIONAL SOBRE LOS RECURSOS FITOGENÉTICOS PARA LA AGRICULTURA Y LA ALIMENTACIÓN (TIRFAA)
El Tratado en primer lugar y primordialmente reconoce la contribución
enorme que los agricultores y sus comunidades han aportado y siguen
aportando a la conservación y al desarrollo de los recursos fitogenéticos. Esta
contribución es, como señalamos en líneas anteriores, la base de los Derechos
de los agricultores, incluyendo la protección de los llamados conocimientos
tradicionales, y, aspecto sumamente importante, el derecho de los agricultores y
grupos indígenas y comunitarios a participar equitativamente en la distribución
de los beneficios y en la adopción de decisiones nacionales relativas a los
recursos fitogenéticos. Establece, por tanto, la responsabilidad de los gobiernos
de aplicar estos derechos384.
Sus principales objetivos son la conservación y utilización sostenible de
los recursos fitogenéticos para la alimentación y la agricultura, y la distribución
justa y equitativa de los beneficios derivados de su utilización en armonía con
el Convenio sobre la Diversidad Biológica, para una agricultura sostenible y la
seguridad alimentaria385.
El Tratado permite los países establecer un sistema multilateral “eficaz,
efectivo y transparente386” para simplificar el acceso a los recursos fitogenéticos
para la alimentación y la agricultura, estableciendo al mismo tiempo un sistema
justo y equitativo de repartición de los beneficios generados por dichos recursos.
De esta forma, mediante un «Acuerdo de transferencia de material» los países
DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 10.
CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options
surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Quaker United Nations
Office. Geneva, 2001. p.
385
www.planttreaty.org/ Última revisión, 27 de abril de 2013.
386
Ibídem.
383
384
349
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que hayan ratificado el Tratado, establecerán todas aquellas condiciones de
acceso y de distribución de los beneficios.
LA INTERACCIÓN ENTRE LOS DIVERSOS SISTEMAS DE PROTECCIÓN.
El conjunto de obligaciones que surge de este acervo de disposiciones
y tratados, necesariamente debe tomarse en cuenta a la hora de establecer un
sistema sui generis como el permitido por ADPIC:
- Los Estados tienen los derechos soberanos sobre sus propios recursos
naturales, incluyendo los recursos genéticos.
- Los DA que surgen de la contribución pasada, presente y futura de
los agricultores en la conservación, mejoramiento y divulgación de
los recursos vegetales genéticos deben reconocerse para de esta forma
reconocer y permitir a los agricultores, sus comunidades y países en
todas las regiones del mundo, la participación total de los beneficios
derivados en el presente y en el futuro, de la utilización mejorada de
los recursos genéticos vegetales, mediante la obtención de variedades
vegetales u otros métodos científicos.
- La diversidad biológica (biodiversidad), incluyendo la diversidad
genética, debe ser conservada, mejorada y utilizada de forma sostenible.
Las patentes y otros derechos de propiedad intelectual, deben constituir
un apoyo a estos objetivos y no constituir una barrera para su consecución.
- El acceso a los recursos genéticos debe sujetarse al “Consentimiento
Fundamentado Previo” . Cuando el acceso sea concedido, debe serlo en
las condiciones mutuamente pactadas.
- Los beneficios derivados de la utilización comercial o de cualquier
tipo de los recursos genéticos deberán ser repartidos de forma justa
y equitativa, de acuerdo con las condiciones acordadas, bilateral o
multilateralmente.
- Los resultados de la investigación y el desarrollo derivados de la
utilización de recursos genéticos, así como la tecnología que se utilizada
con estos recursos, deberá ser compartida de forma justa y equitativa de
acuerdo con los términos pactados. La transferencia de las tecnologías
relevantes para la conservación de la biodiversidad y el acceso al uso
sostenible de sus componentes, y a las tecnologías que utilizan los
recursos genéticos deben ser provistas y/o facilitadas bajo los términos
más justos y favorables387.
CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options
surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Op.cit. p. 14
387
350
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
- Los conocimientos indígenas y comunitarios, las innovación y las
prácticas relacionadas con las plantas y los recursos genéticos vegetales,
deben ser protegidos y promovidos. Deben tomarse medidas especiales
para asegurar este paso, incluyendo mecanismos que garanticen el
consentimiento libre e informado388.
De la misma forma, podemos analizar algunos principios rectores
reguladores de los recursos genéticos y que por supuesto, cumplen también una
función informadora en el tema.
PRINCIPIO DE SOBERANÍA NACIONAL SOBRE LOS RECURSOS
GENÉTICOS
Es el principio universalmente aceptado que establece que los recursos
genéticos vegetales son una herencia de la humanidad y en consecuencia, deben
ser accesibles sin restricción alguna.
Algunas dificultades que pueden surgir en la aplicación del principio de
soberanía, dificultades que no constituyen limitaciones al derecho derivado,
pero que si pueden hacerlo menos significativo:
Exclusividad: La determinación de la accesibilidad a los recursos
genéticos depende, en buena parte, de la posibilidad de establecer la exclusividad
de dichos recursos.
En la práctica, sucede con muchísima frecuencia, que los recursos
genéticos son compartidos por dos o más países. Mientras que es argumentable
el hecho de que dos o más países tengan derechos soberanos sobre los recursos,
es claro que estos derechos no se extienden a los recursos de cada cual389.
CONTROL DEL ACCESO A LOS RECURSOS GENÉTICOS:
Una dificultad añadida en el ejercicio del principio de soberanía y los
derechos derivados, es la gran dificultad que puede existir a la hora de controlar
efectivamente el acceso a los recursos genéticos. Es a partir de la firma de la
CDB que empieza una ola de protección del acceso a los recursos, cada vez son
más los países que implementan legislaciones acordes con este control, aunque
aún antes de la entrada en vigor de la CDB, ya varios países contaban con algún
tipo de regulación reconociendo el principio de soberanía sobre esta clase de
recursos. Sin embargo, tal y como es el caso con las leyes en general, éstas
serán eficaces en la medida en que pueda controlarse su cumplimiento.
HELFER, Laurence R. Op.cit. p. 12
CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options
surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Op.cit. p. 15
388
389
351
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
En el caso específico del control de cumplimiento de la legislación de
acceso, existe una dificultad añadida, y es que las semillas son pequeñas y por
tanto fácilmente transportables y fáciles de encubrir, por lo que el control físico
se hace casi imposible. Un pequeño número de semillas que logren evadir los
controles y salgan del país hace que el país pierda el control efectivo de dicho
recurso. Es necesario aclarar que el hecho de perder el control sobre el recurso
no significa que el país pierda su derecho soberano, si significa, sin embargo,
que la herramienta para el ejercicio de este derecho, cual es el control exclusivo
sobre el recurso, ya no se encuentra al alcance del país.
EL ACCESO A LOS RECURSOS FITOGENÉTICOS CON BASE EN LOS
TÉRMINOS ACORDADOS DE FORMA MUTUA
El derecho soberano de los Estados sobre sus recursos implica tanto
la posibilidad de explotación de los mismos, como la posibilidad de negar el
acceso a ellos.
Como ejemplo, el TIRFAA en ningún momento admite la posibilidad
del libre acceso a los recursos genéticos de los países, en su lugar señala las
condiciones bajo las que los Estados deben permitir el acceso a muestras de sus
recursos y permitir su exportación, cuando estos recursos hayan sido solicitados
con fines de investigación científica, obtención de nuevas variedades vegetales
o conservación de recursos fitogenéticos y excluye la posibilidad de acceder a
los recursos con fines comerciales, cuestión que si bien es certera formalmente,
en la práctica resulta casi imposible de separar entre los motivos comerciales
del acceso y los propósitos de acceso para la reproducción de las semillas390.
En cualquier caso, en seno del TIRFAA, el acceso a las muestras
debe ser gratuito, pero siempre en los términos del intercambio mutuo o de
las condiciones pactadas voluntariamente. En lugar de afirmar que el tratado
propugna entonces el acceso gratuito a los recursos, podemos sostener que el
tratado autoriza tres formas de acceder a los recursos fitogenéticos, a saber:
de forma gratuita, basada en el intercambio de los recursos, o finalmente, la
disposición de los recursos en los términos acordados por las partes. Estas
tres modalidades de acceso se encuentran también en la CDB, sin embargo,
únicamente se menciona explícitamente la última (art. 15.4), reforzándola con
el “Consentimiento Informado Previo”. El CIP es, en definitiva, un instrumento
fiable y muy apropiado para asegurarse el cumplimiento de las obligaciones
derivadas de los Tratados y Convenciones internacionales, sin embargo, no es
el único instrumento que puede utilizarse con este propósito391.
DRAHOS, Peter. Op.cit. p.9.
CORREA, Carlos M. Alcances jurídicos de las exigencias de divulgación de origen en el
sistema de patentes y derechos de obtentor. Año I, Número 2. Iniciativa para la prevención de la
biopiratería, documentos de investigación. Sociedad Peruana de Derecho Ambiental. Lima, 2005.
390
391
352
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
TÉRMINOS MUTUAMENTE ACORDADOS
Mientras que el TIRFAA condiciona el acceso a los recursos a las
negociaciones entre los proveedores y los gobiernos y las instituciones
encargadas del manejo del campo de los recursos fitogenéticos, la CDB
únicamente establece la obligación de negociar entre aquellas partes que
permiten el acceso y otras instituciones. Sin embargo, al establecer la legislación
necesaria, las partes hacen que sus condiciones de acceso sean vinculantes para
aquellos obtentores o agricultores (de carácter privado) de recursos.
Aún cuando el convenio es harto flexible y permite una considerable
discreción a los contratantes, los términos en que se consiente deben,
necesariamente, ceñirse a las disposiciones de la CDB392.
EL CONSENTIMIENTO INFORMADO PREVIO
Es un principio que está conectado de forma inextricable con el
requerimiento del consentimiento mutuo y su otorgamiento dependerá de los
términos establecidos para el acceso y la utilización de los recursos393. Se basa
precisamente en el conocimiento y negociación de los términos y condiciones
de los acuerdos de acceso a los recursos fitogenéticos y constituye un elemento
de control de dicho acceso, permitiendo, entre otras cosas, que los Estados
que comparten sus recursos puedan mantener, hasta cierto punto, un grado de
dominio sobre la utilización de dichos recursos.
APROBACIÓN E INVOLUCRAMIENTO DE LOS POSEEDORES DEL
CONOCIMIENTO
El artículo 8 (j) de la CDB establece que las partes contratantes deben,
en la medida de lo posible, y siempre que sea apropiado, promover una amplia
aplicación de los conocimientos, innovaciones y prácticas tradicionales, e instar
la equitativa distribución de los beneficios derivados de la utilización de dichos
conocimiento, innovaciones y prácticas, contando con “la aprobación y la
participación de quienes posean estos conocimientos”. De esta forma, la CDB
condiciona el acceso a los recursos fitogenéticos tanto a los acuerdos alcanzados
por las partes como a la inclusión y aprobación de la repartición de los beneficios
por parte de los poseedores del conocimiento tradicional. Sin embargo, es
necesario apuntar que este último requisito se encuentra limitado a lo establecido
por la legislación nacional de cada Estado, lo que implica que la legislación
interna tomará precedencia sobre el tratado en este tema en particular.
DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 12
HELFER, Laurence R.Op.cit. p.14.
392
393
353
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
El convenio omite señalar cómo esta clase de “CIP” de naturaleza nacional
debe compaginarse con el CIP de carácter internacional mencionado en líneas
anteriores. Podemos señalar que una forma de relacionar ambos procedimientos
sería la de supeditar el proceso del CIP internacional a la consecución del CIP
nacional por parte de las comunidades involucradas394.
DISTRIBUCIÓN DE BENEFICIOS
La utilización sostenible, la conservación de la biodiversidad y la
equitativa distribución de beneficios derivados del aprovechamiento de los
recursos genéticos son los objetivos que persigue la CDB al reconocer el derecho
de los Estados de determinar y regular el acceso a sus recursos fitogenéticos y al
establecer al mismo tiempo la necesidad del CIP y de las condiciones y términos
mutuamente acordados. El principio de distribución de beneficios es un principio
de común utilización en el derecho internacional. Más allá de la diversidad de
lenguaje jurídico utilizado en los diversos instrumentos internacionales, o de los
actores involucrados en dichos instrumentos, el principio de que todos aquellos
que por años han sido responsables de la protección y han proveído recursos
fitogenéticos deben participar de los beneficios surgidos de la utilización de
estos recursos y del conocimiento que los mismos llevan aparejados.
El razonamiento que fundamenta la idea de la distribución de los beneficios
es que aquellos que conservan y desarrollan recursos genéticos mediante su
utilización sostenible deben ser compensados por sus esfuerzos, a la vez que
deben obtener beneficios que les incentiven a continuar con esta labor395.
De acuerdo con la CDB (15 (7)), las partes contratantes deben implementar
todas aquellas medidas legislativas, administrativas o de políticas públicas que
tengan como fin último la distribución justa y equitativa de los resultados de la
investigación, por lo que el desarrollo y los beneficios surgidos a partir de la
utilización comercial o de cualquier otra naturaleza que se le de a los recursos
genéticos deben compartirse con los proveedores de estos recursos.
Mas aún, las partes contratantes deben impulsar, a nivel nacional
también, el equitativo reparto de los beneficios surgidos de la utilización del
conocimiento, innovación y prácticas tradicionales. Para lograr este propósito,
ciertamente no es suficiente asegurar que los beneficios serán de las partes
proveedoras de los recursos. La compensación debe necesariamente dirigirse
también a todas aquellas personas que conservan la biodiversidad.
Los beneficios pueden repartirse en efectivo o mediante la utilización
otros medios, tales como beneficios monetarios, regalías o el acceso a los
productos biotecnológicos derivados de la utilización de los recursos genéticos.
DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 15.
CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options
surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper.Op.cit. p. 17
394
395
354
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
El convenio deja a discreción de la partes las cuestiones de forma de los
convenios multilaterales o bilaterales, generales o individuales, de repartición
de beneficios. Sin embargo, estos convenios deben necesariamente cumplir con
los objetivos generales de el convenio. En particular, cualquier convenio de
repartición de beneficios debe asegurar la participación de aquellos poseedores
de los recursos y del conocimiento relacionado a ellos.
Tanto la CDB como el Código Internacional de Conducta para la Recolección
y Transferencia de Germoplasma Vegetal (CICRTG), de la FAO sugieren como
una medida importante, la construcción de una plataforma de investigación
científica en todos aquellos países que son proveedores de los recursos genéticos.
El CICRTG propone, como forma de compensación de los beneficios derivados
del uso del germoplasma, diversas medidas de capacitación, apoyo para la
investigación, apoyo para programas de evaluación y mejoramiento de las especies
locales, así como el suministro de la información técnica y científica obtenida de
dicho germoplasma. El convenio requiere que los contratantes se involucren en el
desarrollo y la investigación científica basada en los recursos genéticos provistos
por las demás partes contratantes, con la completa participación de estas, siempre
que sea posible dentro de su territorio.
CONCLUSIONES
Como se desprende de los conceptos, soluciones y propuestas expuestos
en líneas anteriores, se ha realizado a nivel mundial un enorme esfuerzo para
reconocer y proteger el aporte de los agricultores a la alimentación, el comercio
y el desarrollo. Es precisamente debido a la importancia que reviste este
aporte que resulta necesaria la implementación de sistemas que protejan eficaz
y adecuadamente a las comunidades y grupos sociales que se dedican a las
actividades agrícolas.
El anterior trabajo no pretende, ni mucho menos, detallar todas y cada
una de las opciones y sistemas de protección de los recursos fitogenéticos,
las variedades vegetales y/o los conocimientos tradicionales. La intención es
ofrecer un vistazo al panorama mundial en la materia, pero con un enfoque
particular sobre los derechos de los agricultores.
La particular naturaleza de estos derechos y recursos hace que su protección
resulte complicada, por el embrollado tejido de relaciones que encontramos
entre los diversos tratados y convenios multilaterales existentes. Estos tratados
y convenios a su vez, con contadas excepciones, persiguen muy diversos
resultados, por lo que resultan, en la mayoría de los casos incompatibles entre
ellos. Si a este panorama le agregamos las particulares legislaciones nacionales
de los países firmantes de los convenios, encontramos una enmarañada y
355
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
confusa realidad legal que no aporta si no inseguridad jurídica.
El tema reviste especial importancia para aquellas economías agrícolas
de subsistencia, tan abundantes en el continente americano, pero también
para aquellos países que cuentan con una enorme diversidad biológica y un
acervo relevante de conocimientos tradicionales, fruto de una importante
población indígena.
En particular, debemos resaltar entonces la necesidad de los países de
contar e implementar en sus legislaciones, ya sea mediante la adopción de
leyes nacionales y/o la firma de los diversos convenios y tratados, un sistema
que permita la efectiva protección de sus propios recursos naturales. Así,
creemos que es importante que dicha legislación contenga al menos dos de los
principios explicados supra: El principio del consentimiento informado previo
y el principio de la equitativa distribución de los beneficios, puesto que son
estos los que reconocen más eficazmente los derechos de los agricultores. Un
sistema adaptado a las necesidades particulares de cada nación debe resultar de
la implementación de estos principios.
356
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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agricultura. Cerrar la brecha de género en aras del desarrollo.” Organización de
las Naciones Unidas para la Agricultura y la Alimentación. Roma, 2011.
357
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO
FUNDAMENTAL À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES GERAIS
Giovana Gadia396
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe em seu bojo diversas
modificações no tratamento do direito à saúde no país. O acesso universal,
amplo e irrestrito, a criação do SUS – Sistema Único de Saúde, e, de modo
extremamente relevante, o tratamento dado ao tema, que a partir de então foi
abordado como direito fundamental e de aplicabilidade imediata, foram algumas
das diversas inovações trazidas pelo texto constitucional.
Inobstante a obrigação da Administração Pública em fazer cumprir
as determinações constitucionais, especialmente no que toca às garantias de
acesso à saúde no Brasil, tem se tornado bastante comum nos últimos anos
que o indivíduo que tenha se sentido prejudicado pela negativa de seu direito
de acesso à saúde questione a recusa através de interposição de ação perante o
Poder Judiciário. Daí a relevância do assunto, visto que tal situação serve como
inspiração para as mais apaixonadas discussões que promovem o embate entre
aqueles que defendem a legitimidade do Poder Judiciário em atuar na garantia
desses direitos e seus opositores, que alertam que tal prática de intervenção
na autonomia do Poder Executivo pode colocar em jogo elementos que são
importantes pilares do Estado.
O confronto de importância entre o direito individualizado e aquele
planejado para atender à coletividade é, na grande maioria dos casos, o mote que
serve como palco das discussões mais acaloradas. Isto posto, como se efetivar
e concretizar a garantia de acesso ao direito fundamental à saúde por parte da
Administração Pública, se esta vê atrelada em sua essência a um orçamento
rígido, limitado e com suas despesas previamente determinadas?
No trabalho que ora se propõe a desenvolver, busca-se analisar tal questão
sopesando ambos os lados (Administração e indivíduo), com o intuito de, ao
final, deixar exposto o panorama do cenário brasileiro acerca da responsabilidade
da Administração Pública em prover a todos o acesso ao direito à saúde, bem
como dos caminhos alternativos através da intervenção do Poder Judiciário que
os que se sentirem lesados em seu direito poderão utilizar. Para tanto, utilizarse-á o método dedutivo, partindo-se de considerações preliminares acerca da
Administração Pública e sua função típica e da responsabilidade de garantir
Mestranda em Direito UFU.
396
358
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
o acesso à saúde que lhe é atribuída na busca de atender ao interesse público,
para então se chegar à investigação específica e aprofundada sobre a dicotomia
garantia fundamental/limitação orçamentária; e também se utilizará, ainda que
perfunctoriamente, o método dialético, expondo prerrogativas da Administração
Pública que acabarão por se tornarem limitações quando do exercício da garantia
ao direito à saúde do cidadão.
Buscar-se-á também explicitar o confronto entre os institutos do mínimo
necessário à manutenção da dignidade humana e a reserva do possível devem
ser tratadas sob a ótica da proporcionalidade, de forma a que se alcance a melhor
e mais justa forma de ação, a fim de que a Administração Pública cumpra seu
encargo de fazer chegar à população o alcance dos direitos constitucionalmente
garantidos, sem, com isso, comprometer seriamente as políticas públicas
previamente delimitadas e aprovadas em seu orçamento.
2. CONSIDERAÇÕES PROPEDÊUTICAS SOBRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
No direito público, o termo administração caracteriza a atuação que
realiza aquele que não é senhor absoluto, quem detém competência para gerir
e, via de conseqüência, o ônus de prestar contas da gestão realizada. Nesse
sentido, pode-se dizer que Administração Pública seria a estrutura responsável
por gerir o Estado e prestar contas de tal gestão, pelo que tal figura pode ser
interpretada em sentido objetivo e subjetivo.
Objetivamente, escrito com letras minúsculas, administração pública
configura o desempenho das atividades administrativas. Neste tipo de
abordagem não se atribui importância aos sujeitos, mas à atividade realizada
para atender às necessidades da sociedade, nos termos exigidos pelo regimento
jurídico administrativo e viabilizado pela estrutura disponível. Pode-se afirmar,
portanto, que a administração pública é o exercício da função administrativa,
a atuação do Estado no objetivo de cumprir as determinações exaradas pelas
normas de direito público, submetidas ao controle de juridicidade.
Di Pietro (2005, p. 59-61) bem assinala que, sob um viés objetivo, a
administração pública “é uma atividade concreta, porquanto coloca em
execução a vontade do Estado contida na lei. Sua finalidade é satisfazer direta e
indiretamente os fins do Estado, sob o regime de direito público”.
Subjetivamente, a expressão traz em seu conteúdo a definição de
correspondência ao conjunto de órgãos e entidades administrativas que praticam
a função administrativa. Grafada em letras maiúsculas, a Administração Pública
designaria então os órgãos das pessoas federativas e as entidades administrativas
a elas relacionadas que, atuando de ofício, satisfazem necessidades sociais a
partir do cumprimento das normas legais. A terminologia se refere a todas as
359
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
pessoas que exercem a atividade administrativa, nomeando todos os órgãos das
pessoas públicas e privadas a quem cabe exercer função administrativa, ainda
que pertencentes ao Poder Judiciário ou Legislativo.
A Administração Pública não deve ser confundida com qualquer desses
poderes estruturais. Embora incumba ao Poder Executivo a função de administrador
por excelência, Carvalho Filho (2011, p. 11) salienta que nos Poderes Judiciário e
Legislativo há numerosas tarefas que constituem atividade administrativa, citando
o exemplo da organização interna dos serviços e de seus servidores para concluir
que todos os órgãos e agentes destes Poderes que estiverem exercendo função
administrativa serão integrantes da Administração Pública. Nesse sentido, feliz fora
o legislador constituinte ao traçar diretrizes constitucionais mais especificamente
relacionadas à Administração Pública na Seção I, Capítulo 7, intitulado “Da
Administração Pública”, artigos 37 a 43 da Constituição Federal de 1988.
A lição de Meirelles (2011, p. 66) merece destaque pela transparência
com que brinda a definição:
[...] a Administração Pública é o conjunto de órgãos instituídos para
consecução dos objetivos do Governo. [...] Numa visão global, a
Administração é, pois, todo o aparelhamento do Estado preordenado à
realização de serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas.
Os atos que pratica são denominados atos administrativos, atividades
neutras vinculadas à lei ou à norma técnica.
O Estado realiza as atividades administrativas objetivando beneficiar a
coletividade: ainda quando praticada visando a atender a um interesse estatal
imediato, seu fim deverá ser sempre voltado a garantir a satisfação do interesse
público. Se esse objetivo não for comprovado, comprometer-se-á a atuação da
Administração Pública por desvio de finalidade.
Conforme preleciona Carvalho Filho (2011, p. 29),
[...] não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas
o grupo social num todo. Saindo da era do individualismo exacerbado,
o Estado passou a caracterizar-se como Welfare State (Estado/bemestar), dedicado a atender ao interesse público. Logicamente, as relações
sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o
interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há
de prevalecer o interesse público.
Com efeito, o interesse público é sempre cortejado por quem detém
poder. Por conseqüência, situações há em que, desvirtuado, o interesse público
360
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
acaba por acobertar e justificar intenções menos nobres disfarçadas de “razões
de Estado”, artifício usado como escudo protetor contra críticas e represálias,
para fazer-se da máquina administrativa joguete para atender a interesses
particulares e ter imunidade até mesmo à atuação e controle do Poder Judiciário.
Justen Filho (2005, p. 39-41) bem obtempera a rspeito:
O interesse público não se confunde com o interesse do Estado, com o
interesse do aparato administrativo ou do agente público. É imperioso
tomar consciência de que um interesse é reconhecido como público
porque é indisponível, porque não pode ser colocado em risco, porque
suas características exigem sua promoção de modo imperioso.
Insta frisar ser função típica da Administração Pública velar pelo interesse
público, interpretá-lo e aplicá-lo aos casos concretos que lhe são apresentados.
Ato contínuo, se a Administração Pública não puder se valer para o exercício de
suas funções e das prerrogativas que lhe são atribuídas - como a imperatividade
e a presunção de legitimidade dos atos que pratica por exemplo -, seria o reinado
do caos e total comprometimento da segurança jurídica.
Dessume-se disso que o princípio da supremacia do interesse público
é um dos corolários que norteiam o Direito Administrativo. Sua observância
garante que a prevalência dos interesses da sociedade perante os interesses
particulares, evitando a desagregação que haveria se cada indivíduo ou setor
da coletividade buscasse a concretização de seus interesses particulares em
detrimento da sociedade em si considerada.
A realização desses interesses impõe ao agente público uma atuação
concreta na busca de sua satisfação. À concretização de um fim que equivalha
aos valores e necessidades sociais convencionou-se chamar de interesse
público primário, o qual, segundo Barroso (2005, p. 56), é a razão de ser do
Estado e se resume aos fins que são de sua obrigação promover, como justiça,
segurança e o bem-estar social. Prossegue o mencionado autor conceituando
interesse público secundário sendo aquele relacionado à pessoa jurídica de
direito público que figure como parte de uma relação jurídica. É o interesse
do erário, voltado para o objetivo de maximizar arrecadação e minimizar
despesas (BARROSO, 2005, p.56).
Em síntese, o interesse público é a soma dos interesses individuais que
se coincidem em torno de um bem a que se atribui valor ou utilidade de fundo
moral ou material. Passa a denotar caráter público quando dele compartilham
um determinado numerário de pessoas que fazem parte de uma comunidade
específica, tornando-se interesse de todo o grupo ou, ao menos, um querer
predominante da comunidade.
361
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Em uma sociedade democrática, o interesse público e o particular são
igualmente respeitados. Quando o interesse individual é preterido em razão
da importância e natural predominância do interesse público, deverá ser
compensado mediante a conversão em um tipo de valor, como acontece a
título de exemplo nos processos de expropriação de propriedade particular para
atender interesse público. O ordenamento jurídico-constitucional brasileiro é
composto por vários dispositivos que ratificam essa orientação.
Entrementes, frise-se que tal supremacia não decorre de um permanente
antagonismo entre o interesse individual e aquele dito público. Como argumenta
Escola (1989, p. 243):
O interesse público, de tal maneira, não é de entidade superior ao interesse
privado, nem existe contraposição entre ambos: o interesse público só é
prevalecente, com respeito ao interesse privado, só tem prioridade ou
predominância, por ser um interesse majoritário, que se confunde com
o querer valorativo atribuído à comunidade. Esta prevalência se funda,
também, no fato de que o interesse público, concebido dessa forma, e
como o caracteriza Gordillo, haverá de resultar em maiores direitos e
benefícios para todos e cada um dos indivíduos da comunidade, que, por
isso, justamente, aceitam voluntariamente aquela predominância que lhes
é vantajosa. Esta prioridade e essa aceitação voluntária não se produzem
quando, em um suposto interesse público – que já sabemos que, em
realidade, não é tal – não é possível reconhecer e distinguir uma maioria
de interesses individuais, como ocorre quando se apresenta somente
como um interesse do Estado, da administração, do partido governante,
do hierarca, etc. Por isso tem-se sustentado, com razão, que o interesse
público no qual cada indivíduo não possa encontrar ou identificar sua
porção concreta de interesse individual é uma simples falácia – Gordillo.
A grande questão que se impõe é a necessidade de se encarar a
supremacia do interesse público como um instituto que trabalha de mãos
dadas com a garantia da eficácia dos direitos fundamentais. Freitas (2004, p.
34-35) preleciona que “o princípio do interesse público exige a simultânea
subordinação das ações administrativas à dignidade da pessoa humana e o fiel
respeito aos direitos fundamentais”. Não é outro o entendimento de Sarmento
(2005, p. 82-83), quando defende a necessidade de que a doutrina reconheça a
dimensão objetiva dos direitos fundamentais:
Como se sabe, a idéia da dimensão objetiva prende-se à visão de que
os direitos fundamentais cristalizam os valores mais essenciais de uma
362
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
comunidade política, que devem se irradiar por todo o seu ordenamento,
e atuar não só como limites, mas também como impulso e diretriz para
a atuação dos Poderes Públicos. Sob esta ótica, tem-se que os direitos
fundamentais protegem os bens jurídicos mais valiosos, e o dever do
Estado não é só o de abster-se de ofendê-los, mas também o de promovêlos e salvaguardá-los das ameaças e ofensas provenientes de terceiros. E
para um Estado que tem como tarefa mais fundamental, por imperativo
constitucional a proteção e a promoção dos direitos fundamentais dos
seus cidadãos, a garantia destes direitos torna-se também um autêntico
interesse público.
O problema que persiste é que nos tempos atuais a sociedade evoluiu
para um complexo sistema de relações, e dele decorrem uma variada gama
de interesses, todos com semelhante carga de relevância: públicos, primários e
passíveis de proteção pela Administração Pública, mas que se diferenciam pelas
amplitudes que assumem.
Diante desse cenário, percebe-se a necessidade de ponderação e
confrontamento entre tais interesses, na busca “do melhor interesse público,
aquela solução ótima que realize ao máximo cada um dos interesses em jogo”.
A noção do “melhor interesse público”, segundo Sarmento, somente pode ser
alcançada partindo-se de um procedimento racional que abarca a disciplina
constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como de
um juízo de ponderação que tornará viável a concretização de todos eles na
maior amplitude possível. O instrumento a ser utilizado na produção desse
raciocínio ponderativo é o princípio da proporcionalidade (SARMENTO,
2005, p. 151-167), onde se sopesarão os interesses confrontantes e, diante
da situação fática apresentada, buscar a solução ideal que garanta a maior
realização possível dos anseios almejados.
A atividade de ponderação torna-se menos complexa quando o conflito
envolve direitos fundamentais, que têm prevalência em princípio garantida pela
Constituição brasileira. Não obstante, a ponderação continua extremamente
necessária para que se possa garantir a efetiva realização do interesse público
em sua real dimensão.
3. A SAÚDE ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL
Desde sua abordagem pelos primeiros textos constitucionais, os
direitos fundamentais sofreram várias modificações, evoluindo no que toca
a seu conteúdo, eficácia e concretização. No intuito de traçar a linha de
desenvolvimento desses direitos diante do contexto histórico, convencionou363
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
se, como anteriormente explicitado, a utilização das expressões “geração” ou
“dimensão” de direitos. Essa classificação, nos dizeres de Sarlet (2010, p. 46)
[...] não aponta, tão somente, o caráter cumulativo do processo evolutivo
e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas
afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do
direito constitucional interno, e, de modo especial, na esfera do moderno
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Jellinek, em sua obra intitulada “Sistema dos Direitos Públicos”,
formulou concepção original de acordo com a qual o indivíduo vinculado ao
Estado encontra sua posição a este cunhada por quatro espécies de situações
jurídicas – status, seja com sujeito de deveres, seja como titular de direitos. A
partir desta concepção, Alexy desenvolve sua teoria classificatória dos direitos
fundamentais, segundo a função por eles exercida no ordenamento jurídico e a
estrutura deôntica de suas normas, são estes divididos em três grandes grupos
– os direitos a algo, as liberdades e as competências (OLSEN, 2010, p. 2010).
Em que pese a importância de compreender cada aspecto da classificação
ora apresentada, o foco de atenção e direcionamento do estudo volta-se para
os direitos fundamentais em sentido estrito, também denominados de direitos
fundamentais sociais. Os direitos fundamentais sociais objetivam assegurar,
mediante a compensação das desigualdades sociais, o exercício de uma
liberdade e igualdade real/efetiva, que pressupõem o comportamento ativo do
Estado. Neste contexto, Sarlet ( 2010, p. 284) preleciona que
[...] os direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõem
seja criada ou colocada à disposição a prestação que constitui seu
objetivo, já que objetivam a realização da igualdade material, no sentido
de garantirem a participação do povo na distribuição pública de bens
materiais e imateriais.
O direito à saúde está inserido dentre aqueles denominados “de segunda
dimensão”. A Revolução Industrial ocorrida no Século XIX foi um período de
grande prosperidade vivida pela sociedade, mas que teve um elevado preço:
sacrifício de uma enorme parcela da população, essencialmente da classe
trabalhadora, que atuava em condições deploráveis. A extenuante jornada de
trabalho, a inexistência de um salário mínimo, férias ou qualquer descanso
regular, somados à exploração do trabalho infantil acabaram por gerar uma
grande insatisfação da classe trabalhadora, que se organizou para reivindicar
direitos que lhes garantissem condições mais dignas e razoáveis.
364
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
É nesse contexto conflituoso que nasce o Estado do bem-estar social que,
não obstante o vínculo essencial com as ideias capitalistas envolve-se na busca
da promoção de maior igualdade social e melhores condições de trabalho, além
de se comprometer a garantir os direitos econômicos, sociais e culturais, que
são aqueles relacionados às necessidades primárias dos seres humanos, como
alimentação, saúde, educação e moradia.
O início do século XX é marcado pela Primeira Grande Guerra e pelo
estabelecimento de direitos sociais. A Constituição do México de 1917 e a
Constituição de Weimar de 1919 foram pioneiras na positivação desses direitos.
No Brasil, a Constituição de 1934 é o marco inicial em que se verifica a perspectiva
de evidenciação dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como dos
direitos coletivos ou de coletividade, correspondendo aos direitos de igualdade.
É, contudo, somente após a Segunda Guerra Mundial que esses direitos
realmente foram consagrados em um maior número de textos constitucionais e
diplomas internacionais. Goiabeira Rosa e Vieira Rosa (2012, p. 139-140) bem
obtemperam a respeito:
Além disso, os horrores da Segunda Guerra Mundial despertaram
efetivamente a Humanidade para a necessidade de tutela do ser humano
quanto aos seus valores e individualidade. O nazismo e o fascismo,
com suas ideologias racistas e xenófobas, permitiram atrocidades a tal
ponto de simplesmente se ignorarem atributos como a individualidade,
liberdade, consciência e tantos outros, desprezando-se por completo a
importância da pessoa humana individualmente considerada no contexto
da evolução social. Some-se a isso o desprezo aos direitos da pessoa
humana, nas várias ditaduras que assolaram o mundo no século XX. [...]
Outros acontecimentos resgataram os ideais kantianos de ser humano
enquanto centro do sistema social e normativo, tais quais a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Constituição de 1949 da
República Federal da Alemanha (antiga Alemanha Ocidental). Esta
consagrou e expressamente reconheceu a dignidade da pessoa humana
enquanto princípio supremo em seu artigo 1º: “a dignidade humana é
inviolável. Respeitá-la e a proteger será obrigação de toda autoridade
estatal” (ALEMANHA, 1949, tradução nossa). Surge então o novo
paradigma antropocêntrico do ordenamento jurídico: num novo contexto
em que o Código deixa de ser o sustentáculo do Direito Privado e dá
lugar à Constituição Federal, deixa-se de tratar a personalidade e seus
direitos única e primordialmente à luz do prisma patrimonial – isto é,
restritamente ao ressarcimento por danos materiais ainda que a ofensa
tenha sido exclusivamente à personalidade e seus elementos -, para se
365
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
enfocar a pessoa humana em si enquanto objeto de tutela: reconhece-se a
dignidade humana como bem primordial a ser tutelado e protegido.
Bem assim, os direitos fundamentais da pessoa humana constituem
espécie do gênero “direitos humanos”. São, em sentido material, pretensões que
em determinado momento histórico firmam-se a partir da perspectiva do valor
da dignidade humana. (MENDES; BRANCO, 2011, p. 159). Se historicamente
os direitos humanos estão relacionados com valores como vida, dignidade,
liberdade e outros mais, serão considerados como direitos fundamentais aqueles
que têm serventia a alguns desses valores. São denominados “fundamentais”
porque, sem a sua concreta presença, não há como garantir uma convivência
digna, livre e igual em plenitude para todos os indivíduos.
Há uma ligação intrínseca entre constitucionalismo e direitos
fundamentais. Como preleciona Canotilho (1993, p. 528), os direitos
formalmente fundamentais são aqueles expressos em normas jurídicas de
vocação constitucional, ou seja, normas formalmente constitucionais. Daí
depreende-se que fundamentais são aqueles direitos especificamente expressos
no corpo do texto constitucional, bem como aqueles que foram protegidos
mais rigidamente pelo legislador constituinte, seja pela declaração de sua
imutabilidade ou pela imposição de instrumentos mais complexos para que
se concretize sua modificação. Tal cenário é conseqüência natural dos direitos
que figuram como objeto da proteção do Estado. Os valores mais preciosos
da existência humana devem ser tutelados por uma legislação com caráter
vinculante de força extrema, imune às ocasionalidades e aos destemperos que
ocorrem isoladamente e poderiam colocá-los em risco.
Os direitos fundamentais têm atuado como o agente motor de um grande
processo de expansão da jurisdição constitucional. Como bem colocado por
Santos, “a abertura que as normas declaratórias de direitos propiciam permite
uma atividade interpretativa mais complexa, viabilizando uma atividade
jurisdicional mais intervencionista” (SANTOS, 2011, p. 65).
Observa-se que o direito à saúde enquanto direito fundamental social
possui a característica de exigir do Estado a promoção de ações concretas e
efetivas, que garantam o cumprimento dos preceitos constitucionais que tratam
do tema como direito de todos, tais como construção de hospitais, fornecimento
de medicamentos, campanhas de vacinação para erradicação de doenças, e
principalmente políticas de conscientização e prevenção.
O tratamento da saúde como direito humano e fundamental, abarcado
pela proteção e tutela pelo Estado, é fruto de longa e gradativa evolução não
apenas no que concerne aos conceitos de Direito, mas da própria concepção do
que seja a saúde em si mesma considerada. É dizer: se nas sociedades primitivas,
366
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
relacionava-se a saúde a aspectos de cunho mágico-religioso a ponto de a doença
significar desobediência às leis divinas (SCLIAR, 2007, p. 30), a evolução da
Humanidade possibilitou igualmente o desenvolvimento do hodierno conceito
previsto no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde (1946),
segundo o qual “saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social,
e não somente ausência de doença”397. Conforme Goiabeira Rosa e Vieira Rosa
(2012, p. 145), a saúde deixou de ser um simples estado de ausência de doença, e
passou a ser entendida como um estado de equilíbrio entre o físico e o psicológico
do ser humano – coloquialmente, entre corpo e espírito.
Amparando-se em tal concepção, a saúde de uma pessoa reúne
simultaneamente características individuais, físicas e psicológicas, resultando
ainda do ambiente social e econômico em que ela vive. Nesse sentido,
objetivando proteger o direito à saúde, o direito sanitário tem o importante
condão de definir, no cenário da sociedade, quais os direitos e deveres do
Estado, das famílias, da coletividade, das empresas e dos indivíduos.
No direito brasileiro a saúde somente foi tratada como matéria
constitucional a partir da Constituição de 1934, que estabelecia, em
seu art. 10, II, ser de competência executiva concorrente da União
e dos Estados a organização de sua prestação. Por sua vez, o texto
constitucional de 1937 aborda o tema da saúde como serviço público
essencial da República, determinando ser de competência privativa
da União a sua normatização, bem como de competência suplementar
dos Estados a possibilidade de legislar acerca dos casos relacionados a
saneamento básico, medidas profiláticas e organização de casa de saúde
(artigos 16, XXVII e 16, c). A Carta de 1946 e a de 1967 seguiram a
tendência do diploma constitucional anterior.
É, entretanto, a partir da Constituição de 1988, momento em que a
saúde foi reconhecida expressamente como um direito humano fundamental,
direito de todos e dever do Estado, que o Direito Sanitário consolidou-se em
definitivo no país. Daí em diante as questões relativas à saúde da população
foram acompanhadas, disciplinadas e organizadas de forma muito mais intensa
pelo direito brasileiro.
Consolidando o processo de evolução do sistema público de saúde, a
Carta Magna de 1988 consagrou o acesso universal e igualitário aos serviços de
saúde como um direito de cidadania. Desta forma, o direito à saúde passou a ter
No original: Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not
merely the absence of disease or infirmity.
397
367
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
como seu garantidor o princípio da universalidade, sendo elevado ao nível de
direito e garantia fundamental, norma dotada de eficácia plena.
Citada por Vizeu (2006, p. 115-116), Groti bem esclarece a questão da
universalidade do direito à saúde:
Princípio da Generalidade ou universalidade: embora alguns o vejam
como um princípio autônomo, é mais uma manifestação do princípio da
igualdade, isto é, a possibilidade de que o serviço possa ser exigido e
usado por todos. Significa que o mesmo deve atender, indistintamente,
a todos que dele necessitem, independentemente do poder aquisitivo,
satisfeitas as condições para sua obtenção. Sua manutenção constitui um
dever legal, podendo ser exigido tanto daqueles que tenham a competência
para instituí-lo quanto daqueles que o executem. (...) A prestação dos
serviços públicos deve considerar as condições e diferenças dos usuários
e a determinação da expansão dos serviços voltada para a consecução do
atendimento universal, de modo a possibilitar o acesso a tais serviços a
todos, independentemente das forças do mercado.
Bem assim, o artigo 6º da Constituição define expressamente a saúde
como direito humano fundamental social, e o artigo 196 dispõe que a saúde é
direito de todos e dever do Estado, determinando a promoção de políticas sociais
e econômicas que garantam sua consecução e o acesso igualitário e universal
às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. A partir deste
último dispositivo, pode-se avaliar o sistema de organização, manutenção e
fiscalização da saúde no país: nele está inserida a disposição de que a saúde é
direito de todos e dever do Estado, e a determinação da execução de políticas
públicas que possibilitem o acesso universal ao direito fundamental.
A saúde é direito humano fundamental indispensável ao real desenvolvimento
do país. É por isso que as ações e serviços de saúde são, no ordenamento jurídico
brasileiro, considerados de relevância pública, conforme se depreende do artigo 197
da Constituição Federal, devendo estar sujeitos aos mecanismos de controle social
de uma democracia, para evitar eventuais abusos a esse Direito.
A efetivação do Direito à Saúde depende fundamentalmente da atuação
do Estado, uma vez que sua promoção, proteção e recuperação estão sempre
relacionadas a uma determinada ação a ser tomada pelos órgãos estatais, seja
ela de alçada legislativa, tal como a elaboração de leis que visem proteger ou
garantir o acesso às prestações sanitárias, de âmbito executivo, tal como a
execução de políticas públicas referentes ao fornecimento de medicamentos,
ou mesmo de caráter judiciário, como a prestação jurisdicional em resposta a
questionamento de cidadão que se sinta lesado em seu acesso ao direito à saúde.
368
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Torna-se patente que o direito à saúde dos indivíduos implica um
comprometimento estatal que o garanta. O acesso à saúde, elencado no rol dos
direitos fundamentais sociais, impõe ao Estado a adoção de políticas sociais
e econômicas que objetivem reduzir o risco dos agravos e o acesso universal
à promoção, proteção e a recuperação da saúde. Baseado no dispositivo
normativo da Constituição Federal ora apresentado é mister a produção de
algumas observações.
Exige-se uma superação da teoria estrita de classificação das normas
constitucionais em espécies preestabelecidas, realizadas por alguns
doutrinadores, isto porque, compreender o disposto no art. 196 como uma
norma de caráter estritamente programática, incapaz de produzir efeitos
imediatos, somente indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público,
significaria negar a força normativa da Constituição (MENDES; BRANCO,
2011, p.309). Nesta esteira, conforme ensina Canotilho (2010, p. 49):
O direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade
imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes
públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma
meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo
da Constituição.
Utilizando-se como paradigma o disposto no 5° §1° da Constituição Federal,
segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicabilidade direta”, percebe-se que o mandamento normativo previsto
no art. 196 é de caráter preceptivo e não meramente programático, uma vez
que os direitos fundamentais têm sua base na Constituição e não na lei, sendo
direcionados a “todos”, atuando tanto como direito individual quanto direito
coletivo. Mesmo sendo um direito clássico de segunda dimensão e possuindo
caráter preponderantemente social, é sobretudo um direito público subjetivo
exigindo do Estado uma relação jurídica obrigacional.
Ao determinar ser um dever estatal, o artigo em comento estabelece
que além do direito à saúde há o dever fundamental de prestação da saúde por
parte dos entes federativos (União, Estados-membros e Municípios). Não sem
motivo, a Constituição atribuiu competência para legislar sobre a proteção e
defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e Municípios (art. 24,
XII, e 30, II, da Constituição Federal). Importante destacar que à União cabe
o estabelecimento de normas gerais (art. 24, §1°); aos Estados, suplementar a
legislação federal (art. 24, §2°); e aos Municípios, legislar sobre assuntos de
interesse local, podendo igualmente suplementar a legislação federal e estadual,
o que couber (art. 30, I e II).
369
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O disposto no art. 23, II refere-se à competência comum em aspecto
administrativo, cabendo aos entes da federação desenvolver políticas públicas
que visem à redução de doenças, à promoção, à proteção e à recuperação da
saúde, sendo, portanto, responsáveis solidários pela saúde junto ao indivíduo e
à coletividade.
Outrossim, a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que reconhece a
saúde como direito de todos, confere ao Estado a responsabilidade de organizar
um conjunto de ações e serviços públicos de saúde capazes de reduzir os riscos de
doenças e de outros agravos à saúde, bem como de garantir à população o acesso
universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação
da saúde (SANTOS, 2010, p. 201). Tem-se como exemplo a criação do Sistema
Único de Saúde – SUS, instituído no Brasil através da promulgação da Carta
Constitucional de 1988 e resultado das propostas de reforma sanitária que traziam
em seu bojo a necessidade de se alterar o falho sistema vigente desde 1975.
O SUS é uma instituição pública e nacional, fundada no princípio da
universalidade do atendimento, a indicar que a assistência à saúde deve
atender irrestritamente a toda população. Suas diretrizes são a administração
descentralizada, a integralidade do atendimento e a participação da comunidade.
O SUS representa a mais importante instituição jurídica do Direito Sanitário
brasileiro, integrando e organizando todas as outras que fazem parte do
universo sanitário no país: não obstante constituído como sistema público, o
SUS compreende as redes pública e privada de saúde, esta última utilizada por
meio de contratação ou convênio firmado com o Poder Público, conforme as
previsões constitucionais relativas ao tema.
Outrossim, em âmbito infraconstitucional o acesso à saúde está organizado
em um complexo sistema que envolve a participação dos referidos
entes federativos, que atuam em regime de direito público, bem como
de entidades privadas, que tem sua atividade pautada ora pelo direito
público, ora pelo privado. A norma do artigo 198 da Constituição Federal
foi regulamentada em caráter infraconstitucional através da edição da Lei
8.080 de 19 de setembro de 1990, denominada de Lei Orgânica da Saúde.
A lei estabelece a estrutura e o modelo operacional do já mencionado
SUS, apresentando sua forma de organização e de funcionamento.
Nestes termos, as ações e serviços de saúde são de relevância pública,
integrantes de uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo o
critério da subsidiariedade, e constituem um sistema único (MENDES;
COELHO; BRANCO, 2010, p.833).
O art. 2° da lei supracitada apresenta expressamente o direito à saúde
como um direito fundamental, cabendo ao Estado prover as condições
370
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
indispensáveis para seu pleno exercício e concretização. Típico
direito de segunda dimensão, o direito à saúde, conforme legislação
infraconstitucional diretamente relacionada ao dispositivo constitucional
clama do Estado uma ação prestacional positiva. Entretanto, é importante
ressaltar que o dever estatal de prestação, no que tange o direito à saúde,
não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade (art. 2º,
§2º da lei 8.080/90). Isto porque, nas lições de Leal (2009, p. 164):
O direito à saúde não pode se concretizar, ou pelo menos não se concretiza
somente através de uma política constitucional, eis que está é, prima
facie, uma projeção imperativa sobre órgãos constitucionais do Estado
das contingência de várias esferas da sociedade.
Desta forma, a Constituição brasileira consagra o Sistema Único de
Saúde como a instituição responsável pelo serviço público de saúde e
ações concernentes à sua realização, composto de uma rede regionalizada
e hierarquizada, organizado em acordo com a descentralização, com
direção única em cada esfera de governo e atendimento integral.
O SUS necessita de financiamento permanente, munido de
constância e equilíbrio suficiente para garantir o cumprimento dos objetivos
constitucionalmente estabelecidos. Por essa razão a Constituição tratou do
financiamento das ações e serviços de saúde, sendo complementada pelas
Leis 8080/90 e 8142/90. Entretanto, é notório que em diversas situações o
Sistema criado não comporta o atendimento das necessidades apresentadas
pelos indivíduos que dele dependem para ter seu direito à saúde concretizado:
o confronto entre os institutos do mínimo existencial e da reserva do possível
acabam por fundamentar o crescente volume de demandas judiciais que surgem,
todas alavancadas pelo desejo de seus impetrantes em ver alcançado o direito
fundamental garantido constitucionalmente.
Assim, diante da dicotomia estatal entre a obrigação e a possibilidade
concreta de garantir a saúde ao cidadão, surge o fenômeno do ativismo judicial,
decorrente da situação que se estabelece após o advento da Constituição
Federal de 1988: de um lado, a Constituição Federal garantindo expressamente
o caráter de imediata realização dos direitos fundamentais, traduzido, neste
caso específico, pelo fornecimento do acesso à saúde; de outro, a Administração
Pública e a dificuldade em se efetivar com plenitude de satisfação a todos os
pleitos que se lhe chegam, e as responsabilidades decorrentes da aprovação ou
negativa dessas solicitações.
371
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
4. DO ATIVISMO JUDICIAL ENQUANTO MECANISMO DE GARANTIA DO
ACESSO À SAÚDE
No que concerne ao direito à saúde, a Constituição de 1988 impôs ao
legislador ordinário o ônus de abordar as ações públicas destinadas a garantir
o direito fundamental social mencionado da forma mais ampla, abrangente e
concreta possível. Contudo, por mais universal que se pretenda o atendimento e
o acesso à saúde, a realidade fática demonstrou não ser possível às ações públicas
garantir todas as situações reais existentes, o que delega ao Poder Judiciário a
legitimidade para, sempre que for acionado, suprir a eventual atitude omissiva
do Estado, intervindo nas políticas públicas de saúde.
Acerca de tal inércia do Poder Público, Afonso da Silva (2008, p. 598)
bem explica:
Ainda mais importante seria o papel do Judiciário, em conjunto com o
Ministério Público, como controlador das políticas públicas já existentes.
Boa parte dos problemas de efetividade do direito à saúde (e também de
outros direitos sociais) decorre muito mais de desvios na execução de
políticas públicas do que falas na elaboração dessas mesmas políticas. Nesses
termos – ou seja, como controlador da execução de políticas já existentes -, o
Judiciário conseguiria, ao mesmo tempo, pensar os direitos sociais de forma
global, respeitar as políticas públicas planejadas pelos poderes políticos, não
fazer realocação irracional e individualista de recursos escassos e, sobretudo,
realizar com maior eficiência dos direitos sociais.
Nessa linha de raciocínio vislumbra-se o ativismo judicial, fenômeno que
desperta diversos questionamentos e acaloradas discussões no cenário jurídico e
na sociedade. Caracteriza-se, segundo Almeida (2011), “pelas decisões judiciais
que impõem obrigações ao administrador, sem, contudo, haver previsão expressa”.
Montesquieu, ao discorrer acerca das funções estatais, defendia que o
Poder Legislativo se caracterizava pelo condão de produzir as leis, e de corrigir
as que já foram feitas. Segundo Medeiros (2011, p. 87), Montesquieu enfatizava
que o Poder Executivo era o poder de fazer a paz ou a guerra e garantir a
segurança, bem como se referia ao poder de julgar como que correspondente
ao poder de punir os crimes ou de julgar as lides entre interesses particulares.
A figura do juiz era por ele descrita como “a boca que pronuncia as palavras
da lei, seres inanimados que lhe não podem moderar nem a força nem o rigor”
(MEDEIROS, 2011, p. 87).
Não obstante a evolução do princípio da separação dos poderes, impende
ressaltar que a Constituição Federal de 1988 regulou as relações entre os Poderes
372
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Legislativo, Executivo e Judiciário, definindo e delimitando suas atribuições e
direitos e deveres de seus membros, e, finalmente, regulando o relacionamento
entre os órgãos de poder. Outrossim, o que se pode verificar é a existência de
diversas situações dispostas na Constituição Federal em que um poder exerce
controle sobre as funções incumbidas ao outro.
Dentre os mecanismos de controle, é de se destacar a possibilidade
de o Poder Judiciário controlar a constitucionalidade das políticas públicas
realizadas pelo Estado. Não parece haver dúvidas de que o sistema de
controle de constitucionalidade previsto na Constituição de 1988 atribuiu
competência ao Poder Judicante para, sempre mediante provocação e
no bojo de um processo judicial, sindicar negativamente o ato do Poder
Público que venha a embasar determinada política pública adotada ou em
vias de ser pelo Estado, reconhecendo, se for o caso, a sua contrariedade ao
texto constitucional. Com efeito, após 1988 o Poder Judiciário tornou-se o
guardião por excelência dos valores expressos na Carta Magna, possuindo
papel de destaque na sociedade brasileira.
Conforme Barroso (2010), o ativismo judicial é uma escolha do
magistrado, que pode interpretar as normas constitucionais ampliando seu
significado e abrangência, o que normalmente acaba por significar uma retração
do Poder Legislativo:
A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla
e intensa do judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais,
com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A
postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem:
(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente
contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do
legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos
normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos
que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição
de condutas ou de abstenções ao Poder Público.
Faz-se relevante explicitar a diferença existente entre judicialização e
ativismo judicial. Judicialização é fenômeno de grande complexidade e que
possui dimensões diversas: consubstancia-se numa espécie de transferência
de decisão dos Poderes Executivo e Legislativo para o Poder Judiciário, que
então estabelece as normas de conduta a serem adotadas pelos demais poderes
quando do tratamento dos assuntos em questão.
A expressão “judicialização da política” foi utilizada a partir da obra de
Neal Tate e Vallinder, para os quais, segundo Júnior (2011):
373
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
[...] a judicialização da política pode ser contextualizada tanto na expansão
da área de atuação dos órgãos do Poder Judiciário, com a transferência
de decisões da arena política para a arena judicial, quanto na propagação
dos métodos típicos do processo judicial para fora dos tribunais, como a
designação de relatores, votos, recursos, audiências públicas e até mesmo
o socorro a precedentes.
A seu turno, Barroso (2010) difere de modo bem claro os institutos da
judicialização e do ativismo:
A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da
mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas
origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A
judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que
decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício
deliberado de vontade política. (...) Se uma norma constitucional permite
que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe
dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude,
a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição,
expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em
situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento
entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas
sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A idéia de ativismo judicial
está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na
concretização dos valores e fins constitucionais.
Infere-se, portanto, ter o ativismo judicial extrema relevância no contexto
social. Como importante instrumento disponível para qualquer indivíduo que se
encontre em vias de ter seus direitos prejudicados, ou, ainda, que já tenham sido
efetivamente lesados na garantia do acesso à saúde, a possibilidade de o cidadão
ter seus questionamentos revisitados pelo Poder Judiciário é de grande valia.
Por óbvio que não se defende a utilização ilimitada e acintosa deste
instituto. Na pretensão de se construir um Estado que respeite liberdades,
torna-se fundamental que o exercício do poder seja realizado balizado em um
sistema de freios e contrapesos capazes de conter os Poderes e fazê-los andar
dentro dos parâmetros constitucionalmente estabelecidos. A interferência de
um Poder sobre o outro somente se legitima quando tem por objetivo garantir
que o princípio da limitação dos poderes atue para impedir abusos e jamais para
que um Poder predomine sobre o outro. O direito à saúde deve ser encarado
como direito prima facie, mas isso não significa ignorar ou menosprezar outros
valores constitucionais merecedores de igual consideração.
374
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A atuação do Judiciário na garantia do acesso ao direito à saúde não pode
se converter em uma autorização para que os órgãos jurisdicionais venham a
desempenhar uma função que a Constituição Federal não lhe tenha atribuído
(MEDEIROS, 2011, p. 108).
O número cada vez mais volumoso de sentenças judiciais interferindo
em políticas públicas de saúde tem compelido administradores a se debruçarem
sobre demandas individualizadas e particulares, o que poderia ser um desvio de
atenção na produção, execução e avaliação das políticas públicas que deveriam
ser propostas para alcançar a maioria da sociedade. Vale registrar o comentário
de Souza Neto (2008, p. 529): “em setores como o da saúde, decisões judiciais
que não consideram problemas de organização administrativa podem gerar
consequências contrárias aos próprios valores que pretendem promover”.
Daí se observa que, se de um lado o princípio da dignidade humana do
qual se depreende o conceito do mínimo necessário a uma existência digna exige
que a Administração Pública produza os meios necessários ao atendimento das
necessidades que lhe são apresentadas, utilizando-se para tanto, em muitas
situações, do ativismo judicial como instrumento precioso de atuação, de
outro lado a Administração Pública coloca em xeque a interveniência do Poder
Judiciário valendo-se em sua defesa do instituto da reserva do possível, da
limitação de seus recursos, do escasso orçamento e da necessidade prioritária
em se atender a comunidade em detrimento de interesses isolados.
5. DO MÍNIMO EXISTENCIAL E DA RESERVA DO POSSÍVEL
De fato, muito se questiona acerca do confrontamento entre os institutos
denominados “mínimo existencial” e “reserva do possível” na garantia e
cumprimento dos preceitos constitucionais atinentes aos direitos fundamentais.
Ainda que o acesso à saúde seja direito fundamental expressamente previsto na
CF/88, tal prerrogativa não é ilimitada: ainda que obrigada a cumprir os ditames
constitucionais, a Administração Pública dispõe de um orçamento finito, e em
diversas situações é na defesa deste argumento e sob a motivação de se estar
defendendo o interesse público, que o Estado termina por negar o acesso ao
direito expresso na Constituição Federal.
Mínimo existencial e reserva do possível são dois institutos valiosos no
aprofundamento do estudo acerca do direito sanitário, seu acesso no Brasil e a
garantia de sua concretização via de atuação da Administração Pública.
Foi na Alemanha que se verificou originalmente a ideia de direito
fundamental e da garantia de uma vida com dignidade. A discussão acerca
de que se garantisse o mínimo indispensável a uma existência digna obteve
posição de destaque após o início da vigência da Constituição Alemã de
375
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
1949, a qual consagrou e expressamente reconheceu a dignidade da pessoa
humana enquanto princípio supremo em seu artigo 1º: “a dignidade humana é
inviolável. Respeitá-la e a proteger será obrigação de toda autoridade estatal”398
(ALEMANHA, 1949, tradução nossa).
Bem assim, a primeira decisão de que se tem notícia a garantir a essência
da vida com dignidade foi dada pelo Tribunal Federal Administrativo alemão
em seu primeiro ano de funcionamento. Tal decisão reconheceu a existência de
um direito subjetivo do indivíduo carente a ser auxiliado materialmente pelo
Estado, fundamentando a posição no postulado da dignidade da pessoa humana,
nos direitos à vida e à liberdade, e na crença de que o indivíduo, para ser
reconhecido como titular de direitos e obrigações, necessita, primordialmente,
ter garantida a manutenção de suas condições de existência.
É da lição de Torres (2009, p. 36-37) que se pode depreender a grandeza
do instituto:
Não é qualquer mínimo que se transforma em mínimo existencial. Exigese que seja um direito a situações existenciais dignas. Sem o mínimo
necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem
e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana
e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém
de um mínimo, do quem nem os prisioneiros, os doentes mentais e os
indigentes podem ser privados. O mínimo existencial não tem dicção
constitucional própria. Deve-se procurá-lo na ideia de liberdade, nos
princípios constitucionais da dignidade humana, de igualdade, do devido
processo legal e da livre iniciativa, na Declaração dos direitos Humanos
e nas imunidades e privilégios do cidadão. Só os direitos da pessoa
humana, referidos a sua existência em condições dignas, compõem o
mínimo existencial. [...] Não se confunde com o direito á vida, que tem
duração continuada entre o nascimento e a morte e a extensão maior
que o de existência, que é situacional e não raro transitória. A Corte
Constitucional da Alemanha define o mínimo existencial como o que é
necessário à existência digna.
Não se pode, entretanto, simplificar o conceito, sob o risco de que se
acabe por confundir o que se trata por mínimo existencial com a ideia do
mínimo necessário à sobrevivência do indivíduo. São duas vertentes diversas:
embora o mínimo existencial englobe por sua abrangência o mínimo necessário
à sobrevivência dos seres humanos não se limita a este, dado que amplia seu
No original: Die Würde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist
Verpflichtung aller staatlichen Gewalt.
398
376
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
campo de significado para muito além da simples sobrevida humana. Como se
vê através do entendimento de Sarlet (2010, p. 23):
Tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência digna
abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situandose, portanto, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesta
perspectiva, que se uma vida sem alternativas não corresponde às
exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à
mera existência. Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler,
para quem a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada
quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos
direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno
desenvolvimento da personalidade.
Há que se ressaltar que o direito mínimo para uma existência digna em
razão de sua essência eminentemente fundamental é orientado pelo Estado. Isso
quer dizer que é responsabilidade da Administração Pública prover e garantir o
acesso ao mínimo necessário à dignidade humana, atuando na concretização dos
direitos fundamentais previstos constitucionalmente. Essa relação do instituto
com a prestação estatal é analisada por Bitencourt Neto (2010, p. 128):
Sendo o direito ao mínimo para uma existência digna a reserva de eficácia
da dignidade da pessoa humana, quanto à garantia de meios mínimos para
tanto, admitir a necessidade de intervenção legislativa prévia à eficácia
plena de sua dimensão prestacional seria esvaziar de sentido o próprio
direito. Assim, se para os demais direitos fundamentais, em especial
os direitos sociais, a eficácia plena como direito a prestações depende
da interposição legislativa, a fim de assegurar, em especial, o respeito
ao princípio democrático e à repartição de funções, o mesmo não vale
no caso do direito ao mínimo existencial. Se assim fosse, seria inviável
justificar a possibilidade de adscrição de um tal direito a disposições
jusfundamentais, na medida em que tem como conteúdo exatamente
a execução direta de dimensões de outros direitos fundamentais. (...)
Se o direito ao mínimo existencial postula uma intervenção do Estado
protetora contra a ameaça de terceiros, impõe o dever de legislar que, se
for descumprido, autoriza intervenção jurisdicional direta para regular
a norma de solução do caso concreto. Por outro lado, impondo também
uma intervenção estatal que assegure prestações materiais mínimas para
uma existência digna, dirige-se inicialmente ao legislador, para a escolha
dos meios e a definição dos recursos necessários para tanto. Não obstante,
377
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
ficando inerte o legislador, ou regulando o direito de modo insuficiente,
autoriza também aqui intervenção jurisdicional direta para regular a
norma de solução do caso concreto.
Assim, conclui-se que o mínimo fundamental não pode ser confundido
com o que se chama comumente de mínimo de sobrevivência: enquanto este
abrange a garantia da vida humana dentro de padrões estritamente biológicos –
entenda-se, o mínimo para o indivíduo sobreviver, aquele busca englobar a vida
humana com qualidades – ou seja, vida com dignidade.
O mínimo existencial, compreendido como todo o conjunto de prestações
materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no
sentido de uma vida saudável, tem sido identificado, segundo Sarlet (2010),
como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais,
blindado contra toda e qualquer intervenção que ocorra por parte da sociedade
ou do Estado. No Brasil, embora não exista uma previsão constitucional
expressa que abarque a garantia do mínimo existencial, a garantia de uma
existência digna está expressamente presente no rol dos princípios e objetivos
da ordem constitucional econômica (art. 170, caput), e implicitamente em todo
o arcabouço constitucional advindo do princípio basilar da dignidade humana
e seus corolários.
Entretanto, não se pode olvidar que a concretização das prestações
indispensáveis à efetivação dos direitos fundamentais está condicionada à
disponibilidade de recursos financeiros: o acesso ao direito à saúde respeita
um orçamento pré-determinado, e é aí que o instituto da reserva do possível
toma seu lugar como argumento que embasa diversas negativas ao direito
constitucionalmente garantido. Assim, percebe-se que a utilização do instituto
da reserva do possível vem em confrontamento à autorização indistinta
de acesso a diversos direitos fundamentais, mais especialmente, no caso do
presente trabalho, à prestação sanitária.
Os recursos destinados à satisfação dos interesses dos indivíduos não são
ilimitados, e daí tem-se o início da ponderação acerca da necessidade de se ter
por base um orçamento que funcione como referência mestra no atendimento
dos pleitos formulados. Sarlet (2010, p. 60) demonstra o alcance do instituto:
Justamente pelo fato de os direitos sociais na sua condição de direitos a
prestações terem por objeto prestações estatais vinculadas diretamente
à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação
de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão
economicamente relevante. Já os direitos de defesa, por serem, na
sua condição, direitos subjetivos, em primeira linha, dirigidos a uma
378
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
conduta omissiva, são geralmente considerados destituídos desta
dimensão econômica, na medida em que o bem jurídico que protegem
(vida, intimidade, liberdades, etc.) pode ser assegurado – como direito
subjetivo exigível em Juízo – independentemente das circunstâncias
econômicas, ou, pelo menos, sem a alocação direta, por força de decisão
judicial, de recursos econômicos. Diretamente vinculada à característica
dos direitos fundamentais sociais a prestações está a problemática da
efetiva disponibilidade de seu objeto, isto é, se o destinatário da norma se
encontra em condições de dispor da prestação reclamada, encontrandose, portanto, na dependência da real existência de meios para cumprir
com sua obrigação.
Denota-se que o caráter de finitude dos recursos do Estado constitui
limitador fático efetivo à concretização de direitos fundamentais a prestações,
dentre eles o acesso à saúde. De acordo com o conceito de reserva do possível,
a efetividade dos direitos fundamentais a prestações estaria diretamente
subordinada à reserva constituída pelas capacidades financeiras do Estado,
visto serem direitos que dependem do financiamento do erário público para
serem realizadas.
A partir dessas considerações é possível fazer algumas análises. A
primeira delas é a de que um Estado com limitação de recursos econômicos
deve agir com proporcional responsabilidade quando das decisões acerca de sua
destinação, o que nem sempre podemos constatar no cenário político brasileiro.
Também é relevante mencionar que essas decisões acerca da aplicação dos
recursos materiais disponíveis dependem em muito da situação socioeconômica
vivenciada, o que faz com que as ações fiquem ao cargo de órgãos políticos, já
que não há, na Carta Constitucional, regras para essa destinação.
Acerca da reserva do possível, Bornholdt (2005, p. 100-103) bem salienta:
Não será tolerável a tentativa de limitação de um direito fundamental que
se baseie em noções vagas, como a de leis gerais, ou da ordem jurídica,
vista de modo holístico. Um tal critério não seria baseado em direito
positivo, e nos colocaria novamente em face de uma tirania de valores.
Ademais, seria certamente esquisito que fosse o legislador quem definisse
a suposta ordem hierárquica da Constituição. [...] Nestes campos, não se
pode permitir generalizações.
Portanto, percebe-se que a análise da aplicabilidade da reserva do possível
não pode ser feita de forma superficial, adotando o conceito genericamente
para todas as situações que se apresentarem perante o Poder Público. Torna379
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
se imperioso o estabelecimento de critérios amadurecidos e aprofundados
por parte da autoridade estatal competente para decidir sobre a prestação ou
negativa do direito pleiteado, sob pena de se ver afastado o objetivo principal
do Estado - a promoção do bem estar da coletividade. Para tanto, vale a lição
de Sarlet (2010, p. 33):
Assume relevo o princípio da proporcionalidade, que deverá residir a
atuação dos órgãos estatais e dos particulares, seja quando exercem função
tipicamente estatal, mesmo que de forma delegada (com destaque para a
prestação de serviços públicos) seja aos particulares de um modo geral.
(...) A proporcionalidade haverá de incidir na sua dupla dimensão como
proibição do excesso e de insuficiência, além de, nesta dupla acepção,
atuar sempre como parâmetro necessário de controle dos atos do poder
público, inclusive dos órgãos jurisdicionais, igualmente vinculados pelo
dever de proteção e efetivação dos direitos fundamentais. Isso significa
que os responsáveis pela efetivação dos direitos fundamentais, inclusive
e especialmente no caso dos direitos sociais, onde a insuficiência ou
inoperância (em virtude da omissão plena ou parcial do legislador e
administrador) causa impacto mais direto e expressivo, deverão observar
os critérios parciais de adequação (aptidão do meio no que diz com a
consecução da finalidade almejada), necessidade (menor sacrifício do
direito restringido) e proporcionalidade em sentido estrito (avaliação
da equação custo-benefício – para alguns, da razoabilidade no que diz
com a relação entre os meios e os fins), respeitando sempre o núcleo
essencial do direito restringido, mas também não poderão, a pretexto de
promover algum direito, desguarnecer a proteção de outro no sentido de
ficar aquém de um patamar minimamente eficiente de realização e de
garantia do direito.
Não é outro o entendimento de Olsen ao tratar da proporcionalidade
perante o confronto dos institutos da reserva do possível e do mínimo existencial.
Segundo seu entendimento, uma prestação insuficiente por parte do Estado
corresponderia a uma violação à Constituição. Para se mensurar a violação
real, ou a atuação justificável constitucionalmente de uma restrição no âmbito
normativo do direito que se busca, é necessário que se empreenda análise da
legitimidade e da constitucionalidade material e formal da justificativa fornecida
pelo Estado para a sua omissão (OLSEN, 2010).
Como a reserva do possível vinculada à noção de escassez de recursos
corresponde a uma restrição extrajudicial aos direitos fundamentais sociais diminui a responsabilidade estatal relacionada à obrigação contida nesses
380
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
direitos, prejudicando as posições jurídicas que seus titulares possuem -, não
estará sujeita ao controle de constitucionalidade formal, como a reserva de lei.
Estará, entretanto, sujeita ao controle de legitimidade e constitucionalidade
material, melhor dizendo, se o bem jurídico que a restrição visa proteger naquele
fato concreto justifica a afetação desvantajosa do direito fundamental social.
Citada por Olsen (2010, p. 306), Ferrari confirma seu posicionamento:
(...) no que tange ao direito à saúde, cabe reconhecer um verdadeiro
direito subjetivo público positivo e individual a prestações materiais,
deduzidos diretamente da Constituição, ainda que limitado ao mínimo
necessário para a proteção da vida humana. Porém como observa
Canotilho, mesmo o cidadão tendo um direito a prestações existenciais
mínimas, não significa que reconhecer um direito seja sinônimo de impor
ao poder público o modo de realizar esse direito, pois órgãos estatais
dispõem de um espaço, indispensável, de discricionariedade, o que não
quer dizer extensão absoluta, mas estar condicionado pelo que denominou
de “determinantes condicionais heterônomas.
Assim, quando uma norma obriga ao Estado a certas prestações materiais,
ela não pode determinar aquilo que se mostre de impossível realização.
Sarmento aponta que a colocação da reserva do possível junto ao direito
fundamental, no entendimento de Leivas, é uma afirmação de que a análise dos
direitos fundamentais deve ser realizada levando-se em consideração outros
direitos fundamentais que aos primeiros se contrapõem (SARMENTO, 2008,
p. 287). A colisão regular de princípios constitucionais que se confrontam com
direitos fundamentais sociais, como por exemplo o de terceiro que invoca o
amparo do Poder Judiciário para ver garantido seu direito e o princípio da
Separação de Poderes, somente será alcançado através de ponderação e análise
do caso concreto. A reserva do possível, dessarte, não significa a ineficácia ou a
inaplicabilidade do direito fundamental, mas sim a necessidade da aplicação de
princípios como a proporcionalidade e a razoabilidade sempre que houver um
caso fático real para ser avaliado.
Contudo, ainda que os direitos de natureza prestacional sejam vinculados
à existência de possibilidade material de sua realização, o direito ao mínimo
existencial não pode ser atrelado a tal limite posto que a dignidade da pessoa
humana exige, como prioridade da ação da Administração Pública, a garantia
de condições necessárias para uma existência digna.
Os programas de ação são um dever da Administração Pública, pois constituem
a forma mais adequada de atender aos direitos dos sujeitos que se encontram na
posição positiva de vantagem no tocante ao direito prestacional à saúde.
381
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Segundo o entendimento de Queiroz, no cumprimento do dever de
materialização dos direitos fundamentais sociais e no caso da prestação à saúde,
vislumbra-se no campo administrativo uma limitação da liberdade discricionária
de atuação do administrador. A Administração Pública não detém um campo de
liberdades indeterminadas de atuação quanto à escolha de opções oportunas e
convenientes, imune ao controle judicial, não podendo agir ou deixar de agir na
realização desses direitos sob o amparo de um poder discricionário, diante da
ausência de definição do conteúdo pelas normas que expressam os mencionados
direitos. Sua ação discricionária deve ser a de buscar a melhor realização dos
direitos fundamentais sociais prestacionais (QUEIROZ, 2011, p. 132).
A questão da discricionariedade compreenderia o espaço encontrado
pela Administração Pública no texto legal para determinar o objeto e o motivo
do ato administrativo, levando em consideração os critérios de a oportunidade
e conveniência. Entretanto, as escolhas adotadas somente terão conteúdo de
legitimidade se alcançarem o interesse público, essência da própria finalidade
da norma a ser interpretada discricionariamente.
Exercendo a discricionariedade, a Administração Pública deverá
atentar-se à lei e ao interesse público que nela está contido, não encerrando,
destarte, poder algum de livre escolha do motivo e do objeto não especificados
expressamente pela lei, sendo assim um poder essencialmente vinculado à
finalidade da norma. Segundo Queiroz (2011, p. 137):
A vinculação da discricionariedade ao interesse público ganha um
adensamento com a ideia de constitucionalização dos direitos, devendo a
atuação da Administração Pública estar sempre voltada ao cumprimento
dos mandamentos constitucionais, principalmente aos direitos
fundamentais, visto que as normas constitucionais estão no patamar
máximo de todos ordenamento jurídico e que os direitos fundamentais,
como fundamentais, todos eles, constituem-se em prioridades
constitucionais. A Administração Pública, como Poder Público vinculado
aos direitos fundamentais, não pode agir em desconformidade com
suas indicações, exigindo sempre uma situação voltada à realização
desses direitos. A discricionariedade é, pois, um exercício vinculado ao
atendimento dos direitos fundamentais.
O controle da atuação discricionária da Administração Pública deve ser
realizado de maneira ampla porque grande é a vinculação da Administração
Pública aos direitos fundamentais. Entretanto, referido controle deverá se
proceder somente no que diz respeito à discricionariedade administrativa.
Se o poder discricionário é prerrogativa da Administração Pública de poder
382
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
integrar a norma em aberto da forma mais eficaz possível, constitui um recurso
hábil à efetivação da norma fundamental abstrata. Assim, segundo Maria do
Socorro Azevedo Queiroz, as escolhas administrativas que atendam de forma
satisfatória aos direitos fundamentais sociais prestacionais e aos mandamentos
constitucionais não são passíveis de sindicância pelo Poder Judiciário, cabendo,
entretanto, uma apreciação de seus limites nesse campo de proteção (QUEIROZ,
2011, p. 141).
A medida do controle judicial deve ser proporcional ao tamanho da
vinculação existente. Se a Administração Pública está vinculada aos direitos
fundamentais prestacionais pelas normas contidas na Constituição Federal o
controle deverá ser total, mas a análise dos pressupostos de conveniência e
oportunidade, subjetivos no ato discricionário, influenciarão em muito no
resultado da verificação.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro vem adotando uma postura de
reafirmação da vinculação da Administração Pública às normas relacionadas às
prestações de saúde, limitando o poder discricionário e evitando que o mesmo seja
confundido com poder absoluto de livre atuação, e assumindo o controle judicial
de constitucionalidade destes atos do Poder Executivo. O STF tem decidido
que a Administração Pública está vinculada à prioridade de realizar os direitos
fundamentais, devendo observar essa vinculação no momento de elaboração
de seu orçamento e aplicação de seus recursos. Percebe-se ainda a prevalência
do entendimento segundo o qual, sempre que as condições mínimas de vida
estiverem sendo colocadas em perigo e não houver ação governamental eficiente
para debelar o risco, o Judiciário estaria legitimado a intervir. O Supremo Tribunal
Federal vem trabalhando com o método de ponderação de bens, que reconhece o
direito subjetivo a um mínimo existencial, vinculado diretamente ao princípio da
dignidade da pessoa humana (ESTEVES, 2007, p. 105).
6. CONCLUSÃO
O tratamento do direito à saúde no Brasil evoluiu gradativamente e teve
seu ápice com a Constituição Federal de 1988, onde foi alçado à categoria de
direito fundamental, sendo seu acesso garantido irrestrita e universalmente à
todos que dele necessitem, sem qualquer distinção. Pode-se também verificar
a responsabilidade que pesa sobre os ombros da Administração Pública em
concretizar esse direito constitucionalmente expresso, visto caber ao Estado
criar políticas de promoção, proteção, prevenção e recuperação da saúde, e,
para tanto, há um orçamento previamente determinado.
Inobstante, é notório que mesmo se tomando por certa a grande evolução
do tratamento à saúde que a Constituição de 1988 oferece, muitos são os
383
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
interesses que terminam rejeitados pela Administração Pública. Isso ocorre em
diversas situações e, não raras vezes, aquele que tem seu direito negado ou se
sente lesado termina por requerer o amparo do Poder Judiciário na tentativa de
ver corrigida a suposta injustiça que lhe foi imposta.
Assim é que se percebe o avolumado montante de ações em trâmite pelos
tribunais pátrios, que ilustra o fenômeno crescente do ativismo judicial e a
interveniência do Poder Judiciário na atuação do Poder Executivo, avaliando a
constitucionalidade de suas ações e decisões.
Sobressai-se de tal análise a dualidade entre “mínimo existencial” e
“reserva do possível”, conceitos francamente usados na defesa de um e outro
posicionamento: para aqueles que defendem maior autonomia do Poder
Executivo na prestação do direito à saúde e à sua negativa, o argumento é de
que se deve respeitar um orçamento prévio e limitado, sem o que se coloca em
risco toda a segurança das relações, políticas públicas e demais necessidades
prioritárias do interesse público.
Em contrapartida, para os que acreditam dever a dignidade da pessoa
humana ser o princípio a nortear todos os demais, e que o direito fundamental
deve ser prioritário e prevalecer sobre qualquer outra atuação da Administração
Pública, o conceito de mínimo existencial é basilar, funcionando como uma
garantia muito maior que simplesmente o mínimo necessário à existência
ou à sobrevivência, mas sim um conjunto de direitos que garanta também a
dignidade desta existência.
Isto posto, diante de todas as assertivas que compõem o presente estudo,
a utilização do princípio da proporcionalidade ocorre como sendo o grande
trunfo dos aplicadores do Direito. Somente aplicando-se tal princípio ao caso
concreto, somente avaliando-se a situação fática pela ótica proporcional é
que se poderá alcançar um resultado justo, equânime e que realmente seja o
espelho do que almeja o interesse público. A atuação da Administração Pública
deve ser pautada pela busca incessante do atendimento satisfatório aos anseios
dos membros de sua comunidade, e garantir a concretização dos direitos
fundamentais constitucionalmente expressos, como o direito à saúde é, sem
qualquer dúvida, parte de extrema relevância de sua atividade em nome do
interesse público.
Aliar a responsabilidade com os recursos públicos à prioridade de se
garantir a satisfação dos direitos considerados como fundamentais à dignidade
humana, valendo-se para tanto do filtro da proporcionalidade para avaliar o
caso concreto, tem sido a vertente adotada pelo Poder Judiciário brasileiro nos
casos em que a Administração Pública não consegue alcançar o real interesse
da sociedade.
384
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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387
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO
DIREITO: REFLEXÕES SOBRE OS PROBLEMAS META-JURÍDICOS
REFERENTES DO DIREITO FUNDAMENTAL AO
DESENVOLVIMENTO DEMOCRÁTICO
Prof. Dr. Saulo de Oliveira Pinto Coelho (UFG)399
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: LEVANDO A SÉRIO O PAPEL DO DIREITO NA
PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO.
O presente trabalho tem como objetivo central alavancar estudos
justeoréticos traduzidos em um novo olhar sobre o fenômeno da experiência
jurídica entorno do Desenvolvimento e da promoção e garantia dos Direitos
Fundamentais a ele correlatos, muitas vezes compreendidos por meio de
visões reducionistas, incapazes de perceber a transversalidade necessária
que a abordagem constitucional dos instrumentos de efetivação de tais
direitos carece, se pensada no contexto hiper-complexo das sociedades
contemporâneas, de maneira integrada e sinérgica. Diante da tarefa de lançar um
olhar compreensivo sobre o macro-modelo constitucional do desenvolvimento
humano, pretende-se, no presente recorte, descobrir novas abordagens,
marcadas pelo aprofundamento metodológico da interdisciplinaridade e pelas
conexões criativas propiciadas por essa perspectiva, quanto levada à sério do
ponto de vista de um rigor epistelomológico.
O pano de fundo temático dessa investigação é a preocupação e a
consciência da relevância, no Direito atual, de se traçar um diagnóstico acerca
dos problemas relacionados ao controle constitucional das políticas públicas de
efetivação dos direitos fundamentais do homem, notadamente àqueles ligados
ao Desenvolvimento social e humano.
A pluralidade, a diversidade, a maleabilidade e fluidez dos referenciais
e instituições, são características inequívocas da complexidade que define as
sociedades democráticas contemporâneas. Nesse ambiente de transformação e
re-significação constante das bases sociais de convívio, poucas são as Instituições
políticas que podem permanecer firmes como fundamentos da interação humana
em sociedade. Certamente os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana
assumem esse papel. Porém, não sem dificuldades. Eles próprios sofrem, nos
dias atuais, de um grande ruído significacional, visto que, como ponte entre a
Saulo Pinto Coelho é mestre e doutor em Teoria do Direito pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG); é professor efetivo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Goiás e compõe o corpo docente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos
Humanos da UFG.
399
388
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
modernidade (ocidental) e a contemporaneidade (plurilateral), passam por uma
abertura semântica rumo à internalização progressiva da diversidade que define
nossa atual sociedade. Ao lado da re-significação dos Direitos Fundamentais
do Homem, também passam pelo mesmo processo as estruturas sociais de
efetivação desses Direitos.
Os Direitos Fundamentais fornecem as bases para a compreensão
da dialética entre as permanências e as transformações, entre a unidade e a
pluralidade, entre a igualdade e a diversidade, nas sociedades contemporâneas.
Os instrumentos, instituições e políticas constitucionais de efetividade do
macro-projeto de sociedade justa que tais direitos delineiam, precisam receber
uma compreensão igualmente consertada, capaz de dar conta das dialéticas
e dos paradoxos da hiper-complexidade social. Tais questões deságuam no
debate sobre os próprios instrumentos político-constitucionais de promoção do
desenvolvimento humano.
Numa sociedade contemporânea, dotada das características acima
citadas, a própria idéia de Desenvolvimento e de Direito ao Desenvolvimento
carecem de uma melhor explicação, posto que a reducionista linearidade
que a noção moderna de desenvolvimento pode suscitar é incompatível com
a inequívoca pluridimenssionalidade que o convívio humano suscita na
contemporaneidade. O macro-projeto constitucional de efetivação da Dignidade
da Pessoa Humana pode encontrar na idéia de Desenvolvimento Humano
Democrático o norte do qual tanto necessita, em tempos em que a indefinição é
o que define a sociedade; e em que a anormalidade – o inusitado, suscitado pela
transformação – é a regra e não a exceção.
Porém, para servir de norte compreensivo desse debate, ou seja, de
referencial compreensivo para a conformação dos direitos fundamentais
entre si e desses com os instrumentos e políticas constitucionais de efetivação
de tais direitos, a idéia de Desenvolvimento e de Direito Fundamental
ao Desenvolvimento precisa ganhar densidade lingüística, doutrinária e
jurisdicional, efetivando um contorno normativo integrador da diversidade
social, política, econômica e cultural em que vivemos.
Os saberes humanísticos de nosso tempo buscam laços interdisciplinares,
inclusive, senão fundamentalmente, no Direito, onde as mais avançadas
investigações, as verdadeiras investigações de fronteira, são dadas no plano
da interconexão entre Direito e Humanidades. Nesse plano, as ciências
jurídicas, num mundo de profundas interconexões e laços criativos, precisam
aprender a dosar a racionalidade com a historicidade, como na perspectiva
hegeliana (cf. HORTA, 2011), alargando suas fronteiras rumo ao universo da
interdisciplinaridade, em analogia aos estudos braudelianos (cf. BRAUDEL,
1983), que redesenharam o conhecimento histórico na identificação de suas
interfaces com a Geografia, a Economia e a Cultura400.
Tal como bem observado pelos Professores Borges Horta e Mayos Solsona, coordenadores do
400
389
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
O sentido primordial dessa investigação é, assim, lançar um olhar
macro-reflexivo sobre a dinâmica constitucional complexa das sociedades
democráticas contemporâneas no que tange à idéia de Desenvolvimento,
tendo como enfoque uma abordagem compreensiva da totalidade do
fenômeno jurídico, alimentado por abordagens metodológicas adequadas ao
imprescindível espírito da interdisciplinaridade, que deve revestir o macromodelo constitucional de efetivação do desenvolvimento humano democrático,
necessariamente plural e multifacetado.
Nesse primeiro ensaio investigativo sobre a temática, a proposta é traçar
algumas compreensões sobre os limites do pensamento jurídico tradicional
para lidar com o macro-modelo social centrado no Direito Fundamental ao
Desenvolmimento Humano Democrático. Propõe-se entender os contornos
e panos de fundo compreensivos básicos que permeiam a idéia de Direito
Fundamental ao Desenvolvimento, para daí entender como vem sendo
estruturada a densificação significacional e jurisdicional desse direito nos Estados
Constitucionais Contemporâneos, o que nos levará necessariamente a discutir
o próprio desenvolvimento do Direito e seus paradigmas atuais, rumo a uma
experiência nomológica não-reducionista e verdadeiramente interdisciplinar.
2. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E SEUS PRESSUPOSTOS COMPREENSIVOS FUNDAMENTAIS
A Declaração da ONU sobre Direito ao Desenvolvimento, de 1986,
comunica de modo cabal que o foco do Desenvolvimento como direito
é o esforço pela promoção dos direitos humanos e sociais a todos. Nesse
documento já está claramente configurado tratar-se de direito plurifacetado,
de caráter não somente econômico, mas também social, cultural e política,
que visa ao constante incremento do bem-estar a todos, num ambiente de
participação política livre e igualitária de modo que todos possam ter igual
acesso à “distribuição justa” dos bens e benefícios produzidos pela sociedade.
O Direito ao desenvolvimento é um direito a que o Estado promova
constante planejamento e regulação das atividades sociais tendo como objetivo
o incremento do bem estar e a melhoria da qualidade de vida para todos, bem
como tendo como foco a justa distribuição dos resultados econômicos e sociais
do desenvolvimento. O direito ao desenvolvimento, nesse sentido, é um direito
que se traduz no dever do Estado de fomentar e regular as atividades sociais
induzindo o incremento igualitário e capilarizado das condições dignas de vida.
É um direito a que o Estado haja segundo um plano ou arranjo esconômicoGrupo Internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado, nas últimas reuniões de trabalho
do Grupo.
390
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
social coerente com a promoção do igual e progressivo acesso aos Direitos
individuais e sociais da Pessoa Humana. Não é um direito traduzido em norma
programática, no sentido tradicional dessa expressão (cf. SILVA, 2010), mas é
um direito dotado de programaticidade marcante (cf. BONAVIDES, 1993) é um
direito que reveste o Estado de obrigação de condutas e ações, mais do que de
obrigações de resultado.
Para a ONU direito ao desenvolvimento traduz-se no correlato dever
dos Estados e da sociedade respectivamente de promover e respeitar o
desenvolvimento integral dos seres humanos, em suas dimensões econômica,
social, política e cultural. Nos consideranda da Declaração considera-se dever
dos Estados a promoção da descolonização, a prosperidade econômica e
social e a paz, como ações indispensáveis àquilo que as Nações Unidas então
entenderam como Desenvolvimento.
O caráter sistêmico da noção de desenvolvimento, para o qual já
chamamos atenção em texto anterior (cf. PINTO COELHO; GUIMARÃES,
2011), evidencia-se quando na Declaração deixa-se claro que o Direito
ao Desenvolvimento somente se pode compreender, “considerando que
todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis e
interdependentes, e que, para promover o desenvolvimento, devem ser dadas
atenção igual e consideração urgente à implementação promoção e proteção dos
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e que, por conseguinte,
a promoção, o respeito e o gozo de certos direitos humanos e liberdades
fundamentais não podem justificar a negação de outros direitos humanos e
liberdades fundamentais”.
A Declaração reconhece que o sujeito do direito ao desenvolvimento é
a pessoa humana em geral e que o Estado e o detentor do dever primário de
promovê-lo, bem como reafirma que esse é um direito inalienável traduzido
na igual oportunidade para o desenvolvimento. Nessa perspectiva, o Direito
ao Desenvolvimento estabelece, enquanto direito universal do homem, que
a toda pessoa humana deve ser oportunizado habilitar-se a participar do
desenvolvimento “para nele contribuir e dele desfrutar”. Depreende-se da
declaração que o Direito ao Desenvolvimento se subdivide em quatro âmbitos
indissociáveis: o direito a participar do desenvolvimento econômico; o direito a
participar do desenvolvimento social; o direito a participar do desenvolvimento
cultural; e o direito a participar do desenvolvimento político. Da participação
plena nesses quatro âmbitos do desenvolvimento resultaria o gozo de toda a
plêiade de direitos humanos indispensáveis à realização da Dignidade Humana.
Em que pese a pessoa humana ser tratada como sujeito do direito ao
desenvolvimento, convertendo o objetivo das ações estatais quanto a essa
questão no dever de garantir que todos os cidadãos sejam beneficiários do
391
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
desenvolvimento, a Declaração comunica que por seu turno todas as pessoas
possuem responsabilidade pelo desenvolvimento, na medida da sua situação
social e das funções e atividades que desempenham na sociedade, devendo agir
todos de modo a escolher os caminhos capazes de guardar sinergia com o acesso
igualitário ao bem estar e à prosperidade social. Ademais, é reforçado que o
Estado tem o dever de formular políticas sociais para o desenvolvimento cujos
resultados positivos possam ser justamente distribuídos entre todos. Assim,
enquanto o Estado possui o dever de formular e regular de modo participativo
as políticas públicas para o desenvolvimento democrático (cf. PEREIRA, 2008)
ou seja com justa e igualitária distribuição dos benecíficios alcançados, devendo
fazer seus programas, projetos e ações funcionarem de modo coerente com tais
políticas de desenvolvimento, os indivíduos e pessoas privadas, possuem o
dever, no âmbito de suas respectivas autonomias, agir segundo as opções mais
coerentes com o desenvolvimento democrático.
Chama atenção os artigos quarto e quinto da Declaração, que trata do
dever da comunidade de Estado em atuar sinergicamente para estimular a o
incremento de desenvolvimento nos países em desenvolvimento. Não é usada a
expressão países subdesenvolvidos, mas esses também aqui estariam situados.
Haveria, assim, um outro âmbito do Direito ao Desenvolvimento, enquanto
direito internacional vinculador e estruturador de relação jurídica entre os Estados
Desenvolvidos e os Estados em Desenvolvimento, em que estes gozariam do
direito de receber não só a colaboração dos primeiros, mas sobretudo o direito
de não serem impedidos pelos primeiros de se desenvolver de modo pleno e
acelerado. Trata-se do direito ao desenvolvimento igualitário também no plano
internacional. Daqui se desdobram uma série de questões envolvendo a relação
entre globalização, auto-determinação e desenvolvimento.
Em suma, o direito ao desenvolvimento é o direito à existência de políticas
públicas para o desenvolvimento que: a) não se restrinja ao aspecto econômico,
mas contemple também os aspectos social, cultural e político, internalizando
essas demais variáveis nas equações econômicas e nas tomadas de decisão
relativas ao planejamento econômico (desenvolvimento econômico); b) não
incremente as desigualdades entre ricos e pobres, nacionais e estrangeiros,
homens e mulheres, patrões e empregados, mas justamente promova a redução
dessas desigualdades (desenvolvimento social); c) que garanta haver uma
regulação intercomunicada das diferentes áreas da atividade econômica e
social, de modo que tais atividades possam retroalimentar um arranjo social
de melhoria equânime da qualidade de vida que pense o homem não apenas
como trabalhador e consumidor, mas em sua plenitude enquanto sujeito livre,
ativo e pensante (desenvolvimento cultural); e d) por fim, um desenvolvimento
regulado, planejado e programado democraticamente, em que a sociedade
392
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
como um todo não somente participe desse planejamento e das tomadas de
decisão nele contidas, mas também colha democraticamente os resultados desse
planejamento (desenvolvimento político).
3. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E OS PROBLEMAS DE SUA DENSIFICAÇÃO NOMOLÓGICA E JURISDICIONAL
O direito ao desenvolvimento é considerado como pertencente à categoria
dos “direitos fundamentais de solidariedade” (PEIXINHO; FERRARO, 2009).
Como tal, o problema de sua densificação jurídica (nomológica e jurisdicional)
situa-se no momento da passagem da crise do modelo do Estado Social de Direito
aos contornos do emergente Estado Democrático de Direito contemporâneo.
Mais que isso, no plano da teoria jurídica, situa-se no momento de superação
do paradigma do positivismo jurídico pelos esforços justeoréticos atualmente
agrupados como pós-positivistas e neoconstitucionalistas (cf. BARROSO,
2008). O pano de fundo dessa nova perspectiva jurídica, que vem refletindo
o desenvolvimento atual do Direito reside no movimento mais profundo
das transformações ocorridas no plano da Hermenêutica Contemporânea
(STRECK, 2011) que em verdade condensa as transformações relativas à
superação do paradigma da moderna filosofia da consciência, para o atual
paradigma da contemporânea filosofia da linguagem.
Como direito fundamental de solidariedade, o direito ao desenvolvimento
possui um caráter eminentemente principiológico, complexo, transversal e
prospectivo, que exige da linguagem jurídica que o densifica, no plano da
elaboração normativa e respectiva aplicação nomativa, uma abordagem nãoreducionista dos contextos de regulação e aplicação, bem como uma perspectiva
interdisciplinar para a construção das estruturas e instrumentos de eficácia do
mesmo, que tal como visto, exige a organização de políticas públicas de regulação
e indução de um desenvolvimento qualificado em termos democráticos.
Daí se desdobram outros desafios, quais sejam: a) primeiramente, o de
se construir uma regulação em abstrato realmente densa e precisa para a tutela
do direito ao desenvolvimento, que possa impulsionar uma sistematicidade
mínima para a tratativa jurídica desse direito; b) em segundo lugar, o desafio
de se procedimentalizar de maneira eficiente os processos de avaliação,
fiscalização e licenciamento das atividades privadas que possuem implicação
direta na fruição do direito ao desenvolvimento; c) em terceiro lugar, o de se
introduzir e capilarizar nas estruturas institucionais da Administração Pública
o dever jurídico de zelar por esse direito em todas as ações e atividades da
gestão pública, inclusive e sobretudo por meio de Planos e Programas
governamentais deveras sinérgicos e coerentes com esse direito; d) por fim, o
393
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
desafio de estruturar e efetivar o controle jurisdicional das atividades privadas
e públicas no que tange à garantia desse direito, tanto no plano do controle
administrativo, quanto no plano do controle judicial; e) o que implica, ainda,
no problema da aplicabilidade direta e imediata desse direito, como direito
fundamental, nas situações e nos conflitos concretos.
Quanto à primeira questão, a perspectiva jurídica da modernidade
procura isolar a linguagem jurídica (formada por proposições normativas
científicas) das demais linguagens científicas (formadas por proposições
descritivas), bem como das demais linguagens normativas (formadas por
proposições normativas, porém não científicas). Essa é a postura encontrada
nos normativismos abstratos, tais como o purismo nomológico kelseniano (cf.
REALE, 1999). O resultado dessa postura é duplo: uma regulação jurídica em
abstrato extrinsecamente hermética (carente de interdisciplinaridade extrínseca
com as áreas não jurídicas do conhecimento), bem como intrinsecamente
hermética (carente de uma interdisciplinaridade intrínseca ao próprio
Direito, convertendo os diferentes campos do direito em micro-sistemas
normativos fechados, com baixo grau de comunicabilidade entre si). Essa
departamentalização do direito ocorre em paralelo com a própria setorialização
do Estado (GOZZI, 1998, p. 411-412) e forma um ambiente regulatório pouco
fecundo para o direito ao desenvolvimento, que tem em sua ontologia um caráter
eminentemente transversal. Quanto nos voltamos para áreas como o Direito
Ambiental, o Direito Urbanístico, o Direito Sanitário, o Direito Econômico, e
outras que diretamente se relacionam com o direito ao Desenvolvimento, como
sub-áreas do Direito, tais como o Direito Educacional, o Direito Regulatório
dos Serviços Públicos, o Direito Minerário, o Direito Agrário, etc., essa áreas,
se pensadas como micro-sistemas, vão organizar um arranjo social cada qual
reducionista à sua maneira. Sobre isso, já advertimos (COELHO; MORAIS,
2011, p. 110 et seq.) que é preciso que se supere essa perspectiva jurídica
para se pensar a interação necessária entre todas as políticas públicas com suas
respectivas relações, frente ao desafio do desenvolvimento democrático.
Talvez o maior desafio que se pode ter hoje nessa seara da construção
plenamente interdisciplinar e sistematizada de uma regulação do direito ao
desenvolvimento, seja a aquele que se remeta à regulação, licenciamento e
fiscalização de empreendimentos privados de grande porte, bem como dos
arranjos produtivos locais, regionais e nacionais. No Brasil, essa segunda
questão chave do desafio de efetivação direito ao desenvolvimento se traduz
no desafio do aprimoramento de instrumentos jurídicos como o licenciamento
ambiental (deveria se converter em um licenciamento efetivamente sócioambiental401) e do zoneamento ecológico-econômico.
Sobre o instituto do licenciamento ambiental no Brasil, cabe ressaltar que a questão não
401
394
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
A própria Administração Pública, em suas políticas, por vezes carece
de perceber na necessidade de consertar a regulação de uma política com a
regulação de outra, causando, em certas situações, incoerências intrínsecas
quanto ao atendimento ao direito ao desenvolvimento402. Evitar essas
incoerências constitui um terceiro desafio-chave.
Quanto ao quarto e quinto desafio apontados, o problemas da densificação
jurisdicional do direito ao desenvolvimento também se traduz em necessidades
de transformações na própria perspectiva jurídica imperante nos tribunais.
É necessário, seguindo a proposta de Dworkin, levar a sério o direito ao
desenvolvimento como direito dotado do vigor e do alcance de um autêntico
direito fundamental, portanto dotado de máxima aplicabilidade, máxima eficácia
e amplitude, cujo limite se dá apenas na necessidade de ponderabilidade com os
demais direitos fundamentais em jogo em uma situação concreta. O Brasil carece
de uma linguagem jurisdicional do direito ao desenvolvimento; urge construí-la.
Veja-se que essas questões referentes à efetivação do Direito ao
desenvolvimento, em que pese transcenderem ao mero campo do Direito,
passam também pela efetivação de transformações no Direito contemporâneo,
rumo a uma perspectiva integradora e não-reducionista do Direito.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ATUAL E
OS DESAFIOS POSTOS PELO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
Todas essas questões levantas nos conduzem a considerar que e o
Desenvolvimento Democrático, como projeção normativa instrumentalizadora
do Direito à Dignidade da Pessoa Humana, impõe ao Direito atual o desafio de
evitar dois problemas eminentes: evitar um Desenvolvimento Poiético e evitar
um Desenvolvimento Mimético.
Quanto ao desenvolvimento mimético, trata-se de fenômeno que sói
ocorrer em países de desenvolvimento tardio.
Após a segunda guerra mundial, as teorias do desenvolvimento postas
em circulação eram por demais simplórias. Um estreito economismo levava a
diz respeito à ausência de preocupação à abordagem os impactos sociais nos licenciamentos. O
problema centra-se no fato de que, em que pese a previsão jurídica de análise desses aspectos, as
características da regulação desse licenciamento e as práticas institucionais entorno do mesmo
fazem com que o peso e a capilaridades das discussões ambientais nesses licenciamentos sejam
nitidamente maiores do que das discussões e análises centradas nos problemas sociais.
402
Quanto a essa questão vide os simbólicos problemas referentes às políticas de estímulo da
industria automobilística, que concorre com as políticas de trânsito e acessibilidade (cf. RIBEIRO;
FLORY, 2011, p.185-203), e as políticas de estímulo à industria sucro-alcooleira, que por vezes
olvida as políticas como a do combate ao trabalho em condições precárias bem como o combate
ao desmatamento (cf. COELHO; NASCIMENTO, 2011)
395
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
pensar que, uma vez assegurado o crescimento rápido das forças de produção,
seria provocado um conseqüente processo completo de desenvolvimento que
se alcançaria a todos ou quase todos pois repercutiria para todas as regiões
geográficas e culturais, todos os setores econômicos e todas as classes sociais
(SACHS, 1986, p. 30).
As elevadas taxas de crescimento experimentadas no pós-guerra não
confirmaram tais projeções, pelo contrário. Nos países industrializados, os
problemas sociais típicos (desemprego estrutural, insuficiência da previdência
social, baixa tutela dos direitos e necessidades dos idosos, dos deficientes e das
demais minorias não produtivas) não foram solucionados de uma maneira estável
porque esses problemas não somente volviam, mas se também se somavam a
problemas sociais, lógicos e ecológicos novos, quando das inevitáveis recaídas
negativas desse crescimento tão veloz (SACHS, 1986, p. 95).
No contexto monista e unificante da globalização (cf. MAYOS, 2012) a
reprodução desse modelo simplório de desenvolvimento no contexto do então
chamado Terceiro Mundo (aqui estamos a incluir, em termos atuais, tanto os
países pobres, quanto os chamados emergentes, ou países de modernidade tardia)
produz o fenômeno do desenvolvimento mimético, que é a reprodução do caminho
outrora percorrido pelos países industrializados, e provoca a intensificação dos
acima citados efeitos indesejados do desenvolvimento reducionista (o mero
crescimento econômico) e, consequentemente, o maldesenvolvimento se torna
uma realidade tão nefasta quanto o nãodesenvolvimento (COELHO; MELO,
2011b). Constata-se da experiência vivida na segunda metade do século XX
uma modernização muito rápida realizada na periferia do mundo capitalista
se deu, via de regra, às custas do aumento das desigualdades entre a minoria
privilegiada e a maioria dos pobres (SACHS, 1986, p. 97), em detrimento
das populações rurais, com custos sociais e ecológicos na maioria das vezes
exorbitantes, e conseqüentes danos e problemas quase irreversíveis.
A persistente confusão entre o crescimento e o desenvolvimento
mostra-se particularmente grave e intensa no fenômeno do desenvolvimento
mimético. Tendo-se em mente que o crescimento continua sendo condição
necessária ao desenvolvimento, apesar de não ser, de modo algum, requisito
suficiente; assim sendo, nessas situações miméticas, as manifestações do
maldesenvolvimento impingem uma revisão dos instrumentos conceituais
tradicionalmente empregados na análise da problemática do desenvolvimento
(COELHO; MELO, 2011b). Exige-se, portanto, uma postura de revisão crítica
dos modelos já empregados e de contextualização permanente dos aspectos que
nos paradigmas observados são considerados positivos, para que se possa evitar
que, em contextos outros (tais como são os existentes em países de modernidade
tardia, como o Brasil), esses aspectos positivos não se convertam em negativos e
396
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
os que já foram tomados como negativos nos modelos paradigmas não venham
a se tornar ainda mais problemáticos.
A superação dos estados de crise, cujos sintomas são justamente o
esgotamento de um estilo de desenvolvimento apenas parcialmente bem
sucedido e empregado em um contexto já passado, exige, em Estados como o
Brasil, uma postura institucional de contenção do chamado desenvolvimento
mimético. Nossos contextos são outros e, portanto devemos ter, na busca por
efetivar o direito ao desenvolvimento, o duplo cuidado de não reproduzir os
mesmo erros dos modelos desenvolvimentistas alienígenas e de não transformar
os acertos desses em erros, por falta de contextualização e atualização. Afinal,
como bem afirma Guimarães (1997, p.16) não é a riqueza – crescimento
econômico – em si o fator decisivo ao bem-estar coletivo, mas sim o uso que
uma coletividade faz dela.
Quanto ao desenvolvimento poiético, trata-se de fenômeno que ocorre
como conseqüência de uma ligação cada vez mais intensa entre Estado e
Economia. O desenvolvimento poiético é uma conseqüência de um fenômeno
típico da contemporaneidade: o Estado Poiético, distorção economicista do
Estado de Direito.
Para Joaquim Salgado (1998, p. 46 et seq.), o Estado de Direito estruturase como Estado Ético Mediato, em que o bem comum fundamental que da
razão-de-ser e legitimidade ao Estado é comunicado, organizado e efetivado
na forma de direitos: os Direitos Fundamentais. Por meio desses, passa a ser
possível avaliar com um critério minimamente objetivo de correção as ações do
Estado (em sentido amplo, incluindo aí as ações governamentais e legislativas).
Os direitos podem ser regulados por meio da linguagem jurídica e podem ser
gerenciados, fomentados, promovidos e tutelados pelo Estado, por meio das
linguagens, burocrática, gerencial e econômica, que lhe são também próprias.
Ocorre que o Estado Social de Direito, ao se fazer como Estado-Interventor,
Estado-Empreendedor e Estado-Provedor, somente consegue assim proceder
por também se fazer como Estado-Fiscal (GOZZI, 1998, p. 411). Assiste-se,
assim, durante o século XX, a uma interação cada vez mais promíscua entre
o sistema ético-político-jurídico do Estado e aquele sistema que esse Estado
deveria controlar e racionalizar, o sistema da sociedade-civil empreededora, ou
sistema de necessidade, o sistema econômico, portanto. Assim, cada vez mais
dependente da prosperidade econômica para fazer valer suas ambições sociais,
o Estado Social cada vez mais passa a conviver com o risco de se converter em
Estado Poiético, ou, melhor dizendo, ocorre o risco que deixar fazer com que a
dimensão poiética existente dentro do próprio conceito de Estado (e que deveria
nele existir como mero instrumento e não como essencialidade do Estado)
suplante a dimensão ética do Estado (cf. HORTA, 2011).
397
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Num contexto como esse, é sempre um risco o desvirtuamento do
desenvolvimento democrático em um desenvolvimento poiético, que é
o desenvolvimento sustentado no próprio desenvolvimento, a postura
desenvolvimentista solipsista, em que o desenvolvimento passa a ser uma razão
em si mesma, afastando-se da sua verdadeira e justa fundamentação, a promoção
da dignidade humana, para volver-se para si mesmo e fundamenta-se no aspecto
poiético do desenvolvimento que é o crescimento econômico. Quando o critério
de desenvolver deixa de ser a promoção da dignidade da pessoa humana para ser
a sustentação do próprio Estado, de suas metas, de seu desempenho, a questão
acaba por se converter e reduzir ao alcance das metas apenas economicamente
estruturadas e compreendidas. Aí, o próprio Estado desvirtua-se como conceito
e o desenvolvimento se converte apenas em desenvolvimento econômico,
tendencialmente particularizante e excludente, sem conectar-se necessariamente
com o desenvolvimento humano, tendencialmente democratizante e includente.
Ao mesmo tempo em que novas compreensões dialéticas e pluridimensionais do Direito surgem no horizonte do pensamento jurídico atual (em geral classificadas como compreensões pós-positivistas e neoconstitucionalistas),
surgem também visões neo-reducionistas do Direito, da qual podemos indicar
como exemplo mais eloqüente a Análise Econômica do Direito (FARALLI,
2000, p. 65 et seq.). Em que pese a busca atual por tratativas realmente interdiciplinares, transversais e pluridimensionais dos problemas jurídicos, observa-se
que paralelamente ganham espaço na atual teoria do Direito abordagens que,
sob a aparência de aproximar o Direito de outras searas do conhecimento, acabam por insular o Direito e instrumentalizar a linguagem jurídica como mera
resultante de uma outra linguagem não-jurídica. No caso da Análise Econômica
do Direito (a atual escola da Law and Economics), a economia para por ser a
base de redução explicativa dos fenômenos jurídicos.
Contra essa constatação, os arautos da Law and Economics costumam
dizer que a visão da analítica econômica dos fenômenos jurídicos não é
reducionista porque, ao contrário do determinismo histórico marxista, que
também abordava o Direito como resultante (super-estutura social) das
relações econômicas de dominação (infra-estutura social), na atual Análise
Econômica do Direito a relação entre Direito e Economia não é de uma
causalidade unilateral, do segundo para o primeiro. Compreende-se que, da
mesma maneira que a economia tensiona, sugestiona e impulsiona os arranjos
regulatórios jurídicos, o Direito e suas transformações autopoiéticas também
impulsionam mudanças econômicas, retroalimentando o recíproco sistema
relacional entre Direito e Economia.
Em que pese esse esforço da Analise Econômica do Direito por pensar a
relação Direito e Economia enquanto relação de recíproca implicação, o problema
398
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
do Direito, que é o problema da efetivação dos Direito Fundamentais do Homem,
dentre eles o estruturador Direito ao Desenvolvimento, não pode ser pensado
apenas do ponto de vista das variáveis econômicas, muito menos ter a satisfação
das metas economicamente estruturadas o seu critério básico de compreensão.
O tratamento poiético do Direito acaba por dar às metas econômicas e gerenciais
do Estado um caráter de fim-em-si-mesmas que é incompatível com o Estado
de Direito. Dentro dessa perspectiva, é necessário ponderar que o problema da
efetivação do Direito ao Desenvolvimento não pode ser poieticamente reduzido
ao problema do alcance das metas econômicas e gerencias do Estado. Os
direitos em-si que compõem o direito ao desenvolvimento humano democrático
não se reduzem à variáveis e metas econômicas e fruição desses direitos não
necessariamente é alcançada com o atingir de tais metas e a observância de tais
variáveis. Em que pese essas metas e variáveis serem importantes indicadores
de desenvolvimento, não são garantem necessariamente o desenvolvimento,
quanto menos o desenvolvimento qualificado como direito humano, que é o
desenvolvimento democrático.
399
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
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402
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
NATURALEZA JURÍDICA Y EFECTIVIDAD DE LAS RECOMENDACIONES DE LA
ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO
Jorge Fontoura403
Luiz Eduardo Gunther404
SUMARIO: 1 Introducción; 2 Elaboración normativa de la OIT;
3 Convenios y Recomendaciones, una distinción necesaria; 4 Naturaleza
jurídica de las recomendaciones de la OIT; 5 La efectividad de las
recomendaciones en el ordenamiento jurídico brasileño; 6 Conclusiones;
7 Referencias.
1. INTRODUCCIÓN
Como si en un inusual reflujo histórico, surge una “internacional” ahora
no más laboral, y sí financiera y especuladora, indiferente a los melindres de
la historia o geografía: ubi bene ibi patria. Parece realizarse, con efecto, lo
que Pio XI vaticinó, con premonición pontificia, como il imperialismo
internazzionale del denaro.
Ante tal cuadro, la efectividad jurídica de las normativas de la OIT, a merced de
su naturaleza universal, gana importancia única en la historia de las relaciones
laborales. Solamente ellas, como nuevas órbitas jurisdiccionales, están aptas
a hacer frente al carácter también universal de los desdoblamientos jurídicos
de la mundialización de la economía, por su lado más perverso, que “cosifica”
el trabajo, flexibilizando y reduciendo derechos ancestrales en pro de la ideología
de maximización del lucro, disuadida en el binomio competitividad-productividad.
2. ELABORACIÓN NORMATIVA DE LA OIT
Teniendo la relevante misión de cumplir en materia de dignif
icación del trabajo y de protección de los trabajadores y de sus familias,
dispone la OIT de dos instrumentos jurídicos fundamentales: “los convenios y
Doctor en Derecho Internacional por la Universidad de Parma y por la USP; Profesor titular y
examinador de los concursos de ingreso al Curso de Preparación para la Carrera de Diplomático
del Instituto Rio Branco; abogado, árbitro internacional y consultor.
404
Profesor del Centro Universitario Curitiba – UNICURITIBA; Juez Camarista de Trabajo junto
al TRT de la 9ª. Región; Doctor en Derecho del Estado por la UFPR; Miembro de la Academia
Nacional de Derecho del Trabajo, de la Academia Paranaense de Derecho del Trabajo, del Instituto
Histórico y Geográfico de Paraná, del Centro de Letras de Paraná y de la Asociación LatinoAmericana de Jueces de Trabajo – ALJT.
403
403
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
las recomendaciones aprobadas por la Asamblea General por mayoría de 2/3.
Las primeras son obligatorias luego de su ratificación por los Estados. Las
segundas son meramente indicativas”405.
Interesa, particularmente, en la actividad de la OIT, la creación de normas
internacionales, con la finalidad de que la legislación del trabajo de los Estados
miembros realice las finalidades sociales de la organización, como esclarece
Lobo Xavier: “Los convenios y las recomendaciones son aprobadas en la
Conferencia por mayoría de dos tercios”. No contiene un régimen con eficacia
inmediata en los ordenamientos del Estado, ya que este tiene el derecho de
ratificar o no los textos aprobados, debiendo, sin embargo, en todo caso informar
periódicamente acerca del estado de la legislación y de las prácticas nacionales
en relación a los aspectos planteados.
Los convenios, después de haber sido ratificadas, establecen la
obligación a los respectivos estados de aplicarlas, conformando su legislación
y práctica a los principios en ellas contenidos, quedándose tal aplicación sujeta
a control. “Las recomendaciones constituyen una orientación y anteceden,
muchas veces, a la elaboración de una convención sobre la materia”406.
Según Cesarino Júnior, son fuentes del derecho internacional del trabajo
sólo los reglamentos de los órganos constitutivos de la OIT y los convenios
internacionales en materia de trabajo, cuyos proyectos aprobados por las
Conferencias Generales de la OIT, sean ratificados por considerable número de
Estados participantes:
“Los convenios internacionales del trabajo no tienen, por sí mismas,
efecto obligatorio; es por su ratificación que un Estado asume la
obligación de ponerlas en ejecución. Su promulgación en la órbita del
derecho interno introduce las disposiciones de la convención en el orden
jurídico nacional. Para cada convención se establecen reglas específicas
relativas a su entrada en vigor y se encuentran contenidas en sus
cláusulas finales. Hay instrumentos idénticos a los convenios en cuanto a
su forma y a su elaboración, pero que no deben obligatoriamente, como
los convenios, ser sometidos a ratificación. Se trata de resoluciones, que
son meras invitaciones a los Estados a seguir ciertas reglas”407.
Explicando los convenios de la OIT, Amauri Mascaro Nascimento refiere
PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de direito internacional
público. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 557. La traducción nos pertenece.
406
XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Iniciação ao direito do trabalho. Lisboa: Editorial Verbo,
s/d. p. 327.
407 CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito social. São Paulo: LTr e Edusp, 1980. p. 83.
La traducción nos pertenece.
405
404
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
que: “La Conferencia de la Organización Internacional del Trabajo se reúne
periódicamente votando decisiones que pueden obligar a los Estados-miembros.
Esas deliberaciones revisten la forma de convenios internacionales del trabajo.
Difieren, por lo tanto, de los tratados internacionales porque, al contrario de
éstos, no resultan de entendimientos directos entre los países interesados, pero
sí de discusiones ocurridas en el marco de la OIT, en cuyo seno es procesada
su elaboración y posterior aprobación en carácter oficial. Por consiguiente, los
convenios internacionales son normas jurídicas emanadas de la Conferencia
Internacional de la OIT, destinadas a constituir reglas generales y obligatorias
para los Estados deliberantes, que las incluyen en su ordenamiento jurídico
interno, observadas las respectivas prescripciones constitucionales”408.
Al discurrir acerca de los actos jurídicos de las Organizaciones Internacionales, Rodríguez Carrión distingue aquellos cuyo contenido es obligatorio en sí, no obstante exige un comportamiento formal por parte de los Estados: “... Así, el artículo 19 de la Constitución de la Organización Internacional
del Trabajo dispone ciertas obligaciones específicas de comportamiento de los
Estados con relación a los convenios o recomendaciones y que no implican
obligatoriedad alguna al respecto de sus contenidos. Conforme al párrafo 5º de
dicho precepto,
“En el caso de un convenio:
a) el convenio se comunicará a todos los Miembros para su ratificación;
b) cada uno de los Miembros se obliga a someter el convenio, en el
término de un año a partir de la clausura de la reunión de la Conferencia
(o, cuando por circunstancias excepcionales no pueda hacerse en el
término de un año, tan pronto sea posible, pero nunca más de dieciocho
meses después de clausurada la reunión de la Conferencia), a la autoridad
o autoridades a quienes competa el asunto, al efecto de que le den forma
de ley o adopten otras medidas;”.
Por su parte, el párrafo 6º dispone,
“En el caso de una recomendación:
a) la recomendación se comunicará a todos los Miembros para su examen,
a fin de ponerla en ejecución por medio de la legislación nacional o de otro
modo; NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Compêndio de direito do trabalho. SP: LTr e Edusp,
1976. p. 72-73. La traducción nos pertenece.
408
405
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Con estos presupuestos el Estado habrá cumplido su obligación jurídica
mediante el respetoso cumplimento de su obligación de comportamiento,
sin que dicho comportamiento se vincule a ninguna obligación del resultado
pretendido por el contenido material del acto en cuestión”409.
Francisco de Assis Ferreira, por su parte, explicita que las Conferencias
de la OIT alcanzan la plenitud de su finalidad a través de tres instrumentos:
“a) convención, contienen normas que pueden ser objeto de ratificación
por los Estados-miembros;
b) recomendaciones, cuya materia no es apropiada hasta el momento
para ser objeto de convención;
c) resolución, simple sugerencia para que los Estados-miembros adopten
las medidas propuestas”410.
3. ​C ONVENIOS Y RECOMENDACIONES, UNA DISTINCIÓN NECESARIA
Las recomendaciones son estimadas como razonables siempre que la
materia discutida no admita, aún un tratamiento convencional, ya sea por la
precariedad político-jurídica de su adopción, o por el carácter incierto del tema
suscitado.
Balmaceda presenta cuatro distinciones principales entre convenios y
recomendaciones, tomando en cuenta sus estructuras normativas:
1) lo convenios constituye una forma de tratado internacional, no
así la recomendación; 2) lo convenio puede ser, por consiguiente, objeto de
ratificación por el correspondiente Estado, lo que lógicamente no puede ocurrir
con una recomendación; 3) ratificada una convención, el Estado “tomará las
medidas necesarias para efectivizar las disposiciones de dicha convención”
(Constituición de la OIT, art. 19, Nº 5, letra d). Siendo improcedente la
ratificación de recomendaciones, no estando vigente, pues, a su respecto,
dicha obligación por parte de los Estados; 4) Mientras que en el caso de los
convenios pueden presentarse diversos problemas de interpretación, vigencia,
denuncia, revisión y efectos en caso de la retirada de un Estado de la OIT, todos
derivados de la ratificación del instrumento, ninguna de esas situaciones tiene
lugar en lo que concierne a las recomendaciones411.
CARRIÓN, Alejandro J. Rodríguez. Lecciones de derecho internacional público. 4. ed.
Madrid: Tecnos, 1998. p. 258. La traducción nos pertenece.
410
FERREIRA, Francisco de Assis. Lições de direito do trabalho. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1969. p. 495. La traducción nos pertenece.
411
MONTT BALMACEDA, Manuel. Princípios de derecho internacional del trabajo. 2. ed.
Santiago de Chile: Editorial jurídica de Chile, 1998. p. 135. Traducción nos pertenece.
409
406
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
El tema, de suma importancia, mereció tratamiento detallado de Nicolas
Valticos, en su clásico “Derecho Internacional del Trabajo412”, que procuramos
resumir así:
1) la convención es el procedimiento – tipo de la reglamentación internacional del trabajo, siendo ella solamente pasible de ser objeto de ratificación y
crear una red de obligaciones internacionales, seguidas de medidas de control;
2) la recomendación es un accesorio, estando su papel definido a partir
del principio general según el cual se adopta esa forma cuando el objeto tratado
no será de adopción inmediata de una convención. Pueden ser distinguidas tres
funciones principales de la recomendación: a) es la forma más apropiada cuando
un tema aún no está maduro para la adopción de una convención, y la recomendación derivada de una autoridad de la Conferencia contribuyó para la creación
de una consciencia social común, abriendo espacio para la adopción posterior de
una convención; b) una Segunda función es la de servir de complemento a una
convención, pudiendo ser útil para inspirar a los gobiernos, aunque sin el mismo
carácter obligatorio que los términos de una convención; c) la recomendación tiene un valor intrínseco en cierto número de casos: cuando las normas que contiene
poseen un carácter técnico detallado, esto puede ser útil a las administraciones
nacionales, contribuyendo para la elaboración de una legislación uniforme sobre
la materia, dejando, no obstante la posibilidad de implementar adaptaciones conforme a la necesidad de los países; la misma cosa ocurre cuando la recomendación trata de cuestiones en las cuales las situaciones y las prácticas cambian de
un país a otro de tal manera que difícilmente se podría pensar en compromisos
internacionales estrictos respecto de las medidas preconizadas;
3) la recomendación cumple así, junto a la convención, una función útil
en varios aspectos, residiendo la diferencia existente entre los dos instrumentos en el aspecto relativo a la eficacia, una vez que, por definición, una recomendación no puede ser objeto de compromisos internacionales y que los
Estados disponen del margen que deseen para darle el efecto que juzguen oportuno, aunque estén obligados a someter tanto las recomendaciones, como los
convenios, a las autoridades nacionales competentes, informando acerca de la
ejecución de esta obligación y respecto al curso dado a tal o cual recomendación. Estas medidas no son comparables, sin embargo, con las obligaciones que la ratificación de una convención impone y con el control sistemático
de que es objeto la ejecución de tales obligaciones;
4) aunque la recomendación sea considerada como la pariente pobre de
la convención, deben tenerse presentes dos puntos: a) dada la naturaleza de
las cuestiones que generalmente son objeto de recomendación, la alternativa
no siempre se presenta entre una recomendación y una convención, sino entre una
VALTICOS, Nicolas. Derecho internacional del trabajo. Trad. Maria José Triviño. Madrid:
Tecnos, 1977. p. 234-236.
412
407
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
recomendación y la ausencia de toda norma internacional o en la existencia de una
convención que obtendría tan pocas ratificaciones que perdería toda autoridad; b)
es indiscutible que algunas de las recomendaciones han tenido una influencia
considerable en numerosos países, siendo rutilante ejemplo la recomendación nº
119, de 1963, acerca de la Terminación de la Relación de Trabajo.
4​. NATURALEZA JURÍDICA DE LAS RECOMENDACIONES DE LA OIT
Siguiendo a Arnaldo Süssekind, los convenios de la OIT, al ser ratificados
por Brasil, constituyen auténticas fuentes formales de derecho. Sin embargo,
“las recomendaciones aprobadas por la Conferencia Internacional del Trabajo
actúan apenas como fuentes materiales de derecho, porque sirven de inspiración
y modelo para la actividad legislativa”413.
El mismo autor explicita la obligatoriedad de sumisión de los instrumentos
normativos de la OIT a la autoridad nacional competente, conforme el
derecho público interno del Estado-Miembro, en el plazo de dieciocho meses
de la deliberación: “los convenios para que, una vez aprobados (en el caso de
Brasil, por el Congreso Nacional), sean formalmente ratificadas por acto jurídico;
las recomendaciones, para que el órgano competente decida sobre la conversión
de las reglas sugeridas, en el todo o en parte, en normas jurídicas de eficacia
nacional, conforme establece el mismo art. 19 de la Constitución de la OIT”414.
Celso Lafer, al analizar la convención, prevista en el recurrente art. 19
de la Constitución de la OIT, resalta la importante característica del quórum de
deliberación, debiendo ser aprobada por 2/3 de los delegados presentes
en la Conferencia, lo que había llevado a Georges Scelle a entender que a
voluntad propia de la Organización, por los 2/3 de los delegados presentes,
crea el acto regla. La obligación que el Estado asume, por la ratificación y
promulgación de la convención, siempre según Scelle, por ser un elemento
conexo, dependiente de este mecanismo de creación de normas, es un simple
acto –condición, vinculado a la voluntad jurídica expresa de la OIT, por fuerza
de la votación mayoritaria de los 2/3415.
Según Lafer, “en lo referente a la convención, la originalidad mayor de
la OIT está en el mecanismo da su adopción por la regla de los 2/3, por lo tanto,
acto-regla, y su aprobación y ratificación posterior por los Estados, como acto SÜSSEKIND, Arnaldo. Comentários à Constituição. 1º Vol. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1990. p. 336. La traducción nos pretenece.
414
Idem.
415
LAFER, Celso. A Organização Internacional do Trabalho. Obra coletiva Tendências do direito
do trabalho contemporâneo. III Vol. SP: LTr, 1980. p. 332. (rever referência) La traducción nos
pertenece.
413
408
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
condición416”. Menciona, aún, el mismo autor, “que por su propia naturaleza, las
recomendaciones no son ratificadas por los países-miembros de la OIT, como
ocurre con los convenios, siendo por eso menos convincente. Por esa razón, las
recomendaciones frecuentemente son, para usar a semejanza de lo que emplea
Vicente Marotta Rangel, el soft law que antecede al hard law de la convención”417.
Al estudiar la naturaleza jurídica de esos dos importantes documentos,
João Mota de Campos418 esclarece que los convenios de la OIT se
distinguen de la generalidad de las otros convenios internacionales por un trazo
significativo: el Estado no está obligado a ratificarla, pero por fuerza del art. 19,
párrafo 5º, de la Constitución de la OIT, las autoridades gubernamentales deben
someterla a ratificación al órgano nacional competente, lo que no ocurriría
con las recomendaciones, que no están sujetas a ratificación por los Estadosmiembros, teniendo apenas la finalidad de proveer orientaciones a los
Estados en la conducción del orden interno y en la adopción de
legislación. Serían diferentes, entonces, porque mientras la convención es
el “instrumento de la uniformización del derecho socio-laboral en los Estados
que la ratifican”, recomendación sería “instrumento de aproximación de las
legislaciones de los Estados que aceptan darle seguimiento, implementándola
más o menos fielmente en el orden jurídico interna”419.
Acerca de la recomendación, de forma contundente, Evaristo de Moraes señala que hay igualmente expresa exigencia de su sumisión a la autoridad
competente en el derecho interno, aunque sin necesidad de ratificación formal. Sin esta, no obstante convertida en ley o ya estando en la respectiva legislación interna en consonancia con su texto, no se queda el Estado-miembro liberado
de los informes anuales. Les cabe informar periódicamente al Director General
de la Repartición Internacional del Trabajo (RIT) respecto al estado actual de la
legislación interna y de las medidas tomadas para su efectiva aplicación420.
Siempre en el mismo diapasón, Néstor de Buen precisa que los
convenios a pesar de las distinciones ya señaladas equivalen a un tratado
celebrado entre Estados; las recomendaciones son simples sugerencias que
se dirigen a los Estados para que, si fueran aceptadas, se formule un envío al
legislativo nacional421.
Idem.
Ibidem, p. 331.
418
CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1999. p. 407-408.
419
Ibidem, p. 409.
420
MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antonio Carlos Flores de. Introdução ao direito
do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 1995. p. 234.
421
BUEN, Néstor de. Derecho del trabajo. Tomo primeiro. 3. ed. México: Porrúa, 1979. p. 390.
416
417
409
CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO
Mario de la Cueva enseña que el art. 19 de la Constitución de la OIT
establece la diferencia entre los convenios y las recomendaciones: lo primero es
equivalente a un tratado celebrado por los poderes ejecutivos de los estados, y
debe ser ace
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