ESTRATÉGIAS LOCACIONAIS NA CIDADE-OPORTUNIDADE: A LÓGICA DA OPORTUNIDADE NO MERCADO IMOBILIÁRIO INFORMAL DE GAIBÚ (CABO DE SANTO AGOSTINHO-PE) A PARTIR DE SUAPE Autor: Rodrigo de Oliveira Tavares Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Endereço: Av. Mário Melo, 242, ap. 602. Santo Amaro. Recife – PE. CEP: 50040-010 Telefone: (81) 3031-5680 / (81) 9246-5094 E-mail: [email protected] Palavras-chave: Globalização; Empresariamento Espacial; Mercado Imobiliário Informal; SUAPE. INTRODUÇÃO Na historiografia do desenvolvimento capitalista, as últimas três décadas do século XX marcam um importante momento em seu processo de reestruturação produtiva. Este processo e suas distintas propriedades terminariam por ocupar um lugar privilegiado no pensamento crítico urbano, onde o papel das cidades na relação estabelecida entre capital e espaço ganharia uma nova configuração. Durante um longo período o debate acerca da questão urbana ficou centrado em questões análogas ao crescimento desordenado, racionalização do uso do solo, movimento sociais etc. (VAINER, 2012, p. 76). Este olhar “interno” ao sistema de produção e reprodução espacial das cidades teve seu momento de desequilíbrio após a (re)invenção do capital em meio à recessão provocada pelo petróleo na década de 701 do século passado. Neste momento de crise do capital, cidades do mundo capitalista avançado enfrentavam a erosão de suas bases econômicas e fiscais em meio a um cenário de forte processo de desindustrialização e desemprego generalizado (HARVEY, 1996, p.49). Como saída para a crise, o capital legou à questão urbana uma conjuntura marcada pelas forças externas de um mercado sem fronteiras responsável por estimular a competitividade entre diferentes regiões do globo. Para Harvey (Op. Cit., p.49), a saída para a crise naquela ocasião estava representada na mudança do gerenciamento para o empresariamento na administração urbana. Ao assumir uma posição mais inovadora, a administração urbana, para sair da crise instaurada, deveria adotar uma visão mais empreendedora nas ações próprias de seu planejamento. Alguns anos mais tarde, mais precisamente no ano de 2010, o autor salienta que desde a década de 1970 - talvez, em função desta nova posição; o poder do estado tem sido cada vez mais determinante para garantir a mobilidade do capital ao redor do globo, permitindo sua locomoção aos lugares com “condições de negócio mais vantajosas” (HARVEY, 2011, p: 60). Em busca de tais condições, a bússola do capital aponta para o norte Estatal, onde os ventos são mais favoráveis e os riscos de uma tempestade, quase sempre, podem ser contornados. Apesar disso, não é qualquer nau que adentra nos mares do mercado global. Ou ainda, não é qualquer mar que abriga as naus do mercado global. 1 Dentre os efeitos da reestruturação produtiva iniciada na década de 70, responsável pela reconfiguração da produção e da localização do poder político-econômico em escala global, Harvey, em outra ocasião, destaca o papel exercido pelo processo de desindustrialização de centros mais antigos de produção. O resultado deste processo foi a “reorganização violenta e implacável e a deslocalização da produção em todo o mundo”, acompanhado por um surto de novos espaços industrializados ao redor do globo (HARVEY, 2011, p. 35-36). Nesse sentido, tal qual o mar está para a nau, o autor destaca a necessidade de arranjos institucionais adequados para garantir a continuidade do fluxo do capital pelo espaço e pelo tempo. Apesar do autor não aprofundar sua análise com o objetivo de definir, de forma mais explícita, o que seriam os “arranjos institucionais”, em determinado momento, o autor argumenta que as variações nos arranjos institucionais estão relacionadas às particularidades com que cada Estado estabelece sua relação com o mercado – o nexo Estado-Finanças (Ibidem. p. 53). Tal argumentação nos impele a considerar, como veio de análise, que esta relação, entre Estado e Mercado, sintetizando o ambiente político e econômico para a circulação do capital, conforma as disposições do arranjo institucional responsável por garantir o fluxo do capital. Com efeito, é emblemática a sistemática atuação do capital e seus representantes na reestruturação de arranjos institucionais ao redor do mundo, sempre com o objetivo de garantir a acumulação de capital e a reprodução das estruturas do poder de classe. E, num ambiente de competição por investimentos do capital internacional, o Estado, seja este em escala local, regional ou nacional, pode assumir papel de destaque na garantia de um ambiente mais favorável pela ação do empresariamento espacial. Todavia, à medida que agentes públicos e privados afinam seus instrumentos para reger mais um número no espetáculo do mercado global, os arranjos institucionais que garantem a inserção de regiões emergentes neste mercado podem conter efeitos diversos numa realidade marcada por um histórico de desigualdades como a brasileira. Eis que, como objeto de reflexão, surge a questão acerca das estratégias adotadas pela população, situada na periferia local destes arranjos, para se inserir em um novo mercado global. Desta forma, o presente artigo utiliza como referência o quadro institucional do segmento de Petróleo e Gás que permitiu ao Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros – SUAPE (empresa pública ligada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Governo do Estado de Pernambuco) capitalizar investimentos e atrair empreendimentos ligados ao referido setor; para analisar, em seguida, os efeitos do crescimento econômico atribuídos ao novo ambiente político e econômico no processo de urbanização local, tendo como referência a dinâmica imobiliária local, particularmente a considerada informal. 1. O empresariamento no projeto de espaço global Ao se transformar em mercadoria, o espaço tem como seu principal cliente o capital transnacional. A oferta busca atender os requisitos que integram a cartilha de condições impostas pelo cliente, satisfazendo, ou ainda, suprindo, suas principais necessidades, tais como um aeroporto internacional; hotéis de luxo; sistema de telecomunicações; infraestrutura tecnológica etc. (BORJA & CASTELLS, 1997 apud VAINER, op. Cit., p. 79). Nota-se que, para se inserir na dinâmica da economia global, é necessário que o espaço objeto do empresariamento cumpra alguns requisitos indispensáveis para sua integração no espectro do mercado global. Voltar-se para “fora” é o fundamento da ação empresarial na lógica do mercado global, e esta requer os devidos instrumentos para garantir uma situação favorável em um cenário extremamente competitivo. Desta forma, a ação do empresariamento espacial volta-se, em primeiro lugar, para a redução de qualquer tipo de barreira geográfica que impeça o processo de mundialização do mercado. A demanda de localizações pelo capital é o que qualifica o espaço como mercadoria – desde que este esteja conectado ao seu projeto global. A subordinação à lógica do mercado global significa ter como horizonte os anseios do capital transnacional e se planejar, unicamente, em função de suas expectativas, vontades e interesses. Portanto, o uso e finalidade do espaço, por esta lógica, são determinados pelo capital que se objetiva atrair pela ação do empresariamento. Sánchez (2010) argumenta que, na reestruturação da economia capitalista, o espaço tem se submetido cada vez mais às necessidades impostas pela lógica da acumulação, estando sujeito ao seu controle e normatização: “A chamada ‘reestruturação produtiva’ da economia capitalista em sua fase atual está, mais do que nunca, ligada à produção do espaço que é moldado às necessidades da acumulação. Para efeitos de análise específica das sociedades urbanas, esse amoldamento significa que um número crescente de fragmentos da cidade, ou partes dela, está sujeito ao controle, à normatização, à privatização, com grandes impactos na vida social.” (Ibidem, p. 45) Ao prosseguir com sua análise, a autora destaca um processo em que a lógica de apropriação do espaço urbano pelo capital pode se destinar tanto à produção quanto ao consumo por parte da sociedade capitalista: “Os espaços capturados pelas relações de produção capitalista, que são incorporados aos processos de reestruturação urbana em curso, podem se destinar à produção ou propriamente ao consumo do espaço. No primeiro caso, por intermédio de obras de infraestrutura, operações logísticas de otimização de fluxos produtivos e obras de modernização tecnológica que agregam densidade técnica aos lugares para atração de empresas multinacionais; no segundo, por meio de operações vinculadas ao turismo e ao lazer, operações imobiliárias e, finalmente, operações voltadas ao consumo da cidade, estimuladas pela publicidade.” (Ibidem, p.46) Desta forma, verificam-se duas formas de utilização instituídas pelo capital que podem ser exploradas pela ação do empresariamento espacial. Na primeira delas, o espaço adquire as vestes de uma “ferramenta”. O aspecto técnico coloca o espaço como um material necessário no processo de produção capitalista, enquanto que, no segundo caso, o espaço é colocado à disposição da sociedade para ser consumido. Ou seja, o espaço a ser empresariado pode representar tanto a questão locacional da produção, e, portanto, considerado como item indispensável no processo de produção capitalista e sendo consumido pelo próprio capital; como pode representar o espaço da circulação em larga escala, explorado pelo capital em seu processo de mundialização do consumo. A figura deste empresariamento está relacionada ao projeto de expansão da escala global de consumo, suprindo as necessidades do capital e sua estratégia locacional, parte integrante de sua reorganização espacial, como destaca a autora: “O processo de comercialização e de especulação em torno do espaço se acentua. Ao espaço é conferido um novo sentido no contexto da ‘mundialidade’, entendida como um projeto de construção de um espaço mundial. No bojo desse projeto, a globalização vem se apresentando, em grande parte da literatura, como uma noção relacionada à internacionalização da produção, à reorganização espacial em função de um novo estágio da divisão do trabalho na escala mundial, mas também a uma determinada leitura do mundo.” (Ibidem, p. 46-47) Assumindo várias formas, o empresariamento do espaço em suas diferentes escalas está sujeito à estratégia do capital globalizante. Seja destinado à produção ou ao consumo, o espaço, na ampliação do espectro do mercado global, deve cumprir as exigências do capital, concedendo-lhe um conjunto de contrapartidas necessário para concretização de seu projeto de “espaço mundial” – ainda incompleto. As lacunas que ainda persistem no globo representam um local a menos, um espaço que ainda não foi conectado ao projeto de consumo global. Na implementação deste projeto, alguns espaços se apresentarão como um bom local para se produzir e ser consumido pelo capital, com seus portos, aeroportos, centros de tecnologia etc.; enquanto outros se apresentarão como locais ideais para o consumo, ampliando a escala de circulação do capital. Nesse sentido, o termo “global” transforma-se em palavra de ordem para aqueles que têm o interesse em adentrar nesta competição, onde os impactos na vida social revelam estratégias que extrapolam os limites do empresariamento espacial. A questão locacional, como estratégia de projetos complementares, envolvendo os interesses do capital (dominante) e das administrações urbanas (subordinado), não se encerram no plano do espaço global. Seus efeitos no cotidiano são significativos e servem de base para várias reflexões. 2. SUAPE na rota global da cadeia de petróleo e gás e o déjà vu do urbanismo segregador No setor de petróleo e gás o Brasil tem demonstrado significativo potencial perante o mercado global. No entanto, para contar, atualmente, com uma produção mensal de petróleo em torno de 1,9 milhão de barris/dia (bpd)2 e ocupar a 14ª posição entre os maiores países produtores (GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, 2008, p.09), um conjunto de mudanças no quadro institucional foram determinantes para o crescimento de investimentos no setor de petróleo e gás no país, dentre elas a quebra do monopólio da Petrobrás no setor em 1997 (SANT’ANNA, 2010, p.61). Outro fator determinante na construção de um arranjo institucional favorável ao investimento de capitais no setor foi a descoberta de petróleo na camada do pré-sal. Segundo Araújo (2013, p. 163), nos últimos anos a política de compras da Petrobrás passou a ser utilizada para estimular o setor produtivo nacional, especialmente a indústria naval, o que acabou resultando na instalação de estaleiros nos estados de Pernambuco, Alagoas, Bahia e Maranhão. Outra mudança em sua política foi a desconcentração de refinarias, antes restritas às regiões Sudeste e Sul. Tal mudança culminou na construção de novas unidades, entre elas a Refinaria Abreu e Lima, localizada em SUAPE. Neste arranjo institucional que se configura a partir da escala nacional, localmente, o estado de Pernambuco tem buscado desfrutar das oportunidades derivadas do setor. Lançado pelo Governo do Estado de Pernambuco em dezembro de 2008, e nascido em meio às oportunidades geradas pela política de expansão do segmento produtor de petróleo, gás, offshore e naval no Brasil, o Suape Global é o resultado de uma “iniciativa de vários agentes da sociedade estadual que se uniram para atuar no sentido de consolidar no estado um novo pólo industrial” (GOVERNO DE PERNAMBUCO, 2008, p. 06). Coordenado pelo Governo do Estado de Pernambuco, o Suape Global tem como parceiros a Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco (FIEPE); o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE-PE); e o apoio da Petrobrás, Agência Nacional do Petróleo (ANP); Estaleiro Atlântico Sul S.A.; Confederação Nacional das Indústrias (CNI); e bancos estatais, como o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES). Dentre os vários atributos que potencializam o ambiente local para o setor de petróleo e offshore, a iniciativa destaca a tradição industrial do estado, bases científicas e tecnológicas, localização, infraestrutura e um conjunto de incentivos fiscais que são mobilizados para a consolidação do “novo pólo industrial”. A articulação das três esferas de Governo - estadual, federal e municipal, na concessão de diversos incentivos contribuem na conformação de um arranjo institucional ainda mais favorável ao capital. Não é objetivo do presente artigo analisar, ou mesmo criticar, a ação de planejamento que institui o Suape Global como parte legítima de um arranjo institucional dentro do setor de petróleo, gás, naval e offshore. Tampouco nos interessa analisar seus resultados. O fato notório que insere o arranjo descrito nas linhas deste artigo é sua contribuição ao nítido 2 Conforme boletim de Destaques Operacionais na página eletrônica da instituição voltada para seu relacionamento com investidores: www.investidorpetrobras.com.br. (Página visitada em Janeiro de 2014). crescimento econômico proveniente do “novo pólo industrial”3 e suas consequências na vida urbana. Tendo o Brasil já experimentado as consequências da industrialização em seu processo de urbanização, marcado por mudanças radicais na localização da população nos últimos anos (OLIVEIRA, 2006, p. 49), a impressão é que estamos diante de um déjà vu catastrófico para o bem-estar da população. Visível e, para muitos, animador, o crescimento econômico resultante deste novo ambiente produtivo vem acompanhado de mudanças significativas em outras bases da economia nacional, cabendo destacar os efeitos no setor habitacional e seus desafios para o equilíbrio de um “urbano” dividido entre circuitos globalizados de mercado para alguns e a total negação do direito à cidade para tantos outros (ROLNIK & KLINK, 2011, p. 99). Ainda segundo Rolnik & Klink, o dinamismo econômico brasileiro não foi suficiente para superar as históricas desigualdades socioespaciais no espaço urbano brasileiro, tendo em vista a permanência de antigos padrões urbanos e a não apropriação do crescimento econômico por atores sociais tradicionalmente excluídos (Ibidem, p. 109). 3. O novo mercado: consequências do crescimento econômico na dinâmica imobiliária informal do Cabo de Santo Agostinho “Quando a liberdade individual e a autonomia que esta promete são medidas pelos arranjos institucionais da propriedade privada e do mercado, como ocorre na teoria e na prática liberal, o resultado são enormes desigualdades. Como Marx observou há muito tempo, a teoria liberal dos direitos individuais [...] reforça as desigualdades entre uma nova classe de proprietários emergentes e uma nova classe constituída por aqueles que precisam dispor de sua força de trabalho para viver.” (Harvey, 2011, p. 188) Nas bases do materialismo histórico dialético, presente na crítica de Marx e Engels à filosofia alemã, a inversão no pensamento filosófico foi responsável por inserir as condições materiais de existência dos indivíduos no cerne do processo vital da sociedade. Contrariando o pensamento filosófico alemão vigente – “que desce do céu para a terra”, os autores afirmam que “são os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência” que determinam os rumos da sociedade (MARX & ENGELS, 1998, p. 18). Condições materiais estas que sintetizam a realidade material existente, objetiva ao indivíduo, e suas próprias ações diante de circunstâncias pré-determinadas. Desta forma, fundindo a trajetória individual e o contexto coletivo, nas condições em que nos propomos analisar as consequências de um novo ambiente econômico no processo de urbanização, nos propomos a analisar as consequências da nova economia impulsionada por SUAPE – entendida como condição objetiva; nas transações imobiliárias estabelecidas entre indivíduos que, por sua condição material, utilizam da janela informal como forma de acesso ao solo urbano. Segundo Abramo (2003, p. 07), o acesso à terra urbana aos pobres é um fenômeno com características continentais. Na América Latina, por exemplo, este acesso se dá por meio de três lógicas possíveis: a lógica do Estado; lógica do Mercado; e lógica da Necessidade. Na primeira das três lógicas, o Estado define a forma, a localização e o público-alvo que será beneficiado por sua política de democratização do acesso à terra urbana. Na segunda lógica, o mercado representa o encontro entre os que “desejam consumir terra urbana e os que se dispõem a abrir mão do direito de uso da terra urbana e oferecê-la a eventuais consumidores fundiários” (Ibidem, p. 08). Nesta segunda lógica, de acordo com o 3 De acordo com o site do Complexo Industrial Portuário de SUAPE, desde a implantação do Suape Global já foram atraídas 20 empresas ligadas ao segmento de petróleo, gás, offshore e naval, com um total de US$ 1,82 bilhão em investimentos e mais de 22 mil empregos diretos. vínculo estabelecido entre o objeto da transação – terreno, lote, casa etc., com as normas e regras jurídicas e urbanísticas da cidade, o mercado que compreende estas transações pode ser de caráter formal ou informal. A primeira delas é regida por um marco normativo e jurídico, regulado pelo Estado, que garante um conjunto de direitos que servem de referência para o estabelecimento de relações econômicas legais (ABRAMO, 2009). A segunda forma de acesso tem como princípio de sua informalidade o fato de prescindir de tais normas para o estabelecimento de relações econômicas. Para Abramo, podemos denominar como práticas mercantis de mercado informal de solo o “mercado de terras urbanas que não está sujeito e regulado pelos direitos urbanísticos, de propriedade, tributário e comercial, nas suas práticas de comercialização e de locação de bens e serviços habitacionais” (Ibdem, p. 06). O autor salienta que, apesar deste mercado informal transacionar bens fundiários e imobiliários, sua base territorial é uma propriedade que não respeita os preceitos do direito de propriedade e/ou urbanístico, e assim assume uma dimensão de informalidade urbana. A terceira e última lógica, segundo Abramo, está relacionada à condição de pobreza dos indivíduos que desejam acessar o solo urbano. Para o autor, diante da carência pecuniária e institucional, ou seja, sem dinheiro para concretizar seu “desejo” de consumo e sem capital político para acessar o que lhe é de direito, o indivíduo, movido pela necessidade, terá como alternativa os processos coletivos de ocupação urbana. Entretanto, antes de adentrar nas considerações sobre os efeitos deste novo ambiente econômico no mercado imobiliário informal, deve-se, fundamentalmente, buscar apreender a dinâmica demográfica que tem interferido na ocupação do solo urbano do Cabo de Santo Agostinho - município que, por compartilhar sua unidade territorial com o Complexo Industrial de Suape, foi utilizado como campo de investigação. De acordo com os dados do último Censo Demográfico, o município do Cabo de Santo Agostinho detinha uma população total de 185.025 habitantes (IBGE, 2010). Entre os anos de 2000 e 2010, sua população residente em domicílios particulares permanentes apresentou uma taxa de crescimento populacional de 1,9% a.a. No entanto, chama atenção o fato de que, entre os anos de 2000 e 2007 – ano em que foi realizada a Contagem da População pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a mesma taxa era de 0,9% a.a., enquanto que, entre 2007 e 2010 a taxa de crescimento demográfico foi de 4,5% a.a. Ao realizar o mesmo exercício para cada um dos distritos administrativos – base territorial adotada por permitir a comparação dos dados entre os Censos de 2000 e 2010, bem como a contagem da população realizada em 2007; observamos que o distrito de Santo Agostinho, localizado na porção litorânea do município, teve um crescimento demográfico de 21,6% a.a. entre os anos de 2007 e 2010, o que lhe conferiu uma taxa de crescimento entre 2000 e 2010 de 10,8% a.a (ver Tabela 01). Tabela 01: taxa de crescimento demográfico da população residente em domicílios particulares permanentes para o Cabo de Santo Agostinho e Distritos Administrativos (2000-2007, 2007-2010, 2000-2010) Taxa de crescimento demográfico (% a.a.) Município 2000/2007 2007/2010 2000/2010 Cabo de Santo Agostinho 0,9 4,5 1,9 Taxa de crescimento demográfico (% a.a.) Distrito 2000/2007 2007/2010 2000/2010 Cabo de Santo Agostinho 0,7 2,4 1,2 Juçaral -1,8 -2,9 -2,1 Ponte dos Carvalhos 0,6 4,6 1,7 Santo Agostinho 6,5 21,6 10,8 Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE (2000; 2007; e 2010). As taxas de crescimento demográfico demonstram que o ano de 2007 foi emblemático para a dinâmica demográfica do município, principalmente se considerarmos o fato de coincidir com o início das obras de instalação da Refinaria Abreu e Lima em Suape. A tendência de crescimento demográfico do município foi alterada substancialmente, com o distrito de Santo Agostinho apresentando a maior taxa de crescimento demográfico entre os quatro distritos. Embora o distrito já estivesse trilhando o caminho para um crescimento demográfico bem acima da média, o novo ambiente econômico conforma a face mais expressiva de uma reestruturação produtiva que tem reflexos profundos em seu processo de urbanização. Atraídos pelos postos de trabalho gerados, principalmente, pelos setores da indústria e construção civil, o distrito passou a concentrar grande parte desta mão-de-obra devido à sua boa conectividade ao Complexo de SUAPE, um trajeto de quatro quilômetros por meio da PE-028. O distrito, que entre os anos de 1991 e 2000 concentrava 4,98% de sua população, em 2010 passou a concentrar 11,44%. Sua população total, que em 2000 era de 7.622 habitantes, em 2010 registrou 21.180 habitantes, ou seja, um acréscimo próximo a 200% em sua população. Outro dado que merece destaque diz respeito ao aumento no número de domicílios registrado entre os anos de 2000 e 2010. Enquanto o município registrou um aumento de 44,2% de domicílios particulares permanentes, o distrito de Santo Agostinho registrou um aumento de 228%, revelando a face mais impressionante deste processo. Ao analisar os dados segundo a condição de ocupação dos domicílios particulares permanentes (próprios ou alugados) por cada distrito (ver Gráfico 01), o percentual de crescimento revela o quanto o distrito de Santo Agostinho foi alvo de uma massiva demanda por habitações. Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Censo Demográfico (IBGE 2000; e 2010). Gráfico 01 – Percentual de aumento no número de domicílios particulares permanentes, segundo a condição de ocupação para os Distritos Administrativos do Cabo de Santo Agostinho entre os anos de 2000-2010. Com 588% de aumento no número de domicílios particulares permanentes alugados, e 177% cuja condição de ocupação era próprio, o distrito de Santo Agostinho foi considerado como lócus de uma investigação primária sobre possíveis modificações em sua dinâmica imobiliária, tendo em vista a sua relevância em relação aos demais distritos do município do Cabo de Santo Agostinho. Para tanto, partimos do pressuposto que, em algumas áreas, o adensamento construtivo demonstra que alguns habitantes de assentamentos populares consolidados perceberam que a construção de cômodos ou apartamentos para aluguel poderia funcionar como um reforço aos rendimentos familiares (LACERDA & MELO, 2009, p. 122), o que, em tese, justifica o impressionante aumento no número de habitantes em domicílios particulares permanentes cuja condição de ocupação é o aluguel. Entretanto, também se faz presente na realidade atual do distrito de Santo Agostinho o parcelamento do solo em áreas de ocupação irregular, o que tem contribuído para o expressivo aumento no número de domicílios particulares permanentes próprios. Movidos pela necessidade, o encontro entre a demanda e a oferta fazem do acesso ao solo urbano uma intermediação de interesses em que vontades individuais se equacionam na busca pelo interesse em comum. Nesse sentido, as partes envolvidas devem ser apreendidas a partir das respectivas condições socioeconômicas próprias de cada um dos envolvidos na transação – situação interna; assim como o ambiente em que vivem – situação externa. Esta síntese entre situação interna e externa, uma relação dialética entre suas condições materiais objetivas e sua ação individual; expressam a característica fundamental do mercado imobiliário defendida por Lacerda (2011, p. 28): uma produção dinâmica entre indivíduo e sociedade. Nesse sentido, o fundamento da análise sobre os efeitos de uma nova condição econômica, representada nas atividades produtivas relacionadas à cadeia de petróleo, gás, offshore e naval de Suape - como condição objetiva compartilhada entre os indivíduos de uma transação imobiliária; reside na importância de se considerar o impacto que a presença de um patrimônio, mesmo que de valor modesto, pode representar na trajetória de vida de indivíduos e suas famílias (SOUZA, 2010, p. 177). Dessa forma, na formulação da hipótese que serviu de referência para as considerações tecidas no presente artigo, julgamos que, em função de uma nova demanda, a população pré-existente nos assentamentos consolidados do distrito de Santo Agostinho poderia explorar seu patrimônio em função de sua própria necessidade, orientada por sua condição socioeconômica individual – situação familiar interna; de forma a interferir na dinâmica imobiliária informal pré-estabelecida. Assim, a necessidade que, outrora, tinha o objetivo de complementar a renda se transformaria em oportunidade de ganho real, impulsionado, possivelmente, por uma ação especulativa frente a um eventual capital locacional – neste caso, a proximidade com SUAPE. Ao ascender da condição de ocupante a locador, ou, em alguns casos, vendedor, a necessidade que move o interesse do indivíduo evidencia o caráter dinâmico do solo nas relações de mercado. Frente ao contexto favorável à mercadorização de seu patrimônio, ao explorar uma “segunda leva” de indivíduos que têm o interesse em acessar o solo urbano, podemos conjecturar a possibilidade de um duplo fracasso das políticas sociais de democratização do solo urbano. Ainda, no continuum da cidade informal, a concentração e crescente sujeição de indivíduos às regras do mercado informal demonstrariam a trajetória “exitosa” de alguns destes, tendo em vista a exploração dos novos necessitados de solo urbano, o que, segundo Davis (2006, p. 52), permite aos pobres urbanos gerarem renda com seu patrimônio, mesmo que este seja informal, numa relação de exploração de pessoas ainda mais pobres. Nesse sentido, frente à nova condição econômica objetiva, dados primários produzidos por meio de visitas de campo e entrevistas4 revelam a adoção de novas estratégias por parte da população local no estabelecimento de transações imobiliárias informais. Dentre elas, destaque para a utilização do “Construcard”, financiamento concedido pela Caixa 4 As entrevistas realizadas correspondem ao acervo de dados de um projeto de dissertação de mestrado, em curso, no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Econômica Federal para aquisição de materiais de construção, para a compra de terrenos irregulares. Segundo o levantamento realizado em campo, muitos dos “novos proprietários” utilizaram como meio de pagamento a compra de materiais de construção em nome do vendedor. Por sua vez, o material adquirido, em muitos casos, serviu para a construção de novos imóveis, que, a depender da demanda, foram alugados ou colocados à venda. A “cadeia do Construcard” ainda não para por aí. Até mesmo a mão de obra envolvida na construção das casas tem admitido o pagamento por meio do Construcard, recebendo materiais de construção para utilização em sua própria residência ou alimentando um mercado informal de materiais de construção. Afora a “cadeia do Construcard” nas transações de compra e venda, os dados produzidos em campo também permitiram observar uma prática recente: a revisão dos valores de aluguel em percentuais “absurdos”. Para alguns moradores, diante de uma nova demanda, na maioria das vezes representada por empresários do setor da construção civil, com o intuito de estabelecer alojamentos para sua mão de obra, os preços dispararam e não se alinhavam com a condição de muitos dos moradores locais. Até o segundo semestre de 2013 era é possível encontrar imóveis para alugar em Gaibú, bairro localizado no distrito de Santo Agostinho, por até R$ 2.000 (dois mil reais)5, uma realidade distante para muitos, principalmente se considerarmos que, em 2010, 68,3% dos responsáveis por domicílios particulares permanentes apresentavam rendimento nominal mensal domiciliar per capita de até 1 salário mínimo (na época, no valor de R$ 510). Embora ainda preliminares, as observações em campo, juntamente com os dados secundários, suscitam apontamentos interessantes para o aprofundamento da pesquisa. O ambiente econômico que se estruturou a partir das “novas” vocações produtivas da região, alavancadas por SUAPE, tem apresentado efeitos visíveis na dinâmica imobiliária local, com destaque para as novas estratégias que vêm sendo adotadas no mercado informal de solo urbano e habitação. Na síntese entre a condição objetiva compartilhada e os interesses individuais, a dialética do cotidiano urbano e sua dinâmica têm resignificado o valor do solo urbano para uma parcela considerável da população. A nece(cidade), ou seja, o papel fundamental do solo urbano para o desenvolvimento de trajetórias individuais e sua busca por uma vida melhor, parece ganhar outros ares, na qual a periferia já não comporta apenas contingências, pelo contrário, confere a indivíduos em condições materiais específicas uma oportunidade diferenciada de ganho. Ao conferir ao espaço periférico ares de “terra de oportunidades”, a fonte de renda gerada pelo patrimônio passou a explorar a oportunidade do aspecto locacional, considerando a disposição da demanda em arcar com os custos da proximidade. 5 Apartamento com 03 quartos, sala, cozinha, WC, suíte e área de serviço, totalizando 76m². Sem garagem. REFERÊNCIAS ABRAMO, Pedro (2003); “Eu já tenho onde morar... a cidade da informalidade”, em (Pedro Arbamo), Cidade da Informalidade, Rio de Janeiro – RJ: Livraria Sette Letras, FAPERJ. ABRAMO, Pedro (2009); “Mercado imobiliário informal: a porta de entrada nas favelas brasileiras”, em (Pedro Abramo), Favela e Mercado Informal: a nova porta de entrada dos pobres nas cidades brasileiras, Porto Alegre – RS, ANTAC. ARAÚJO, Tânia Bacelar de (2013); “Desenvolvimento regional brasileiro e políticas públicas federais no governo Lula”, em (Emir Sader), 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma, São Paulo – SP, Boitempo. 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