Universidade Católica do Salvador Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania MARIA DE LOURDES NUNES REVISITA À IDÉIA DE QUILOMBO: uma reflexão étnico-racial a partir do Quilombo do Cinzento Salvador 2008 1 MARIA DE LOURDES NUNES REVISITA À IDÉIA DE QUILOMBO: uma reflexão étnico-racial a partir do Quilombo do Cinzento Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Políticas Sociais e Cidadania da Superintendência de Pesquisa e PósGraduação da Universidade Católica do Salvador. Orientadora: Profª Drª. Denise Freitas Dornelles Salvador 2008 2 TERMO DE APROVAÇÃO MARIA DE LOURDES NUNES REVISITA À IDÉIA DE QUILOMBO: uma reflexão étnico-racial a partir do Quilombo do Cinzento Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica do Salvador. Salvador, 16 de setembro de 2008 Banca Examinadora ________________________________________ Luciano Costa Santos: Doutor _________________________________________ Kátia Siqueira de Freitas: Doutora _________________________________________ Nilo Rosa dos Santos: Doutor _________________________________________ Orientadora: Denise Freitas Dornelles: Doutora 3 Dedico este trabalho à memória daqueles e daquelas que lutaram (viveram e morreram) para que eu estivesse viva. Em especial a D. Ana, centenária quilombola na liderança do Quilombo do Cinzento. A Maria Rosa dos Santos Nunes, minha mãe, quilombola na fé e na raça, (em memória). 4 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Deus único, revelado com muitos rostos, diversas nações e cores. O mesmo das mulheres-bruxas que voam para a liberdade. Agradeço à minha família, Quilombo Nunes, sempre demonstrando superior amor: ao meu pai, irmãos, sobrinhos, e sobrinhas queridíssimas, às afilhadas e ao afilhado, sempre resolvendo as questões de informática. Agradeço especialmente a Vera, Cláudia e Lita, que cuidaram de mim como irmã-filha durante a desafiadora finalização do trabalho. Agradeço a Paulinho, pelo amor e pelo enorme apoio. Agradeço aos amigos e às muitas amigas- companheiras-irmãs, testemunhas dos inúmeros desafios, mas sempre solidárias. A Marinaldo, que me acompanhou nas viagens até o Quilombo do Cinzento, intermediando a tarefa. Agradeço nas pessoas de D. Ana Delcir e Senhor Salviano, a toda a comunidade do Quilombo do Cinzento, que me acolheu amavelmente. Aos\as colegas de turma pela amizade, às professoras que se lançaram na pedagogia do conhecimento, colaborando significativamente no percurso desse caminho. Por fim, agradeço à banca, por aceitar o desafio e, de forma carinhosa, agradeço à professora e Orientadora Drª Denise Freitas Dornelles que, com um diferenciado e especial profissionalismo, acompanhou esta tarefa com interesse, dedicação, amizade, paciência e respeito, me ajudando a descobrir novos horizontes, posicionamentos. Obrigada. reconstruir e desconstruir 5 REVIVER Tudo o que sofreu\Porto de desesperança e lagrima\Dor de solidão\Reza pra teus orixás\Guarda o toque do tambor\Pra saudar tua beleza\Na volta da razão\Pele negra, quente e meiga\Teu corpo e o suor\Para a dança da alegria\E mil asas para voar\Que haverão de vir um dia\E que chegue já, não demore, não\Hora de humanidade, de acordar\Continente e mais\A canção segue a pedir por ti (a canção segue a pedir por nós) \ África, berço de meus pais\Ouço a voz de seu lamento\De multidão\Grade e escravidão\A vergonha dia-a dia\E o vento do teu sul\É semente de outra história\Que já se repetiu\A aurora que esperamos\E o homem não sentiu\Que o fim dessa maldade\É o gás que gera o caos\É a marca da loucura\África, em nome de Deus\Cala a boca desse mundo\E caminha, até nunca mais\A canção segue a torcer por nós. (Lágrimas do Sul – Milton Nascimento e Marco Antonio Guimarães) 6 RESUMO Esta dissertação visa a questão racial elucidando possíveis encaminhamentos para aprofundar o tema da exclusão pela cor, apontado nos altos índices de empobrecimento e mortalidade que afetam majoritariamente a população negra, localizadas tanto em áreas urbanas como rurais. O trabalho proposto aponta a necessidade de discutir a condição presente. Reflete sobre uma Questão Social partindo do Quilombo do Cinzento, aponta a identidade e a memória enquanto eixos de suporte ao tema. Esta idéia expande o conceito, ao mesmo tempo, em que se apresenta como parâmetro para o estudo de uma grave e histórica vergonha social: o racismo. Estes eixos assinalam o discurso étnico-racial como instrumento de desvelamento. Confirmando a urgência da ampliação das políticas afirmativas para e com a comunidade negra. A memória histórica se apresenta enquanto estrutura que no presente registra o passado de lembranças. Demonstra uma temática que evidencia a ação prática e política dos quilombolas do Cinzento. A memória ilustra as limitações da atualidade, explicitando a história enquanto a identidade aparece como esboço das diferenças e das necessidades, ‘distinguindo os sujeitos sociais e especificando suas exigências. O eixo identitário também reforça o discurso da memória quilombola. Apresentando argumentos e elaborações críticas contextualizadas que justificam a existência, a resistência e a necessidade do tema étnico-racial na sociedade contemporânea. A pesquisa aproxima a experiência quilombola do Cinzento à realidade atual disseminando a idéia de Quilombo. Durante a revisita entrevistou remanescentes da comunidade do Cinzento, militantes de entidades do movimento negro e utilizou cabelo como metáfora para explicitar uma continuidade africana como fio de resistência e apoio na costura entre identidade e memória, buscando pautar a questão das desigualdades étnico-raciais na agenda das políticas sociais brasileiras. A pesquisa demonstrou que na atualidade, as participações de ONGs (Organizações Não-Governamentais) de caráter político-social, a solidariedade e a intervenção de setores do Estado aparecem como instrumentos para a transformação da crise atual, confirmando a urgência de políticas universais com status local para a superação das tensões. PALAVRAS-CHAVE: 1. Quilombos; 2. Identidade 3. Memória; 4. Racismo; 5. Desigualdades; 6. Políticas Sociais. 7 ABSTRACT This dissertation intends to raise the question that racial issues showing possible paths to deepen into the subject of exclusion by skin-color, pointed out by the high impoverishment and mortality rates which afflict black people in a large part, both in urban areas and rural areas. The purpose of this paper is to point out the need to discuss the current condition. Reflect on a social question, starting from “Quilombo do Cinzento”, by bringing up the identity and memory as support to the subject. This idea extend the concept as well as it shows up like a parameter to the study of a serious and historical social shame: the racism. These parameters sing up the ethnical-racial discourse as a revealing instrument of the conflict. Confirming the urgency to extend policies of affirmative action to the black communities. The historical memory shows up as the structure that registers a past of memories, demonstrating a theme that showcase the “quilombolas do Cinzento’s” practical action and policies. This memory illustrates the limitation of contemporaneity, by turning accurate the history and its requirements, whereas identity appears as a kind of outline identifier of differences and necessities, distinguishing people and their requirements. The identifying question also raises up the discourse of “quilombola” memory, showing arguments and critical elaborations integrated, justifying the existence, resistance and need of the ethnical-racial theme in the contemporary society. The research approximates the “Quilombola do Cinzento” experience to reality spreading out the “Quilombo” idea. During the interview, while reviewing the issue with the community, the hair is used as a metaphor to raise up an African continuity as resistance thread and support in the sewing of identity and memory in order to bring to attention the ethnical-racial inequality question in the agenda of Brazilian social politics. The research demonstrates that actually, the NGO's (Non-GovernmentalOrganizations) with socio-political structure, the solidarity and the State intervention in different sectors are transforming tools that changes the face of the actual crisis, thus confirming the urgency of universal policies with local status to overcome tensions. KEY-WORDS: 1. Quilombos; 2. Identity 3. Memory; 4. Racism; 5. Inequality; 6. Social Policies. 8 LISTA DE ILUSTRAÇÔES Foto 01- Visão superior do Quilombo do Cinzento 158 Foto 02- Entrada do Quilombo do Cinzento 159 Foto 03- Assembléia da Comunidade e membros do Conselho 160 Quilombola Regional: reunião sobre o problema da construção de novas casas 161 Foto 04- Jovens trançadeiras Foto 05- Salviano dos Santos Nunes e Ana Delcir Pereira Nunes – 162 lideranças Foto 06- Conjunto de fotos do processo de coleta de dados: encontro 163 com famílias do Cinzento- Quilombo rural; encontro de adolescentes negros- Quilombos urbanos; cabelo como identidade negra 9 LISTA DE ABREVEATURAS E SIGLAS APNs Agentes de Pastoral Negros CEAFRO Centro Educacional e profissionalizante para a Equidade Racial e de Gênero CEBs Comunidades Eclesiais de Base CDCN Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra CONAQ Conselho Nacional de Remanescentes de Quilombos DPA Diretoria de Proteção do Patrimônio Afro-brasileiro FCP Fundação Cultural Palmares Gen Gênesis IDH Índice de Desenvolvimento Humano INCRA IPEA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LDB Lei de Diretrizes e Bases MNU Movimento Negro Unificado Minc Ministério da Cultura ONGs Organizações Não- Governamentais PNUD RDH Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento RPNUD Relatório Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SEPROMI Secretaria de Promoção da Igualdade 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 13 CAPÌTULO I 2 METODOLOGIA 17 2.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 17 2.2. EXPLICITANDO O TEMA 18 2.3 ENTRELAÇANDO IDÉIAS 19 2.4 DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO 20 2.5 DESAFIOS 21 2.6 ENTREVISTADORA VERSUS ENTREVISTADOS (AS): UM CAMINHO DE DISPOSIÇÃO 22 2.7 APLICAÇÃO DA HISTÓRIA ORAL 25 2. 8 ORALIDADE COMO MÉTODO 26 CAPÍTULO II 3 QUILOMBOS: “RETALHOS DE NOSSA HISTÓRIA” 29 3.1 IDENTIDADES, LIBERDADE E DIFERENÇAS EM DEBATE SÓCIO-FILOSÓFICO 30 3.2 IDENTIDADES NEGRAS E RELAÇÕES SOCIAIS 34 3.3 CONTEXTUALIZAÇÃO DA COMUNIDADE DO CINZENTO 38 3.4 (IN) DEFININDO QUILOMBOS 40 3.5 ÁFRICA: QUILOMBOS QUE MARCHAM PRA FORMAR MUNDOS 42 3.6 PROCESSO DE LIBERTAÇÃO DE MODELO AFRICANO 45 3.7 BRASIL: EXPERIÊNCIA PALMARINA 50 3.7.1 O governo Ganga Zumba 59 3.7.2 Imortalidade de Zumbi 62 3.8 PERCURSO QUILOMBOLA NA BAHIA 68 3.9 SIMILARIDADES E DISTÂNCIAS QUILOMBOLAS 72 11 3.10 QUILOMBOS URBANOS 73 3.11 COMUNIDADE E MEMÓRIA 77 3.12 QUILOMBO DO CINZENTO: “RETALHOS DE NOSSA MEMÓRIA” 83 CAPÌTULO III 4 REFLEXÕES FINAIS A PARTIR DE UMA ÉTICA QUILOMBOLA 85 4.1 UMA ÉTICA A SERVIÇO DA COMUNIDADE NEGRA 86 4.2 CABELO COMO METÁFORA 87 4.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO 92 4.3.1 Racismo Institucional 98 4.4 DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS 100 4.5 POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA E COM A COMUNIDADE NEGRA: TRANÇAS RELEVANTES NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO 109 4.6 REPARAÇÃO 112 4.7 INTERVENÇÃO DO ESTADO NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO ÉTNICO-RACIAL 117 4.8 POR UM PROJETO POLÍTICO RACIAL QUE TRANSCENDA A REALIDADE 120 5 FINALIZANDO AS CONSIDERAÇÕES. 122 REFERÊNCIAS 128 GLOSSÁRIO 132 ANEXOS ANEXO A - Mapa da Região Sudeste da Bahia 133 ANEXO B - Fotos 134 ANEXO C- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 140 ANEXO D- Decreto para Identificação de Comunidades Remanescentes de Quilombos 142 ANEXO E Modelo de Declaração de Auto-Reconhecimento para Comunidades 12 Remanescentes de Quilombos o 150 ANEXO F- Lei n 10.639\03 151 ANEXO G - Manifesto contra as cotas 152 ANEXO H- Manifesto a favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial 160 APÊNDICE- Roteiros de entrevista 164 13 1 INTRODUÇÃO Após quase 500 anos de mobilização anti-escravização, 120 anos fora das correntes oficiais de ferro, as comunidades negras quilombolas celebram suas lutas e vitórias no processo de transformação. Entretanto, na atualidade, nota-se que ainda serão necessários muitos esforços para alcançar resultados satisfatórios de inclusão social para a população negra, em geral, assim como para a consolidação de diversas iniciativas políticas resultantes da mobilização dos povos quilombolas, tais como: exigência de leis, engajamento político, marchas: no passado eram para o mato, hoje para Brasília. Partindo desta perspectiva, o objetivo geral deste estudo consiste em pesquisar a idéia de Quilombo, recorrendo ao racismo para questionar processos condicionadores no âmbito da identidade negra, tendo como objetivos específicos os seguintes: indicar a relevância política da categoria de Quilombo, visibilizando engajamento específico, distinguindo-se de outras lutas rurais brasileiras pela particularidade das tradições de matrizes africanas; ampliar o debate sobre racismo, procurando na configuração da questão subsídios para possibilitar o entendimento das disparidades étnico-raciais, e por fim, utilizar a pesquisa quilombola como recurso de memória celebrativa e de vitórias, no processo de libertação da população negra, explicitando os desafios enquanto marco de transformação social para o país. Assim sendo, o presente trabalho justifica-se pela necessidade de ampliar a discussão sobre a Questão Social, demonstrando a relevância da categoria de Quilombo, neste âmbito, como um espaço geopolítico, ou seja, um espaço pleno de representações culturais e de significado político; lugar que extrapola os limites territoriais e se apresenta como projeto, pro-jeção, movimento do presente em direção a um futuro de estabilidade, segurança e direitos garantidos por lei. Este estudo do Quilombo do Cinzento se justifica ainda, enquanto subsídio para as lutas pela eqüidade racial e para a aplicabilidade da Lei 11.645/08, que obriga o Ensino da História africana, negra e indígena na educação básica no Brasil. A opção por este objeto de estudo também se justifica por ocupar pauta nacional e essencial 14 na agenda por direitos que não mais podem ser negados. Deste modo, ao propor tal movimento, realiza seu recorte no segmento quilombola, demonstrando que este necessita ser tratado e respondido adequadamente através de políticas nacionais, mas sob a perspectiva do modelo de organização étnicoracial. Para tanto, vale ressaltar que a escolha do assunto proposto suscita as seguintes questões: a) Como se localiza a questão dos Quilombos no horizonte das políticas públicas para e com a comunidade negra? b) Quais são as políticas para diminuir os impactos do racismo e realizar crescimento significativo? c) Em que plano o esclarecimento das desigualdades econômicas e étnico-sociais favorece as exigências da população negra? d) Nos 120 anos pós-abolição: como são analisadas as conquistas e quais as perspectivas para esta parcela da população? Diante dessas questões, esta pesquisa utilizou procedimentos metodológicos de abordagem qualitativa. Para tanto, utilizou como suporte a documentação direta, adquirida através de pesquisas de autores conceituados, de sites da Internet e entrevistas no âmbito de instituições comunitárias. Nessa perspectiva, foram escolhidos os principais referenciais teóricos: Enrique Dussel - Para uma Filosofia Latino- Americana, Stuart Hall, em A identidade Cultural na Pós-modernidade, indicam os limites de uma identidade refletida a partir do igual, anunciando um reconhecimento ético. Kabegele Munanga, com Identidade versus Identidade étnica contribui para a crítica à tentativa de criação de uma identidade única e suas conseqüências para o Brasil. Fundamentam a visita à idéia de Quilombo: Décio Freitas, no livro Palmares: a guerra dos escravos; Flávio Gomes, na obra A Hidra e os Pântanos; e Clóvis Moura: 15 A Quilombagem como Expressão de Protesto Radical, reafirmando os Quilombos no horizonte da luta histórica de resistência. Nilma Lino Gomes, no livro Sem Perder a Raiz: cabelo enquanto identidade étnica alimenta o símbolo de fio de conexão utilizado na pesquisa. Telles fundamenta o debate racial, demonstrando a evolução e os limites da reflexão no Brasil; e Carlos Moore propõe outras condições para refletir o racismo. A presente dissertação encontra-se assim estruturada: o primeiro capítulo refere-se ao uso da metodologia e procedimentos, lembrando o sentido da sua aplicação e da entrada no campo. Destaca a importância dos atores e atrizes envolvidos. Assim, utilizando a oralidade no debate quilombola, atenta para o fato de que além da proponente da pesquisa, o antigo remanescente de Quilombo Cinzento se constituiu como importante sujeito no processo de estudo, emprestando praticidade às teorias. Além de abrir o debate sobre Quilombos, enquanto parte fundamental da história do povo brasileiro, o segundo capítulo, reafirma a África como alicerce para a concepção dos mundos. Este capítulo tem como característica principal esse encontro dialético entre o fenômeno (quilombola) e os fios que embaraçam (o racismo), e desembaraçam a alteridade negra, a saber, a identidade e a ética. Analisa a história de dominação para conduzir as manifestações do ser humano em busca da liberdade que ocorre em movimento histórico contínuo de descondicionamento. O conteúdo do terceiro capítulo está disposto como elemento final de considerações, retomando o humano como centralidade oposta às dominações. A categoria de Tempo está aplicada para avaliar os condicionamentos e os projetos de transcendência, a partir de ações que possibilitem a diminuição das desigualdades étnico-raciais. Ao reafirmar a experiência do Quilombo do Cinzento, avança na perspectiva histórico-racial para pontuar ações afirmativas analisadas como possibilidades de superação de conflitos que envolvem o Estado como a corporação responsável por aprová-las. Tais considerações versam entre reparação, perspectivas de futuros e projeto político. Este último, imaginado como mecanismo que desafia o cotidiano humano a transcender as injustiças sociais para vislumbrar a cidadania. Enfim, a oralidade do Quilombo do Cinzento avança em compasso 16 quilombola, apresentando seu discurso durante todo o percurso. 17 CAPÍTULO I 2 METODOLOGIA A metodologia1 aprende com a Metafísica a capacidade de demonstrar as questões relacionadas às Ciências e às áreas de influência entre diversas Ciências. É filha da Gnosiologia, porque consegue substituir a consideração do conhecimento pela consideração dos problemas do conhecimento usados nos campos da pesquisa científica. 2.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Esta parte apresenta a reflexão sobre a utilização do método e procedimentos que direcionam a pesquisa. Aparece como o ordenador para aproximar dados e resultados válidos. Todavia, todos os princípios ou teorias são considerados do ponto de vista da sua ordem de procedimento, recebendo, portanto, a categoria de Método. No campo prático de estudo, a investigação será no Quilombo do Cinzento, Planalto - Bahia. Para alcançar a comunidade, a proponente organizou as visitas e os procedimentos a serem realizados no Quilombo como medida de aproveitamento. Destacou metodologias qualitativas a cerca da técnica interativa de entrevista como instrumentos na pesquisa social, ou seja, uma experiência metodológica com percepções e desafios. Neste trabalho, o tipo de pesquisa adotada foi a pesquisa de campo, tendo como suporte o método investigativo do estudo de caso. Portanto, as aberturas 1 A Metodologia pode ser entendida como Lógica Transcendental Aplicada ou Prática; assim foi explicada por Kant. Atualmente, a palavra indica o conjunto de procedimentos técnicos de averiguação ou de controle possuído por uma determinada disciplina ou grupo de disciplinas, sendo elaborada no interior de um ou mais campos científicos, cujo objeto pretende garantir a eficácia dos mecanismos de procedimento de que dispõe. As técnicas compreendem todo o procedimento da língua, da operação e do conceito enquanto instrumento controlador de resultados. Como parte da Lógica que observa os métodos, na idade pós-cartesiana ela foi analisada como a própria lógica, pois: “A Lógica é a arte de bem conduzir a própria razão no conhecimento das coisas, tanto para instruir a si próprio quanto para instruir aos outros”. (ABBAGNANO, 1982). 18 metodológicas propostas para esta pesquisa é o da abordagem qualitativa, pois esta permite uma relação direta com o espaço, a situação que está sendo pesquisada e a História Oral. A opção pela mesma se justifica por considerar a realidade e o discurso da comunidade negra rural sem tradição com a escrita como relevante, oferecendo possibilidade para a pesquisadora trabalhar em contexto singular. Entretanto, os saberes, oral e histórico dos remanescentes e entidades étnico-raciais serão subsidiados pelo saber teórico dos autores/ autoras e por aproximação das políticas sociais recém criadas para/de/com a negritude. 2.2. EXPLICITANDO O TEMA Esse tema, Revisita à idéia de Quilombo: uma reflexão étnico-racial a partir do Quilombo do Cinzento, consiste em aproximar discursos analisando as relações raciais dentro e fora do território rural quilombola. A proposta de revisitar significa olhar de outro ângulo a continuidade histórica, enfatizando alguns percursos sobre o conteúdo quilombola, ao mesmo tempo em que potencializa o discurso remanescente através da história dos Quilombos do período da escravidão. O exercício está proposto para ampliar o conceito seguindo em direção a uma discussão sobre o problema étnico-racial entendido como expansão quilombola. Este estudo define revisitar também como visibilização da luta quilombola, distinguindo-a de outras lutas rurais brasileiras pela particularidade das tradições de matrizes africanas, configurando a questão enquanto conteúdo explicativo das desigualdades sociais e raciais da atualidade. Pois, segundo o Relatório sobre Racismo, Pobreza e Violência, do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, estas são questões interligadas que devem ser confrontadas de forma conecta com as ações de cidadania e de participação como políticas públicas, afirmando a impossibilidade de pensar o desenvolvimento de qualquer sociedade sem avançar em questões fundamentais que impedem o próprio desenvolvimento2·. A visualização quilombola colabora para organizar, em mutirão, as definições sobre estes povos, celebrando seu rápido crescimento. Na Bahia, os 100 (cem) anos de 2 RPNUD, 2005 19 luta de seu Chico Tomé, comunidade Rio das Rãs, aceleraram o processo para o reconhecimento de comunidades na Bahia. Neste processo, os debates organizados por entidades negras (inicialmente, MNU e APN), e uma intervenção parlamentar motivaram os trabalhos de escuta, formação comunitária e estudo do local. O resultado destas atividades colaborou significativamente para a definição do ser quilombola. 2.3 ENTRELAÇANDO IDÉIAS Revisitando a idéia de Quilombo, a pesquisa indica a relevância política da categoria num entrelaçar de idéias que remetem aos fios do cabelo afro. Este momento da tradição ancestral será utilizado para fazer memória e manter a perspectiva e não para discutir cabelo em si. Cabelo está analogicamente relacionado a um significado social que permanece intrínseco ao discurso que fundamenta a pesquisa, atravessando também um sentido difundido pela reflexão teológica de negritude3, indicando que as mulheres negras, enquanto penteavam as filhas, reafirmavam a força da identidade e do engajamento, mas, realiza um salto mais alto que o estético na preservação da cultura que não foi escrita. O presente estudo chama cabelo de metáfora. A metáfora utilizada na revisita à idéia de Quilombo não funciona como ilustração, está posta enquanto fio-suporte na ligação entre identidade e memória, buscando realçar a questão das desigualdades étnico-raciais na pauta das políticas sociais brasileiras. A metáfora do cabelo, apesar do seu significado político e identitário, ocupará neste trabalho, um espaço diferente. Assim não se apresenta como tema central, entretanto, como terreiro para este. A metáfora será empregada para alcançar um nível mais intenso, mais acima da superfície no conhecimento apresentado. A metodologia utilizar-se-á do fio do cabelo afro para aprofundar o discurso racial. Diferente de Quilombo, que permeia o trabalho como elemento fundamental da pesquisa, a metáfora não apenas aparece como desejo de exemplificar as desigualdades raciais e econômicas no campo fenotípico, mas como símbolo que se torna “fonte luminosa”, clareando os outros 3 Teologia amplamente difundida por mulheres negras engajadas na militância católica e evangélica de cunho mais progressista influenciadas pelas Comunidades Eclesiais de Bases - CEBs e Teologia da Libertação na década de 90. 20 caminhos postos. Metáfora como recurso justifica-se nesta pesquisa como possibilidade de utilizar um tema importante para explicitar o conteúdo principal. Para ampliar o debate sobre a diversidade da identidade étnica, expressada principalmente na estética afro e nos desafios para superar desigualdades, a pesquisadora entrevistou, na área urbana, lideranças de movimentos pela eqüidade racial de Salvador e não-lideranças. Utilizou diálogo oral, entrevista via telefone e email. Participaram das entrevistas professoras, militantes, coordenadores/as de entidades afros, rastafáris, adolescentes negros e os remanescentes do Quilombo do Cinzento. 2.4 DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO O desenvolvimento do estudo sugeriu identidades como movimentação dançante, uma dança de conhecimentos particulares e associados a diversas percepções teóricas. Dança porque se motivou pelos sons diversos. Na cadência desta, o conceito de identidade, para além de idêntico ou hegemônico, afastou-se e revelou outros discursos escondidos pela dominação. A dança possibilita passos diferentes que contam histórias de culturas. Através dela, os povos demonstram suas origens e aproximam a arte do espectador num dar-se sem deixar-se absorver completamente. Essa história do Quilombo do Cinzento é o fio que une a história oral com a escrita. Chama atenção para uma identidade preservada entre muitos desafios. Demonstra que apesar dos sofrimentos históricos e recentes4, a atitude dos quilombolas em expandir esta história para além dos limites do Quilombo é disposição para exigir mudanças sociais e nos aproximar solidariamente das suas histórias. Enquanto filósofa política, não houve condição de refletir desigualdades sem considerar as estruturas que ferem a ética no sistema étnico-racial. Esta ética fundamental justificou-se porque a liberdade deve ser aprendida, garantida e normatizada. Nesta, o marco central é o ser humano enquanto liberdade, 4 Enfrentamento aos fazendeiros pela permanência na terra falta de condições para sobrevivência digna. 21 exterioridade, apropriado de construções étnico-políticas. Esta metodologia considera tanto as realidades cotidianas, históricas, como a natureza e a cultura, propondo distinguir o ser condicionado - sem liberdade e cidadania -, da sua real condição de humano livre. Busca, para isso, o caminho de acesso através da ética. Assim, mostra que é preciso um projeto que transcenda a realidade e descubra o humano como livre. A categoria de identidade necessitou ser discutida igualmente com a filosofia latinoamericana surgindo enquanto um Não-Ser, aquele que não pode ser igual a, pois é outra que diverge do igual, é exterioridade, negação do posto; mesmo conservando alguma aparência, reserva distanciamento do igual. 2.5 DESAFIOS A insuficiência de maiores subsídios teóricos sobre a temática de remanescentes faz crer que, caso o assunto não receba maior dedicação investigativa, corre-se o risco de perder parte significativa da história da população negra. A reflexão sobre o que se quer produzir e suas reais possibilidades desafiaram a pesquisa. Contudo, demonstrou necessidades que oportunizaram maior aproximação do real significado do que a pesquisa pretendia e do que existia para realizá-la. Investir sobre o objeto foi o exercício constante. Quase um parto, sangrou, enfraqueceu, mas retomou as energias. Alguns elementos escorreram até nascerem as possibilidades de lançar-se sobre o objeto e o transformar. Na prática, a transformação do objeto apareceu como perigo no Quilombo do Cinzento. Aprendendo sobre as feridas históricas reveladas de forma tênue pelas mulheres e homens do Quilombo, a pesquisa necessitou de um despojamento gradual da pesquisadora para pisar em território sagrado, com cuidado e respeito, pois lá a vida acontece, mas o tempo quilombola/rural possui outras dinâmicas. Noutro sentido, as entrevistas, bem como a transposição, arriscaram localizar o contorno mais adequado entre a oralidade e o plano acadêmico indicado. Julgar o grau de correspondência dos relatos com a realidade foi complexo e cauteloso, 22 enviando a pesquisadora para recorrer às teorias que, nem sempre, responderam às inquietações referentes ao Quilombo particular, necessitando de reencontro com a oralidade protegida na memória da comunidade. Desta busca nasceu um tópico intitulado Similaridades e distâncias quilombolas. Inicialmente, o projeto indicava que além do Cinzento, o caminho seria examinar a trajetória étnico-racial também a partir de Quilombos urbanos, entendendo a importância de realizar uma crítica à condição histórica de desigualdade social experimentada por este segmento em outros espaços. Entretanto, optou-se apenas por anunciar os Quilombos urbanos, pois além das políticas para estes estarem diluídas na política geral para Quilombos, em Salvador ainda não há nenhuma comunidade reconhecida reconhecimento. A oficialmente, pesquisa localizou ou participante Quilombos do urbanos processo em de processos oficializados em Minas, São Paulo e Sergipe. Um contorno foi iniciado, no entanto, uma análise cujo modelo comunitário correspondesse às questões levantadas necessitaria de um tempo maior que o previsto para a finalização do estudo inicial. 2.6 ENTREVISTADORA VERSUS ENTREVISTADOS (AS): UM CAMINHO DE DISPOSIÇÃO A primeira aproximação com os remanescentes de Quilombo do Cinzento ocorreu em uma atividade em Salvador, onde fui apresentada ao senhor Salviano dos Santos Nunes. Nessa conversa, no ano de 2007, líderes já se disponibilizaram a falar com propriedade e orgulho sobre o Quilombo no Sudoeste baiano, abrindo o convite para a visita in loco e continuidade da pesquisa. Percebendo-se que as entrevistas pretendem ao mesmo tempo discutir representações, proporcionando aparelhamento para re-elaboração de dados e julgamentos, o roteiro avaliativo das indagações desta pesquisa instiga a formulação e o fruto da experiência quilombola. Além dos itens citados, a análise pontua o conteúdo, bem como as possíveis dificuldades para entrada no campo, a situação de entrevista, o aproveitamento da tarefa e do tempo escasso. Pensando como melhor absorver as informações recebidas, as entrevistas seguiram a metodologia proposta no texto de Haguette: fonte qualitativa utilizada para análise de dados, ao 23 mesmo tempo em que conduz para uma descrição cautelosa da atividade e dos dados colhidos, fornecendo subsídios para a entrevista de forma que aconteça uma troca entre o entrevistado e a entrevistadora (Haguette, 2005). A partir do exposto, a entrevista elaborada considerou a área de interesse da pesquisadora: o debate étnico-racial a partir do Quilombo do Cinzento, para elaborar os procedimentos. A pesquisadora observou, em vista dos objetivos propostos, o perfil da comunidade a ser entrevistada para, em seguida, investigar memória, identidade, ameaças, leis de proteção ao grupo e os sonhos para dar formato ao trabalho. A entrada no campo foi, igualmente, um espaço sagrado e político detentor de singularidades indescritíveis, visto que, apenas a exposição, não deu conta da experiência. Certamente, muitos elementos escaparam aos roteiros, contudo, permaneceram muitos outros que serão demonstrados durante o trabalho5. Com o local de difícil acesso, a pesquisadora enfrentou os desafios para realizar as subidas na serra. Por causa de constantes e históricos ataques de posseiros, grileiros e fazendeiros, há uma vigilância e uma coordenação em diversos Quilombos que definem quem pode entrar no território. Esta ação preventiva ajuda a resguardar os Quilombos dos ataques recentes. No acesso ao Quilombo do Cinzento, uma liderança do movimento negro local (assessor técnico, voluntário da comunidade e atual funcionário da SEPROMI, Secretaria de Promoção da Igualdade) facilitou os contatos, as entradas e a realização dos procedimentos. A primeira visita ao território da comunidade negra rural objetivou solicitar permissão para estar no espaço, se aproximar da história da comunidade, visitar famílias, escutar as lideranças locais e conhecer algumas áreas. Acreditando ser conveniente explicitar o sentido da pesquisa e seus fins, em assembléia, foi solicitada autorização ao coletivo para desenvolver a atividade de campo, ouvindo, participando em eventos, assembléias comunitárias, fotografando, visitando famílias, 5 Não houve dificuldades políticas para entrar no Quilombo. 24 suas tarefas, sua culinária, seu cotidiano... Suas histórias de vida e seus retalhos para compor uma reflexão. Com a permissão consensual para entrar no Quilombo do Cinzento, as demais atividades de pesquisa transcorreram de forma tranqüila e favorável. As famílias demonstraram hospitalidade, respeito sincero, atenção e timidez, mas uma grande generosidade, conversando sobre as histórias e sobre as suas lutas. Durante uma das visitas, aconteceu uma aproximação com membros do Conselho Quilombola da região. Nesta aproximação, a pesquisa foi entendida enquanto mais um acervo para a preservação escrita da história do Quilombo do Cinzento, havendo um comprometimento social da pesquisadora em apresentar o trabalho para a comunidade, bem como expor as fotos e filme da primeira entrevista na família de Ana Delcir e Salviano. Esta ação faz parte da proposta do crescimento comunitário do Cinzento. Em mim falam vozes ancestrais que conversam mais, se calo. Ou a alma silencia - ainda que em meio à algaravia carrego por dentro abismos. Ecos de Quilombos e porões; em minhas teses, tramas dos canaviais, onde ecoam os mais leves sussurros, anyons mergulhados por pássaros de guinchos e vôos atemporais... Assim é que, do meu canto, surgem versos de improviso; no meu grito6. No Quilombo do Cinzento foi assim: necessitou mais silêncio que fala para o ouvido da pesquisadora se adaptar à nova realidade. A cada aproximação, mais escuta pedagógica, controle sobre a própria fala e apuração e esforço de outros sentidos. Naquele território, percebeu-se de perto como a história do conhecimento separou o ser humano de si mesmo: um momento ele deve ser racional outro emocional. Os mitos gregos nos colocam diante deste evento: de um lado Apolo, representando a sabedoria, a sensatez, o equilíbrio, a razão; do outro Dionísio, trazendo a liberação, a festa, o vinho, a alegria. A oralidade do Quilombo do Cinzento trouxe uma filosofia nietzschiana conectora de dois pólos: Apolo e Dionísio, razão integral, sabedoria, festa, alegria, insistência pelas verdades, enquanto habitante de diversas cabeças. 6 Ancestral - poesia de Landê Onawale in Cadernos Negros volume 29 - Poemas Afro-Brasileiros, edição Quilombhoje, 2006, p. 157. 25 Também apresentou diferença e igualdade, religião e política. Os eventos foram de razão, conhecimento e alegria, a cultura imbuída de saber tradicional, saber prático, fazer, organizar, articular. Momento desafiante para a pesquisadora interpretar os elementos que eram disponibilizados e que estavam presentes em todos os momentos. 2.7 APLICAÇÃO DA HISTÓRIA ORAL A aplicação da História Oral capturou o mais importante para entender a coletividade, as histórias de vida. Para a pesquisa, a história de vida quilombola serve como documento, acrescentador de dados e riqueza da memória dos mais velhos, ouvindo histórias sobre os antepassados e a luta do povo do lugar. A História Oral aproximou a vida quilombola da vida da cidade, contribuindo fundamentalmente com o conceito de memória, atitude individual e coletiva para possibilitar o conhecimento de outras verdades. Os remanescentes conseguem experimentar no cotidiano estas atitudes, sem separá-las e nem confundi-las. Conhecendo outras verdades no Quilombo do Cinzento, os entrevistados e entrevistadas da comunidade foram imprescindíveis para a efetivação do trabalho. As perguntas iniciais foram simples, de fácil entendimento, cujas “respostas” superaram as expectativas e alcançaram dimensões surpreendentes. Foram escolhidas pessoas relevantes, lideranças e não-lideranças. As mesmas aceitaram a indicação para tratar sobre trabalho, racismo, direitos, ameaças, riscos, tipos de proteção ao grupo, sonhos. Conversas ocorridas de forma livre também enriqueceram o trabalho. Para tanto, as entrevistas seguintes foram alcançando profundidade e reconstruídas a partir das dúvidas de catalogação dos dados anteriores, fazendo a pesquisa retornar a pontos que seriam significativos para questões novas. Ou seja, novas perguntas foram surgindo a partir da necessidade de aprofundamento. Neste procedimento oral, as entrevistas foram realizadas respeitando e aprendendo com o tempo da comunidade em questão. Nos primeiros movimentos com membros da comunidade do Cinzento, o empenho na luta pelo reconhecimento e as diversas investidas para obter a certidão, receber o favorecimento dentro das políticas 26 quilombolas, a organização comunitária e o engajamento das mulheres negras foram importantíssimos para o estudo de caso com depoimentos, cânticos e engajamento social. Respeitando a tradição oral dos negros/ negras quilombolas, a opção foi por não deixar uma pesquisa de questionário escrito entregues em ambientes para coletar as respostas posteriormente. A partir do tema, em discussão com as/os participantes da atividade, as entrevistas foram lidas pela pesquisadora como guia pessoal para conversas dinâmicas e enriquecedoras. Em outras, utilizamos a imagem e o som para registrar algumas conversações e garantir maior aproveitamento das informações. A câmera filmadora, utilizada em um dos encontros, captou o movimento, as expressões, gestos, cores que escapariam à memória da pesquisadora. O som guardou o sotaque, a música das falas marcando o jeito particular de estar no mundo. A imagem da fotografia congelou estas mesmas expressões, revelando determinação, alegria, denúncias e a beleza quilombola. As imagens receberam um pano de fundo, a natureza, ainda muito verde e preservada. Os ecos de Quilombos ajudaram a retomar o caminho a ser perseguido pela metodologia proposta, enquanto as vozes compuseram os debates apresentados. 2. 8 ORALIDADE COMO MÉTODO Nesta parte, a pesquisa utiliza a história de vida da proponente para descrever de que maneira alcançou este modelo de trabalho. A escolha por este tema partiu de questões que acompanham a pesquisadora há alguns anos: entender por que as diferenças causam tantas desigualdades. Esta, sempre questionou o processo político negativamente desigual experimentado pela população negra e pelas mulheres em geral. Antes partia do princípio teológico da gênese que afirma que Deus cuidadosamente criou o mundo e permitiu o seu desenvolvimento. A disposição do mundo descrito na origem tem luz, escuridão, água, sol, beleza, animais e gente. Enfim, contrastes harmônicos que possibilitava ser mundo e não mais caos, vazio, desordem cósmica. 27 Encantava-lhe a metodologia que diversas culturas sempre utilizaram para explicar a criação do mundo de forma mítica. O mito teológico cristão da criação (Adão e Eva), narrado e repetido por inúmeras gerações para não se perder- até que fosse escrito -, é um dos mais interessantes para refletir sobre uma idéia de não-dominação: um mundo vazio ganha forma e movimento, formando natureza e pessoas. O mundo indicava que à espécie humana estava designado o poder sobre as coisas da natureza. Contudo, sobre os outros humanos, não. Gêneros que nascem de si mesmos foram criados para formar outros, embora com aspectos diferentes. O nascer, a partir do outro, simbolizava o marco de igualdade, apesar das diferenças físicas, visto que a cabeça cria os reinos e os poderes, não nasciam da cabeça (do alto), para não remeter à dominação ou poder. Nem nasciam dos pés, para não significar submissão. A carne da carne nascia, sabiamente, da metade do Outro-eu, através de uma aproximação, para lembrar que não haveria poder de igual humano sobre o outro. Porém, o símbolo harmônico do ideal de um mundo se corrompe com a má utilização do conhecimento, segundo a Bíblia (GEN, c.1-4). Mito que saltou da Teologia e influenciou o mundo não-mítico, criando outros mitos desviados da noção de igualdade, estando a serviço da dominação e resultando nos conhecidos totalitarismos. Partindo do aprendizado dos totalitarismos ocorridos na história e da constante ameaça sobre os minorizados negros, mulheres, latinos, índios/povos originários e outros, firmou-se um engajamento associado a um discurso social e político sistematizando estudos, primeiramente no campo da filosofia política, analisando a situação das mulheres e negros em contexto de opressão latino-americana. Na graduação foi realizado um debate filosófico a partir do Não-Ser, da América Latina como Outro lugar, cujo rosto em situação de condicionamento era o da mulher. Esse debate de uma Filosofia política admitiu uma aproximação com o campo da Sociologia, permitindo que as descobertas colaborassem no engajamento do processo racial na Bahia, suscitando maior compreensão para a questão acima, numa visão sociológica e localizada. Todavia, a gravidade da problemática racial 28 aprofundava-se, e as distâncias econômicas se evidenciavam, suscitando mais estudos sobre as soluções políticas efetivas enquanto necessárias para a resolução da questão étnico-racial, sempre em pauta. Neste debate, a pesquisadora solicita permissão para utilizar, em pequenas frases, elementos da linguagem heideggeriana - prefixos separados dos sufixos-, para dar ênfase ou chamar atenção sobre um sentido novo ou questionamentos implícitos, convidando o leitor ou leitora a compreender, sem aprisionar o sentido. Por fim, este tema alicerça uma práxis social vivida pela proponente, nascida nas novas senzalas, chamada subúrbio. Nos novos Palmares, intitulados militância, filha de D. Maria Rosa (em memória) e Seu Manoel Agapito. Na insistência pela vida com dignidade e liberdade, atravessa os fios da história, aprendendo com as avós Anastácia, Aquatune, Acotirene, Dandara, Zeferina. A pesquisadora que propôs o estudo cresceu semilivre na esperança palmarina, celebrando todos os dias a alegria de continuar viva, pois, considera esta história de vida, às vezes não-vida, às vezes festiva, mais defendida que vivida, um tanto Severina, diria o poeta7, da infância até a vida profissional, como suporte elementar, aspiração, inspiração e compromisso para a realização da revisita à idéia de Quilombo numa reflexão étnico-racial, subsidiada pelo Quilombo do Cinzento. Concretamente, a definição do tema partiu da necessidade de alcançar as causas da exclusão pelas diferenças, analisando os prejuízos para com os diferenciados. O estudo sobre Quilombos parte do símbolo da liberdade-Identidade, beleza da luta e memória negras, e não do sofrimento -, como instrumento para desenvolver o tema central. Além das pretensões expostas, o estudo espera atingir um sentido quilombola, revelando-o na atualidade como espaço de riqueza da população, um baú histórico que guardou parte relevante da história da população negra, enquanto conectividade com a ancestralidade, costumes africanos e reafirmação do compromisso contra o racismo. 7 João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, 1966 29 CAPÍTULO II 3 QUILOMBOS: RETALHOS DE NOSSA HISTÓRIA Este capítulo localiza a pesquisa através da memória histórica que, no presente quilombola, registra o passado de lembranças. O ideal desta parte vale-se do discurso conceitual sobre Quilombos para emprestar visibilidade ao discurso dos remanescentes do Cinzento, cumprindo o objetivo prático-político e localizado da pesquisa através da memória histórica. As tentativas de enquadrar a categoria quilombola em visão simplista ou unilateral acarretaram em prejuízos para a história dos negros e das negras do Brasil, ficando veladas minúcias valiosas desta memória. Encontraremos nesta parte instrumentos para reflexões que aproximam e distanciam os Quilombos antigos dos atuais. Apresenta-se, contudo, um suporte ético-filosófico para aprofundar o tema das identidades, das diferenças, tendo como ponto inicial o ser humano como distinto. Nesta parte se “visita” a África, enquanto o Quilombo-mãe do mundo, tentando entender como esta raiz quilombola foi desenvolvida no Brasil, principalmente na experiência de Palmares e o no percurso baiano. Demonstra uma articulação quilombola que transcendeu a fuga para grandes e estratégicos esconderijos, constituindo-se como primeira organização de consciência negra de enfrentamento da política racial aplicada no país. Diante desta contextualização, o que podemos chamar de identidade, sem afirmar que é idêntico fruto do igual e do mesmo, sem cair no Nada niilista: vazio e negativo, ausente de sentido ou na desconexão? O que é ser, e como, em uma sociedade que muda freqüentemente? E também, se mudamos conforme a sociedade, que fios permanecem? Esta é também uma pergunta filosófica, mas que pode ser pensada de muitos lugares; propomos um espaço sócio-filosófico. 30 3.1 IDENTIDADES, LIBERDADE E DIFERENÇAS EM DEBATE SÓCIO- FILOSÓFICO Universalidade vai além de um ideal unânime ou comum, porque a unidade transcende nas formas diversas apresentadas pelo mundo. Tratando-se do Ser, universal, conserva uma unidade que não pode ser atingida. Este conceito indica que o Ser não pode ser determinado. Contudo, este fato não isenta o seu sentido, mas acrescenta a exigência de explicar o humano e seu comportamento demonstrando mais incompreensão. Desta forma, não se deseja explicar e nem conhecer sobre os humanos, mas demonstrar ações que desumanizam pessoas diferentes. [...] Pois se diz: “Ser” é o conceito mais universal e o mais vazio. Como tal, resiste a toda tentativa de definição. Esse conceito mais universal e, por isso, indefinível prescinde de definição. Todo mundo o emprega constantemente e também compreende o que ele, cada vez, pretende designar (HEIDEGGER, 2002). Essa crítica do autor constitui-se no fato de Ser estar interpretado como idêntico a si mesmo, favorecendo a dominação do que não se identifica com este mesmo. Nesta interpretação, tudo o que compõe o mundo está entendido como uno, tornando-se o fundamento e a identidade uma mesma coisa. Sendo o Ser idêntico a si mesmo, cai-se no erro de repetir que ele é como é. As coisas, as possibilidades, ao contrário, são múltiplas, numerosas. A origem da diferença é a determinação do Ser, do mundo. Nesta, a diferença indica dependência, com relação aos outros um não é o outro. São diferentes as totalidades das partes fundamentando na identidade o ser do todo. Neste contexto, o ser compreende e abarca o mundo como totalidade presente em tudo. Denominase compreensão o fato do humano se deparar com a realidade, mas compreender, muitas vezes tem significado prender algo até abarcar e construir o todo do mundo (Heidegger, 2002, p. 29-38). Ao criticar a interpretação Ocidental do Ser em Heidegger, Dussel (1977) deixa perceptível, em seu discurso, uma linha heideggeriana ao discutir identidades. Todavia, o salto consiste na habilidade de revelar um Ser fora do sistema de 31 dominação, denominando-o de Não-Ser, de Outro. O Outro é aquele que para o poder hegemônico muitas vezes não constitui o mundo, apenas aparece enquanto força de trabalho, no entanto, não - sendo mais o mesmo -, o Não-Ser pode tornar-se Outro. Quem é o Outro? Para o sistema, o Outro aparece como algo negativamente diferente. Como tal, põe em perigo a unidade do mesmo. Em muitos processos de construção de saberes o sábio foi encarregado de mostrar, em sua Ontologia, o perigo que o Outro significa para o todo. A totalidade o assinalou, claramente como o inimigo do sistema: o diferente. A compreensão que prende com, na tentativa de abarcar a identidade, condiciona-se a um poder hegemônico que define geográfica e historicamente quem é o inimigo. E o posto como inimigo do sistema não é considerado como ser de direitos. Contudo, fora da guerra, a ideologia é tecnologicamente mantida para dominar com outras armas. Enfim, o discurso do Não-Ser é um discurso ético situado em uma realidade que se descobre e torna-se potência, realizando a crítica. Percebe-se que a crítica de Dussel a Heidegger, também evidencia que a identidade desenvolvida no chamado ‘centro’ acaba sendo pensada como única realidade, e tudo que está fora de suas fronteiras é conhecido como Nada. O fragmento do tópico acima revela que o Ser idêntico é o princípio que totaliza as identidades do mundo hegemônico. O Não-Ser é tudo o que não se identifica com o mesmo, é a própria distinção negada por se distinguir da totalidade, fundando outro modelo de sistema. A Identidade é a lucidez que direciona o mundo, mas existem realidades além dele, irredutíveis a ele, que transcendem, porque a realidade é a ordem que constrói as coisas que existem. A lógica que coisifica o ser humano estabelece seu discurso a partir de algo sem fim que existe no Outro, chamado liberdade (Dussel, 1977) 8. No conjunto diverso das identidades: 8 Este trecho foi utilizado na monografia sobre a Erótica Latino-Americana, elaborada pela proponente, UCSAL, 2001. 32 - A de classe, que se manifesta no discurso político, na escolha das mercadorias, nos espaços freqüentados, no estilo de vida, assumido ou possibilitado pelas condições econômicas. Por mais simples ou requintado que seja o estilo assumido, a identidade também se revela diante da situação enfrentada; - A identidade sexual, cercada de construção social, dimensiona para outro modelo de sensibilidade e orientação. Esta define se o humano é homem ou mulher e orienta a sua postura homo, hétero ou bi-sexual; - A identidade de gênero pode pensar sobre as relações sociais e questões que envolvem os homens, as mulheres e os mecanismos sociais nos quais estão envoltos; - A identidade de localidade define o ser humano a partir da região, do espaço geográfico ocupado no mundo. Explica-se por mapear o mundo e caracterizar o ser de cada localidade. Nos centros9, na atualidade, reside a maioria de pessoas com melhores condições econômicas, onde o comércio está favorecido e as opções de lazer estão diversificadas e acessíveis. Na periferia o contrário se dá e a mão funcional do Estado possui pouca eficácia obrigando as ONGs a efetivarem ações que diminuam a exclusão; - A identidade religiosa constitui outro âmbito da complexidade humana. Explicada pela Teologia, demonstra um humano ligado às forças transcendentais, que o impele a agir em vista de algo maior que a realidade. Nos Quilombos, a religiosidade não está separada do trabalho, sendo utilizada como ligação entre o corpo e a alma, natureza e cultura; entre a vida dos vivos e a “presença” dos antepassados que nunca morrem, mas reúnem-se em outro nível para protegê-los, transcendem! O corpo, que no modelo do capitalismo aliena-se, na experiência quilombola preserva tradições de matrizes africanas. Esta identidade religiosa trabalha, enquanto experimenta o divino em várias formas. 9 Na visão dusseliana e na leitura de Bauman, sempre que surge um centro, cria-se um gueto ou periferia. 33 Nesta inter-relação, o divino se humaniza para o humano transcender, trabalha enquanto assume a humanidade, intervindo nas relações das pessoas com a produção e com a natureza-mãe, provedora do sustento da humanidade. No Cinzento há liberdade de culto. A questão religiosa denominacional está apresentada em diversos núcleos, não havendo exigência de religião única, porém, a tradição afro-religiosa se mantém em algumas famílias de forma discreta, ganhando notoriedade nas festas tradicionais do local, com grande influência católica. Comunidades religiosas de matrizes africanas originam grandes sistemas culturais e grandes organizações sociais, favorecendo a formação de um grandioso patrimônio negro. Estas tradições religiosas são dispostas de forma oral, como contos e mitos. As histórias sobre os Orixás refletem questões amplas como família, traição, fecundação, continuidade, conflitos entre os poderes femininos e masculinos. Também, alimentação, natureza, expansão do universo, linguagem, obediência e desobediência, obrigações e direitos, saúde, conhecimento, noção de ser humano, de existência, dinamização da vida, da morte e da transcendência, influenciando confirmadamente na formação de sistemas éticos, políticos e, principalmente, de diversos sistemas religiosos politeístas e monoteístas de todo o mundo. Segundo a reflexão identitária de Hall (2005, p.12-13), que também carrega elementos significativos para a reflexão acima, as identidades participam de uma rede de relações que compõem a vida. Nas identidades culturais internalizam-se os seus sentidos, fazendo-os parte do sujeito. Isto constitui os sentimentos particulares no mundo social e cultural. Nesta argumentação, o autor demonstra que a identidade é a categoria capaz de solidificar as culturas e os sujeitos, apesar do desenvolvimento da sociedade. Afirma a impossibilidade e os perigos de pensar a identidade como única, pois quando pensada uniformemente torna-se inconsistente e imaginária, porque os sistemas que representam a cultura e lhe dão sentido se multiplicam, deixando apenas possibilidades de identificação. 34 3.2 IDENTIDADES NEGRAS E RELAÇÕES SOCIAIS Este trabalho propõe outro modelo de identidade cultural que atravessa o universo territorial abrindo novos caminhos, a identidade negra; nesta, o trançado representa identidades, porque no colo enquanto a mãe ou avó juntava os emaranhados de fios da filha ou neta, fazia a memória de resistência, transmitindo a história e diminuindo as dores do pentear. O modelo de identidade negra critica o Outro invisibilizado em conseqüência dos interesses. Contudo, tal condicionamento não torna o Outro um anônimo, visto que a cultura o coloca em evidência ameaçadora, acreditando-se que são invisibilizados e não anônimos neste processo histórico. Essa identidade negra, nesta dinâmica, como fio de resistência, é transmitida através da cabeça na quentura da aproximação, no aconchego da família, nas comemorações populares ou familiares, nas festas de Santos Católicos ou de Orixás no Candomblé, caracterizando uma continuidade: O que caracteriza o processo histórico negro-africano é o fato de notarmos uma linha de continuidade ininterrupta de determinados princípios e valores transcendentes que são capazes de engendrar e estruturar identidades e relações sociais. Esses princípios caracterizam a afirmação existencial do homem (e mulher) 10 negro e constituem a sua identidade própria. De tal modo esses princípios regem a vida que lhes garantem a expansão dos valores civilizatórios, mesmo quando ameaçados pelas conjunturas históricas mais desfavoráveis, como foi o caso da luta contra a escravidão e o colonialismo (LUZ, 1995). Tanto no processo de identidades religiosas negras como nas relações sociais, a resistência quilombola, no campo e na cidade, a cultura ancestral revelada em diversos gestos do mundo, são exemplos destes princípios claramente mantidos nas religiões de matrizes africanas com rica liturgia de símbolos, cantos, cores, paramentos e conteúdos. São exemplos destes princípios porque transcendem as estruturas. Segundo Munanga (1999), ao refletir sobre identidades, o perigo de uma unidade étnico-racial, ao contrário de harmonizar e democratizar, ameaça as identidades 10 O termo mulher não compõe o texto original. 35 enfraquecendo o processo de distinção e alteridade e podendo ocasionar, conforme indicamos acima, outros totalitarismos. Acrescenta que a metodologia de união política brasileira entre as raças, que poderia justificar uma junção, não se confirma, pois o motivo pelo qual a junção ocorreu entre diversas matrizes, não resultou no desenvolvimento de uma sociedade multi-étnica. Esse fato se explica porque houve - e ainda há-, um interesse em criar uma etnia/raça brasileira ou unidade étnica desvinculada de tradições culturais ou religiosas trazidas pelos negros/ negras. A questão do surgimento de uma etnia/raça brasileira atravessou tanto a identidade dos povos originários como a de africanos e europeus, com a indiferenciação das formas de mestiçagem. Este modelo foi construído através de pressões políticas e psicológicas, como experiência para assimilar a variedade existente no Brasil, criando uma antidemocrática cultura nacional, tendo como parâmetro a Europa. O conteúdo do texto ainda demonstra que, apesar da diversidade étnico-racial brasileira e do fato de uniões inter-raciais não serem crime, isso não pode ser utilizado como justificativa de que no Brasil houve uma democracia racial. As ações por eqüidade racial demonstraram a queda do mito. O discurso sobre democracia racial não pôde se estabelecer porque, primeiramente, ocorreu violência sexual no processo de mistura, e, em seguida, uma tentativa de “limpar” o Brasil, criando uma nova raça/etnia - a mestiça -, que se afirmaria como a brasileira. Os grupos de pesquisa e reflexão da situação não estão discutindo separatismo, mas respeito à diversidade e seus elementos. Buscam o direito a uma dessemelhança que não os torne socialmente desiguais. A tentativa de criar outro modelo para o Brasil ocasionou a demarcação de campo e utilizou a mestiçagem como forma de divisão entre a população negra, valendo-se de um nítido controle social hierarquizado por tonalidades de pele e estrutura capilar11. Quando em entrevista com representantes do movimento negro, sobre a relevância 11 Esta questão será retomada no tópico sobre cabelo e sobre racismo. 36 do significado de uma identidade negra, os (as) entrevistados (as) revelaram que: - A identidade negra é um primeiro passo para desconstrução de práticas individuais e coletivas que levam a marca da exclusão; - Manifesta-se de várias maneiras, é diversa e se associa a outras dimensões subjetivas, a exemplo de gênero, territorialidade, regionalidade, sexualidade, e outros; - Sem o fortalecimento da identidade negra, as ações contra o racismo se perdem no vazio; - Assumir a identidade negra está relacionado, fortemente, a questões estéticas; - Significa uma apropriação de características fenotípicas, culturais, espirituais e históricas de origem africana atribuídas aos negros/ negras; - Assumir a diferença que vem carregada do ônus da negação, invisibilidade, rejeição e discriminação; - Uma identificação necessária para fortalecer a conquista por direitos, pois em um país democrático, (que deve funcionar via leis para maioria ou minoria que dela necessite), uma sociedade racialmente dividida onde os negros/ negras não se identifiquem como tal, não se justificaria as exigências pautadas pelos mesmos. Desta forma, o ocultamento do conflito racial dificulta a discussão anti-racista e a não identificação enquanto negro e negra divide pessoas a partir de características físicas, encobrindo a questão principal: a exclusão. Tal exclusão e ocultamento da situação geram a necessidade de criação de movimentos de combate ao fenômeno crescente. Para tanto, desponta em todo o país uma mobilização contrária, nomeada de movimento negro ou movimento anti-racista. Percebe-se que o movimento negro, no Brasil, foi estruturado predominantemente em núcleos urbanos. Porém, toma os quilombos como sua fonte de inspiração 37 original, associando-os à imagem de uma comunidade de negros fugidos, caracterizada por sua capacidade de resistência ao assédio da sociedade colonial e pela reprodução de um estilo de vida africano. Recentemente, o movimento dos quilombos ganhou força normativa constitucional, com demandas dos grupos. Então, com a reformulação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, o governo federal reconheceu as terras onde se situam hoje remanescentes de antigos quilombos como sendo propriedades destes, garantindo seus direitos de posse e cidadania e confirmando o direito dos quilombolas expressarem-se culturalmente; é o que reza os artigos que seguem: Artigo 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1°. O Estado protegerá as manisfestaçõs das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2°. A lei disporá a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. Artigo 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos e edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1°. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileio, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2°. Cabem â administação pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela 38 necessitem. § 3°. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4°. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5°. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. Vale ressaltar que o art. 2o (§ 1o e § 2o) do Decreto Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, reconhece as comunidades negras como remanescente de Quilombos explicitando que: Consideram-se remanescentes das comunidades dos Quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos Quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos Quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural12. Esses remanescentes de antigos Quilombos foram invisibilizados em conseqüência de interesses. Contudo, tal condicionamento não os tornou anônimos. Para contextualizar de que maneira surgiram e qual a sua identidade histórica, tornou-se nesta pesquisa, um discurso que posiciona as diferenças como identidades para, realizar a trajetória histórica que justifica sua existência, enquanto distintos e apresentando algumas aproximações com a comunidade remanescente do Cinzento. 3.3 CONTEXTUALIZAÇÃO DA COMUNIDADE DO CINZENTO Ocupadas desde 1800, as terras da comunidade negra rural denominada Cinzento estão situadas em Planalto, Sudoeste baiano, região muito fria dentro do Nordeste brasileiro. Localiza-se a 0,17 km do centro do município de Planalto, área de caatinga. 12 No Cinzento residem cerca de 70 famílias, aproximando-se de 500 Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 39 pessoas; no entanto, no momento, ainda ocorre um levantamento que confirmará o número da atual população quilombola deste remanescente. Neste estudo, a primeira família entrevistada quando foram iniciadas as pesquisas de campo foi a Salviano Nunes e Ana Delcir Pereira Nunes. Esta conta que membros das suas famílias descobriram o local como importante área para produzir e morar, trabalhando sem senhor e sem escravidão. Segundo o Senhor Salviano, através de outras pesquisas realizadas no Quilombo do Cinzento e da análise de documentos antigos, o território possui mais de 200 anos. Relembrar a história da comunidade do Cinzento afirma uma identidade quilombola composta pela tradição da memória oral e coletiva. Na atualidade, o Quilombo do Cinzento caracteriza-se pelo ambiente de aconchego e tranqüilidade de roça. Esse acesso está rodeado por um barro vermelho como fogo, contrastando com uma vegetação muito bonita. Os moradores contam que o primeiro nome do lugar foi Lagoa do Periperi. O nome Cinzento está relacionado a duas lendas, a do boi e a da cinza. Em tempos de muita fome e dificuldade no Quilombo foi encontrado um boi muito gordo perdido nas matas da região. Este fato foi interpretado como uma benção em resposta às dificuldades. O boi de cor cinzenta foi abatido ao redor da lagoa, havendo grande festa por três dias, passando o local a ser conhecido como Lagoa do Cinzento e não mais como Lagoa do Periperi13. A segunda versão relata que o nome do local se deve à cor dos pés dos habitantes que, no inverno do Sudoeste, os colocava na cinza aquecida do fogareiro para buscar aquecimento, ficando com a pele cinzenta 14. Interessa pesquisar a idéia de Quilombo recorrendo ao racismo, para questionar os condicionamentos, bem como descobrir, entre outras coisas, a sua relevância política. Os remanescentes destes antigos Quilombos são experiências que podem alimentar esta busca. E a comunidade do Cinzento pode confirmar a história. 13 Há no subúrbio ferroviário de Salvador um antigo bairro com este nome, possibilitando conexões futuras. 14 A primeira história - a do boi Cinzento-, possui maior consenso, sendo mais conhecida pelos mais velhos. A da cinza é mais contada pelos moradores da vizinhança de Planalto. É comum o quilombola trabalhador estar com os pés cinzentos. O filme Quilombos da Bahia destaca alguns pés quilombolas cinzentos, devido à falta de urbanização e o trabalho na roça. 40 Todavia, necessita-se compreender, justificar e explicar a existência deste movimento de remanescente de antigos Quilombos e suas origens retornando à História quilombola na África, ao percurso quilombola no Brasil e fora dele, para tentar facilitar o entendimento sobre a exigência de políticas quilombolas na atualidade e para a comunidade negra em geral. Enfim, o que são estas comunidades rurais denominadas de Quilombos? 3.4 (IN) DEFININDO QUILOMBOS Lá vem a força, lá vem a magia/Que me incendeia o corpo de alegria/ Lá vem a santa maldita euforia/Que me alucina, me joga e me rodopia/Lá vem o canto, o berro de fera. Lá vem a voz de qualquer primavera/Lá vem a unha rasgando a garganta/A fome, a fúria, o sangue que já se levanta/ De onde vem essa coisa tão minha/Que me aquece e me faz carinho?/ De onde vem essa coisa tão crua/Que me acorda e me põe no meio da rua? / É um lamento, um canto mais puro/Que me ilumina a casa escura / É minha força, é nossa energia/Que vem de longe prá nos fazer companhia/É Clementina cantando bonito/As aventuras do seu povo aflito/É Seu Francisco, boné e cachimbo/Me ensinando que a luta é mesmo comigo/Todas Marias, Maria Domingas/Atraca Vilma e Tia Hercília/ É Monsueto e é Grande Otelo/Atraca, atraca que o Naná vem chegando. (RAÇA - MILTON NASCIMENTO E FERNANDO BRANT). Essa poesia de Brant e Nascimento apresenta um conteúdo que leva para uma visão de força quilombola. O que esta força ainda revela? A força que a história dos Quilombos ainda expõe se explica, primeiramente, pela memória escrita e falada que remontam a fatos que contribuem para o entendimento real da questão dos remanescentes. Sabe-se que, historicamente, os quilombos representaram uma das formas de resistência e combate à escravidão. Os quilombolas rejeitavam a cruel forma de vida, buscavam a liberdade e uma vida com dignidade, resgatando a cultura e a forma de viver que deixaram na África. Enfim, a reflexão sobre estas comunidades negras rurais estende o olhar sobre as condições de vida de grande parte da população negra espalhada por áreas diferentes. Indica como quilombolas, prioritariamente os povos negros da zona rural, assim caracterizado pela lei citada. No entanto, considera as ações de resistência negra ocorrida na zona urbana de Salvador enquanto um modelo de engajamento 41 quilombola. Assim sendo, são inúmeras as expressões que definem Quilombos. Na reunião desta diversidade, os conceitos se encontram, podendo-se afirmar que são modelos de comunidades africanas trazidas para o Brasil. Estas resistiram ou se rebelaram contra o regime escravocrata formando territórios independentes, onde a liberdade e o trabalho comum os instituiu símbolo de autonomia e libertação. Mocambo, terra de preto, comunidades negras rurais, remanescentes de Quilombos, grupos sociais descendentes de escravos, formam as suas principais características. Para o Conselho Ultramarino Português, de 1740, mesmo quando não são localizados aparelhamentos ou habitação construída, uma reunião de mais de cinco negros/ negras fugitivos já formava um Quilombo. Este conceito demonstra que, independente de um espaço físico, a simples reunião de negros fugidos já suscitava um caráter quilombola. Moura, 2001; p. 36, diz que: Historicamente o quilombo aparece como unidade de protesto e de experiência social, de resistência e re-elaboração dos valores sociais e culturais do escravo em todas as partes em que a sociedade latifundiária escravista se manifestou. Era a sua contrapartida de negação. Isto se verificava à medida que o escravo passava de negro fugido a quilombo (MOURA, 2001). A Fundação Cultural Palmares destaca a formação de Quilombos caracterizando-os de comunidades inteiras de senzalas - com cativos e libertos de um mesmo proprietário -, ou de um conjunto de proprietários, organizados por grupos de trabalho, famílias e alicerce religioso. Estas inúmeras comunidades compartilhavam identidades e noções de territórios na sua base econômica agrária. Estruturas militares raramente conseguiam alcançar pistas das denúncias sobre concentração de negros/ negras, devido ao difícil acesso com matas perigosas, boa visibilidade do Quilombo para a área de maior urbanização, dificultando a chegada das expedições. Alguns novos Quilombos foram encontrados, muito mais por acidente que eficácia das expedições, na procura por pedras preciosas, ampliação das terras, invasão holandesa (que desejava se expandir pelo sertão nordestino). 42 Fora do Brasil, os Quilombos foram nomeados de: Palenques – Colômbia, Haiti e República Dominicana; Cumbes/ Oyocta – Venezuela. Pode se dizer que em todos os espaços: Os Quilombos se caracterizam pela dimensão pan-africanista de sua luta, implantando e expandindo os valores negro-africanos nas Américas e se constituindo num baluarte de resistências contra o escravismo colonialista, dando continuidade ao processo de guerra de libertação africana (LUZ, 1995). Então, esses escravizados, que estavam envolvidos nessa cadeia de resistência, eram rigorosamente vigiados e submetidos a regimes de trabalho muito desumanos, pois aqueles que não correspondessem às expectativas do senhor, por qualquer motivo que fosse, eram privados de água ou alimentos, além dos castigos físicos, que se constituíram em forma humilhante de demonstrar para os outros o poder ilimitado do senhor do engenho, diante das suas “propriedades” de produção. Essa História demonstrará que o processo de civilização negra esteve presente em toda a cultura mundial, povoando os continentes. No próximo item, a pesquisa reflete sobre o surgimento do ser humano há 150.000 anos a.C., na África. 3.5 ÁFRICA: QUILOMBOS QUE MARCHAM PRA FORMAR MUNDOS A origem africana do gênero humano, e também dos humanos anatomicamente modernos, têm nítidas implicações demográficas e históricas. Uma delas seria a Antiguidade absoluta das populações africanas; a outra, a ubiqüidade da presença africana em todos os cantos do planeta. A procedência africana de todos os grupos humanos, diferenciados ou não como “raças”, e a ubiqüidade planetária de populações melanodérmicas também conduzem a outra importante dedução. A saber, naqueles períodos longínquos, caso houvesse contestação pela posse de territórios com as populações já racialmente diferenciadas, essa ubiqüidade de populações autóctones de pele negra se constituiria na mais óbvia referência demarcatória para diferenciar oponentes (MOORE, 2007). Partindo do texto citado, o Homo Erectus e o Homo Sapiens são originados também deste continente. O Homem de Grimaldi, a espécie negra, surgiu na Europa depois, em 40.000, a.C. Viajaram desde o Centro Sul e Norte da África, alcançando o Mar Mediterrâneo, e habitando as cavernas da Europa e reproduzindo as experiências 43 africanas. É conhecido também o fato de que, após este período, por volta do ano 20.000 a.C, as transformações na qualidade do clima modificaram essa espécie, tornando-a Cro-Magnon, uma espécie branca do humano primitivo15. Percebe-se que a cultura negra egípcia desponta como relevante símbolo da civilização européia, destacada pela utilização do calendário astronômico e recebe a influência na Filosofia e organização religiosa. Os estilos estéticos eram desenvolvidos, assim como a superioridade de construções, túmulos dos faraós, arranjos hidráulicos no Rio Nilo, técnicas metalúrgicas e outros. O esquema de comercialização, o avançado modelo de agricultura e seus instrumentos, só futuramente difundidos, confirmam a verdadeira importância da presença negra na formação do mundo. Este fato ocorreu também na Ásia e América pré-colombiana, confirmando uma influente presença negra nas artes, arquitetura, religião e outros processos técnicos, antes da chegada do branco no México e no Caribe. A presença negra nas Américas é notada pela continuidade dos elementos do antigo Egito e a proximidade com as antigas pirâmides das civilizações negro-africanas e entre o culto à divindade do Sol e o Panteon do México, Peru e Egito. Outra evidência foi a descoberta (pelos espanhóis), de esqueletos negros ao lado de instrumentos da cultura africana, contando 1.250 anos, admitindo um comércio africano no período da conquista. Portanto, antes da chamada descoberta, os africanos já conheciam a rota entre América e África com técnicas navais avançadas (LUZ, 1995 p. 30 - 31). Constata-se, sobretudo, que na seqüência, as hegemonias político-religiosas espanholas e portuguesas utilizaram diversos mecanismos para suprimir “a presença de outros povos e nações na América”: Procuram, a todo custo, apagar através da noção de “descobrimento”, a presença de outros povos na América. Para que essa noção tivesse eficácia jurídica real, aplicaram uma das mais terríveis ações genocidas que a história da humanidade já conheceu (LUZ, 1995). 15 Estas elaborações foram organizadas a partir da pesquisa de Marco Aurélio Luz, que investigou a obra de Cheik Anta Diop (1981). 44 No debate sobre racismo percebe-se que, além destas metodologias recentes e outras, no decorrer da história aconteceu uma perda sobre a memória desta presença. De 639 a 663, com o início das invasões, as civilizações negras sofrem irreparável declínio social e imigratório. A África é invadida por Árabes no Egito. Em seguida, o Egito é conquistado pelos romanos16, por Alexandre e por Cambise II. Utilizando o Egito como base para assegurar uma civilização mundial a partir do continente africano, no ano de 1973, o pesquisador Diop concedeu uma importante entrevista a Carlos Moore e o mesmo a transpôs para a sua obra, como texto complementar do livro utilizado neste estudo. Aprofunda uma questão colocada pelo pesquisador em uma obra denominada A Origem Africana da Civilização, nesta, Diop comenta que a tentativa de afirmar a formação do mundo a partir da África não se confirmará se os estudiosos africanos não protagonizarem o processo fundamentando-se na valiosa história do Egito para colocá-la num contexto científico, principalmente no âmbito das Ciências Humanas (Moore, 2007, 307). Assim, o autor acredita que negar a história do Egito manterá estas pesquisas num horizonte inseguro em qualquer campo científico. Argumenta sobre a relevância da sua declaração, sugerindo que não apenas os africanos, mas todo o sistema de conhecimento contemporâneo perceba o tesouro que se quer esconder, que se compare o complexo sistema filosófico e de leis egípcias anteriores, indicando que saberes como o Direito e a Filosofia serão portas para a confirmação deste conhecimento africano, desde que a universidade o considere. Ainda que, o Direito possua um enorme conjunto de jurisprudência, a comunidade científica só chega até o sistema romano de leis. A Filosofia do Egito foi organizada em princípios filosóficos que, originaram o modelo Ocidental, todavia foi preconceituosamente apontado como mera cosmogonia (p.308). Considerando que estes são retalhos importantes para a confirmação da anterioridade da civilização africana, a entrevista defende que isso só será possível se o Egito for resgatado pela África. 16 Este fenômeno explica a opção dos códigos/sistemas legais e filosóficos egípcios pelos sistemas romanos. 45 Dessa maneira, a memória histórica ilumina o entendimento presente, preenchendo o vácuo deixado para a população negra. Através da memória histórica, a atualidade quilombola reativa o espaço para a discussão. 3.6 PROCESSO DE LIBERTAÇÃO DE MODELO AFRICANO A seguir, são apresentados alguns processos de libertação na África e no Brasil, quando os Quilombos dificultaram a escravidão, exaurindo os recursos dos governos, fatigando e devastando os exércitos. Segundo Luz (1995), na África, após os processos de ocupação conhecidos, aconteceu a dominação européia. Os africanos passaram a discordar das atitudes comerciais dos portugueses presentes na África. Estes começavam a demonstrar seus reais interesses em conquistar a África e efetivar o projeto do tráfico de escravos. O processo iniciou-se por forçar os chefes de províncias a pagarem impostos à Coroa, primeiro, em forma de recursos naturais e, em seguida, com humanos. Este artifício crescia, e a cada território invadido os vencidos eram assassinados, tornados submissos ou enviados ao Brasil e demais colônias escravistas, para continuar o trabalho escravo. Essa ação era desenvolvida, primeiramente, colocando-se o chefe sobre um suposto amparo da Coroa, como premiação pelo apoio. Este “prêmio” consistia em um batismo cristão, a continuidade do pagamento dos impostos à Coroa portuguesa e a completa submissão do chefe, que era obrigado a liberar o acesso das expedições de Portugal aquela província. Os chefes também eram condenados a oferecer guerreiros negros para agirem contra a própria África, nesta entrada “livre”, cometiam-se diversos saques de alimentos e outros recursos naturais. Este meio de exploração que arrasaria a África gerou diversas rebeliões e batalhas. Apesar disso, cresceu sobre ela a ganância de africanos que queriam lucrar com a situação. Nesta ação, alguns chefes africanos também se beneficiavam com o negócio, na esperança de alcançar mais poder17. Este arrasamento no continente 17 Principalmente africanos que desejavam o reinado de Ndongo também conhecido como Ngola, em 46 africano, feito pelo roubo de alimentos e pessoas, despovoou as províncias. Neste contexto, alguns autores acreditam que a falta de alimentos provocou no continente um estado de profundo empobrecimento. Favoreceu a comercialização de pessoas, enquanto uma das principais e mais importantes possibilidades de sobrevivência, fazendo do negro/negra escravo a moeda principal. Outras correntes apontam que devido às invasões históricas anteriores à européia, diversos territórios da África já desenvolviam a comercialização de pessoas como fonte econômica. Outras linhas comentam que o que ainda havia na África era resultado das disputas dos chefes guerreiros por territórios, justificando que os chefes-reis expandissem o seu território atacando os reinos e tribos inimigas. Ao final, o vencedor possuía, além do território, toda a população, que era obrigada a servir como escrava e obedecer a novo chefe-rei. Entretanto, há consenso no fato de que as ocupações e batalhas seguidas assolaram o continente. Segundo (LUZ, 1995, p. 370): O Império do Congo foi o primeiro a reagir contra as medidas18. Em 1575, a força portuguesa tentava pela segunda vez colocar chefes submissos no disputado governo de Ndongo. Por suspeitarem de haver naquela região minas de sal, ouro e prata, resolvem fundar uma cidade cristã acompanhando consigo cerca de setecentos soldados, padres jesuítas e quatro seculares. Em 1579, Portugal desrespeitou um tratado feito com o rei de Congo, de não invadir a reserva econômica daquele império19, assim, invade a Ilha de Luanda e a fortifica. Até 1594, a Coroa tentou avançar pelo interior, enfrentando inúmeros embates, morrendo negros dos dois lados. O governo seguinte esteve encurralado ente muitas guerras, efetivando uma política chamada de terrorista (resultado da aliança realizada entre o Congo e Angola). Quando, em 1617, morre o rei de Ngola, facilitase o controle e avanço português pelo interior. Entretanto, em 1623, assume uma rainha guerreira, forte, poderosa, religiosa e diplomática: Nzinga20. Faz um governo de alianças, reunindo forças pelos territórios homenagem a Nzinga, em seguida tornando-se Angola. 18 Este sabia que encontraria dificuldades, pois os chefes Sobas eram linhagem de oposição, que facilitava a dominação dos Sobas pelos portugueses. Isso promovia a entrada portuguesa onde o Império Congo não atingia, fragilizando estas populações e garantindo a ocupação e expansão. 19 Tratado conseguido por Nzinga, antes de ser Rainha. 20 Em diversas regiões africanas, as mulheres eram igualmente treinadas para a guerra, e um dos 47 vizinhos e visitas às embaixadas. Seu principal enfrentamento seria a batalha para que Portugal respeitasse o tratado feito. Nestes inúmeros embates, Nzinga expulsava os portugueses, capturava os negros aprisionados e distribuía propriedades, aumentando seu poder de aliança. Por uma questão de estratégia, não ficava muito na capital e, constantemente, trocava de acampamentos, denominados de Kilombos. Nos Kilombos, ficavam principalmente as mulheres com crianças pequenas. Segundo Luz (1995), Portugal fez diversas tentativas para depor a rainha Nzinga do cargo e colocar um rei submisso. A rainha conseguiu apoio do governador de Ndongo para pressionar pelo fim das invasões. A perseguição a ela foi reforçada no intuito de tornar o reino dependente. Os inimigos recrutaram mais negros à força e temiam novos ataques à Ndongo/ Angola, mas Nzinga atacou as tropas em uma ilha próxima, arrasando-as. Outro chefe foi posto no lugar da rainha, contudo, não conseguira governar. A rainha mantinha-se com muito poder, mesmo sem a legitimidade oficial. Ela era a única autoridade diante do povo. Como a religiosidade esteve sempre presente no processo de luta africano, após cada batalha, a rainha consultava os espíritos ancestrais. Certa vez, foi orientada a desocupar a ilha imediatamente - atacada momentos depois. Foram encontrados no acampamento apenas os elementos do ritual. Nzinga conseguiu consenso entre grande parte dos chefes para fechar os portos do comércio escravista, diminuindo o fornecimento nas Américas e encarecendo, consideravelmente, o trafico21. Estas ações deixaram o mundo escravista em pânico, enquanto outros chefes se empenhavam em aumentar os esforços para diminuir o poder da rainha. Estas guerras funcionavam como oportunidade para o cristianismo se instalar na África, pois a conversão cristã legitimava a escravidão. Apesar da preocupação com a resistência palmarina no Brasil, os holandeses estavam tentando alianças com Nzinga. As batalhas transformaram as guerrilhas em atributos da rainha-chefe era saber guerrear. Este nome de Rainha Nzinga é o personagem principal das festas de Reisados e Congadas em toda a região brasileira. 21 Nesta época a Bahia, além de sofrer as enormes dificuldades no comércio, enfrentava as invasões holandesas no interior do estado. 48 guerra apoiada pelos holandeses que, desgastados pela derrota no Brasil, abandonam Luanda em 1648, favorecendo a reocupação portuguesa temporária, pois saíram fugidos devido às sucessivas derrotas tanto no Brasil como na África. Esta atuação aumenta a repercussão guerreira dos negros desta região, causando grande medo entre os traficantes: A fama e a reputação libertária dos negros de Angola fizeram com que o preço do escravo vindo do Brasil dessa região caísse para 80 mil réis. Os funcionários portugueses lamentavam a deportação dos prisioneiros, vendidos como escravos para o Brasil, temendo que os chefes liderassem rebeliões (LUZ, p.381). Entre 1650 até 1657, as alianças entre Angola, Congo e Holanda se findam. A rainha investe na diplomacia e na aproximação com o Vaticano22, para estabelecer paz com Portugal. Com o acordo, as portas são abertas para os missionários capuchinhos, que iniciam a catequização tão combatida por diversos anos. O acordo conquista, entre outras vantagens, a libertação definitiva de sua irmã Mocambo, a independência de Ndongo, bem como a libertação de diversas províncias ligadas a seu reino. Após este acordo, novas insurgências e reorganização de Kilombos ocorrem em diversos reinos. As lutas quilombolas seguintes libertaram Angola e outros territórios. Sobre as experiências quilombolas fora da África nota-se que, em 1522, no Haiti e República Dominicana, antigas Ilhas espanholas, os comandos do governo se empenharam em luta para deflagrar organizações de negros que atacavam as plantações de açúcar. Em 1796, as investidas contra os ingleses cresciam. Em 1804 o Haiti torna-se independente, iniciando o processo de abolição da escravidão, em 1834, e encerrando-a definitivamente em 1838. Em 1529, os Palenques atacaram e devastaram uma região espanhola chamada Santa Maria (atual Colômbia), espalhando-se por diversas regiões e marcando a história da Colômbia pela presença de inúmeras insurreições africanas. Em Cartágena das Índias, em 1600, os Palenques construíram um território fortificado que resistiu a diversos ataques espanhóis. No ano de 1772, por meio de contrato assinado por autoridades políticas 22 A intervenção da rainha com o vaticano foi um mecanismo utilizado para forçar a Coroa portuguesa a assinar e findar a guerra, pois havia interesse da Coroa em continuar guerreando para conseguir escravos de outra forma. 49 e religiosas, todos os habitantes desta cidade foram reconhecidos como livres (p. 387). Na Venezuela, em insurreições datadas de 1555, a organização Oyocta, como a de Palmares, deu origem a diversas outras insurreições. Luz conta que: Um homem da organização Cumbe, chamado de Rei Bayano, formou uma comunidade rica e poderosa, onde era verdadeiramente o rei. Esta experiência nenhum governo pode deter, sendo obrigado a realizar um acordo de paz com o rei africano, pois a guerra não seria nem eficaz nem vencida (LUZ, p.387). Na Jamaica de 1650, enquanto os espanhóis e ingleses guerreavam, os escravos negros fugiram das fazendas e formaram comunidades de Quilombos, expandindo as ocupações e declarando guerra aos ingleses. Depois de fortalecidas as comunidades, criaram repetidas guerrilhas forçando os ingleses também a constituírem um tratado que libertava os negros das antigas e novas ocupações em 1735. Nos Estados Unidos, os quilombolas tiveram grande significado em uma guerra chamada de Seminole. Estes saíram da Carolina do Sul e foram para a Flórida, onde construíram fortalezas e comunidades, em 1720. Este tópico trouxe alguns exemplos de Quilombos que mais se destacaram nas Américas - certamente há muitos outros -, e marcaram as histórias de seus territórios. Estas comunidades diversificadas, além de apontarem um ideal de liberdade para a população negra, traçaram um projeto estratégico, contribuindo para o processo de independência dos países nos quais estavam aquilombados. Nota-se que, nas Américas, as lutas quilombolas estiveram lado a lado com o genocídio dos indígenas. E no Brasil? A conjuntura do séc. XVII apresentava um Estado de economia açucareira, enfraquecido pelas invasões holandesas, que desestabilizou a sociedade nordestina; apesar disso, se evidencia que, em período anterior, concentrações de negros / negras cresciam. O Quilombo de Palmares já estava firmado, pois documentos oficiais do Estado relatam a tentativa de destruição a Palmares organizada pelo governador Diogo Botelho, (entre 1602 a 1608) e, na Bahia, são registradas manifestações quilombolas bem anteriores a estas. 50 3.7 BRASIL: EXPERIÊNCIA PALMARINA Freitas (1973) afirma que, em 1600, a sociedade colonial pernambucana estava dividida em uma maioria de escravos e cerca de 30(trinta) famílias de livres, com o domínio econômico definido pelo território e pela posse de escravos e livres pobres: agricultores, pedreiros, pescadores, artesãos, e outros. Este grupo era conhecido como a ralé, o povo. Neste estavam brancos/as e negros/as alforriados e os conhecidos como mestiços. A realidade desta camada social estava repleta de dificuldades e miséria, pois a escravidão retirava dos empobrecidos a possibilidade de se sustentar com a força de trabalho. Vale ressaltar que grande parte de mestiços/as e brancos/as passava fome, devido à não aceitação de trabalhos domésticos, que foram inferiorizados por serem desenvolvidos por negros e negros/as. Neste mesmo contexto, em Portugal, muitos realizavam tais tarefas sem dificuldade. No Brasil, nem os pais nem as filhas e filhos queriam o trabalho considerado humilhante. Esta é uma das principais causas da fome, havendo uma preferência pela mendicância e prostituição, aumentando o número de prostíbulos. Segundo Freitas (1973, p. 25), sobre a mendicância massiva e pobreza “Não se encontra na história da ação colonial brasileira um só exemplo de iniciativa revolucionária tomada pelos livres pobres”. Mendicância e prostituição humilhavam menos que o exercício de trabalho realizado por negros/ negras. Este fato ilumina o processo histórico que trouxe graves conseqüências para a falta de acesso de negros/as a cargos executivos. A internalização desta questão consiste em um desejo da perpetuação dos brancos nos trabalhos não considerados humildes. Há um pacto silencioso entre o branco que governa e aquele que necessita, mantendo-se o status entre função e cor. Contudo, a outra classe que compunha a sociedade era dos índios aculturados. Experimentavam uma condição diferenciada da dos negros, por estarem sob a jurisdição dos padres. Não entregavam toda a produção e trabalhavam principalmente na pesca e na vigilância de negros. Grande parte dos indígenas/ nativos já possuía formação militar, sendo utilizados nas expedições para invadir 51 Quilombos na Bahia e Pernambuco23. Este aparato distanciou socialmente os dois grupos. Contudo, isso não significa que nativos não estivessem vulneráveis, ao contrário, este amparo resultou em dispersão e vulnerabilidade que diluíram e extinguiram diversas etnias. A legislação elevou o status dos nativos aculturados criando a Carta Régia (de 1717), que estimulava a união entre homens brancos e mulheres nativas, afirmando o resultado destas uniões como legítimos e capacitando os nativos para qualquer honra ou emprego (Freitas, 1973, p. 26). Quanto aos negros, aumentavam consideravelmente, preocupando a sociedade hegemônica. A legislação da colônia portuguesa possuiu um relevante papel na cristalização do racismo no mundo do trabalho para os negros/ negras. Ao contrário do caso indígena, a lei declarou que os negros/ negras estavam inabilitados para os cargos e funções públicas. Para conter uniões informais, expandiu a legislação para qualquer cidadão com qualquer dose de sangue negro. Esta ação institucionaliza o racismo, assegurando que a população negra se mantivesse na posição de submissão, criando distanciamento socioeconômico e o estigma, mesmo quando não fossem mais escravos ou pobres (Freitas, 1973, p. 26). Estes dados ajudam a refletir sobre a marginalização negra, as desigualdades econômicas e raciais, bem como o histórico empobrecimento da população negra. Sobre educação, os primeiros colégios brasileiros abertos pelos jesuítas não permitiam o ingresso de pessoas negras24 neles. Os frutos das relações consideradas bastardas entre homens brancos e as mulheres indígenas eram reconhecidos. Os filhos e filhas de brancos com negras eram comumente enviados para o cativeiro, aumentando o número da população escrava de mulatos25 (Freitas, 1973, p. 26-27). Esta ultima casta, a de escravizados/as, formava a base da pirâmide social, maioria da população, principais responsáveis pela produção econômica brasileira. Estava relacionada como parte integrante da propriedade do senhor, idéia respaldada pelas Ordenações de Portugal (colônia da Espanha), que regulavam o comércio escravista 23 Estes índios eram cedidos pelos padres, tutores legais deste grupo, disponibilizando cerca de 8 mil índios para esta tarefa. 24 Entenda-se negro todos com qualquer quantidade de sangue negro, tendo pele retinta ou não. 25 Em 1816, 10% da população escrava no Brasil era formada de mulatos. 52 de 1580, se referindo aos/as escravizados/as e animais no mesmo capítulo, repudiando a humanidade deste grupo. Sem direitos, eram submetidos ao poderio do senhor, tanto ele como seus descendentes, seu corpo, principalmente a vida sexual das mulheres, submetidas aos constantes estupros dos senhores e seus filhos (Freitas, 1973, p. 27). A dominação e exploração favoreceram um histórico abuso sexual sem precedentes, que acomete as mulheres negras e, principalmente, as mulheres em profissões de domésticas, tema que necessita de melhor tratamento, contudo não será possível nesta pesquisa. A condição do trabalho escravo era inóspita: do amanhecer ao anoitecer, muita fome, apesar das farturas das fazendas. Uma das estratégias utilizadas contra a situação gritante e trabalho excessivo era a usurpação do azeite doce das lamparinas para suportarem a fome. Quando descobertos o azeite era misturado a outros elementos que não pudessem ser bebidos. Enfim, o/a escravizado/a sempre encontrou meios de se manter vivo. O tempo médio de vida do/a trabalhador/a do canavial era de cinco anos e os/as que chegavam aos 30(trinta) anos estavam semimortos/as (Freitas, p. 28). Sobreviventes velhos/as, ou em idade produtiva, carregavam graves aleijões adquiridos tanto no trabalho desumano do canavial como nos castigos26, resultantes da chamada insolência, não aceitação da escravidão e de seus métodos. Quando confirmada a inutilidade, eram assassinados ou abandonados, entregues à mendicância, mas em alguns casos eram alforriados. Entrava aí o importante trabalho social de resgate dos terreiros de candomblés e, futuramente, das irmandades negras católicas. Apenas pequena parte dos senhores mantinha estes homens e mulheres doentes na fazenda, (temiam que este contingente desregulasse a economia local, pois os aleijados não davam mais lucro e o comércio exigia uma rotatividade) (Freitas, p. 29). Conforme mencionado, os desvalidos, doentes e idosos eram adotados pelas 26 Optei por não descrever os “nauseantes” castigos com requintes de crueldades que não ficam devendo nada para os campos de concentração de Hitler; contudo, em todas as situações, o povo encontrou uma estratégia para contra-atacar. 53 comunidades de terreiros, pelas irmandades e sociedade dos desvalidos, que tanto enterravam dignamente os desvalidos como amparavam os sem abrigo. Os escravizados/as estavam divididos em trabalhadores/as de lavoura e os que desenvolviam ofícios especializados, (barqueiros, carreiros, oleiros, vaqueiros, e outros), conhecidos como escravos urbanos, que valiam mais e, em alguns casos, recebiam um presente/salário ao final do ano. Entre os escravos da lavoura foi onde mais se constatou a efervescência das revoltas. Este outro nível de escravidão criou outras relações na escravidão, e suas revoltas foram relacionadas com as confrarias, irmandades. As irmandades foram bastante toleradas porque, aparentemente, não ofereciam perigo ao sistema e discordavam da luta armada dos Quilombos. O acolhimento destas sociedades compostas de negros libertos possibilitou a continuidade da população negra e seu empoderamento fora dos Quilombos rurais, oferecendo outro perfil para a luta libertária (Freitas, p.28- 30). Quanto a Palmares, não foi apenas a divisão dos escravos que dificultou a organização, mas o terror aplicado contra as insurreições e insubordinações. A rebeldia era julgada e o castigo aplicado de forma descontrolada, apesar de haver um regulamento para os castigos praticados por senhores e sinhás. Estes funcionavam como espetáculo público aberto à comunidade, como medida inibitória (Freitas, p. 30-35). Confirma-se aqui a idéia do início do tópico: a legislação da colônia portuguesa possuiu um relevante papel na cristalização do racismo no mundo do trabalho para os negros / negras. A lei de 1717 alcançou força e internalizou a diferenciação pelo tom da pele. Os escravos com sangue branco estavam separados ideologicamente dos nativos africanos e os crioulos27. Estas divisões dificultavam as conquistas, fazendo lembrar o problema enfrentado pela revolução Malê28. 27 Negros nascidos no Brasil. Decidiu-se não agregar mulatos e negros nascidos no Brasil à luta de 1835, visto que, naquele entendimento, unir tanta ideologia era um desafio e um atraso na revolução. Os mulatos estavam muito próximos da ideologia dos brancos, oferecendo certo perigo; caso houvesse vitória estes seriam aprisionados e escravizados. O processo de escravização do modelo africano consistia em 28 54 Palmares estava localizada em uma área privilegiada, menos sofrida com a seca pernambucana que atingia demais estados nordestinos, um sertão menos extenso, solo fértil e temperatura agradável; muitas vezes o clima da região de Palmares chegava a ser frio, devido à grande extensão de floresta existente na época. Palmares estava situada na região Meridional da Capitania de Pernambuco, formando, em seguida, o Estado de Alagoas, onde se localiza a Serra da Barriga (Freitas, p. 45-49). Atualmente, sítio arqueológico, patrimônio histórico protegido pelo governo federal. A região é constantemente criticada pelo Conselho Nacional de Quilombo, pela enorme quantidade de brancos que surgiu no local. Quando a escravidão danificou a enorme experiência agrícola dos negros/ negras, eles foram obrigados a regredir da policultura para a monocultura, no Brasil, de estilo inferior ao português, quase primitiva. O confinamento negro regrediu e estagnou os saberes africanos dos escravizados, travando a evolução na qual seguia este grupo. Em Palmares plantava-se, principalmente, feijão, mandioca, milho, cana-de-açúcar e legumes, em vastos pomares com espécies variadas. Dentro de Palmares necessitaram recomeçar a partir de um modelo de agricultura inicial, nos moldes indígenas, não mais utilizados na África. O modelo de economia mais complexo deu-se apenas com o aumento da população, que diversificou e qualificou a produção, principalmente no que se refere à metalurgia do ferro, conhecimento ancestral africano para manufatura de enxadas, facões, flechas, foices, machados e outros. O trabalho com o ferro era uma atividade que enchia os palmarinos de orgulho. Assim, como na África, este ofício era desenvolvido como algo sagrado. O conhecimento de que os palmarinos saqueavam e negociavam com ferros, possuíam oficinas de ferreiros dentro do acampamento, colocou a sociedade pernambucana em pânico, pois havia suspeitas de que os negros pudessem copiar armas saqueadas dos colonos. Quanto à dinâmica agrária, havia um preparo da terra algumas semanas antes do plantio, realizando a semeadura e a colheita de forma coletiva. Como em diversas aprisionar o ”inimigo” por um tempo, para garantir a adesão ao projeto, tornando o preso um ser confiável. 55 outras culturas, os negros palmarinos também celebravam o final da colheita com festejos duradouros, muita comida, bebida e folga, após os frutos da colheita (Freitas, p. 45-49). Segundo Freitas (1973), em relação às palmeiras, principal elemento da área palmarina, a comunidade possuía vasto conhecimento sobre suas possibilidades e era daí que saia a mais relevante produção, pois a palmeira era utilizada na África antes do conhecimento ocidental29. A palmeira produzia massa comestível utilizada na alimentação e servida com farinha. Este fruto produzia, ainda, óleo para manter a iluminação, azeite para preparar alimentos, manteiga branca e um vinho. O conhecimento africano transformou Palmares em uma sociedade à frente da sociedade pernambucana. A experiência na produção de vinho era atribuída aos negros da Guiné, que na África destilavam vinho das palmeiras. Essas folhas das palmeiras eram aproveitadas na cobertura das casas, confecção de esteiras, abanos e outros adereços, e ainda serviam para a produção de fumo e cachimbo (p. 43-44). Todo este percurso apenas confirma a evolução da civilização africana indicada no início. Os Quilombos como repetição coletiva da tradição africana, assim como fazia Nzinga, necessitavam trocar os sítios, mudar os acampamentos, constantemente. Entretanto, os moradores tinham auto-suficiência de produção e consumo. Por questão de segurança, a população estava distribuída em até quatro povoações, que dentro possuíam de uma a quatro ruas estratégicas. O arraial era rodeado com cercas de pau reforçadas e, futuramente, determinadas aldeias, foram cercadas com muros de pedra. Cada entrada era protegida por portas reforçadas e por armadilhas. As casas de madeiras, cobertas de palmeiras, somavam mais de oitocentas. Em 1630, pouco antes da invasão holandesa que atacava o Nordeste brasileiro, a população já contava com cerca de 3 (três) mil pessoas. Havia uma diversidade lingüística, todavia, o português era falado de forma adaptada com a diversidade de línguas africanas, pois estavam lá os povos de 29 Os europeus só descobriram o aproveitamento da palmeira na primeira metade de 1800, convertendo-a imediatamente em produto afro-europeu (p. 43). 56 Guiné, Angola, Congo, Cabo Verde e outros. Nestes povos, cada um carregava outra imensa diversidade lingüística e cultural. Possivelmente, o mais estratégico foi utilizar os elementos mais comuns para conquistar uma unidade. A religiosidade, assim como a linguagem, necessitou ajustar elementos das tradições de matrizes africanas com elementos do cristianismo, cujos espaços sagrados acolhiam tantos as divindades africanas como Jesus e os santos católicos. (Isso também aconteceu com os indígenas). O que não significa que houve uma concordância na questão religiosa (Freitas, p. 48-49). Fora de Palmares, os portugueses enfrentavam tripla dificuldade: conter a guerra holandesa para ampliar as conquistas do sertão nordestino, controlar as revoltas indígenas e as insurreições dos escravos. Consideravam os indígenas e negros como o peso maior da guerra, anunciando estarem cercados de perigos domésticos. Grande parcela de negros/ negras decidiu não apoiar nenhum dos lados, pois sabia que ao final o vencedor manteria a sua guerra contra estes. Contudo, os dois lados receberam tanto reforço indígena quanto negro (Freitas, p. 53). Enquanto os negros que se aliassem às tropas receberiam alforrias, o senhor seria indenizado. Neste acordo de aliança, muitos negros aliados conseguiam deserdar e fugir para Palmares, pois nas guerras sempre iam à frente da tropa de brancos, morrendo primeiro nas baixas do exército oficial. No fundo, os dois grupos estavam preocupados com a ousadia dos palmarinos, que desciam para vingar o sofrimento dos negros/as, incendiavam engenhos, abriam senzalas, roubavam armas, soltavam os escravizados e os conduziam para Palmares (Freitas, p. 53-57). Durante as guerras holandesas com os portugueses, muitos brancos pobres em profissões simples construíram verdadeiras fortunas, aliando-se a um dos lados para capturar negros / negras e impedi-los de subir a serra. Para cada capturado era paga a quantia de 130 mil réis. Contudo, os que chegavam a Palmares se armavam e continuavam as invasões às fazendas, em ação vingadora contínua. Vale ressaltar que neste período de guerras, tanto os portugueses quanto os holandeses enviavam tropas para destruírem Palmares, sem obter sucesso. Esta ação dificultou o tráfico nos portos de Pernambuco (Freitas, p. 56-57). 57 Embora em 1637 houvesse poucos cativos nesta região, após a vitória dos holandeses a região estava despovoada e em completa ruína, pois grande parte da população migrou para o Estado da Bahia, necessitando re-planejar a região. A primeira idéia consistia em trazer camponeses30 batavos, dando-lhes direito a um pedaço de terra. No entanto, a idéia aprovada foi a de continuar a lucrativa ação escrava, só que desta vez de maneira massiva, pois o mercado de açúcar europeu era a grande porta para o retorno do enriquecimento (Freitas, p. 56-57). A perversidade holandesa superava a portuguesa em trato aos escravizados. Além dos abomináveis castigos utilizados, acrescentaram a crucifixão, seguida de morte lenta; criaram também outros moldes, para tirar ainda mais trabalho das negras e dos negros trazidos. Esta ação aumentou a estratégia furiosa da organização palmarina, afastando os índios que faziam segurança e alguns senhores de engenhos que residiam na região banhada pelo rio São Miguel31. Desta forma, Palmares tinha sob seu controle grande parte da chamada Alagoas do Norte, empurrando os fazendeiros para Alagoas do Sul, necessitando de uma guarda constante de cerca de 300 soldados holandeses contra os palmarinos (Freitas, p. 60). Diante deste estado, em 1643, os portugueses receberam permissão holandesa para se protegerem com armas dos infinitos ataques dos palmarinos. Todavia, foram apreendidas todas as armas de negros e mestiços, pois não eram consideradas pessoas de confiança. Para cada atitude contra os negros e negras, Palmares tinha outras estratégias. Em represália ao armamento português, desarmamento dos negros livres e mulatos, bloqueou durante semanas a via de acesso entre Recife e o sul de Pernambuco32. Após este evento, foram reforçadas as recompensas por captura de palmarinos e ordenada outra invasão a Palmares, com cerca de 1.100 homens soldados holandeses, índios e mestiços. 30 Lembremos que esta foi a ação utilizada no final da escravidão negra no Brasil, o acolhimento de imigrantes para trabalharem na produção recebendo terra, casa, comida e diversos incentivos, enquanto que, como continuidade dos castigos, os libertos negros foram para a mendicância. 31 Essas informações foram salvas devido aos pedidos de providência reclamados em Recife. 32 Os africanos encurralaram os portugueses por longo tempo, sem comida ou comunicação, desta mesma forma. 58 Informantes da tropa afirmavam existir uma Palmares grande e uma pequena, a dúvida era sobre qual área invadir. Esta invasão só pôde ser efetivada um ano depois. Ao final, os lideres da expedição, assim como nas outras diversas investidas, informavam que destruíram Palmares, pois conseguiram assassinar 100 (cem) pessoas e capturar quase quarenta, entre elas, índios e mulatos. Neste período de guerras, tanto os portugueses quanto os holandeses enviavam tropas para destruir Palmares, sem obter sucesso (Freitas, p. 62). A guerra entre portugueses e holandeses prosseguiu até 1654, dando vitória final para os lusitanos, que puderam prosseguir com sua perseguição contra Palmares. Essas se espalhavam de Norte a Sul, com mais de trezentos e cinqüenta quilômetros. Macaco, a capital de Palmares, era o mocambo mais importante, localizado próximo do que hoje conhecemos como União de Palmares. Possuía uma população calculada em cerca de oito mil pessoas, distribuídas em 1500 casas. O mocambo de Zumbi estava cerca de 100(cem) quilômetros ao Noroeste da região de Porto Calvo e o de Acotirene, onde residia a mãe de Ganga Zumba, a 30 (trinta) quilômetros ao Norte do de Zumbi (Freitas, p. 62- 68). As principais comunidades de Palmares eram Una, Taboca, Osenca, Dambrabange, Amaro, Andalaquituche, Aquatune, Côngoro, Kiluanji. Estimou-se entre dez a trinta mil habitantes, porém, em 1678, um documento oficial avaliou os palmarinos em vinte mil, e a última conta do século XVII reafirmou trinta mil habitantes33. Palmares se configurou enquanto movimento social, abrigando diversos segmentos pobres ou perseguidos no período colonial, independente da cor da pele, grupos estavam lá por fuga da guerra e devido à fúria dos senhores de engenho contra os pequenos agricultores. Algumas pessoas fugiram para lá por causa da miséria que atingia os mais pobres de forma feroz, pois havia fartura em Palmares; por causa da economia de subsistência e das diversas relações comerciais mantidas com colonos da região que compravam ou trocavam matérias produzidos no Quilombo. Além disso, devido à solidariedade, ao trabalho cooperativo e à farta mão - de- obra, o comércio e o trabalho de produção palmarina foram largamente reconhecidos por 33 Não há consenso entre pesquisadores sobre a soma da população geral de Palmares. 59 alguns grupos, despertando em muitos o interesse pelo fim da perseguição a Palmares e a defesa da utilização dos seus resultados produtivos em tempos de miséria e pós-guerra (Freitas, p. 69-70). Com o crescimento dos benefícios comerciais, houve denúncias do apoio de pequenos comerciantes e criadores34, que abrigavam e davam informação sobre os planos do inimigo, inquietando Domingos Jorge Velho, que denunciaria este suporte como responsável pela longa resistência de Palmares: Os interesses dos criadores se escudavam em influências importantes. Ninguém mais que o ouvidor geral do crime da Bahia, desembargador Cristóvão de Burgos e Contreiras – uma das mais altas autoridades judiciárias da Colônia – mantinha em terras palmarinas um curral capatazeado por um tal Manuel de Souza (FREITAS, 1973). Esse acordo era fielmente mantido e respeitado pelos palmarinos e criadores, quanto aos últimos, não como apoio à liberdade negra, mas por interesse próprio. Estes só perderiam com a expansão e vitória pernambucana. Os gados destes criadores eram vendidos na Bahia onde os mesmos possuíam escravos. Os anos seguiram e todos os governos realizaram expedições contra Palmares. Inclusive as expedições que agiram em mocambos baianos foram convocadas para trabalhar contra Palmares (Freitas, p. 72). 3.7.1. O governo Ganga Zumba Ainda, segundo Freitas (1973), o Quilombo estava dividido em povoados chamados de mocambos, liderados por autoridades que disputavam o cargo com o mérito da força, inteligência e destreza (p. 45), cuja ação estava submetida ao Conselho e as decisões tomadas em assembléia de moradores adultos. Contudo, as traições políticas, o roubo, o adultério e os assassinatos tinham pena de morte estabelecida. As assembléias elegiam seus chefes ou governos centrais das comunidades. Ganga Zumba foi um importante chefe-rei de Palmares. Conta-se que ele era ancestral dos 34 Neste período de expansão palmarina, grande parte desta região, também dominada por Palmares, era ocupada por baianos que se expandiam para o Norte e cruzavam o rio São Francisco. Foram criadores de gado que não comportavam o trabalho escravo e que trocavam favores com os palmarinos e os abrigava durante a descida. 60 negros vindos da Costa, identificados por suas histórias de insubordinação e constantes ataques aos feitores. Outra característica era a beleza física exuberante, a organização militar severa e a inteligência superior, facilidade em aprender qualquer oficio. O chefe possuía privilégios e se distinguia dos demais, tinha honras e tratamento de um rei, repetindo a experiência de alguns reinos africanos (Freitas, p. 45; 100-102). Sintetizando a experiência de Palmares, pode-se dizer que foi considerada: - uma luta original contra o retorno à escravidão, reproduzindo o exemplo africano; - instrumento político-cultural fundamental da necessidade dos negros e negras; - espaço para aglutinar forças para a luta contra o inimigo externo; - associação de grupos étnicos e culturalmente heterogêneos; Conflitos políticos borbulhavam. Havia grande parte que não confiava nas propostas feitas pelas elites brancas cansadas de investidas sem sucesso e outra que desejava o acordo de rendição dos palmarinos em troca de supostos benefícios. Os chefes de expedição e governos negociavam as terras, os valores para cada negro capturado e como seriam rateados os custos da invasão a Palmares. Quer os negros se entregassem ou não, cada cabeça valeria 12 mil réis. Seria um negócio milionário, uma expedição caríssima. Quando a expedição invadiu, primeiramente, o mocambo Acotirene, sem conseguir apanhar a mãe de Ganga Zumba, capturou algumas pessoas e seguiram através de Ganga Zumba, que fugiu ferido, mas teve baixa de muitos membros de sua família. A expedição acampou ali enquanto diversos soldados deserdaram, enfraquecendo a tropa. Ao receber mais suporte, a tropa, continuou invadindo e capturando os povos de Palmares (Freitas, p. 72-100). Ocorreu que, em 1678, deram por destruídas as comunidades de Palmares. Celebraram missa pela vitória contra os negros, repartiram os capturados e os 61 lideres foram chamados a se entregarem, definitivamente, sob ameaça de dizimação da população restante. Durante as fugas, centenas de outros pequenos Quilombos foram se espalhando pelos estados próximos. Mas, Palmares continuava firme, e o governo geral sabia que não podia se iludir e manteve as negociações com Ganga Zumba com promessas de terras, mas, sobretudo, com ameaças sobre a vida de seus filhos e parentes capturados (Freitas, p. 72-100). O governador Souza Castro organizou pomposas solenidades para assinar o acordo de paz aceito por Ganga Zumba. Os nascidos em Palmares ficariam livres, receberiam terras para plantar e teriam convívio pacífico. No entanto, não havia clareza do que aconteceria aos demais. Firmada esta parte, ficou evidente que deveriam retornar ao cativeiro e que Ganga Zumba deveria convencer os demais palmarinos à rendição. As negociações duraram meses durante a partida para Palmares e para os mocambos vizinhos. No retorno, Ganga Zumba trouxe cerca de quarenta pessoas e teve seus filhos adotados pelo governador, perdendo seus sobrenomes e recebendo o sobrenome Souza Castro, em recepção solene. As terras invadidas foram distribuídas entre os grandes proprietários, enquanto os soldados negros, índios e mestiços não receberam nenhuma parte das terras. Assim sendo, o Conselho Ultramarino35 recebeu a informação da conciliação e da vitória final, onde se contava que os inimigos agora serviam ao rei, acreditando que os poucos remanescentes que ficaram em Palmares não ofereciam perigo, pois qualquer tropa de menos de vinte homens os destruiria. Contudo, a resposta veio quando os supostos donos novos tentaram tomar posse da terra doada. Descobriram que Palmares estava viva e liderada por um forte líder de um dos mocambos: Zumbi. Este seria, sem dúvida, o maior líder desta organização (p. 72100). 35 Assessoria oficial da Coroa portuguesa. 62 3.7.2 Imortalidade de Zumbi São muitas as histórias e mitos sobre Zumbi. Todavia, seu engajamento interessa mais. Os chefes de guerra carregavam o prenome Ganga; este seria o nome dado a todos. Eram pessoas de confiança do rei, ou seja, do seu parentesco. Ganga Zumba, Ganga Zona, Ganga Zumbi ou Ganga Zambi, Zombi. Suspeita-se de que Zumbi tenha sido o sobrinho de Ganga Zumba. Sobre a grafia, há muitas pesquisas que falam em Zambi, Nzambi, ou Zombi (defunto ou encarnação de uma divindade). Sendo um ou vários (Freitas, p.118). Nem antes de 1676 e nem depois de 1695 aparece referência a um general ou chefe palmarino chamado Zumbi. O Barão de Studart chegou à conclusão “de que a palavra Zumbi não designava posto hierárquico, mas é um nome próprio, o nome de um indivíduo, Zumbi, um dos heróis da Tróia Negra” 36. Essa história não traz precisão sobre as disputas internas durante o acordo e como se deu a sucessão geral, assumindo Zumbi. Contudo, a permanência de Zumbi e demais lideranças demonstra que ele se opôs à posição de Ganga Zumba e defendia a permanência e resistência, pois o acordo mantinha ainda negros escravizados e sujeitos a toda a sorte de castigos e crimes. Grande parte da população palmarina ficou com a proposta de Zumbi - general das armas -, e resistiu a Ganga Zumba, partindo para as povoações palmarinas distantes da capital e chocando-se as duas facções (p. 116-117). Quando assumiu o governo de Palmares em Macaco, Zumbi sabia que a comunidade estava fragilizada, exposta, e que os detalhes sobre a organização interna estavam nas mãos dos inimigos. Palmares estava em completa desvantagem. Desta forma, Zumbi reformula a organização interna, endurece as medidas, reforça a fortificação do estado negro, treina novos líderes e novos soldados, incorpora as milícias, multiplica a segurança, cria o que pode ser chamado de ditadura palmarina, onde qualquer tentativa de fuga para Cucaú (local onde estava Ganga Zumba) seria causa de morte. 36 Freitas, p. 118. 63 Essa experiência de Ganga Zumba em Cucaú não era das melhores; constantemente, os fazendeiros atacavam sua propriedade, fingindo procurar negros fugidos - o que também ocorria -. As elites locais divulgavam que negros e negras daquela comunidade eram um perigo para os demais moradores, criando uma tropa de vigilância diária armada nos arredores de Cucaú. Zumbi utilizou-se destes fatos, organizou um plano para enfraquecer mais ainda Ganga Zumba. Fortalecida com o enfraquecimento de Ganga Zumba, a comunidade palmarina multiplicou sua população e armamento, rapidamente. Diversos líderes negros, que se sentiram traídos pelo plano de paz, retornaram para Palmares, continuando os raptos de diversos negros enquanto outros serviam a Zumbi, dentro do território de Ganga Zumba, pois tinham acesso livre na cidade (Freitas, p. 117-119). Por longo tempo Zumbi recebera a mesma proposta de ‘paz’ e pedido de deposição das armas, perdão como prêmio e conforto para ele e sua família, mas não cedeu. Os objetivos e esforços históricos não seriam negociados sem um plano político comunitário que favorecesse o povo negro. Confirmada a resistência de Palmares, o comandante João Freitas da Cunha foi enviado com cerca de 200 homens para destruir Palmares, novamente. A batalha parecia ganha, mas a tropa nem conseguiu chegar a Palmares, atingida por fortes chuvas, muita fome e doenças. O povo de Zumbi os atraiu para a mata profunda, os atacou, caçou-os nas armadilhas, matou o comandante, libertou os escravos carregadores de mantimentos, enquanto o resto da tropa voltou humilhada para Alagoas (Freitas, p. 117-119). Líderes tais como Amaro, João Mulato, Gaspar e Canhongo foram descobertos em 1680, quando o ideal colonial de Cucaú foi destruído, pois informantes de Zumbi, infiltrados em Cucaú, considerados perigosos, envenenaram Ganga Zumba e mataram seus adeptos em uma batalha. Ganga Zona, irmão de Ganga Zumba, fugiu e organizou a oposição armada contra eles. Em mata fechada, todos foram pegos pela expedição de Moreira da Silva. Os líderes Amaro, João Mulato, Gaspar e Canhongo foram degolados e os demais condenados à escravidão perpétua. Visivelmente, o sistema hegemônico coloca os oprimidos com situação igual em posições diferentes. Utiliza mecanismos refinados para dividir e ganhar tempo, enquanto os conflitos internos os ocupam. É estrategicamente mais econômico que 64 os iguais se dividam, até se matem e que a instituição os salve deles mesmos para salvaguardar a sociedade geral. Os movimentos sociais, principalmente os movimentos pela eqüidade racial, experimentam estratégias idênticas na organização do plano nacional contra o racismo, que necessita ser construído há anos, enquanto se pautam discussões, criam-se atividades de combate ao racismo. Enquanto marcham contra o avanço das desigualdades, param a luta maior para resolver questões menores, como escândalos raciais em universidades públicas, intervenção jurídica feita por negros/ negras pela interrupção de algumas políticas afirmativas, e outros. Como Zumbi e Ganga Zumba, todos acham que estão certos. Contudo, a pergunta continua a mesma: a quem beneficia o resultado dos acordos? Esses conflitos em Cucaú fortaleceram a comunidade de Zumbi, passando esta a agir com maior força nos engenhos e plantações vizinhas. As expedições não estavam conseguindo conter Palmares e solicitaram que o governador geral repetisse a proposta de paz a Zumbi. Foram afixados os comunicados, exibindo o perdão para Zumbi pelos seus crimes e convocando a se encontrar com o tio Ganga Zona. Havia nesta nova proposta muitas mudanças que determinavam que nem todos os nascidos em Palmares estariam livres, a não ser os que fossem brancos ou descendessem de livres. A proposta ficou sem resposta de Zumbi (Freitas, p. 117135). Referente aos acordos, ao contrário dos outros países, o Brasil insistia em manter escravizada parcela dos palmarinos e não a reconheceu como cidade livre. Não tinha como conter politicamente e nem manter economicamente a guerra de Palmares, gastaram muito por quase cem anos, mas não finalizaram a escravidão na capitania. Esta investida conseguiu travar grandes e demoradas batalhas, atingindo diversas povoações com prisões e mortes em Palmares. Após combates travados, divulgava-se sempre a morte de Zumbi, que novamente reaparecia em pontos diferentes. [...] Mas os fatos não tardavam o pouco ou nenhum êxito de tais tentativas. Tão depressa eram os palmarinos “destruídos” como reapareciam de novo mais agressivos e poderosos. Renasciam sempre como uma fênix, 65 continuando a sangrar o empobrecido erário régio e a comprometer o soerguimento econômico da capitania (FREITAS, 1973). Deseja-se demonstrar, nesta exposição, que Zumbi tornou-se um símbolo de imortalidade. A cada ataque ou destruição de um povoado, a comunidade ressuscitava mais forte, seja naquele território ou dando origem a outras manifestações quilombolas nas redondezas e em outros estados vizinhos, formando novas ou reunindo-se com as existentes. O incômodo palmarino alcançou o Rei Dom Pedro II, que entrou nas negociações. As propostas e intermináveis contrapropostas e exigências de Palmares fizeram Zumbi ganhar mais tempo e esgotar a paciência dos fazendeiros, que exigiam ações eficazes do governo, que suspendeu, em 1686, as negociações. Em 1690, o novo governador investiu no bandeirante paulista famoso por exterminar grandes aldeias de índios/nativos no Brasil, principalmente na Paraíba e Rio Grande do Norte. São Paulo não tinha importância econômica, por não comercializar no mercado mundial com os demais estados nordestinos e por formar uma população mestiça de brancos e índios/nativos (Freitas, p. 135-151). Contudo, havia entre eles uma larga experiência bandeirante que atravessava matos. O nome indicado seria o de Domingos Jorge Velho. Este passou mais de um ano para confirmar a sua chegada e abandono das expedições37 contra os indígenas e nativos. Após marchar doze dias, Domingos Jorge Velho e sua tropa alcançam a capital de Palmares, Macaco, ficam dias escondidos aguardando reforço das tropas. Os palmarinos os atacou de emboscada e venceram. Outra numerosa tropa paulista não conseguiu chegar ao destino, pois os negros os perseguiram de volta. Jorge Velho responsabiliza as tropas locais pelo fracasso, devido ao particular desconhecimento da força, às estratégias do inimigo e ao desconhecimento geográfico. Quando Domingos Jorge Velho investiu outras duas vezes e perdeu, sendo criticado 37 Todavia, em uma dessas expedições desgastantes e quase intermináveis foi celebrado um acordo de paz com o cacique Canidé. D. Pedro II, que o tratava com falsas honras, anos depois de confirmado o desarmamento completo dos índios os agentes da Coroa invadiram o território e praticaram um massacre (p. 142). 66 e hostilizado pela população e senhores de engenho, estragou a sua carreira vitoriosa de extermínios. Durante dois anos perdendo e sem poder agir contra, tentou obrigar os índios/ nativos a entrarem na expedição. Sem sucesso, traiçoeiramente, invade a aldeia e assassina mais de 200 habitantes. Pressionado e quase vencido, sem recursos, D. Pedro consultou o Padre Antonio Vieira. Este foi convidado para interferir indo a Palmares. Negou-se, demonstrando que a política conciliatória não funcionaria, pois não havia funcionado em 1682 e nem em 1687. Afirmava não haver perdão para os negros, pois a única salvação que via era o retorno à servidão e obediência aos senhores e isso Zumbi não aceitaria. Segundo o padre Antonio Vieira, a única alternativa continuava sendo o extermínio, pois a liberdade de uns beneficiados por acordos animaria os outros a levantarem diversos Palmares (p.151). Ocorreu em 1693: Pernambuco reuniu sobre o seu poder, considerável material militar, armazenou muita alimentação e fechou os últimos acordos com Domingos Jorge Velho. Refez as propostas de distribuição das terras palmarinas e aumentou as recompensas para os colaboradores. Presídios foram esvaziados e transformados em centros de treinamento. As cidades vizinhas entraram na campanha. O recrutamento em Recife resultou em três mil homens, o de Alagoas dois mil, Penedo enviou cerca de 1.500, Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte somaram um total de 800 homens. Importantes fazendeiros que tinham fazendas na linha da guerra e tinham abandonado fazendas atacadas por Zumbi enviaram mais de 300 homens (Freitas, p. 135-151). Este exército somava ao todo - incluída a força de Domingos Jorge Velho – mais ou menos nove mil homens. Chega-se a mencionar um total superior. (...), mas essa cifra é escassamente objetiva. Em todo o caso, eram forças militares como nunca antes a Colônia vira (FREITAS, 1973). A mais poderosa marcha para Palmares começou em janeiro de 1694. O tempo passou; em fevereiro, as batalhas continuavam seguidas sem vitoriosos. Chegaram canhões para reforçar a expedição e, durante uma noite, construíram um forte da altura do palmarino para que os canhões e a invasão não fossem 67 percebidos38 a apenas cerca de 20 metros, a ser concluído o bloqueio a Palmares. Na madrugada, ao perceber falha na segurança, Zumbi manda executar a sentinela e reúne o conselho que vê saída apenas pelo despenhadeiro. A história tenta entender por que Zumbi, cercado, decide o enfrentamento de frente, ao invés da emboscada, ficando preso entre o despenhadeiro e o fogo do inimigo. O massacre foi grande contra Macaco, salvando-se alguns pelo despenhadeiro e cerca de 500 que foram presos. As outras povoações não puderam oferecer muita resistência, tendo baixa quase que total (Freitas, p. 151-157). Ao final, incendiaram Palmares e informaram à Coroa a derrota final e a morte de Zumbi. Aconteceu que muitas mulheres de diversas povoações mataram os filhos e se suicidaram para não voltar ao cativeiro e nem terem seus filhos escravos. Domingos Jorge Velho não acreditou que o Rei Zumbi foi apanhado. Manifestou opinião publicamente e foi acusado de mercenário. A morte de Zumbi significava, erroneamente, o fim da rebelião negra, não levando em conta que, pela trajetória palmarina, impossível seria destruir ou capturar todas as pessoas de todos os povoados de um exército treinado desde 1602. Após a “destruição de Palmares”, confirmou-se que Zumbi não morrera. Além de diversos povoados que continuavam sofrendo inúmeros ataques, Zumbi foi visto em município próximo com um grupo de mais de 40 negros/negras. Outros grupos continuaram agindo também. Em novembro de 1695, destaca-se a prisão de uma liderança palmarina, já muito temida e conhecida. Foi duramente torturada e forçada a entregar o esconderijo de Zumbi em troca da própria vida, em mata fechada, com diversos despenhadeiros, próximo ao rio Paraíba. Ao chegar, esperou a guarda de Zumbi, composta de 20 homens diminuir, se aproximou do “Herói da Tróia Negra” e o esfaqueou rapidamente. Foi socorrido pelos amigos, quando entraram os soldados da expedição de Domingos Jorge Velho. Mesmo manco das outras batalhas e ferido no estômago, com um punhal, continuou lutando e recusou-se a se entregar, matando um soldado e ferindo outro. Do grupo de Zumbi, apenas um ficou vivo, pois todos preferiram morrer lutando a se entregar. A pesquisa de Freitas 38 As expedições já conheciam o caminho, e o trajeto de semanas já podia ser feitos, em 2 (dois) dias. 68 anuncia que o povo de Palmares nunca cessou na região, um grupo fugiu para a Paraíba e fundou o Quilombo do Cumbe (Freitas, p. 151-157). Em 1988, o 20(vinte) de novembro, dia da morte de Zumbi, tornou-se o Dia Nacional da Consciência Negra. 3.8 PERCURSO QUILOMBOLA NA BAHIA De acordo com Flávio Gomes (2005), os Quilombos são presenças no Brasil desde o início da situação de escravização, quando chegaram os primeiros negros na Bahia, por volta de 1534. Nos séculos XVII e XVIII, as regiões baianas estiveram constantemente ameaçadas pelas organizações quilombolas. A História registrou as primeiras repressões a organizações negras na Bahia em 1575, e em 1580 confirma-se a existência de mocambos na cidade de Cachoeira (p.396). Devido à falta de abastecimento no interior da Bahia, na segunda metade do século XVIII, também os quilombolas circulavam tranqüilamente pelas áreas comerciais das cidades, trocando seus produtos por armas e artefatos, como ocorria em Palmares. Já vimos, no percurso sobre Palmares, que a presença quilombola na cidade era tolerada no período de decadência da economia, devido ao fato do trabalho quilombola diminuir a precariedade das lavouras das cidades. Desta forma, muitos fazendeiros e holandeses39 que cobiçavam as valiosas terras ocupadas pelos Quilombos financiavam as expedições de invasão, em benefício próprio. O autor acrescenta que, no ano de 1661, a cidade de Cachoeira ainda encontrava dificuldades para conter a chamada tropa de aquilombados. Esta era acusada de cometer assaltos e excessos nas redondezas do Recôncavo baiano. Os capturados não eram aprisionados, mas punidos com severidade, e os mortos tinham o corpo esquartejado. Era uma prática de terror, na tentativa de repressão e extinção dos Quilombos, que comprovadamente aumentavam em toda a região e de maneira mais organizada, deixando em situação cada vez mais difícil as diligências para 39 No período das invasões holandesas, estes se vêem impedido de expandir a guerra pela ocupação do sertão nordestino, pois os quilombos explodiam em toda parte. 69 conter as insurreições. O exemplo do descrito está no fato de que, em 1667, estouraram revoluções quilombolas em Salvador, em Maragogipe, Paraguaçu, Jaguaripe, (destacada como região de forte tradição quilombola), Pirajuia e outros. Durante um ano (1668 e 1669), uma forte expedição foi organizada para conter a onda quilombola. Fernão Carrilho, que comandaria alguns anos depois, investidas contra Palmares, liderou esta expedição ainda com o suporte indígena. De 1674 a 1675, os Quilombos de Sergipe do Conde, Sergipe Del-Rei, Freguesia de Nossa Senhora do Socorro foram os alvos de investidas. Estes fatos demonstram que as autoridades da época tiveram a organização quilombola como pauta principal e de maior dificuldade de resolução, confirmando a organização como tropa equipada para enfrentar as investidas, se assemelhando a um exército (Gomes, 396-414). De acordo com Clóvis Moura (2001), não é positivo o fato de linhas históricas enfatizarem a insurreição quilombola apenas do ângulo do enfraquecimento do Estado, despolitizando a força dos Quilombos brasileiros, que se mantiveram durante e pós-escravidão e guerras. Insinuam que a organização quilombola só foi possível devido aos diversos problemas enfrentados pelo Estado, acarretando o afrouxamento da vigilância aos e escravos e possibilitando sua fuga. A crueldade da escravidão é inegável, a dificuldade econômica do Brasil escravista era visível. Contudo, trazer tais elementos como causas primeiras da organização negra é agressiva à capacidade da população negra escrava. Encontra-se aí o perigo de minimizar as estratégias negras, ao acreditar que obtiveram visibilidade apenas porque os senhores estavam muito ocupados com a crise e o Estado economicamente enfraquecido. A seguir, retornando ao auxílio da memória dos remanescentes de Quilombo do Cinzento, montaremos outra colcha de retalhos, para reaproximar os Quilombos dos nossos quintais, entendendo melhor a importância dessas comunidades na contemporaneidade. Apesar do formato histórico e descritivo, expor parcela da ancestralidade libertária herdada pelos Quilombos cumpre o propósito de destacar a relevância da metodologia de libertação africana, aplicada principalmente em Palmares, na ação de destotalização dos povos negros em situação de opressão. O que teria 70 permanecido da herança do percurso quilombola na Bahia? Quais os principais remanescentes? O primeiro mapeamento nacional oficial das comunidades remanescentes foi realizado por Anjos, em (2000) demonstrando o seguinte quadro: Maranhão, com 642 comunidades quilombolas; Bahia, com 396; Pará, com 294; Minas Gerais, com 135; Pernambuco, com 91; Rio Grande do Sul, com 90; Piauí, com 78; São Paulo, com 70; Rio Grande do Norte, com 64. Atualmente, o Brasil possui 2.228 comunidades remanescentes destes antigos Quilombos; destas, 1.400 estão no Nordeste, quase 400 ficam na Bahia40, atrás do Maranhão, com 642. Dos territórios reconhecidos na Bahia, 200 comunidades já receberam os certificados pelo INCRA. A comunidade do Cinzento foi reconhecida e aguarda ser certificada. Contudo, o quadro dos remanescentes de Quilombos no Brasil sofre alteração constante. Isso ocorre devido ao crescimento das identificações das comunidades, pelo entendimento sobre a importância histórica dos remanescentes destes antigos Quilombos enquanto respeitável parte da cultura e da história brasileira. Com base nas entrevistas e participação em atividades com quilombolas do cinzento, e outras comunidades, antecipamos que estas ações de reconhecimento e titulação estão rodeadas de conflitos raciais, territoriais, negação destas identidades e dos seus direitos. Tais ações têm sido lideradas pelas hegemonias nos municípios, que interferem de forma legal ou com violência. O extremo abandono socioeconômico de comunidades de remanescentes na Bahia, ao lado de cidades que têm acesso a saneamento básico, assim como água potável, poços, eletricidade, (pois há comunidades que a desejam), transporte, banheiros etc., demonstra uma experiência de exclusão racial evidente. Dentre as 396 comunidades baianas, citamos o Quilombo do Caonge - localizado em Cachoeira. Área de destaque quilombola, no período colonial -, próximo deste encontra-se o Quilombo Pau Grande e Tijuaçu, em Senhor do Bonfim. Outros 40 A Bahia está alcançando cerca de 500 comunidades no estado, todavia, ainda sem reconhecimento. 71 remanescentes são: o Quilombo Segredo, em Santos Soares; o Quilombo Jatimane, em Nilo Peçanha; o Quilombo Rio das Rãs, em Bom Jesus da Lapa; remanescente símbolo da luta pelo reconhecimento das terras quilombolas, que esteve à frente de inúmeros enfrentamentos, destacando-se sua organização quilombola enquanto entidade negra rural politizada e atuante. Entre outros, elenca-se o Quilombo Barra Bananal, em Rio de Contas. Segundo alguns membros do Conselho Quilombola de Vitória da Conquista, grande parte dos Quilombos do Sudoeste baiano se desprendeu de Quilombos situados em Rio de Contas no início do século XVII, primeiramente fugidos da escravidão e, posteriormente, da fome. Estes andarilhos viajaram com suas famílias para encontrar terras ou condições de vida melhores formando, em grande parte, territórios familiares, de compadres ou amigos. Exemplos destes desprendimentos seria o Quilombo do Velame, em Vitória da Conquista, nome recebido devido à quantidade da planta existente no local, e o próprio Quilombo do Cinzento. Situado em Campo Formoso, o Quilombo Laje dos Negros se caracteriza pela relevância do trabalho de conscientização e engajamento sócio-político, possuindo um amplo quadro de formação e intervenção para o crescimento das políticas quilombolas. Na atuação para desenvolvimento comunitário, conquistou escolas e centros comunitários, resultando em reforma de casas de farinhas, agricultura, artesanato e outros. Enfim, atua na elaboração de projetos sociais, para alcançar crescimento e desenvolvimento. Este remanescente enviou a liderança Hilta à Salvador para completar os estudos e fazer o curso superior. Esta reconhecida liderança local fez o supletivo para obter o segundo grau, estagiou e residiu inicialmente no Quilombo Zeferina, em Pirajá (projeto social de mulheres negras/Yami), ingressou em cursinhos sociais e foi aprovada pela UNEB. A mesma retornou para a comunidade e assume a coordenação de escola da região. Hilta tem sido motivo de inspiração social e formação. Novas lideranças preparam-se no ensino médio e buscam o mesmo destino para o fortalecimento comunitário. Essas comunidades são identidades com projetos coletivos, pontos de partida 72 diversos. Grande parte preservou na memória a história da perseguição aos antepassados. Mantêm atitudes semelhantes, mas preservam suas especificidades. 3. 9 SIMILARIDADES E DISTÂNCIAS QUILOMBOLAS Qual a similaridade entre os antigos Quilombos e os remanescentes de Quilombos que ainda resistem? Sobre esta terminação, Remanescente, o presidente da associação do Quilombo do Cinzento-Ba, Salviano Nunes, diz: “este nome nós não conhecia, nós já se conhecia como quilombola, somente quilombola". Termo igualmente estranho para alguns remanescentes, que em determinadas situações nem estão familiarizados com o termo quilombola. Outras comunidades preferem o termo povos quilombolas. Seu Salviano tem razão, pois a expressão remanescente surgiu na Assembléia Constituinte de 88, sua atribuição vem não unicamente dos processos por títulos fundiários, mas de uma reflexão maior realizada pelos movimentos de consciência negra e parlamentares da luta anti-racista. Segundo Sudfeld (2002, p. 11), o debate quilombola reapareceu para regular uma exigência que aponta para um débito do Brasil com a população negra. Entretanto, sobre similaridades, Moura (1981, p.10) acredita, que a característica que torna singular o Quilombo do período colonial e o da atualidade está no fato de que todas as experiências conhecidas demonstram uma capacidade dos grupos se organizarem. Revelam que apesar de diversas investidas contra a organização, eles “reaparecem em novos lugares, como verdadeiros focos de defesa contra um inimigo sempre ao lado”. Se a identidade não é única, se encontram e se distanciam, existe uma identidade quilombola brasileira? De acordo com Munanga (1984), os Quilombos do Brasil estão relacionados com a África, apresentando-os como uma repetição dos Quilombos africanos reconstituídos por negros aqui chegados e escravizados em oposição à estrutura escravocrata na qual se encontravam todos os oprimidos. Para ele, o espaço do Quilombo foi criado para implantar uma alternativa política. A interpretação retira da leitura quilombola a visão de simples local de fuga da escravidão, afirma uma política que se organiza para além do território Quilombola, visando à finalização da estrutura que os 73 massacrava. Então, sabe-se que os Quilombos se modificam secularmente, no entanto, confirmase que conservam particularidades dos africanos, principalmente dos bantos. Acredita-se ser um acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido, ainda, em Angola como conjunto administrativo. Nzinga nos aproximou deste modelo. Palmares e os remanescentes revelam exemplos da herança africana de forma pedagógica, seguem estilos não utilizados em outros modelos rurais. Todavia, reforça-se o discurso acerca da amplitude destes modelos e posicionamentos diversos, dificultando a resposta a respeito de uma identidade quilombola. 3.10 QUILOMBOS URBANOS A Fundação Cultural Palmares – FCP, (2002) caracteriza Quilombos urbanos como espaços históricos dentro da cidade, considera que, no passado, grande parte da população negra se concentrou naquele território e lá permaneceu conservando determinadas características e acervos religiosos ou culturais. Ressalta que, com o crescimento das metrópoles, tais identidades ficaram comprometidas e fragmentadas nas diversas outras identidades da cidade com outras necessidades. A regularização fundiária na Bahia tanto de Quilombos urbanos como rurais é realizada pelo INCRA. A comunidade escreve o seu histórico utilizando o modelo de auto-reconhecimento41 da FCP (em anexo), e se auto-reconhece do mesmo modo que a comunidade rural. A comunidade aguarda um acompanhamento e verificação das informações. Realizada a confirmação daquela área como remanescente de antigo Quilombo, a FCP entrega ao grupo o certificado. Em Minas Gerais existe um Quilombo urbano reconhecido. Este se encontra em cobiçada área empresarial, sofrendo constantes pressões e necessitando redobrar o engajamento para se manter na área quilombola. 41 A questão do reconhecimento é ação relativamente nova, sofrendo mudanças muito rápidas. Recentemente, os critérios de avaliação para finalizar a titulação sofreram alterações que não agradam ao Conselho Nacional de Quilombos – CONAQ. 74 Os Quilombos urbanos têm origem negra escrava e conservam elementos visíveis e fortes da cultura negra: samba de roda tradicional, grande número de religiões de matrizes africanas, efervescência cultural, costumes tradicionais de saúde, cura caseira, educação dos filhos e filhas, alimentação e outros. Algumas comunidades apresentam uns elementos, e outros não. Todavia, existem aquelas que preservam grande parte dos elementos, destacando-se diante de outros bairros dentro da metrópole. Suas atuais demandas refletem a busca por mudança social, saída da exclusão, desejo de infra-estrutura. Enfim, tematizam a esperança em “retornar a um passado de paz e tranqüilidade quando os filhos e filhas podiam brincar de arraia, fura-pé, bate-lata e os pais contarlhes causos”, ou seja, reconquistar uma vida em comunidade. Devido à necessidade de entender este sentido de vida comunitária, perdida nas grandes cidades, mas preservada e experimentada nos remanescentes, criamos uma sessão de reflexão deste sentido. Os quilombos urbanos enfrentam, na atualidade, um dos mais fortes capatazes: o extermínio de jovens negros, destacando-se a faixa etária de 18 a 28 anos, acompanhado dos senhores desempregos e da disseminação das drogas nos guetos, como modelo perverso de enfrentamento a pobreza e à precariedade do trabalho. Normalmente, também através da memória dos mais velhos ou da preservação da memória conservada por parentes destes, ou moradores antigos, é possível recontar a história da comunidade, dizer como nasceu o bairro, como se vestiam, falavam ou comercializavam os antigos moradores. Descrevem a arquitetura, se queixam das mudanças e das ruas em lugares indevidos; comparam a educação e comportamento dos jovens com a recebida dos seus pais, refletem o que perderam ou ganharam com o desenvolvimento. Lembram de quem se mudou ou facilitou a vida da comunidade gratuitamente, de quem morreu, e da tristeza de pensar que um dia ninguém mais lembrará estas histórias. Nos “centros” e “periferias” urbanas, estes Quilombos preservam muitos aspectos da cultura demonstrada principalmente pela solidariedade e cuidado pelo ser do outro. Segundo moradores do bairro do Engenho Velho de Brotas, a Federação, a Fazenda Garcia e o próprio Engenho Velho de Brotas formavam uma única área. 75 Um engenho de escravos o qual foi dividido em dois (Engenho Velho de Brotas e Engenho Velho da Federação). Este engenho ficava dentro da Fazenda dos Garcias. Fora dividido para abrir estradas formando, na seqüência, a Avenida Vasco da Gama, que agora separa os dois engenhos, “mas tudo era o mesmo engenho de uma grande e mesma Fazenda” (Seu Nascimento). Esta área ainda mantém o prédio do engenho de cana de açúcar - em frente ao Dique do Tororó, atual Pizzaria Habibs. A sede da atual Secretaria Municipal de Educação funciona onde existia uma casa grande (casarão), de estrutura colonial, utilizada antes como internato para pacientes com “doenças mentais”, o Juliano Moreira (Seu Santiago) 42. A outra característica deste conjunto de engenhos e Fazenda Garcia está na quantidade de terreiros43, efervescência cultural de grupos afros, de samba de roda, do samba junino e seus derivados, e do grande número de atores, compositores e artistas da musicalidade de Salvador que se concentram nestes Quilombos citados. Outros territórios caracterizados enquanto Quilombos urbanos, por apresentarem diversas características de Remanescentes de antigos Quilombos localizados no município de Salvador, tais como: Liberdade, Cabula, Boca da Mata, Alto das Pombas/Federação, São Bartolomeu e outros. O Quilombo de São Bartolomeu está localizado dentro do Parque São Bartolomeu, Avenida Afrânio Peixoto - atual Subúrbio Ferroviário de Salvador, chamado de Quilombo do Urubu. Este Quilombo, datado de 1835, compreendia as matas de Cajazeiras, Pirajá. Foi descoberto durante uma perseguição aos Malês, que teriam marcado uma reunião estratégica na área dos Tupis Nambás - de Pirajá a Paripe, as tropas não encontraram os revoltosos Malês, mas as pistas para encontrar o povo de Zeferina. Heitor A. Frisotti (1989) escreve que no caminho do Quilombo do Urubu foram encontrados muitos elementos e roupas de cor vermelha, acreditandose que era um espaço onde se cultuava Xangô ou Iansã. Nestas matas houve 42 Conhecimento obtido em conversa ocasional com moradores do Engenho Velho de Brotas e Vasco da Gama, que se interessaram pela pesquisa, identificados no texto apenas como Seu Nascimento e Seu Santiago. 43 Ao contrário do que se imagina, apesar dos terreiros de candomblé estarem presentes tanto nos quilombos urbanos como nos rurais, a FCP os define como Patrimônio Histórico e Cultural e não como Quilombos Urbanos. O mesmo ocorre com a capoeira. 76 enfrentamento registrado em documento oficial. O combate foi liderado por uma mulher de nome Zeferina. Quando encontrada nas estradas, lutou ao lado do seu grupo, com arco e flecha, guerreando contra a milícia. Além do descrito, Zeferina foi chamada de rainha pela milícia que combateu com ela, pois lutou como uma rainha africana em defesa do seu reino até ser dominada e presa, conservando o mesmo nome na cadeia. A área do Quilombo do Urubu preserva diversos elementos que a caracteriza como remanescente do antigo Quilombo do Urubu, principalmente pela forte permanência dos terreiros de candomblé e o nome de Orixás femininos dados às cachoeiras. Há mais de 15 anos, o parque São Bartolomeu/Quilombo do Urubu, reivindica revitalização para salvar as cachoeiras e a mata e para manter esta memória. No início de 2007, a Câmara Municipal de Salvador aprovou um projeto de revitalização do parque, cujas obras ainda não foram iniciadas. Estes são exemplos da riqueza quilombola guardada na memória de alguns Quilombos urbanos, modelos com diversas características preservadas. Segundo a FCP, muitos Quilombos tornaram-se urbanos em função do crescimento acelerado das cidades nos séculos XIX e XX quando, aos poucos, foram envolvidos pelas áreas residenciais urbanas recém-constituídas. Em função da expansão dos centros urbanos, vários territórios quilombolas foram engolidos e se tornaram componentes de um ambiente até então compreendido como outro. Esses quilombos urbanos, bem como os quilombos rurais, compartilham uma próxima história. Entretanto, alguns remanescentes rurais estão preocupados com as ameaças causadas pelo avanço de algumas cidades próximas aos Quilombos, com a necessidade de gerir o avanço e intervenção dos meios de comunicação permitida com a chegada da eletricidade44. Entendem que estas relações podem resultar na fragmentação cultural ocorrida nos Quilombos urbanos. Enfim, Quilombo urbano é um conceito que reconhece também a história de resistência cultural e de afirmação da identidade afro-brasileira em grandes centros urbanos. 44 Não avaliaremos neste estudo a positividade destas posições, pois é o histórico de cada comunidade que aponta para os encaminhamentos e necessidades. 77 Durante todo o percurso do estudo, tratamos a memória destes grupos como comunidades. Portanto, esta organização apontou a necessidade de uma reflexão maior sobre comunidades. 3.11 COMUNIDADE E MEMÓRIA Segundo Bauman (2006), comunidade aparece como elemento benéfico transportador de conforto, aconchego, abrigo, segurança. A comunidade é o perfil do lugar ideal para se viver e construir laços familiares e encontros de felicidades. Nesta, se deseja e se busca um entendimento compartilhado; um entendimento natural e real. O autor apenas destaca uma preocupação: o fato de a comunidade necessitar falar sobre si, como se estivesse morta. Esta preocupação não procede no caso dos remanescentes de Quilombos, uma vez que ela fala de si para manter viva e fortalecida a história. Falar de si é, pois, uma metodologia para ensinar a quem vive fora daquela comunidade; faz a memória histórica e política, evitando radicalismos. Esta experiência do Cinzento deu certo e seus remanescentes podem oferecer conhecimentos. A comunidade descrita pelo autor é um lugar capaz de aquecer quando está frio e abrigar dos temporais. Na rua, fora da comunidade, está o perigo de práticas ilícitas. Desta maneira, os sentidos dos moradores necessitam ficar atentos para evitar problemas. A palavra comunidade produz uma sensação agradável, promete prazeres e belezas. Na comunidade do Cinzento, apesar de o lugar ser descrito como bom “lugar onde tenta se aprender a ser melhor”, se constitui enquanto uma comunidade de negros pobres, que buscam alcançar uma vida menos cansativa, menos dependente dos esforços da roça. Há, na memória quilombola, sobre os antepassados do Cinzento, uma lembrança de lugar de grande sofrimento e trabalho excessivo, mas que “serviu para manter as famílias no Quilombo”. A comunidade atual relata que as mudanças são poucas. O dia-a-dia no Quilombo ainda reflete muito trabalho agrário para homens e mulheres: ”o trabalho aqui é muito duro, nós queria ter uma vida menos cansada”. Mais de 20 homens, no universo de 50, dizem que não há diferença entre o trabalho feminino e masculino, pois homens e 78 mulheres enfrentam a mata com enxadas, trabalham por hora de serviço capinado, derrubam madeira: “o trabaio é igual pra todos”. A outra parte afirma que: cabe ao homem o maior e mais pesado trabalho. Essa mesma entrevista realizada com as mulheres revelou que homens e mulheres desempenham trabalho duro, sofrido. Tanto um quanto o outro almeja dias melhores com menos sofrimentos e mais alegrias. Entretanto, as mulheres acrescentaram que, além de cortarem lenha, capinarem, plantarem e colherem, elas também fazem a comida, lavam os pratos, cuidam da roupa da casa, se preocupam com as crianças e com o marido. Também lá, as mulheres rebatem e criticam a postura dos homens: “na mata e na roça não tem diferença nenhuma, mas ditardinha, quando se vorta pra casa, nóis ainda cuida da roupa, da janta e dos mininos. E o homem vai discansar”. Além das tarefas da roça e da casa, as mulheres estão firmemente presentes na luta da comunidade. São representantes em assembléias e encontros comunitários, participando como conselheiras, membros de diversas equipes de trabalho; representantes da comunidade em eventos fora e outros. Nestas assembléias, diversos membros da família estão presentes. Os/as jovens participam das atividades dos adultos como conjunto da família. Na comunidade não há escolas para jovens, havendo a necessitam de andarem até a estrada principal do Quilombo para aguardarem o transporte escolar. Esta foi uma conquista da comunidade. Contudo, a convivência com as outras culturas necessita de suporte para não haver abandono dos costumes tradicionais. Esta comunidade necessita de um censo. O mesmo será organizado em parceria com órgãos públicos e privado para revelar o número real de famílias, descobrindo nestas o número de homens, mulheres, jovens e crianças. Este procedimento, além do número, revelará seus principais problemas e necessidades, facilitando a vida da comunidade e abrindo espaço para a continuidade das pesquisas. A descrição inicial, sobre comunidade, apresentada por Bauman (2006) ressalta um grupo que existe primeiramente no imaginário e, possivelmente, em pequenas experiências espalhadas pelo mundo. Na comunidade há clarezas, e os caminhos 79 são definidos. Outros motores que movem a comunidade idealizada são a confiança e o entendimento. Não há estranheza, todos e todas se conhecem e se respeitam. Há sempre disposição para ajudar aquela pessoa que está errando em demasia. Pode-se perceber que, em diversas características oferecidas pelo autor, o modelo idealizado também é concreto e possível de ser encontrado. Nas comunidades menores, a exemplo do terreiro, a mãe ou pai de santo é responsável pelos adeptos iniciados; lá se forma outra comunidade com obrigações a serem cumpridas. Cada participante possui suas responsabilidades: uns cuidam das plantas sagradas, outros da comida, dos animais, outros dos instrumentos do rito e alguns cuidam apenas do rito, havendo ainda aquelas pessoas que cuidam das outras pessoas que estão no rito. Nas comunidades-bairro, o cenário está ameaçado com a violência já indicada, e com a globalização perversa que igualiza as desigualdades mundiais e age de forma cada vez mais compacta. Nestas comunidades a competição e a desigualdade social têm um rosto agressivo, o desemprego e a falta de acesso a bens contrastam com a promessa de ter para ser gente. Os impressos nas grandes mídias e estampas em outdoor nas comunidades, as cenas pós-novelas ficam registradas nos subconscientes. Nas comunidades-bairro, há diversas lideranças, mas não há autonomia suficiente para decidir sobre os rumos da comunidade. Para a comunidade do Cinzento, a TV possui força menor, mas ela tem acesso. No entanto, os meios de comunicação não exercem tanta influência devido à dificuldade de acesso aos mesmos e aos trabalhos desenvolvidos. As brincadeiras, as conversas, as comemorações em comum buscam a preservação da cultura comunitária. Assim como nas comunidades populares, as crianças brincam juntas e participam da vida política da comunidade. Os efeitos da globalização nos remanescentes não superam a força da tradição. Contudo, são evidentes. Nestas comunidades, vale a palavra dos mais velhos, e os novos costumes sofrem resistência e questionamento. Há, no Cinzento, uma intervenção social para a preservação da memória do povo negro. Para tanto, realiza trabalhos educacionais com crianças e jovens para o cultivo da cultura, preservação dos valores, 80 principalmente para o respeito aos mais velhos. As crianças aprendem a importância da história e da obediência aos mais velhos - como aqueles que sabem mais e podem garantir vida melhor para os mais novos. Esta tarefa é realizada por mulheres. Estas, além da agricultura e da educação dos mais novos, dedicam-se ao artesanato, ocupando-se também com a preservação da arte entre as jovens. Estas ações inibem a força da globalização, respondendo de forma diferenciada aos desafios contemporâneos. Para Santos: A globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades. O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. Para entendê-la, há dois pontos significantes, o estado das técnicas e o da política. Contudo, não há separação entre eles. No final do século XX, com o avanço da Ciência, criou-se um sistema técnico liderado pela técnica da informação interligando as outras, assegurando ao novo sistema técnico uma presença planetária. (SANTOS, 2001). O autor entende que a globalização é mais ampla que o novo conjunto técnico. Isso tem a ver com os resultados das ações que asseguram este modelo global. O mercado global que utiliza os mecanismos da unicidade da técnica, da tendência dos momentos, da cognoscidade do planeta e da existência de um motor único na história, constituído pela mais-valia. Globalização torna-se possível devido ao sistema de técnicas e informações que mobilizam o comércio de forma simultânea, utilizando menos tempo para realizar as atividades. Essas técnicas se renovam com muita rapidez e quanto mais atuais são os instrumentos quanto mais empoderados os detentores ficam. Dentro desta lógica, os usuários de técnicas menos atuais detêm menor importância e poder. O uso deste conjunto de técnicas se faz perceptivo pelo planeta, ou seja, os acontecimentos da comunidade do outro estão aos olhos em tempo real. Chama a atenção a contaminação do processo de branquitude que também tenta atravessar o Cinzento nos últimos anos, como exemplo da globalização absorvendo, sobretudo, as jovens mulheres. Sabe-se que as diferenças (negras) agridem, havendo uma doutrinação para que o jovem passe a aderir, muitas vezes, a necessitar do estilo amplamente acolhido, midiático, abrangente e entendido como melhor. Neste ponto, o processo é idêntico ao ocorrido na zona urbana. O encontro 81 com as culturas é importante, porém os cuidados com as contaminações trazidas pela globalização devem ter especial atenção dentro da experiência quilombola. O reflexo da globalização e da aproximação, muitas vezes perversa, não aceita os costumes e jeitos da cultura diferente. Não há aqui uma crítica à junção cultural e nem uma defesa à guetização. Contudo, a aproximação nem sempre respeita a tradição secular cultivada nos Quilombos. Ocorre que na comunidade do Cinzento, ainda há muitas casas de barro, simples e artesanais, cobertas de telhas cerâmicas antigas, antes palhas, com decoração peculiar, outras decoradas com páginas de revistas com fotos de artistas, cortinas artesanais, esteiras de palhas; bancos de madeira ainda são os mais utilizados, pois são feitos na comunidade. Contudo, há famílias que possuem peças diferentes doadas. Estes móveis são decorados com tapetes produzidos de retalhos e, nestes, muitas histórias e memórias emendadas. Na cozinha, os instrumentos são de cerâmica e alumínio. Existem fogões a gás em algumas comunidades, que quase não são utilizados, por causa do preço deste e da dificuldade das empresas chegarem ao local. O usual é o fogareiro artesanal, com formato de um fogão industrial, forno especial a lenha ou carvão, capaz de cozinhar com rapidez, deixando um sabor peculiar. Quem tem acesso ao gás de cozinha prefere utilizá-lo em situação emergencial. Durante o processo de desenvolvimento industrial, o exemplo comunitário foi erroneamente tomado como modelo de rede para os novos trabalhadores que deveriam fazer parte dela: Um esforço consistente em substituir o entendimento natural da comunidade de outrora, o ritmo, regulado pela natureza, da lavoura, e a rotina regulada pela tradição da vida de artesão, por outra rotina artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada. A segunda tendência foi uma tentativa muito menos consistente (...) de ressuscitar ou criar ab nihilo um “sentido de comunidade (BAUMAN, 2000). Essas tendências, acima citadas, acompanharam e compuseram o capitalismo moderno. A idéia consistia em recriar a comunidade, a partir do espaço de trabalho, 82 transformando o emprego numa ação permanente. Contudo, tal experiência de comunidade como modelo industrial fracassou, pois os novos trabalhadores / trabalhadoras foram retirados do modelo de tradição dos hábitos comunitários para obedecerem às rotinas de fardas, horários, vigias severos e ambientes repressivos. Este novo ritmo transformou os futuros trabalhadores em massas. Afastados dos costumes, o conflito passa a existir como possibilidade de salvar o indivíduo da imobilidade dada à categoria de massas, contudo: Segundo Bauman (2000, p. 38), o verdadeiro resultado - ainda que não dito -, dessa guerra foi o de fixar padrões e papéis da comunidade de tal forma que as unidades humanas privadas de sua individualidade pudessem ser condensadas nas massas trabalhadoras. Com as dificuldades do encaixe na nova realidade, as chamadas massas foram injustamente acusadas de preguiçosas, devido à rejeição ao processo de adaptação às novas regras. Na construção do Brasil, as comunidades indígenas brasileiras - em outro processo, foram assim classificadas devido ao fato de não se encaixarem no modelo a que foram forçados. Portanto, no Brasil, a idéia de preguiça se mantém viva, num certo preconceito de que os povos do Norte e Nordeste são seres preguiçosos, que gostam apenas de festa. Em diversas cidades dessas regiões, sem emprego formal, por exemplo, Salvador, o turismo se constitui enquanto principal meio de sobrevivência das comunidades empobrecidas. Normalmente, negros (maior parte no Nordeste) e indígenas (Norte) estão trabalhando nas inúmeras festas que acontecem. Para tanto, Bauman, reforça o discurso de Thorstein Veblen (p.31), negando a idéia de aversão ao trabalho ou natureza preguiçosa das massas, nas tentativas de encaixe e reencaixe. Ele debate sobre a distância entre preguiça e trabalho sem propósito ou sem sentido como elemento principal do discurso que acusava as “massas”, desde o advento da indústria moderna até a falta de emprego. Ainda, Bauman (p.32) referencia-se em Veblen para argumentar que “a relutância em realizar tal trabalho violou os instintos humanos, pois foi desenvolvido de maneira forçada favorecendo as interpretações de indolência das massas”. Este fato arruinou o sentido de comunidade enquanto “intrincada rede de interações” humanas que imprimia cunho ao trabalho, dando-lhe significado, ação objetiva e escapando do 83 mero empenho. A teia indicada demonstra a diferença entre o trabalho pensado como dignidade e honra conhecido como esforço, e aquele desligado dos valores, chamado de labuta. A futilidade está explicitada pelas vigilâncias, obediência às máquinas e a triste impossibilidade de admirar ou adquirir o produto produzido, por esforço chamado de fútil, porque era extremamente bem- feito, dentro dos critérios exigidos, mas abominado. 3.12 QUILOMBO DO CINZENTO: “RETALHOS DE NOSSA MEMÓRIA” Segundo Ecléia Bosi (1995), memória está colocada como a oportunidade de exercer a alta função da lembrança. Ocorre não devido a uma perda de energia ou sensações, mas pela deslocação dos interesses e evocações. Necessita de uma inteligência sobre o presente, indicando que seu papel é a informação organizada sobre o passado, capaz de coordenar o tempo, localizando-o cronologicamente, sem pretensão de antecipar o presente, mas servindo de fonte para este. Na memória quilombola, a inteligência sobre o passado e presente se confirma nas experiências das comunidades, como uma lembrança de povo negro. Sabendo-se que a comunidade do Quilombo do Cinzento formalizou uma declaração de auto-reconhecimento, já respondido positivamente; que a titulação das terras é aguardada pelo INCRA, sob muitos desafios. A conquista inicial do Quilombo do Cinzento deu-se através de um trabalho de mapeamento dos remanescentes de Quilombos realizado em todo o Brasil, implementado pela Secretaria de Governo e prefeituras. Em Vitória da Conquista, a atividade foi realizada pela Secretaria de Planejamento, nos anos de 2004 a 2006, em parceria com entidades do movimento negro. Essa atividade tinha a função de subsidiar as comunidades para possibilitar o reconhecimento legal, favorecendo a entrada de recursos para desenvolvimento geral e reativar a memória. Estas ações fomentaram reuniões com essas populações, capacitações, orientações, resultando na criação da Associação local, bem como de um Conselho quilombola da Região Sudoeste, há três anos. Desta forma, as comunidades e o Conselho elaboram declarações que são despachadas à Fundação Palmares. 84 Apesar de reconhecer o extremo valor de uma memória coletiva, a autora explicita que é o indivíduo quem lembra. Ele funciona como o memorizador que seleciona os fatos mais significativos para ele, dentro do tesouro comum do coletivo. No Quilombo do Cinzento, muitas pessoas se uniram para resgatar o passado da comunidade e afirmar o discurso de membros da associação. “Tais relações fixam imagens na memória das pessoas, filtram, acrescentam, diferenciam, corrigem e, por fim, recebem as interações do grupo ao qual pertencem” (BOSI, 1995, p. 411). 85 CAPÍTULO III 4 REFLEXÔES FINAIS A PARTIR DE UMA ÉTICA QUILOMBOLA Este capítulo propõe um caminho para re-pensar a situação de desigualdade na qual se encontra a população negra, como uma questão ética. A estrutura ética proposta neste estudo revela-se por ser um serviço orientador aos povos em situação de opressão, por exemplo, os remanescentes de Quilombos. Contudo, se dirige a todos os negros e negras em situação semelhante, por isso, está referenciada como ética quilombola, demonstrando a necessidade de justiça e respondendo às injustiças feitas à humanidade dos negros (como poderia ser das mulheres, indígenas e de outros povos minorizados). Essa necessidade reflete as reais possibilidades de diminuição das desigualdades, discutindo os fundamentos históricos alicerçados pela prática do racismo. O racismo como sistema integrado total, é uma questão de monopólio e gestão racializada dos recursos da sociedade e do planeta. O seu desmantelamento e sua erradicação nas consciências coletivas implicam a determinação de seu proceder a uma desracialização concreta da sociedade. Ora, esse objetivo está subordinado a uma precondição: a saber, que a sociedade proceda à gestão e à repartição dos recursos vitais de uma maneira racialmente eqüitativa (MOORE, 2007). Por isso, a necessidade de planos reparadores das estruturas étnico-raciais, vislumbrados a partir de políticas sociais. Na seqüência, este capítulo empregará cabelo como fio metafórico45, enquanto elemento que acompanha a população negra desde a África, reunindo um significado social que vai mudando de acordo com a cultura ou classe social. A questão ética ressurge nesta reflexão quilombola porque sua compreensão envolve todos os campos do conhecimento humano, evidenciando um humano contextualizado que necessita de soluções para realizar o projeto traçado, ou imaginado, que transcorreria com naturalidade. 45 Esta metáfora será um recurso literário utilizado em forma de um conceito ou imagem para falar de outra coisa que não necessariamente esta, mas de alguns aspectos importantes do conhecimento em questão. De tal modo, o interesse de uma metáfora não é a idéia ou imagem usada, mas o que esse uso significa. Dic. Escolar de Filosofia. 86 4.1 UMA ÉTICA A SERVIÇO DA COMUNIDADE NEGRA A ética arrisca-se em perder o sentido de mundo e de realidade histórica quando despreza a dimensão humano-política e a contribuição dos povos. As exigências éticas contemporâneas propõem um reconhecimento da dignidade da pessoa por ser ela humana. Essa humanidade em questão é a do Quilombo do Cinzento e a da população negra em situação de desigualdade. Esta ressalta a necessidade de interagir não apenas com as comunidades em situação de dominação, mas, sobretudo, com as hegemonias, com os poderes constitutivos da lei. A estrutura ética visa entender a reparação como justiça ética, identificando políticas para diminuir os impactos do racismo, possibilitando a realização do crescimento verdadeiro para a população negra. Uma ética a serviço dos quilombolas46, ao contrário da moral, (que tem regulado vários modelos de sociedade), tem como base impulsionadora as relações humanas. Nesta consideração quilombola, utiliza-se a ética para refletir sobre como se estabeleceu o atual contexto. Neste sentido, a ética também necessita ser radicalmente política, pois questiona a desigualdade, entendendo a urgência ética de examinar um presente que se compôs sobre as vítimas e o anseio de que estas sejam respeitadas no seu modo peculiar e novo. Os quilombolas encontravam-se e ainda se encontram em um âmbito de afirmação de direitos. O discurso étnico-racial é certamente o discurso do Não-Ser, pretendido e projetado para se garantir como humano. A questão posta cita um sistema de políticas que, ao mesmo tempo em que se instala, cumpre sua missão de diminuir as desigualdades sócio-raciais neste país. Na questão da identidade, Heidegger apresentou o Ser como o fundamento do mundo. Dussel acrescentou que em muitos processos históricos o fundamento - que deveria ser preservado como humano -, perdeu de vista esta presença humana enquanto projeto, transformando o ser humano em ser do econômico - o dinheiro -, ser da erótica machista - o falo, ser do racismo: a cor da pele, o tipo de cabelo, nariz e outros. Ou seja, o ser de um sistema ou o fundamento tem se explicado pela totalidade. 46 Reafirma-se e acrescenta-se, a partir daqui, quilombolas enquanto todos os negros/ negras em situação de exclusão, estando ou não em área remanescente de quilombo (urbano ou rural). 87 De acordo com uma das totalidades do racismo: a idéia de que o tipo de cabelo constitui um Ser e, considerando que a idéia de Quilombo se espalhou pelo Brasil, a arte na cabeça não ficou para trás. Contrária à totalização, a utilização do cabelo como mecanismo político constituiu-se enquanto elemento que acompanhou a população negra em toda a história 47 . Que projeto ético pode haver no cabelo, que política ou modelo de afirmação há nele? 4.2 CABELO COMO METÁFORA Cabelo veio da África, junto com meus santos. Benguelas, Zulus, Gêges, danças, tranças, cantos respeitem meus cabelos, brancos. Se eu quero pixaim, deixa se eu quero enrolar, deixa. Se eu quero colorir, deixa. Se eu quero assanhar, deixa. Deixa, deixa a madeixa balançar48. Assim, a evocação de liberdade, realizada pelo compositor para a sua cabeça refletida no cabelo, cobra atenção para a dificuldade em ser esteticamente livre. A poesia corresponde às agressões diárias feitas as pessoas que decidem utilizar qualquer estética negra, principalmente uma estética que revele o cabelo crespo, visto que o cabelo, no Brasil, ajuda a definir quem é negro/negra. Representa um estilo, uma atitude ou um posicionamento sócio-político. As visitas ao Quilombo do Cinzento permitiram ver que grande parte das mulheres adultas do Cinzento utilizava os cabelos cobertos por lenços e panos. O que suscita esta atitude? Na mítica bíblica da história de Sansão, cabelo significava a raiz da força capaz de vencer gigantes e destruir edificações. No Brasil, ligado à sexualidade, o estilo do cabelo feminino reforçava o estado civil das mulheres até o século XIX, presos, para as casadas, e soltos, para as solteiras. As mulheres religiosas também utilizam os cabelos cortados ou escondidos ao fazerem os votos, guardando-os dentro do véu. Acreditava-se diminuir a sensualidade, o assédio e a vaidade feminina depositada nos cabelos. A moda francesa indicava que quanto mais aprimoradas fossem as perucas, maior seria o poder do nobre; os bigodes dos coronéis e barões do café 47 Apesar dos enormes condicionamentos e pressões no jeito negro de ser, o cabelo favoreceu o surgimento de novos estilos e sentidos que vêm sofrendo imensos embates devido ao racismo que entendeu a diferença como negativa. 48 “Cabelo” – letra da música do cantor e compositor Chico César. 88 também ligavam cabelo a força e poder. Enfim, cabelo confirma-se como elemento transmissor de informações e posições. Cabelo negro, como veículo africano, compunha um importante instrumento internacional de combate à discriminação racial e afirmação política ocorrida nas décadas de 60 e 70. O de estilo natural remetia às origens africanas; daí, mundialmente, a população negra dos Estados Unidos optou por autodenominar-se de afro americanos, e não mais de negros norte-americanos. Segundo Nilma Gomes, (2006, p. 219), o cabelo conhecido como Black Power esteve associado a posicionamento político, enquanto o afro natural era um cabelo menor e mais arredondado. Tais movimentos de consciência negra ocorreram tanto na África como nos Estados Unidos alcançando o Brasil, enquanto estratégia política de combate ao racismo e promoção da auto-estima. A posição política do cabelo apareceu como instrumento de oposição à exigência de uma brancura. A autora distingue o movimento de consciência negra das outras organizações sociais pelo fato da denúncia do racismo associada à reflexão sobre a existência de condicionamentos intensos que dificultavam o posicionamento político diante da questão do racismo. Ainda, a autora explica que, a simbologia do cabelo na África pré-colonial distinguia o pertencimento e a hierarquia dos grupos. A Identidade negra, ao favorecer o surgimento de novos estilos e sentidos, nem todos desgarrados da África, preservava, em grande parte de ativistas ou não, o sentido político do cabelo, ou seja, respeito pela história da comunidade negra espalhada pelo mundo. Entretanto, outro debate aponta para a exploração econômica com o crescimento da empresa dos cosméticos étnicos, que decolou nos anos 90 enquanto fator relevante na tensão colocada. Se, no Brasil, cabelo define também quem é ou não negro, a indústria aproveita economicamente este dado e o aplica onde houve, em certa medida, uma descontinuidade histórica da raiz africana. Apesar das suspeitas de contaminação pela aproximação com modelos hegemônicos muito recentes, as mulheres quilombolas entrevistadas não puderam esclarecer qual foi a porta de entrada dos produtos de alisamento para cabelo 89 crespos no Quilombo, porque grande parte dos artefatos consumidos na comunidade não são industrializados. Algumas mulheres quilombolas aderiram aos produtos sem conhecer a alta quantidade de amônia ou de solda cáustica envolvida, danificando o cabelo na raiz e destruindo o que antes era abundância. As embalagens também não explicitam, - nem poderiam -, que, para que os cabelos crespos suportem o excesso das composições químicas são necessárias outras quantidades de equilibradores caríssimos, que evitam a queda de algumas estruturas de cabelos crespos. Em visita posterior foi identificado que este evento reativou a tradição do trançado entre as jovens que, quando perguntadas sobre quem está ensinando, respondem que sempre souberam traçar cabelo com ou sem fibras: “ninguém ensinou a gente”. As mulheres se encontram para o trançado e para acúmulo de aprendizados. Enquanto trançam, criam modelos e refletem sobre o prejuízo causado pelas químicas. Três jovens quilombolas afirmaram que: “se eu soubesse que caía, nunca botaria isso no cabelo”. Enfim, afirmam que os produtos entraram, mas não permaneceram devido aos danos provocados. No processo de caminhada para o Quilombo do Cinzento, a aproximação demonstrou que muitas mulheres adultas já utilizavam o alisamento a ferro. Mas, sendo o cabelo veículo capaz de transmitir diferentes mensagens, possibilitando as mais diferentes leituras e interpretações, qual a explicação para o excessivo uso do lenço no Quilombo do Cinzento? Estes são utilizados tanto para proteger, como por costume comum: ”minha avó e minha mãe usava muito pano na cabeça e eu sempre usei também”. Algumas mulheres são vítimas dos condicionamentos sociais que criticam seus estilos, pois não são mais comunidades isoladas. Tais condicionamentos empurram as pessoas para a procura de um modelo de beleza aceitável. Outras usam o pano no cabelo apenas na roça para protegê-los do sol. Em outras, percebe-se a continuidade da raiz africana. Consideram-se mais arrumadas quando estão com algum instrumento na cabeça. O percurso do estudo revela que a identidade negra esteve ligada pelo elemento cabelo. Apesar do contato e da imposição de um modelo branco no contexto racial, a 90 diversidade no cabelo afro nem sempre demonstra uma recusa do ser negro ou uma imitação do modelo branco (mesmo sendo o mais comum), mas um mecanismo já utilizado na África, no Brasil colonial e na contemporaneidade para facilitar o pentear, que ia do alisamento quente ao uso das vaselinas. Algumas pessoas demonstram o profundo orgulho em ser negra, entretanto, não associam isso a cabelo e/ou estão acostumadas com a praticidade do cabelo alisado desde os tempos do ferro artesanal aquecido. Em uma sociedade que dispensa tratamento de acordo com a pele e o cabelo, a situação de alguns homens negros de cabelos crespos, principalmente executivos ou pessoas em altas funções, envolvidas no mesmo quadro de condicionamento, de forma geral, aderem a um estilo sem cabelo. Outros os mantêm na ‘máquina um’ e passam uma porção discreta de alisamento, dificultando a sua identificação, conforme ressaltou Munanga (1999), no debate sobre as identidades. Através de entrevistas realizadas com entidades promotoras de ações voltadas para a eqüidade racial, cabelo foi definido com as seguintes respostas: a) A forma de luta contra o racismo, pois o cabelo crespo ainda é tido como ruim e seu aspecto volumoso como desagradável e assustador; b) O modo de utilizar o cabelo em muito tem sido ampliado, atualmente não somente aqueles /as que se identificam como negros estão utilizando os cabelos no estilo afro, mas quem os trança são majoritariamente pessoas negras; c) Aquele que foi sempre alvo de ataque, dentro da ideologia do branqueamento, que nos mantinha invisíveis como sujeitos de direitos; d) O mecanismo através do qual houve um não à discriminação racial, assumindo-se os cabelos crespos; e) A sociedade foi vendo, tolerando, até que hoje, está cada vez mais difícil negar a beleza, onde o cabelo é fundamental; 91 f) Cabelo fez revoluções estéticas que tomou proporções políticas. Essa percepção e astúcia de adolescentes negros da Associação Cultural Pé de Moleque com cabelo afro, posiciona cabelo com caráter surpreendente: representação da cultura e da descendência negra. Neste estilo, se sentem confortáveis, bem e bonitos. Afirmam que o cabelo afro os deixa à vontade consigo mesmo. Sentem-se melhor com este estilo do que com as ‘químicas’ de alisamento. Acreditam que tem mais a ver com o perfil dos negros/ negras: “é a minha cara”. Contudo, se mostram aborrecidos ao serem constantemente questionados sobre o uso deste estilo. Falam que são muitos os preconceitos sofridos quando se assume um cabelo afro. Muitas pessoas dizem a eles que estão feios ou sugerem tratamento ou cortes, como se não conhecessem as outras opções. 70% dos entrevistados/as entendem estas afirmações como uma posição discriminatória. Assumem que reagem às críticas racistas contra o cabelo e 30% se mantêm assustadas/os pela forma como as pessoas interferem no jeito de ser de outras. Alguns/as mostraram que são ‘’pegas de surpresas “e não têm reação, pois não esperavam que as pessoas se incomodassem com isso”. Membros do movimento rastafári entendem a questão do cabelo enquanto símbolo de pertença. Acreditam que seja a religação com as raízes do continente africano. Afirmam que os povos das regiões africanas já cultivavam o cabelo rastafári. Enfim, cabelo rastafári também consiste numa resposta ao padrão que tentou distanciá-los da estética africana. Os cachos colados em forma de gomo fazem analogia às “antenas capazes de captarem as vibrações”. No contexto brasileiro, está relacionado ao resgate da auto-estima. Segundo a comunidade rastafári Nova Flor, na tradição judaico-cristã, o cabelo faz referência ao leão de força, majestade e poder (interpretado como o próprio Jesus Cristo), bem como ao voto nazireato que não permitia o corte do cabelo ”Enquanto durar seu voto de nazireato49 não raspará a cabeça com navalha; deixará crescer livremente os cabelos, até que acabe o tempo pelo qual se consagrou a Javé”. (Números 6; 5). 49 Compromisso de aliança com Javé que, além do cabelo, carrega diversos elementos de purificação. Bíblia Sagrada, Números 6, versículo 5 ss. 92 Todavia, a reflexão de Nilma Gomes conclui que enquanto na África o cabelo, as tranças e os turbantes eram sinais de força, energia e identidade, com a escravidão, estes símbolos foram rejeitados e indicados como feiúra. Para serem aceitos, estes sofrem as transformações acima referidas; ou, independente da aceitação, criam posicionamentos estéticos e políticos. Percebeu-se, a partir da discussão sobre cabelo, que apareceu como um dos pontos de força para trazer à superfície as diferenças e a identidade negra, que as partes as quais compõem as sociedades são espaços para entender suas posições no mundo enquanto diferença e, como tais diferenças tornaram-se - perversamente -, motivo para exclusão dos direitos, torna-se categoria inseparável da existência humana. A seguir, dentro do quadro que aprisiona as diferenças e a utiliza como gesso para emoldurar a dominação, o tópico seguinte realiza uma crítica pontual aos condicionamentos, agrupando-os enquanto racismo. 4.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO50 Para MOORE (2007), a confirmação da anterioridade da presença dos povos negros a qualquer outro se ratifica como um fato, que parece posterior: o problema de que o racismo se constitui em um fenômeno antigo, presente em todas as nações nãonegras. E, se dos povos de pele negra procedem todos os outros, fica evidente que o fato explicado por mitos antigos confirma-se a aversão aos povos negros, na Europa, Oriente Médio e Ásia Meridional, assim como a sua presença em todas as regiões. Confirma-se, portanto, que se o racismo não é fato novo, a presença destes povos é irrefutável. A hostilidade e o medo da cor especificamente negra é um fenômeno francamente universal que se encontra nos mitos e na cultura de todos os povos não-negros. Essa primeira constatação, facilmente verificável por intermédio do exame dos mitos arquetípicos dos povos euro-semitas da Europa e do Oriente Médio51, indubitavelmente, a ocorrência, em épocas longínquas, de graves conflitos entre povos melanodérmicos e leucodérmicos nessas regiões. “Não vemos outra explicação valida para a 50 Crime inafiançável, com previsão de pena de um a cinco anos. Lei CAÓ, 7.716/1989 51 O autor pesquisou Yvanoff, 2005; Isaac, 2004; Lewis, 1982; Monneyron, 2004. 93 ubiqüidade da repulsa e do medo que causa a cor negra: “luto”, “tenebroso”, “maléfico”, “perigoso”, “diabólico”, “pecado”, “sujo’,” bestial”, “primitivo”, “inculto”, “canibal”, “má sorte”... (MOORE, 2007). Segundo Luz (1995, p.301), racismo e discriminação não são exclusividades brasileiras, estão presentes em todos os países com diversidade étnica. Contudo, no Brasil, aplica-se um sistema particular de relações raciais. Telles (2003) ressalta que a questão racial se constitui como conteúdo de grande interesse dos cientistas sociais, porém identifica que os resultados são opostos e se caracterizam por um visível distanciamento entre as gerações. Para a antropologia, interessa como o termo raça é utilizado para construir identidades culturais. A Ciência discursa sobre a raça como humana, sem divisão, pois somos todos da espécie Homo Sapiens. O racismo embasou-se na existência de uma diversidade de raças, no entendimento das diferenças e afirmação da superioridade de uma raça sobre a outra, ideologia fundada por Joseph Arthur Gobineau, entre 1853 e 1855. Aproximando-se da teoria de Gobineau, Houston Stewart Camberlain e Alfred Rosemberg52, em 1918, disseminaram a idéia de supremacia racial, que foi apropriada e utilizada por Adolf Hitler para assassinar judeus, deficientes físicos e homossexuais, em nome de um grupo supremo e ariano que deveria dominar sobre os outros, os matando- os como insetos – com gás – varrendo-os do mundo alemão e os associando a uma subcategoria humana. Ocorrendo no século XX uma efervescente militância anti-racista, a Antropologia, a Sociologia e diversas áreas do conhecimento questionaram as teorias racistas, daí as análises científicas confirmaram que diferenças entre os povos são mínimas. Portanto, diferenças entre indivíduos importam mais que aquelas entre os povos. Estudos científicos ratificaram que, no Brasil, existem pessoas com características negras sem marcadores genéticos peculiares do povo africano, no entanto, há pessoas brancas com marcadores genéticos característicos da população africana. 52 A partir da experiência com o tema, Rosemberg empresta cunho científico às idéias de Hitler, visto que havia escrito uma doutrina sobre a supremacia germânica. Veja mais sobre isso na obra O Mito do Século 20, de 1930, em Telles, 2003. 94 A partir destes vastos estudos a Biologia, a Sociologia e a Antropologia atualizam o termo, concluindo que não há raças. A preocupação com a conceituação de raça, no primeiro contexto apresentado, demonstra que tais discursos, são muitas vezes, utilizados para ”legitimar a dominação das raças”, supostamente entendidas como superiores. Cabe, porém, evidenciar que, neste trabalho, o conceito de raça permanece enquanto categoria de análise, ou “uma construção social” (PNUD, 2005). Maggie e Rezende (2002) reafirmam o debate acima colocado indicando que, no Brasil, o termo raça está relacionado com um discurso sobre cor, envolvendo uma linguagem descritiva. Raça está posta para descrever status social ou serviçal agressivo. Se o termo está relacionado com cor, isso significa ser um não-branco, ou seja, a chamada pessoa de cor: negra, amarela ou índia. Cor também aparece ligada à identidade política. As autoras relatam que a definição de raça/cor originase de um sistema de classificação racial norte-americano de Marvin Harris de 1970, que demonstrou a avaliação imprecisa da identidade racial no Brasil. Esse discurso descritivo identifica a pessoa pelas diferenças na tonalidade de pele, no estilo do cabelo e traços faciais. A cor descreve aparência e identifica as pessoas com termos tais como: mulato, moreno, sarará e outros, para diferenciar aquele ou aquela que não é visivelmente negro nem branco. Descreve sem categorizar, pois está preso às características físicas. Segundo Telles (2003), a categoria raça aparece como uma idéia afirmativa de que as diversas tentativas de inferiorização da população negra que ganharam status científico no século XIX foram desacreditadas. No entanto, estes conteúdos permanecem enraizados no pensamento social. Lembra que apesar de raça não possuir valor científico e estar fora da natureza, existe uma larga compreensão deste conceito. Não representa diferenças genéticas, mas gera diferença de comportamento, atitudes e entendimentos. A idéia de raça traz, de forma impositiva, subcategorias criadas de forma hegemônica para guiar o tratamento com as outras pessoas. Apesar de ser um conceito inventado, as conseqüências são concretas, causando um comportamento 95 discriminador e empurrando as pessoas para a humilhação, inferiorização, pobreza e pouca expectativa de vida. O resultado da comparação dos estudos sobre a existência do racismo demonstrou, que a pesquisa sobre o crescimento do racismo no Brasil nos anos 30 a 60, apresentou a miscigenação de maneira positiva, enquanto avanço nacional sem conflitos, negando a existência do racismo e reforçando o que se chamou, por muito tempo, de democracia racial, cortina que contribuiu, efetivamente, para o velamento das desigualdades. As pesquisas da década de 70 buscaram outro caminho: iniciaram ainda no princípio dos anos 50, ora negando os pressupostos que positivaram o papel da miscigenação brasileira, ora ignorando. Os últimos estudiosos desmentiram a idéia de pouco ou nenhum racismo, demonstrando um quadro de extenso racismo. O estudo de Moore (2007), citado no início do tópico, merece ser retomado, na medida em que apresenta bases atualizadas para uma releitura da questão do racismo, pois considera os estudos até aqui realizados. Além disso, remonta a estudos valiosíssimos sobre as Antiguidades e períodos anteriores, para fundamentar sua tese. Confirma que o racismo não é um advento da Modernidade Ocidental. Portanto, a noção de raça, acima discutida, não seria a gênese do racismo. Tal concepção é insuficiente para avançar na compreensão sobre racismo, que é anterior ao mundo moderno. Justifica seu argumento aprofundando o racismo nas civilizações greco-romanas que, segundo Benjamim Isaac, origina o racismo da modernidade. Demonstra o desenvolvimento de um racismo econômico, ocorrido com o crescimento do capitalismo até a contemporaneidade. Este autor prefere as pesquisas de Fournier-González e também a já referida e avançada pesquisa de Cheikh Anta Diop. Devido à presença do povo negro e dos diversos conflitos registrados na história, confirma-se um racismo anterior à modernidade. Para esclarecer que tipo de desconexão ocorrera sobre o fato de não haver grandes históricos a respeito, necessitando grandes esforços para remontar o passado, Moore (2007) explicita que, apesar de muitas sociedades viverem de forma independente uma das outras, o racismo foi cultivado nas consciências. Todavia, as origens da humanidade são 96 esquecidas porque, conforme demonstra o fragmento: O homem cria representações simbólicas53 que reconhece, mas também representações simbológicas que lhe escapam após tê-las concebido. Trata-se de formas de consciência determinadas historicamente, e conseqüentemente, desprovidas de sua própria memória. Desse modo, tem a capacidade de subjugar, e individual ou coletivamente, o próprio sujeito que as criou. Ao longo da historia humana, os processos de simbologização, que implicam, sempre, uma “perda da memória autoral”, têm dado origem a diversos mitos fundadores de crenças, cosmogonias e religiões. A religião, os mitos cosmogônicos, o sexismo, o anti-semitismo, o racismo e a homofobia são exemplos característicos de irredutíveis formas de consciência determinadas pela história. De todas elas, o racismo aparece como a forma de consciência mais violenta e abrangente, porquanto, ele implica uma vontade e intenção de extermínio do Outro Total (MOORE, 2007). Esta fundamentação desconstrói a idéia de um racismo moderno baseado nas novas noções de raça, criticadas pelo autor, afirmando não ser este um campo da Biologia, contudo, da Sociologia e Antropologia. Nega o conceito como novo, mas como um processo, visto que Darwin já havia indicado o processo de desenvolvimento da Humanidade enquanto movimento que foi ganhando novas formas físicas no tempo e no espaço. Apesar das evidências e das tentativas de dominação pela raça, na atualidade o conceito de raça apresenta-se enquanto necessidade teórica e prática nos estudos e nos processos como políticas públicas. A abordagem afirma o caminho inicial deste estudo: tais marcos reflexivos são elementos-base para o crescimento de uma nação, fomentando a análise, indicando propostas para eliminar os entraves ao desenvolvimento humano, demonstrando a contribuição desta população excluída para o crescimento do Estado e “enquanto elemento indissociável do futuro do país” (RPNUD, 2005). A condução desta pesquisa interessou-se por perceber que entidades de cunho étnico-raciais compreendem a formulação conceitual sobre raça única, aceitam as formulações científicas de que a população negra pertença à mesma espécie humana (e que a espécie humana tenha origem negra). Os entrevistados/as 53 O autor separa simbólica de simbológica. Simbólica é a representação imaginada, criada, e simbológica, reformulação que sofreu distorção simbólica e define simbologização como o processo pelo qual se constitui o novo imaginário. 97 explicitam que abandonar ou substituir o termo raça por etnia traduz-se em perda política, porque raça projeta para um poder cultural, ancestral e político para discutir ética, justiça e cidadania. Estes atores/atrizes acreditam que o abandono do termo raça enfraquece politicamente a luta contra a discriminação racial, visto que no Brasil raça foi um termo construído histórica e politicamente. Está relacionada com auto-afirmação, pertencer; solidariedade, hereditariedade, ancestralidade, orgulho de potência, bravura e coragem. Enfim, o termo foi reposicionado, para reconstruir a identidade negra atrofiada pela escravidão. Ainda, Raça pode ser analogicamente comparada a uma grande cabaça, conhecida pelas tradições de matrizes africanas como uma espécie de útero do mundo. Ali são geradas sementes entre redes e entrelaces que se diferenciam ao nascer e se diversificam, dando origem ao que a Antropologia denomina de etnia. Ou seja, a raça é o útero que gera filhos e filhas diferentes que vão formando agrupamentos diversos, conservando a individualidade inicial, a etnia, fio da raça, cria o diferenciamento dos grupos, formando as identidades étnicas - gênese cultural da humanidade -. Nestas novas redes, formam-se grupos saídos da cabaça, destacando-se as culturas e o modo de estar no mundo. Adolescentes negros consideram o racismo enquanto atitude abominável. Propõem que as pessoas se informem sobre a cultura afro, se conscientizem para deixar de ser racista; que respeitem as outras no seu jeito de ser, de vestir, usar o cabelo afro, ou trançado. Enfim, que haja mais respeito. Mesmo sendo ainda muito jovens, relataram diversas experiências discriminatórias sofridas, que causam sofrimento e indignação. Quilombolas do Cinzento, ao serem questionados sobre racismo demonstraram: a) não saber o que era isso; b) duvidaram que ainda ocorresse, confundindo o termo com escravidão; c) Os que conheciam o significado demonstraram não entender o porquê de uma pessoa se considerar melhor que a outra por causa da cor da pele. Uma das entrevistadas, de pele bastante retinta, disse: “quando vou a Planalto tem gente que me aponta e ri”. Ela percebe que a estão criticando ou discriminando. Respondeu que no ano passado precisou dar uma resposta bastante dura e pensa que aquilo foi um tipo de racismo. 98 Para atingir uma atitude ética e política diante de um grupo minorizado54, a opção desta pesquisa acolhe o termo etnia/raça, ou étnico-racial para justificar o explicitado durante o estudo. Reforça-se, neste horizonte, outra manifestação do segregacionismo, capaz de se reproduzir instrumentalmente: o racismo Institucional. O Relatório do PNUD de 2005 evidenciou que o racismo constitui-se, confirmadamente, em um impedimento de acesso aos direitos. Apresenta-se de forma sócio-econômica, primeiramente pela discutida desigualdade e falta de oportunidade e é revelado de maneira institucional, quando as instituições e políticas públicas invisibilizam a população negra, caracterizando o racismo institucional. 4.3.1 Racismo Institucional Sistematizada em 1967, a idéia de racismo Institucional refere-se a estabelecimentos de estruturas sociais onde instituições reforçam a exclusão racial, utilizando-se de mecanismos sofisticados. O racismo institucional caracteriza-se pela inabilidade coletiva que uma instituição apresenta em gerar ações apropriadas devido ao grupo étnico-racial ao qual o indivíduo pertence. Estes modelos de exclusão são violentos elementos de discriminação. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação por meio de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que prejudicam determinados grupos racial-étnicos, sejam eles minorias ou não55. Este texto demonstra que o conceito de racismo institucional ultrapassa o caráter individual da atitude racista, convocando, a nação para uma reflexão ampliada no campo político de diversos sistemas, tais como: educação, saúde, política e outros, para indicar estratégias de erradicação do racismo. Entretanto, com base no debate acima, devemos reforçar que este conceito está intrinsecamente relacionado com o 54 Minorizado porque há uma força hegemônica que mesmo não sendo maior, em número, exerce um poder econômico-social e geográfico diante do diferente, chamando-o de minoria. Prefiro utilizar o termo minorizados, porque que retira do explorado/ explorada a responsabilidade pelo seu condicionamento. Mészaros, 2004, ao discutir hegemonia, modernidade e pós-modernidade, questiona maioria, indicando-a como quem está no controle e pode alterar os conceitos. 55 Apud Wânia Santana. Proposta N° 88/89, 2001, in Werneck, 2004. 99 surgimento do racismo e das sociedades mundiais. Estas, continuamente, criaram decretos, leis e mecanismos diversos para manter a população negra afastada. Vale lembrar movimentos antigos, tais como os instituídos pela Coroa portuguesa e Ordenações, impedindo o acesso às escolas, às Igrejas; e aos recentes, como a negação do direito ao voto, o apartheid e demais ações camufladas. Porém, a proposição sobre um racismo sempre existente, de Moore, mas que se agravou à medida que as sociedades supostamente avançaram, evidencia que o fundamento do racismo segue uma dinâmica ampla que desafia o seu entendimento, pois muda e se adapta às sempre novas estruturas. Todavia, propõe catalogação das ações como forma de tradução da sua existência palpável, sendo possível de ser detectado em três horizontes diferentes, os quais se atrelam de maneira autônoma e independente. Esta elaboração também apresenta importantes conceitos de racismo: 1). A fenotipização de diferenças civilizatórias e culturais é explicada como metodologia simbólica pela qual uma sociedade, transformada em grupo predominante, acorda, coletivamente, a rejeição de uma alteridade ‘fenotípica’, objetivando praticar uma dominação grupal inabalável sobre essa última. 2). A simbologização da ordem fenotipizada por meio de transferência do conflito concreto para a esfera do fantasmático (isso implica fenômenos como a demonização das características fenotípicas do vencido, em detrimento da exaltação das características do segmento populacional vencedor). Refere-se à disposição da corporação em uma ordem sistêmica obedecendo a um critério especificamente fenotípico, para exercer uma gestão monopolista dos recursos globais, de modo a excluir o grupo dominado ou subalternizado. 3). O estabelecimento de uma ordem social baseada em uma hierarquização raciológica mediante a subordinação política social e econômica permanentes do mundo populacional conquistado. 4). A elaboração de estruturas intelectuais normativas (ideologias), especificamente destinadas a regulamentar as relações entre dominados e dominantes e inculcar 100 um sentimento permanente de derrota no segmento subalternizado; e, finalmente, criar uma convicção narcísica de inquestionável superioridade permanente e invulnerabilidade no setor dominante (Moore, 2007, p. 247-248). Portanto, estas relações constituem-se enquanto bases que favorecem o entendimento sobre a existência e o desenvolvimento do racismo. No âmbito legal brasileiro, a Constituição Federal de 1988 fez vigorar a Lei Afonso Arinos, instituída em 1951 contra o racismo no Brasil, ratificada em 1985 e passando a ser verdadeiramente criminalizado: Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; Constituição Federal de 1988, Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.56 Todavia, ainda em 1989, a Lei se aprimora como crime inafiançável, através da Lei CAÓ 7.716/1989, com previsão de pena de um a cinco anos. Racismo esteve posto, neste estudo, como debate fundamental para compreender o que segue: as desigualdades étnico-raciais e o desenvolvimento humano deste segmento na sociedade atual. Tal âmbito abrirá possibilidades para (re) pensar o Outro /Outra fora do Eu57, bem como para revelar a necessidade de políticas de ações afirmativas para quilombolas de todas as dimensões. Se as comunidades são abrigos-refúgio das diferenças, como praticar a diferença sem praticar as desigualdades? 4.4 DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdades. Uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma. A outra, que pode ser chamada de desigualdade moral ou política porque depende de uma espécie de 56 Constituição Federal de 1988. Art. 5º Este Eu, segundo Dussel (1977), normalmente, é o Eu hegemônico do branco, do homem e do jovem. 57 101 convenção e que é estabelecida ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste, nos diferentes privilégios de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros ou mesmo se fazendo obedecer por eles58 (ROUSSEAU, s/d). Esse fragmento de Rousseau nos interessa pelo fato de conceituar desigualdades em visão social, política e física, apresentando um discurso a partir das diferenças gerais, para denunciar os privilégios e prejuízos que envolvem as desigualdades convencionadas por um grupo que está no comando. Desigualdade caracterizada por consentir que uns seres humanos sejam beneficiados a partir da humilhação ou degradação de outros. A proposição apresentada evidencia que a questão dos Afrobrasileiros está envolta em um entrelace étnico-econômico de conseqüências calamitosas para a comunidade negra. Na atual conjuntura, os movimentos de cidadania negra buscam, através de ações afirmativas positivas, a declaração destes povos enquanto valiosa memória da construção histórica e econômica do Brasil, uma urgência de políticas reparadoras. Portanto, nesta sessão desejamos elucidar a Questão Social, discutindo em que medida ela subsidia no esclarecimento das desigualdades econômicas e étnicosociais, considerando tais compreensões diferenciadas no entendimento das desigualdades e das diversas exclusões provocadas por esta realidade. A Questão Social está pensada a partir do referencial de Iamamoto (2001). Esta autora afirma existir uma necessidade de entender a questão, atentando para o contexto histórico que ela define como movimento reivindicatório surgido na conjuntura econômica do séc. XIX. Para ela, a Questão Social, a crítica ao processo de acumulação e suas conseqüências sobre as classes trabalhadoras e os empobrecidos, abrem espaços para as reivindicações de políticas públicas, conceituando-a como movimento que, no decorrer da história mundial, foi associada à questão policial que ameaçava a ordem constituída. Aparece, todavia, como certa insurreição da população contra as políticas oficiais que não oferecem resultado. O debate sobre determinada Questão Social se 58 Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, Nº 7. S/d 102 apresenta enquanto fenda para superação dos problemas que envolvem a sociedade civil e o Estado, enquanto corporação responsável por garantir políticas sociais funcionais. Mostrando o ponto de vista do entrelace, diferente do formado pela trança do cabelo, mas o criado pelo racismo, a Questão Social evidencia desigualdades. Sua simplificação, dentro do modelo onde o capital e as culturas estabelecem relações hierárquicas, coloca, de forma naturalizante, em lados opostos, os desiguais. Desta maneira, confirma-se a fundamental necessidade de ser pensada em conexão com as identidades e a história de luta de cada grupo em questão. Com esperança de ver os direitos garantidos, as comunidades negras, quilombolas de lá e de cá, entendem a urgência de medidas reparadoras articuladas entre quem produz as leis e quem as recebe. Porém, vislumbram um salto para além da reparação, alcançando os resultados da tão engajada luta por justiça social, surgindo possibilidades de disputarem, sem embaraços, o acesso às esferas de poder. Localizando a causa da exclusão, instituem caminhos de superação eficazes, com políticas sociais que funcionem adequadamente, permitindo um crescimento real. Crescer de maneira real significa transformar positivamente os dados dos próximos Relatórios de Desenvolvimento Humano. Este crescimento esperado atrela-se às mudanças nas estruturas, tanto econômicas - políticas como relacionais e educacionais. Relacionais uma vez que, negros/ negras das classes média e alta - eles existem - e artistas negros com vida econômica estável, constantemente são constrangidos/as e associados/as a marginais, por possuírem status acima do aceitável para a população negra. No Brasil, diversos grupos foram colocados à parte do processo de crescimento, formando uma massa excluída que se mobiliza constantemente para discutir as estruturas econômicas, raciais e políticas que possibilitam a emancipação. Desenvolvimento para a comunidade negra do Cinzento, também, se atrela às mudanças nas estruturas tanto econômicas, políticas, como relacionais educacionais, sem perda ou desvio do sentir comunitário tradicional e familiar que embala a vida negra rural. Desenvolvimento atento para a busca por uma sustentabilidade que mantenha o respeito ao tempo da natureza, produzindo para 103 a subsistência da comunidade e não para o acúmulo e enriquecimento de indivíduos. A economia experimentada na comunidade trabalha com uma renda mínima, que depende da venda dos produtos agrícolas na feira da cidade de Planalto. A comunidade não almeja riqueza, apenas busca um padrão de vida que a mantenha com saúde e dignidade. Aspiram que as políticas de benefícios cheguem antes das partidárias, pois com a expansão capitalista, os recursos naturais diminuíram e o acesso a trabalhos diferentes foram dificultados. Empregos não existem para um grupo que viveu outras relações com o trabalho e a terra, não se encaixando nos modelos da era da técnica e da informática. Um modelo de desenvolvimento que não pediram. Contudo, foram empurrados/as para o empobrecimento e lá esquecidos/as. As influências chegaram com as inúmeras tentativas de invasão das terras. As comunidades que enfrentaram as batalhas pela permanência e tradição foram influenciadas apesar de vencerem planos e estratégias como envenenamento da água, morte de animais, destruição da plantação alimentícia, assédio dos mais jovens e até assassinatos. Lembramos, aqui, o fato de alguns remanescentes de Quilombos rurais não desejarem aproximação demasiada com as realidades urbanas. Entendem os perigos e resistem à idéia por se preocuparem com as forças que chegam com elas. Poucas comunidades ainda conseguem sustentabilidade de maneira tradicional. No entanto, as que não sofreram as intervenções urbanas preservam muito da vida quilombola. Com o assolamento e as perseguições sofridas com as investidas dos “novos senhores de engenho”, que desejam aumentar seus lucros e concorrem deslealmente com produtos agrícolas e novas tecnologias, as comunidades têm dificuldades de seguir sem energia elétrica, água potável, poços ou lagos sadios e outros. Essa luta dos remanescentes de Quilombos do Brasil pela garantia, titulação das terras em que vivem como território quilombola, bem como a globalização-refletida duplamente no trabalho ou na falta deste-, evidenciam o contexto de desigualdades. Acreditam que através da garantia da terra e do acesso aos meios para nela sobreviver haverá diminuição das desigualdades, com prosperidade, justiça social, 104 respeito e espaço criativo para a preservação das tradições culturais e religiosas. Essa discussão posiciona os quilombolas como outro âmbito da mesma história da negritude brasileira. Abre caminho para refletir sobre as políticas para diminuir os impactos do racismo. Desenvolvimento significa assessorias subsidiadas pelo Plano Estadual de Promoção da Igualdade Racial e habilitadas para conviver com o diferente, visibilizando um projeto amplo de intervenção política das gestões local, estadual e federal (principalmente das Secretarias de Educação, Saúde, Fazenda e Desenvolvimento Social), representadas por técnicos/as apropriados da história do negro/a no Brasil. Enfim, sobre desigualdades e desigualdade étnico-racial, entidades entrevistadas reafirmam que os maiores desafios são: - Conseguir transformar políticas afirmativas em partes integrantes das políticas de Estado; - Outra coisa é superar as adversidades e a busca da projeção pessoal pelo poder dentro do movimento negro, em vista de uma causa maior, a luta contra o racismo; - Convencer as estruturas do governo da necessidade de se investir em políticas eqüitativas, com base na pluralidade da sociedade brasileira; - Superar dentro dos partidos, a visão míope de classe, como explicação para todos os problemas da sociedade, mais especificamente, vencer as estruturas racistas dentro dos partidos. Outros acreditam que a eqüidade econômica e racial virá tanto com a busca das leis, como pelo alcance do poder nas esferas municipal, estadual e federal, para que através destas sejam favorecidos os negros (as) e índios (as). Estas leis devem destinar verbas para a educação, moradia, saúde e outros. Confirmam que são muitos os desafios, porque foram muitos anos de negação, que muita gente ganha com as desigualdades e não quer abrir mão de seus privilégios. 105 Explicam que se conseguiu mexer nas políticas, mas há fortes empecilhos para sua efetivação. Acreditam, porém, que não dá pra retroceder ao que tinham antes da emergência dos movimentos negros contemporâneos.. Também unem a ancestralidade religiosa à política, concordando que a luta tem sido, e será vitoriosa, porque tem a proteção espiritual dos ancestrais que clamam por justiça, renovando as forças para dar continuidade à luta e avançar sempre. Este eixo demonstrou que na atualidade, as participações de ONGs (Organizações Não-Governamentais) de caráter político-social, a solidariedade e a intervenção de setores do Estado aparecem como instrumentos para a superação da crise atual, comprovando a urgência de políticas universais com status local para superação das tensões. Políticas que levem em conta os grupos precarizados e desmistifiquem a idéia de crescimento sem resolução de conflitos. Enfim, estes agentes criticam a metodologia de integração e indiferenciação do modelo globalizado, reposicionando o debate acerca da cidadania como garantia de direitos e a prática do direito à diferença e à diversidade e não mais a tolerância, pois tolerar difere de respeitar. Comunidades negras experimentam a rápida transformação na sociedade e na sociedade de trabalho, se dividem em diversas tarefas para não serem vencidas pela globalização e precarização. Ao analisar o aumento da precarização nas diversas tentativas de modificação do mundo do trabalho humano, Offe (1989, 43-81) assegura que, mundialmente, alguns setores são mais afetados com a precarização que outros. Acrescenta que características físicas determinam os serviços, pois para negros e mulheres, encaixados no novo modelo econômico, foram oferecidos os piores postos; ainda assim, os conflitos entre trabalhadores tornaram-se constantes porque brancos e homens já temiam que negros e mulheres ocupassem os poucos lugares. A questão entre patrão versus empregado deu espaço para a disputa entre trabalhadores negros versus trabalhadores brancos e não-negros59. Pensar e questionar tais conflitos se constitui enquanto continuidade para refletir a 59 O Brasil também destina, historicamente, as piores colocações para negros/ negras. 106 crise social na qual a sociedade se encontra. O autor confirma que, de acordo com a história, nas classes trabalhadoras existe uma composição racial e desigual construída. Reafirma que, desde o processo escravista até a contemporaneidade, todos os elementos que transformaram a sociedade de trabalho em sociedade de emprego converteram trabalhadores em mercadorias diversificadas. Esse encadeamento revelou que a maior parte dos pobres são homens negros, nãobrancos (mulatos/ pardos), mulheres, embora negros e mulheres se destaquem negativamente no Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, distanciando os indicadores em relação a gênero e etnia /raça, inclusive entre os empobrecidos. Ocorreu que, em 1988, o IDH ajustado a gênero e à questão negra demonstrava o aprofundamento das desigualdades sociais, evidenciando que a população afrobrasileira ainda ocupava as últimas posições, enquanto a branca mantinha-se em lugar privilegiado. Os dados indicavam desigualdades entre negros e brancos, homens e mulheres, e uma diferença assustadora no nível de desigualdade entre mulheres negras e mulheres brancas. O indicador ajustado a gênero denunciava um afastamento considerável entre os homens e mulheres na posição mundial (67º). No entanto, em se tratando da população negra, a posição chegava a 91º. Com relação às mulheres negras o quadro indicava a 114º posição. Segundo Sant’Anna, 2001, em 1999, o PNUD evidenciou que a população branca ocupava a 43ª posição e a negra a 108ª. O Relatório de Desenvolvimento Humano RDH -, elaborado em 2001, aponta o Brasil na 74ª posição. Enfim, as conclusões que podem ser tiradas destes levantamentos são: componentes significativos da população negra continuavam sem acesso às condições de sobrevivência digna; a posição de marginalização dos negros e das negras não contribui para o desenvolvimento externo do Brasil, fazendo-se necessário um engajamento eficaz para reverter o quadro. Após 120 anos de “abolição” e 20 anos da elaboração dos relatórios acima citados, quais são as perspectivas para a comunidade negra? O que revelam os relatórios sobre as desigualdades econômicas e raciais na atualidade? 107 Quando, em maio de 2008, o Instituto de Pesquisa e Estudo de Economia Aplicada IPEA, organizou e divulgou pesquisa 60 intitulada Desigualdades Raciais, Racismo e Políticas Públicas: 120 anos após a Abolição, encomendada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, auxiliada pelos dados do Censo de 2000 do IBGE. O estudo revelou que há sinais ainda muito tímidos no avanço da diminuição das desigualdades, persistindo as largas diferenças econômicas entre negros e brancos e entre homens e mulheres, bem como a falta de acesso a cargos de decisão, ou seja, no âmbito do trabalho, o IPEA evidencia que os negros/ negras ainda trabalham mais sem carteira assinada e recebem menos, continuando como maioria em serviços domésticos, agricultura e construção civil. Todavia, neste conjunto, um dado assustou a consciência nacional - pois era o ponto principal divulgado: o crescimento numérico da população negra e o fato de que ainda serão necessários cerca de 40 anos para o Brasil alcançar uma eqüidade econômica e, 50, para uma eqüidade racial (IPEA, 2008)61. Em relação ao crescimento numérico, os dados revelam que a população negra atual é de 90 milhões, (contando-se os negros e os chamados pardos). Informam que, ainda no ano de 2008, a população negra se iguala à branca; porém, em 2010, ultrapassará. O quadro racial está regionalmente distribuído com a seguinte configuração: Região Sul e Sudeste: menos de 40%; Região Sul e Santa Catarina: menos de 25%; Região Norte e Nordeste: (exceto as reservas indígenas), mais de 40% a 75% do total. Na Região Nordeste, a pesquisa dá destaque para a Bahia, Maranhão, Piauí e Tocantins, com mais de 85% da população. Esta explicitação constitui-se enquanto componente significativo no contexto histórico até aqui discutido, revelando que um número maior de pessoas se reconhece como negras e fortalecendo a suposição inicial de que esta população sempre esteve misteriosamente aqui. Acredita-se que seu real crescimento não está verdadeiramente na população numérica, todavia, na consciência que, na 60 Na ocasião foi discretamente divulgada pela mídia de massa, pois parcela da mídia brasileira esteve empenhada em massificar a divulgação do centenário da migração japonesa. 61 www.ipea.gov.br 108 atualidade, tem encontrado melhores contextos para auto definir-se, crescendo no orgulho de ser um humano negro e saindo do horizonte da invisibilidade na qual esteve colocado. Conseqüentemente, a pesquisa do IPEA possibilita o avanço na elaboração e reelaboração de políticas de geração de renda, aplicadas através de ações que promovam a eqüidade étnico-racial. A pesquisa corrobora a necessidade destas políticas enquanto instrumento de desenvolvimento concreto da população negra para atingir, em 40 anos, a eqüidade econômica e, em 50, a eqüidade étnico-racial. Após seqüestro da liberdade na África houve uma longa travessia, bebendo água com sal ou pirão de farinha salgada para não sentir fome62 e, chegando à terra firme: separação dos familiares; das nações de língua igual; castigos desumanos para conter as diversas maneiras encontradas para negar a escravidão; romper com a fome, enfrentar doenças, invalidez, assassinatos, estupros, mutilações femininas feita pelas sinhás enciumadas com as escravas assediadas por seus maridos; união forçada com o reprodutor escolhido pelo senhor ou capataz; venda dos novos filhos, desmama dos recém-nascidos, humilhação diária, exclusão jurídica e religiosa- da religião oficial, pois havia outro modo de viver a espiritualidade negra. Tudo isso, ocasionou a falta de acesso a cargos públicos e funções valorizadas, assim como a falta de acesso a educação e benefícios. Esse passado, mas não tão distante, apresenta enormes seqüelas no presente, indo do agravamento da saúde da população negra com altos índices de hipertensão arterial, herdado pelo excesso de sal utilizado na travessia negreira (para diminuir a quantidade de comida), à anemia falciforme, alcançando até a suposta loucura, que acomete parte relevante da população negra, antes hóspede do Hospital Juliano Moreira, São Paulo e outros “centros de tratamento da loucura”. Sem acompanhamento do Estado, negros e negras perambulam pelo Brasil criando outras realidades imaginárias ou suportáveis. Sarar essas dores contribui significativamente para curar as doenças sociais 62 As resistências já começavam com os suicídios por afogamento, aumentando, assim, o rigor das correntes nas viagens. 109 alimentadas pelo racismo, que atrofia o processo de desenvolvimento e, quando não mata, propicia uma subvida visivelmente diferenciada da mendicância comum. O perfil da “loucura” é negro até em cidades brasileiras onde a maioria da população não é negra. A loucura crescente da população negra, na rua ou nas famílias, vem sendo relacionada a uma história de exclusão começada no passado, continuada com falta de tratamento adequado e marcando a identidade negra por exclusões, abandonos e racismos. Há também uma estrutura racial visível na loucura, que passou a ser investigado por grupos de saúde da população negra do Brasil, composto por psicólogos/as, médicos/as, enfermeiros/as, técnicos/as em saúde e outros. Na mesma direção, a desigualdade aparece no aumento de casos de depressão entre mulheres negras. Algumas reflexões nascidas de conferências e seminários, também, contribuem para a crença de que estes males psíquicos estão relacionados com o aniquilamento da identidade e a falta de possibilidade de reconstrução da auto-estima. Os grupos de estudo da saúde da população negra contribuem com novas bases para pensar saúde como passo primordial para a efetivação de um projeto de políticas públicas de saúde urbana e rural. Desta forma, a saúde da população negra se refere a um conjunto de ações físicas, mas que entende o ser humano de forma holística, inteira, cuja saúde leva em consideração o conhecimento da história do grupo em questão, para que a resposta seja eficaz, preocupando-se para que o remédio não seja paliativo, mas cure as chagas físicas e históricas. Assim sendo, confirma-se que a configuração e efetivação de políticas sociais de cunho afirmativo se constituem enquanto importante entrelace no processo que promove igualdade. Nesta direção, este fio se pergunta sobre quais as políticas oficiais para diminuir os impactos do racismo e realizar o esperado desenvolvimento para negros/ negras. 4.5 POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA E COM A COMUNIDADE NEGRA: TRANÇAS RELEVANTES NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO. A formatação final acerca de políticas afirmativas para a comunidade negra desponta na América do Norte. A ação ocorre para inserção de populações afro- 110 americanas excluídas do processo de desenvolvimento econômico do país, primeiramente, devido à escravidão seguido da não absorção deste contingente pelo mercado de trabalho, aumentando as estatísticas das desigualdades. As ações afirmativas funcionaram enquanto medidas reparadoras, devido à falta de oportunidades históricas de acesso a direitos que efetivavam a cidadania. Existem críticas às políticas reparatórias no Brasil, a exemplo da política de cotas, seguidas de intervenções judiciais de grupos da sociedade, principalmente ligados à educação. Estas críticas rejeitam as políticas de ação afirmativa para negros/ negras, argumentando-se que as cotas devem ser sociais e não étnico-raciais, pois acredita-se que tais práticas reforçam uma política de inferioridade que não contribui para o desenvolvimento da população negra e que há outros pobres que passam por situações semelhantes e não pertencem a este grupo étnico. Partindo deste contexto de revisão histórica, seriam as políticas afirmativas positivas, como as cotas raciais, medidas racistas ou negativas? Em um processo desigual, há possibilidade de tratamento sócio-político igual? Movimentos negros convidam a um especial cuidado nesta reflexão, ressaltando que mais da metade da população empobrecida ou abaixo da linha da pobreza no Brasil tem a pele negra. Os dados do IBGE e IPEA comprovam a informação. Desconsiderando as raríssimas exceções, as desigualdades econômicas estão permeadas de desigualdades raciais e de gênero. Mesmo negando, os discursos contra as políticas de ações afirmativas na educação podem estar contaminados com a suspeita de queda na qualidade do ensino, mas prioritariamente a reflexão está relacionada com a diminuição dos espaços outrora ocupados por estudantes não negros. Contrários a esta indicação, pesquisadores negros, em congressos e conferências, revelam que estudantes cotistas possuem desempenho compatível ou superior aos não-cotistas, enfraquecendo tais colocações. Estas avaliações afirmam que o fraco desempenho de alguns cursos universitários está intrinsecamente relacionado a um sistema educacional com deficiência estrutural bem maior e mais complexo. Os resultados destas conferências demonstram que a discussão é mais ampla do que 111 contra ou a favor das cotas, encaminhando o debate para o plano da emergência social que não se deseja permanência. Segundo a UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, instituição que adotou as cotas em 2003, o resultado da avaliação de desempenho dos primeiros estudantes formados que foram beneficiados pela política de cotas foi satisfatório (IPEA, 2008). Lembremos que, no sistema educacional brasileiro, os negros/ negras, mesmo depois de libertos, não puderam ingressar nas escolas feitas e pensadas para brancos, pois a lei brasileira não permitia. Foram muitos anos de atrasos, os quais dificultaram a emancipação desta população. As cotas são pequenas medidas para sanar grandes embaraços sociais cometidos. São insuficientes para que a população negra da cidade e dos Quilombos acompanhe o desenvolvimento econômico do país, precisando ser realizadas ao lado de outras medidas. Retomando a pesquisa do IPEA percebe-se que, até 1976, havia menos de 5% de negros na universidade. Devido à política de cotas, o percentual de 2006 cresceu para 13%. Acrescenta, ainda, esta pesquisa, que nos últimos cinco anos, o número de negros/ negras nas universidades foi superior ao número dos últimos dez anos. As cotas são ações afirmativas reparadoras, sociais e políticas contextualizadas em um acordo global com características localizadas, o qual o Brasil se comprometeu em realizar, sendo exigidos resultados transformadores pela Organização das Nações Unidas. Contudo, não serão políticas eternas, serão finalizadas quando a população negra superar a desigualdade na esfera do ensino superior. Políticas de ações afirmativas no Brasil, ainda, funcionam como Projeto de Lei, enfrentando diversas dificuldades para serem aprovadas enquanto lei. O governo federal tem demonstrado interesse em manter as políticas que facilitam o acesso da população negra a direitos. Porém, há consenso entre a SEPPIR e ativistas dos movimentos negros de que tais medidas são insuficientes, se não forem transformadas em lei, para que se atue em parceria com os movimentos sócioraciais e em conjunto com a promoção de educação, saúde e moradia, vislumbrando as perspectivas indicadas pela pesquisa. Tais propostas necessitam, ainda, de uma metodologia que focalize constantemente a questão racial. 112 4.6 REPARAÇÃO Por que decretar reparação? Entrevistadas/os apresentam seu entendimento sobre reparação. Eles/elas pensam em reparação não como retaliação, revanche, mas como conquista de direitos historicamente negados. Afirmam tratar-se de um movimento que visa restituir, mesmo que não completamente, algo do que foi perdido em função da negação de direitos. Negação sofrida por gerações e gerações de negros/ negras no país. Continuam: Reparar como correção de algo. Reparar a perda histórica de acesso da população negra aos direitos humanos é tomar medidas no presente que compensem essas perdas, a fim de promover a igualdade. Ainda acrescentam que reparar também consiste em fazer o total desagravo dos erros cometidos contra a população negra no passado. Falhas que prejudicaram o presente e que devem ser restauradas. Destas, muitas ações foram devido ao poder institucional outras por internalização, continuidade e costume. Enfim, entendem que a votação do Estatuto da Igualdade Racial pode colocar o país a caminho de uma nova visão racial e na verdadeira reparação. Entretanto, aqui lembramos o contexto oficial da idéia de reparação: a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas em Durban, África do Sul, em 2001. Nesta Conferência Mundial, elaborou-se um Plano de Ação com o compromisso mundial para diminuir os efeitos da desigualdade, ocasionada pela escravidão, discutindo-se o que poderia ser aplicado como reparação. Tais medidas estavam relacionadas aos últimos relatórios das Nações Unidas e demais órgãos que confirmavam o atrelamento entre desenvolvimento nacional e exclusão da população negra e índia. Um ano antes, 2000, devido às comemorações oficiais de ocupação das Américas, houve um movimento de resistência Índia, Negra e Popular - iniciado fora, mas continuado no Brasil -. Negando as festividades de comemoração, a sociedade civil convoca a população mundial para refletir sobre as conseqüências da ocupação das Américas e África, exigindo reparação e forçando a temática para uma Conferencia Mundial na África. Alguns países temiam a falência total do Estado, caso a população negra e indígena 113 exigissem reparação financeira. O termo causou reações diversas levando, por exemplo, os Estados Unidos a não assiná-lo. O Brasil - sob o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso -, assinou o compromisso, porém necessitou de constante intervenção impulsora dos consensos definidos em Durban. Esta Conferência teve como representação brasileira, importantes ativistas como: Edna Roland, Luíza Bairros e o então Deputado Federal Luiz Alberto dos Santos. Nos anos seguintes, conhecidos como pós-Durban, a sociedade negra organizada passou a pedir que as propostas políticas fossem elaboradas e o compromisso assinado recebesse formato. Houve um grito nacional sobre reparação. Tais políticas iniciaram o processo de formatação apenas no governo do presidente Lula, entretanto, a pauta de reivindicações permanece. Essas reparações são explícitas em relação ao processo perverso de escravidão negra e índia, causando uma imensa desigualdade entre negros, índios e brancos. No Brasil, a abolição sem distribuição de terras ou qualquer tipo de indenização para os homens e mulheres negros foi uma liberdade insegura. Liberdade sem recursos e sem terra ou educação formal. Foi um morticínio para crianças, jovens e idosos negros, que não foram aproveitados pelo “novo Brasil” e que preferiu a mão-de-obra estrangeira. O Brasil acolheu a imensa diversidade cultural estrangeira no momento em que seus países enfrentavam guerras e pobreza. Grupos até hoje comemorados na mídia do país, de forma maciça, como elementos importantes na construção do Brasil, sendo destacados enquanto seres esforçados - e são -, que venceram diversos desafios para se manterem. Todavia, não existe neste fenômeno uma comparação sobre que tipo de portas foram abertas para estes grupos e quais foram fechadas para negros/negras e indígenas. Os poucos negros/ negras que puderam permanecer nas fazendas continuaram trabalhando em troca de moradia e comida. Outros recebiam valores insignificantes e alguns poucos encontraram senhores justos. E, outra parte, estava nos quilombos. Portanto, de que maneira tem ocorrido a intervenção política dos remanescentes de Quilombos e entidades sociais negras para transformar o quadro por políticas 114 afirmativas na pauta social? Como avaliam os resultados destas ações quilombolas no horizonte das políticas públicas para a comunidade negra? Os remanescentes de Quilombos do Brasil estão organizados nacional e regionalmente para ampliar e aprofundar o debate quilombola bem como acompanhar a legislação e ações que regulamentam os territórios, denunciando as tentativas que descaracterizam o movimento. A luta por políticas públicas e reconhecimento, garantidos constitucionalmente e fomentados pela Fundação Palmares, não ocorre de forma tranqüila ou simples. Esta entidade também sofre ataques e intervenções constantes, como tentativa de frear o processo de reconhecimento “das terras de pretos”. Nas regiões brasileiras, a questão envolve diversos conflitos com fazendeiros e famílias com poderes políticos e econômicos, que atrapalham tanto o processo comunitário como o da justiça. Estes grupos anunciam-se repetidamente enquanto proprietários das terras ocupadas há séculos pelos quilombolas. Em diversos territórios, os conflitos alcançam dimensões violentas, com apoio institucional da Polícia, dificultando o que parecia simples: registrar a história, auto reconhecer-se e receber o título. No passado, algumas terras remanescentes foram cedidas pelo Estado, sem documentação, outras estão habitadas há mais de 200 anos pelas famílias. As dificuldades quilombolas não ficaram no passado, necessitando de intervenção constante para a real transformação do quadro social. Esses remanescentes de Quilombos são legítimos movimentos sociais compostos, na atualidade, por lideranças quilombolas e lideranças dos movimentos negros locais que, engajados na questão de cunho racial, se apóiam na iminência de avançar na efetivação dos direitos quilombolas, ou seja, nos direitos da população negra rural. Ao lado dos enfrentamentos pela manutenção da terra e desenvolvimento sustentável, constantemente o Conselho enfrenta o desafio de alguns meios de comunicação, defensores do discurso dos fazendeiros e grandes empresários, dispostos a ampliarem seus pastos e produção agrícola, escolhendo as terras que lhes convém e aumentando suas ações em terras onde ainda não exista a titulação. 115 Entretanto, em vista destes desafios colocados e outros crescentes, pois a identificação destas comunidades aumenta significativamente, foi criada em 1999, na Bahia - Bom Jesus da Lapa, O Conselho Nacional de Remanescentes de Quilombos – CONAQ, entidade para amparar nacionalmente os remanescentes de Quilombos. A criação do Conselho foi resultado prático do I Encontro Nacional de Comunidades Remanescentes de Quilombos. O Conselho é composto por 18 estados e representado por entidades do Movimento Negro e entidades ligadas à questão rural que apóiam os Quilombos. Desde 2000, a Secretaria Executiva do Conselho funciona na sede do Centro de Cultura Negra do Maranhão, São Luís. Desta maneira, a Coordenação Nacional surge não só para reivindicar soluções para os problemas locais, mas como movimento político para alterar as relações desiguais historicamente estabelecidas, pondo-se em defesa dos direitos de comunidades negras rurais. No ano de 2005, a região Sudoeste da Bahia criou um Conselho Regional, para dar visibilidade e suporte à luta local. Quanto ao engajamento do movimento negro brasileiro por políticas públicas, acredita-se não ser positivo datar a organização negra brasileira a partir dos anos 70, pois o engajamento racial no Brasil esteve, igualmente aos Quilombos, presentes onde houve opressão, mobilizando a sua trajetória na zona urbana através das irmandades e articulação entre as vendedoras e vendedores de quitutes, carregadores e outros, formando uma crescente organização urbana e desembocando em insurreições e revoltas. Com certeza, no período colonial, a luta principal e de maior visibilidade era a rural. Entretanto, é inegável que além da raiz quilombola das insurreições, das lutas por reconhecimento dos direitos da população negra, da Frente Negra Brasileira, etc., o movimento negro foi fortalecido pelo movimento mundial da década de 60, a chamada onda Black Power, do grito: “negro é lindo”, “Black is beautiful”, dos/as Panteras Negras e outros. Estas lutas fortaleceram os fios identitários e assumiram um compromisso que, inicialmente, se caracterizava por engajar-se na recomposição da identidade negra e no desvelamento da suposta democracia racial, evidenciando a existência do racismo. Todavia, na contemporaneidade, ajusta todos 116 os debates à exigência da efetivação de políticas públicas para esta camada social, demonstrando como vive esta população e suas conseqüências para o Brasil. Existe no Brasil uma diversidade muito grande de entidades negras, reunidas tanto individualmente como representadas em conselhos, coordenações, fóruns e setorizadas em partidos políticos, sindicatos, grupos de pesquisadores/as, grupos culturais, igrejas e outros. Tais agremiações também se subdividem na perspectiva de gênero e geração, formando núcleos de mulheres negras e juventude que reivindicam dentro do grupo global as diferenciações necessárias, contribuindo de forma gigantesca na formulação das ações e diminuição de práticas globalizantes. No entanto, tais entidades estão atentas para a falta de representatividade negra nas instâncias de poder, reforçando na pauta nacional a eleição de homens e mulheres negras dos movimentos, historicamente, comprometidos com a causa. Alguns/as militantes de Salvador-Bahia refletem suas práticas dentro deste processo avaliando que: 1) “A minha militância se dá em um plano individual e coletivo, atualmente percebo que é comum a ação em rede. No plano individual pude fomentar em muitas pessoas a necessidade de trabalhar por uma educação com novas relações raciais e de gênero. Construí identidade a partir do exercício de minha militância. Afirmeime enquanto mulher negra e cidadã, comprometida no sentido de dar a minha contribuição para transformação social. No coletivo, vejo que a minha participação ajudou a construir conquistas como escola comunitária, reativar organização popular em periferias, denunciar o Brasil como um país racista e contribuir com o surgimento de políticas públicas reparatórias, especificamente políticas de saúde da população negra e a implementação da Lei 10.639/03, em parceria com os APNs”- (Jacimara Souza Santana, historiadora, – Comissão de formação dos Agentes de Pastoral Negro do Brasil- APNs). 2) “Todos os professores e professoras que foram formados pela Secretaria Municipal de Educação de Salvador tiveram notícia sobre como enfrentar o racismo no espaço escolar e em sua vida cotidiana, por meio da ação política do CEAFRO, programa em que atuo há 13 anos. A Secretaria assumiu o documento por nós 117 elaborado - Diretrizes Curriculares para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana na Rede Municipal - como política pública, o disseminou entre todos os profissionais de educação. Considero esses dois fatos importantes resultados da minha ação enquanto membro de um grupo responsável por pensar e executar essas políticas na cidade mais negra do Brasil”. (Drª Maria Nazaré Mota de Lima Professora e Técnica do CEAFRO – Educação e Profissionalização para a Igualdade Racial e de Gênero). 3) “Meu engajamento se dá em contexto sócio-cultural, cuja preocupação é o resgate da verdadeira identidade negra no Brasil. O trabalho por mim desenvolvido visa o fortalecimento desta população para a busca por direito. Na África todos nascem sabendo o que são, aqui houve uma intensa necessidade de afirmação. Nos anos 80 a população negra ainda estava invisível, escondida ou envergonhada contada no censo como 16% da população brasileira. O levante da população através da reformulação dos protestos, oficinas, seminários, cenário musical e teatral afro entre outros, possibilitaram maior visibilidade. Este trabalho incessante revelou nas pesquisas seguintes uma população nacional de mais de 60% de negros e mais de 80% só na Bahia. Hoje 85%. Tais ações, das quais participei ativamente foi caminho para maior exigência em busca de direitos”. (Paulo Roberto P. do Nascimento- Presidente do Bloco afro Os Negões, membro do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra – CDCN/ Salvador). 4.7 INTERVENÇÃO DO ESTADO NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO ÉTNICO-RACIAL Uma das primeiras iniciativas em direção a um Estado político que deveria se ater ao fomento dos debates e ações para a comunidade negra dá-se com a criação da Fundação Cultural Palmares, que se formatou como espaço para além de governo possibilitando, pautando e respaldando a promoção de valiosos debates étnicoraciais na esfera nacional do país. Acolhida enquanto principal elo entre a sociedade e o governo, favoreceu o surgimento de diversas secretarias no governo futuro. A Fundação Cultural Palmares - FCP -, sediada em Brasília, com Secretaria Regional em Salvador, nos interessa em particular, por ser uma entidade fomentadora da cultura afro-brasileira, em especial, a dos remanescentes de Quilombos em âmbito 118 governamental federal. A FCP é um órgão público vinculado ao Ministério da Cultura – MinC -, instituído pela Lei nº 7.688, de 22 de agosto de 1988. Foi criada para formular, fomentar e executar programas e projetos no Brasil para reconhecer, preservar e difundir os valores e práticas das culturas africanas na formação da sociedade brasileira. Outro resultado do comprometimento legal e social contra as diversas formas de racismos praticados foi o reconhecimento das terras dos remanescentes de antigos Quilombos dinamizados por esta Fundação. Opera nas áreas de ampliação étnica das comunidades remanescentes dos Quilombos e na preservação e difusão do patrimônio cultural e imaterial afro-brasileiro, representada pela Diretoria de Proteção do Patrimônio Afro-brasileiro, DPA63. Esta entidade promove e divulga a cultura contando com um Centro de Referência da Cultura Negra. A SEPPPIR- Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - foi criada em 2003. Através desta, os Estados da federação foram convidados a assinarem o Termo de Cooperação Técnica, a fim de afirmar políticas afirmativas para as comunidades negras. Em julho de 2006, na Conferência Regional das Américas e Caribe, governos reuniram-se em Brasília ao lado da sociedade civil para afirmarem ações diversas pelo fim das desigualdades. Esta conferência criou um mecanismo de controle e monitoramento de políticas governamentais no que diz respeito à igualdade racial. Nesta conferência, os principais destaques foram para o progresso relativo ao debate racial crescente, principalmente no Brasil bem como o elogio à criação da SEPPIR, “como primeiro órgão de governo na esfera federal voltado para o acompanhamento e realização de Ações afirmativas governamentais” (in Revista Palmares, 2006). Decorrente dos constantes debates, em nove de janeiro de 2003, o Brasil obriga o ensino da História da África e a do negro no Brasil nos currículos educacionais. A Lei 10. 639/03 transformou a LDB - Lei de diretrizes e Bases (em anexo). Foi aprovada, mas não implementada oficialmente, obrigando os movimentos de consciência negra 63 Informações contidas no Site da instituição www.fcp.gov.br, revista referenciada no final e contribuições da Secretaria Regional da Bahia, sob a coordenação de Luciana Conceição Mota escritório Salvador. 119 a organizarem ações de implemento da Lei, capacitando docentes, produzindo cartilhas e textos para que a lei não se tornasse um peso e uma arma contra o próprio povo que dela necessita. Em março de 2008, esta conquista dá um passo desaprovado por grande parcela dos que exigiram e trabalharam para a aprovação da Lei. A referida lei sofre acréscimo no conteúdo, tornando-se obrigatório também o ensino da história dos povos indígenas mudando de Lei 10. 639/ 03 para 11. 645/08. Esses povos, negros e indígenas, se enquadram em perfis semelhantes de exclusão e desigualdade social que são históricas. No decorrer das lutas sociais se encontram e se mobilizam enquanto povos irmãos que enfrentam violências parecidas no horizonte da manutenção e respeito às culturas. No caso quilombola as lutas pelo reconhecimento, demarcação e titulação das terras. Entretanto, há no processo especificidades entre os grupos, se distanciam exigindo tratamento específico para os diferentes debates e implementação a partir das realidades, visto que são pautas amplas e a sua conexão arrisca a execução do processo, afetando os resultados esperados, tanto para indígenas como para negros/ negras. A crítica a esta junção, se justifica por estabelecer as demandas enquanto simplificação por semelhança, desconsiderando que as questões necessitavam ser ampliadas e não compactadas. A compactação submerge os objetivos, arriscando o sucesso do desenvolvimento dos projetos e atrasando o crescimento real. Plano de Promoção da Igualdade Racial da Bahia. Nasce no âmbito estadual, sob o Decreto nº 9532, de 29 de agosto de 2005. Surge enquanto resultado do Termo de Cooperação Técnica assinado entre o governo do Estado com a Presidência da República, através da SEPPIR, na I Conferência Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Para implementar as ações afirmativas no Estado da Bahia, foi criada a SEPROMI - Secretaria de Promoção da Igualdade, em 20 de março de 2007 pelo Decreto 10.288 de 2007. A dimensão destas políticas ligadas ao ideal da SEPPIR privilegia tanto as ações afirmativas para a comunidade negra como para as comunidades indígenas. O Plano de Promoção da Igualdade visa, prioritariamente, a igualdade racial no Estado da Bahia, com vistas a garantir a redução da desigualdade social, assim como a redução da pobreza entre negros/negra e indígenas. 120 Na esfera municipal, a SEMUR - Secretaria Municipal de Reparação – surgiu com o objetivo de planejar e acompanhar ações para as comunidades negras de Salvador; resposta a uma reivindicação antiga da comunidade negra, um setor para apoiar as ações contra o racismo realizadas pela diversidade dos movimentos negros. Diversas cidades do interior da Bahia assumem o mesmo compromisso em criar Secretarias de Reparação, para fortalecimento das comunidades negras da cidade e apoio aos remanescentes de antigos Quilombos. As experiências atuais vêm demonstrando que as secretarias municipais e estaduais são espaços vitoriosos e importantes. Todavia, ao contrário das demais, não dispõem de recursos financeiros para realizar os objetivos propostos, tornando-as quase inativas. A trajetória indicou possibilidades de diminuição das desigualdades étnico-raciais. Ao propor a erradicação do processo econômico e racial que cristalizou uma incapacidade pessoal do negro/ negra, politizou a questão, diminuindo o espaço para leituras superficiais de uma situação a ser enfrentada com estratégias apropriadas. 4.8 POR UM PROJETO POLÍTICO-RACIAL QUE TRANSCENDA A REALIDADE A idéia deste tópico, que precede a conclusão, é reafirmar a concepção existencial, ou seja, o humano enquanto projeto de transcendência para o descondicionamento diante das injustiças sofridas. Refere-se a uma reflexão sobre o percurso inicial do projeto. Também reafirma o movimento de transcendência negra iniciada no passado, mas sua concepção direciona para as transformações que devem ocorrer. Entender a realidade quilombola convida o “intérprete” a se colocar num tempo que acontece, mas não fica para trás, se afirma no presente, experimentado no dia-a-dia e se revelando como sujeito histórico em movimento de contínuo sentido. Partindo da idéia heideggeriana de que Deus representa a eternidade, o tempo ganha enorme sentido. A categoria Tempo se refere ao cotidiano, à natureza e ao próprio mundo. Ele se desperta na atualidade. O espaço em si não carrega grandes sentidos, não é absoluto. Sua existência se confirma através dos corpos e das suas 121 energias trocadas. São os acontecimentos e as pessoas que enchem de significado o mundo. Nesta pesquisa, é o mundo negro o acontecimento de transformação no tempo. O tempo é um palco para a vida se desenvolver. Neste sentido, não é movimento, se apresenta com característica de intervenção. Para compreender o que é o tempo, necessário se faz interpretá-lo a partir do ser humano como ser temporal, com jeito próprio de projetar, realizar coisas, contemplar e questionar. Esta ação pode ser entendida como cuidado pelo ser do Outro, dos negros e das negras em questão. Ser, nesta sociedade, com os projetos e sonhos, significa participar das transformações através de uma linguagem nova. Estar no mundo determina como se é. Cada ser apresenta independência. Portanto, apesar de a interpretação do humano estar dominada por um cotidiano que diz sobre ele, e que tradicionalmente o reflete como uno (mesmo), prendendo-o como propriedade (de), a força que deseja se apropriar não pôde e nem poderá substituir no sentido pessoal, o “eu”, o Outro/a diferente. A reflexão sobre o significado do que é o ser humano negro na temporalidade, convida para o conhecimento da sua existência, atentando para as limitações de qualquer projeto que deseje antecipar a finitude humana, seja pela escravidão, pelas câmaras de gás, ou fogueiras. Por fim, é imprescindível direcionar as demandas, porém instituir a defesa de um sistema amplo e alternativo que atravesse o imediato e alcance a raiz do problema racial, por extensão o de gênero, e transcenda. 122 5 FINALIZANDO AS CONSIDERAÇÕES O presente projeto iniciou a excursão na memória quilombola debatendo sua conexão desafiante entre os eixos e relações sociais. Pesquisou a idéia de Quilombo, recorrendo ao racismo, para questionar processos condicionadores no âmbito da identidade negra. A idéia de Quilombo, dentro da amplitude da Questão Social, procurou verticalizar eixos cujos debates foram inseridos tanto em modelo globalizado como em padrão comunitário e coletivo. Indicou a relevância política da categoria, favorecendo a visibilidade do grupo. Como exemplo da maior representatividade quilombola, Palmares, a força de Ganga Zumba e de Zumbi, representou a força de uma comunidade que sonhou e realizou o que parecia apenas utópico. Após seu surgimento e resistência, a idéia de Quilombo se firmou em todo o país, enfraquecendo o sistema escravista. Nesta exposição, sobre o debate étnico-racial em contexto quilombola, confirmou-se a demanda por espaço na agenda principal da nação, revelando que as sociedades devem continuar propondo políticas sociais para garantir os direitos dos indivíduos, transformando a cidadania em plenitude de direitos. O percurso demonstrou a fragilidade de algumas iniciativas no âmbito governamental as colocando enquanto conquista importante, possível de ser reconfigurada. Foi significante considerar que as políticas quilombolas possuem outros contornos que as separam do contorno dado ao debate das comunidades rurais sem herança africana. Viu-se que os remanescentes do Quilombo do Cinzento são acompanhados pelo Conselho Regional e Nacional de Quilombos, assessorada pela consultoria de um agrônomo, militante do movimento negro que escuta a comunidade, orienta sobre o melhor aproveitamento da produtividade quilombola; encaminha estudos técnicos sobre a terra e procedimentos políticos no âmbito do processo de titulação. Os remanescentes do Quilombo do Cinzento ainda enfrentam muitas carências, intenso trabalho e a esperança, na luta, de garantia dos direitos que não se concretizaram. Ao lado dos desafios, transcendem os conflitos e mantêm a ternura e 123 a alegria para preservar a vida e os sonhos. O sonho comunitário deste Quilombo consiste em ver a terra conquistada pelos antepassados em condições melhores, para que os filhos e filhas conduzam a história futura. Sonham também em ver os outros remanescentes, que fugiram das ameaças e tentativas de morte, retornarem. Neste estudo, foi possível perceber que apesar das reformulações sofridas no Brasil, os modelos de remanescentes seguem os aldeamentos africanos, tanto na estrutura física como política, largamente utilizada em Palmares. A herança palmarina possibilitou estudos que colaboraram na identificação de outras comunidades espalhadas por diversas regiões do Brasil, pois as características acima descritas foram preservadas e suas histórias reescritas pelo novo povo, continuidade do Quilombo de Zumbi. Tentou-se evidenciar que, no presente, os agentes sociais, organizados em conselhos quilombolas e entidades pela eqüidade racial, criticam a metodologia de integração e indiferenciação do modelo globalizado, reposicionando o debate acerca da cidadania para a garantia de direitos, associados à prática do respeito à diversidade e à cultura, não mais à tolerância. Outros olhares destes sujeitos demonstraram as identidades enquanto anterioridades, que denunciam os condicionamentos nos quais se encontra a população negra, afirmando-se filosoficamente, que estão nesta posição, mas não é este o seu lugar. Através da garantia da preservação do meio ambiente e, por fim, através da organização comunitária, entende-se visivelmente que no espaço quilombola urbano e rural a cidadania está intrinsecamente relacionada com a dignidade. Minimizar a relevância da cidadania negra quilombola significa a descontinuidade de parte da história. Desta maneira, nova e recente, a história tem sido “escrita” pela ótica dos remanescentes, que fazem ecoar suas experiências, até pouco tempo desconsideradas pelos poderes públicos e ensurdecidas diante do bramido dos movimentos étnico-raciais. As realidades dos povos quilombolas apresentaram unidades. Todavia, perfis distintos. Portanto, o esforço para entendê-las consistiu em não aprisioná-las. Aqui, compreensão não pôde significar cadeia. Por isso, foi utilizado um tópico denominado (in) definindo Quilombos, entre parênteses, para indicar, ao mesmo tempo, a pretensão e a impossibilidade da pesquisadora. 124 Apesar da unidade, e das comunidades harmonizarem-se num conjunto de características comuns, escapam sutilmente às generalizações e aos modelos. Revelam-se enquanto identidades, pois se distanciam nos modos de estar no mundo. Enfim, utilizam formas plurais para expressarem, comunitariamente, suas histórias de vida. Empregam alteridade, revelando-se como singular e indefinível. O eixo das identidades demonstrou esses retalhos enquanto prioridades, que denunciam os condicionamentos nos quais se encontram. Indicou que a banalização da cidadania despolitiza e encobre-a, empurrando-a para o conceito perigoso de identidade como sombra (ou espelho) daquele ou daquela que está no comando. A hermenêutica quilombola, demonstrada pela aproximação, comprovou que neste “tempo perdido”, ao contrário da história da origem dos continentes, a história destes grupos preservou conhecimentos essenciais para o enriquecimento da memória histórica do país. Apesar de salientar a importância social e política da categoria de reparação, entendeu-se que não mais se pode pensar apenas em questões de pequenas reparações das injustiças sociais, porém, acima de tudo, urge a necessidade de se propor um projeto coletivo amplo, que busque localizar soluções mais rápidas para tal situação denunciada há anos. Essa proposta metodológica contribuiu para o entendimento de que construir sociedade, desvelando as identidades, garante os direitos. As identidades, além de buscar esclarecer as desigualdades étnico-raciais, identificam as diferenças e as necessidades, distinguem os sujeitos sociais e especificam suas pautas. A ética apresentada acentuou a questão, possibilitando o acolhimento da justiça e da solidariedade. Desta forma, o estudo proposto evidenciou que a questão do racismo e da pobreza fortalece a demarcação da pesquisa sobre políticas sociais e cidadania, atentando para as demandas das desigualdades sociais. Confirma que se torna insuficiente pensar nas desigualdades e no desenvolvimento de qualquer sociedade sem resolver questões fundamentais que dificultam o desenvolvimento, porque estão intrinsecamente ligadas ao crescimento do país. 125 A história racial-quilombola localizou-se como Questão Social direcionada para o esclarecimento das desigualdades, na medida em que demonstrou que tanto o processo é histórico como as estruturas desiguais estão racializadas. Expôs como argumento os impactos das disparidades sobre as comunidades remanescentes de Quilombos e grande parcela da população negra urbana colocada à parte do processo, formando ‘massas’ excluídas que se mobilizam para discutirem as estruturas econômicas, raciais e políticas. O passo principal para discutir tais estruturas foi o questionamento sobre o ocultamento da diferença e dos conflitos, dificultando críticas, favorecendo a identificação e naturalização do modelo hegemônico. Debater a articulação da questão racial como problema social fez perceber que as raízes de lutas históricas foram preservadas na ação e na memória dos remanescentes dos novos Quilombos. Nesta perspectiva, o estudo atualizou a questão revisitando uma comunidade de remanescente de antigo Quilombo no Sudoeste baiano. Esta aventura na experiência quilombola notabilizou a luta negra, reafirmando o sujeito enquanto um ser de direitos devidamente reconhecidos pela Constituição brasileira. Na busca por segurança e cidadania incondicional, previamente concedida através de princípios éticos reconhecedores da humanidade da pessoa, independente de ser mulher, latino-americano, negro e outros, as políticas públicas alicerçam as conquistas, surgindo como estratégia nova para vencer as desigualdades racial e econômica, ao mesmo tempo em que confirmam a existência do racismo. Por fim, a partir deste estudo, o debate sobre racismo foi ampliado, favorecendo e subsidiando o entendimento na configuração do mesmo. Falou-se de Quilombo, ainda, neste contexto de beleza e desigualdade étnico-racial, para fortalecer a idéia de que a história do povo negro começou na liberdade e não na escravidão - que foi uma subordinação -, mas que a liberdade é o primeiro modo de se posicionar no mundo, uma anterioridade. Partir da idéia de que Quilombos são espaços de liberdade, retalhos da história do Brasil. Significou preocupação com a preservação desta memória. Esta pesquisa lembrou momentos difíceis da trajetória negra, para ir além das mazelas: a experiência dos quilombos antigos e a resistência 126 do povo do Cinzento, pois as memórias históricas, guerreiras e positivas tornam-se importantes não porque trazem dores ou plantam-se vinganças ou novos ódios, ao contrário, desenraízam os fundamentos de dominação, para explicar o processo atual em busca de políticas transformadoras. Por isso, a pesquisa dedicou especial espaço para a história africana e palmarina, rememorando as lutas e oferecendo elementos para entender o presente. Ainda, no processo de entendimento do presente, tentou realizar o desafio interdisciplinar, valendo-se da Filosofia para analisar uma atualidade velada em discursos e posicionamentos historicamente condicionados. É esta, assim como a África, a mãe-origem-antepassada de todo o conhecimento. Iluminou o percurso, para favorecer o encontro da raiz do problema posto. Optou-se pelo trajeto apresentado para explicitar que há dívidas históricas que marcaram tanto o corpo como a identidade negra, mas que o Outro transcende à totalidade através do tempo, revelando-se como extremamente oposto e afirmando-se em quilombos/projetos novos, mesmo quando é humilhado ou sofrendo a frieza da escravidão e do racismo. No caminho hermenêutico, até aqui perseguido, percebeu-se que em 500 anos de resistência negra, as conquistas étnico-raciais têm sido avaliadas enquanto instrumento fundamental de garantia da cidadania negra. Entretanto, têm sido insuficientes para responder às reais necessidades deste grupo. 120 anos após a abolição documental, as perspectivas se afirmaram no campo da reconstrução da identidade; na diminuição das desigualdades permeadas pelo racismo praticado tanto por pessoas como por instituições. Além do sentido quilombola e da relevante colcha que une experiências que vão de Palmares ao Cinzento, interessou estender o conceito também como pertença, como grandes concentrações de negros/ negras, quer em bairros ou em organizações étnico-raciais na zona urbana ou rural. Estes herdeiros e herdeiras revelaram que a luta se dá em diversos lugares, pois recriam manifestações quilombolas na solidariedade, nas relações sociais e posições políticas. Este significado quilombola preservado pela memória atravessou o Tempo, para ser 127 celebrado como marco de libertação de um povo que, originando a humanidade, generosamente gerou a diversidade, desprendendo-se da cabaça- África-semente, viajou o globo e se adaptou às novas realidades climáticas. Todavia, os novos filhos e filhas, carne-semente da mesma carne, mesmo individualizados e livres da obrigação de ser gratos, uma vez que está desentrelaçada em diversos fios, se assusta com a melanina do fundamento do seu Ser, abominando a própria mãe (África) e seus outros irmãos e irmãs, pois a distância do cultivo da cultura, da memória, da identidade, e principalmente, a disputa por territórios fez o mundo esquecer quem era e odiar o perigo de retornar ao Ser já esquecido. Pois, reaprendeu a amar apenas o espelho. Seria realmente este o fundamento real do racismo? 128 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª ed., SP: Mestre Jou, 1982. BAUER, M.W. & GASKEL, K. Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2003. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. RJ: Jorge Zahar, 2003. BARBOSA, M. Manifesto Nº. Zero In Cadernos Negros, volume 29 - Poemas Afro Brasileiros. 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RJ: Relume Dumará, 2003. 132 GLOSSÁRIO Anterioridade Categoria filosófica dusseliana utilizada para categoriza o Outro enquanto tal, prioridade, precedência de qualquer determinação, interpretação Aquilombados Quilombolas fugidos de uma mesma fazenda Leucodérmicos Brancos Melanodérmicos Negros Não-Ser É tudo o que não se identifica com o mesmo Ontologia Doutrina que estuda os caracteres fundamentais do Ser: aqueles caracteres que todo ser possui e não pode deixar de possuir Kizomba Termo africano para designar algazarra e festa 133 Anexo - A MAPA DA REGIÃO SUDOESTE DA BAHIA Anexo - B FOTOS DA COMUNIDADE DO QUILOMBO DO CINZENTO 134 Anexo BFotos FOTO 01- Visão superior do Quilombo do Cinzento 135 FOTO 02- Entrada do Quilombo do Cinzento 136 FOTO 03 – Assembléia da Comunidade com membros do Conselho Quilombola Regional: reunião sobre o problema da construção de novas casas 137 FOTO 04- Jovens trançadeiras 138 FOTO 05- Salviano Santos Nunes e Ana Delcir Pereira Nunes – lideranças 139 FOTO 06- Conjunto de fotos do processo de coleta de dados: encontro com famílias do Cinzento- Quilombo rural; encontro de adolescentes negrosQuilombos urbanos; cabelo como identidade negra 140 Anexo - C Universidade Católica do Salvador Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Você está sendo convidado (a) para participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após ser esclarecido (a) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine ao final deste documento, que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra é do pesquisador responsável. Em caso de recusa você não será penalizado(a) de forma alguma. Em caso de dúvida você pode procurar o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica do Salvador telefoneINFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA: Título do Projeto: ________________________________________________ Pesquisador Responsável: ________________________________________ Telefone para contato: ____________________________________________ ♦ Descrição da pesquisa, objetivos, detalhamento dos procedimentos, forma de acompanhamento. ♦ Especificação dos riscos, prejuízos, desconforto, lesões que podem ser provocados pela pesquisa, formas de indenização, ressarcimento de despesas. ♦ Descrever os benefícios decorrentes da participação na pesquisa ♦ Explicar procedimentos, intervenções, tratamentos, métodos alternativos ♦ Esclarecimento do período de participação, término, garantia de sigilo, direito de retirar o consentimento a qualquer tempo. Em caso de pesquisa onde o sujeito está sob qualquer forma de tratamento, assistência, cuidado, ou acompanhamento, apresentar a garantia expressa de liberdade de retirar o consentimento, sem qualquer prejuízo da continuidade do acompanhamento/ tratamento usual. ♦ Nome e Assinatura do pesquisador__________________________________ ♦ CONSENTIMENTO DA PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COMO SUJEITO Eu, _____________________________________, RG/ CPF/ n.º de prontuário/ n.º 141 de matrícula ______________________________, abaixo assinado, concordo em participar do estudo _____________________________________________ , como sujeito. Fui devidamente informado e esclarecido pelo pesquisador ______________________________ sobre a pesquisa, os procedimentos nela envolvidos, assim como os possíveis riscos e benefícios decorrentes de minha participação. Foi-me garantido que posso retirar meu consentimento a qualquer momento, sem que isto leve à qualquer penalidade ou interrupção de meu acompanhamento/ assistência/ tratamento. Local e data _______________________________________________________________ Nome e Assinatura do sujeito ou responsável: _______________________________________________________________ Presenciamos a solicitação de consentimento, esclarecimentos sobre a pesquisa e aceite do sujeito em participar Testemunhas: Nome:__________________________________Assinatura:_________________ Nome:__________________________________Assinatura: _________________ Observações complementares 142 Anexo - D Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição e de acordo com o disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, DECRETA: Art. 1o Os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto. Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. § 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos 143 quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. Art. 3o Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. § 1o O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto. § 2o Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente. § 3o O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado. § 4o A autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento. Art. 4o Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada. Art. 5o Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto neste Decreto. Art. 6o Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos a 144 participação em todas as fases do procedimento administrativo, diretamente ou por meio de representantes por eles indicados. Art. 7o O INCRA, após concluir os trabalhos de campo de identificação, delimitação e levantamento ocupacional e cartorial, publicará edital por duas vezes consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localiza a área sob estudo, contendo as seguintes informações: I - denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades dos quilombos; II - circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel; III - limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo das terras a serem tituladas; e IV - títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação. § 1o A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal onde está situado o imóvel. § 2o O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área delimitada. Art. 8o Após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA remeterá o relatório técnico aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no prazo comum de trinta dias, opinar sobre as matérias de suas respectivas competências: I - Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional - IPHAN; II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBAMA; III - Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI; V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional; VI - Fundação Cultural Palmares. 145 Parágrafo único. Expirado o prazo e não havendo manifestação dos órgãos e entidades, dar-se-á como tácita a concordância com o conteúdo do relatório técnico. Art. 9o Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a publicação e notificações a que se refere o art. 7o, para oferecer contestações ao relatório, juntando as provas pertinentes. Parágrafo único. Não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o INCRA concluirá o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do título. Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado. Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação. Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber. § 1o Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o efeitos de comunicação prévia. § 2o O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título 146 de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem. Art. 14. Verificada a presença de ocupantes nas terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, o INCRA acionará os dispositivos administrativos e legais para o reassentamento das famílias de agricultores pertencentes à clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de boa-fé, quando couber. Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões surgidas em decorrência da titulação das suas terras. Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou órgãos que prestem esta assistência. Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento aos órgãos da Defensoria Pública quando estes órgãos representarem em juízo os interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos do art. 134 da Constituição. Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade. Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas. Art. 18. Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, encontrados por ocasião do procedimento de identificação, devem ser comunicados ao IPHAN. Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o processo para fins de registro ou tombamento e zelar pelo acautelamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro. 147 Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de noventa dias, plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das comunidades dos quilombos, integrado por um representante de cada órgão a seguir indicado: I - Casa Civil da Presidência da República; II - Ministérios: a) da Justiça; b) da Educação; c) do Trabalho e Emprego; d) da Saúde; e) do Planejamento, Orçamento e Gestão; f) das Comunicações; g) da Defesa; h) da Integração Nacional; i) da Cultura; j) do Meio Ambiente; k) do Desenvolvimento Agrário; l) da Assistência Social; m) do Esporte; n) da Previdência Social; o) do Turismo; p) das Cidades; III - do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome; 148 IV - Secretarias Especiais da Presidência da República: a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; b) de Aqüicultura e Pesca; e c) dos Direitos Humanos. § 1o O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. § 2o Os representantes do Comitê Gestor serão indicados pelos titulares dos órgãos referidos nos incisos I a IV e designados pelo Secretário Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. § 3o A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de serviço público relevante, não remunerada. Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento preferencial, assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à realização de suas atividades produtivas e de infra-estrutura. Art. 21. As disposições contidas neste Decreto incidem sobre os procedimentos administrativos de reconhecimento em andamento, em qualquer fase em que se encontrem. Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares e o INCRA estabelecerão regras de transição para a transferência dos processos administrativos e judiciais anteriores à publicação deste Decreto. Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo INCRA far-se-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da área. Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis titulados em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos em formulários específicos que respeitem suas características econômicas e culturais. Art. 23. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas neste Decreto correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei orçamentária anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação e 149 empenho e de pagamento. Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. Art. 25. Revoga-se o Decreto no 3.912, de 10 de setembro de 2001. Brasília, 20 de novembro de 2003; 182o da Independência e 115o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Gilberto Gil - Miguel Soldatelli Rossetto - José Dirceu de Oliveira e Silva Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 21.11.2003. 150 Anexo - E Modelo de Declaração de Auto - Reconhecimento para Comunidades Remanescentes de Quilombos. Nós, comunidade Tal, nos auto definimos remanescentes de Quilombo, portanto, pedimos e requeremos o registro no livro de cadastro geral, expedição de certidão pela Fundação Cultural Palmares / MinC. Breve Histórico: (em torno de 10 linhas) origem, antiguidade, população, nº de famílias, tipos de manifestações culturais, localização da área (entre os municípios...), município, estado . Portanto reiteramos pedido de certificação como remanescente de Quilombos, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de nossas terras pelo órgão competente. Município,____________ , ______ de___________ 200.. Assinam: Associação (se houver) c/ CNPJ e mais 5 pessoas + antigas com CPF e RG. Em caso de não haver Associação: um mínimo de moradores mais antigos com CPF e RG Anexar: Em caso de Associação: cópia da Ata de última eleição e estatuto. Encaminhar a solicitação ao Presidente da Fundação Cultural Palmares: Dr. Edvaldo Mendes Araujo Representação Regional Bahia. Representante: Luciana Mota - End: Rua do Tesouro, 39,2º andar –Centro Histórico.CEP 40.395-200. Tel : 71 3322-3488 151 Anexo - F Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § “2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileira.” (NR) Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Fernando Haddad Este texto não substitui o publicado no DOU de 11.3.2008. 152 Anexo - G Manifesto contra as cotas ÍNTEGRA DA CARTA ENTREGUE AO MINISTRO GILMAR MENDES. Excelentíssimo Sr Ministro, Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197) promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), a primeira contra o programa PROUNI e a segunda contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro, serão apreciadas proximamente pelo STF. Os julgamentos terão significado histórico, pois podem criar jurisprudência sobre a constitucionalidade de cotas raciais não só para o financiamento de cursos no ensino superior particular e para concursos de ingresso no ensino superior público como para concursos públicos em geral. Mais ainda: os julgamentos têm o potencial de enviar uma mensagem decisiva sobre a constitucionalidade da produção de leis raciais. Nós, intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais, dirigimo-nos respeitosamente aos Juízes da corte mais alta, que recebeu do povo constituinte a prerrogativa de guardiã da Constituição, para oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República. Na seara do que Vossas Excelências dominam, apontamos a Constituição Federal, no seu Artigo 19, que estabelece: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. O Artigo 208 dispõe que: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. Alinhada com os princípios e garantias da Constituição Federal, a Constituição Estadual do Rio de Janeiro, no seu Artigo 9, § 1º, determina que: “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição”. As palavras da Lei emanam de uma tradição brasileira, que cumpre exatos 120 anos desde a Abolição da escravidão, de não dar amparo a leis e políticas raciais. No intuito de justificar o rompimento dessa tradição, os proponentes das cotas raciais sustentam que o princípio da igualdade de todos perante a lei exige tratar desigualmente os desiguais. Ritualmente, eles citam a Oração aos 153 Moços, na qual Rui Barbosa, inspirado em Aristóteles, explica que: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.” O método de tratar desigualmente os desiguais, a que se refere, é aquele aplicado, com justiça, em campos tão distintos quanto o sistema tributário, por meio da tributação progressiva, e as políticas sociais de transferência de renda. Mas a sua invocação para sustentar leis raciais não é mais que um sofisma. Os concursos vestibulares, pelos quais se dá o ingresso no ensino superior de qualidade “segundo a capacidade de cada um”, não são promotores de desigualdades, mas se realizam no terreno semeado por desigualdades sociais prévias. A pobreza no Brasil tem todas as cores. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2006, entre 43 milhões de pessoas de 18 a 30 anos de idade, 12,9 milhões tinham renda familiar per capita de meio salário mínimo ou menos. Neste grupo mais pobre, 30% classificavam-se a si mesmos como “brancos”, 9% como “pretos”, e 60% como “pardos”. Desses 12,9 milhões, apenas 21% dos “brancos” e 16% dos “pretos” e “pardos” haviam completado o ensino médio, mas muito poucos, de qualquer cor, continuaram estudando depois disso. Basicamente, são diferenças de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior. Apresentadas como maneira de reduzir as desigualdades sociais, as cotas raciais não contribuem para isso, ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação. E, contudo, mesmo no universo menor dos jovens que têm a oportunidade de almejar o ensino superior de qualidade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem novas desigualdades: As cotas raciais exclusivas, como aplicadas, entre outras, na Universidade♣ de Brasília (UnB), proporcionam a um candidato definido como “negro” a oportunidade de ingresso por menor número de pontos que um candidato definido como “branco”, mesmo se o primeiro provém de família de alta renda e cursou colégios particulares de excelência e o segundo provém de família de baixa renda e cursou escolas públicas arruinadas. No fim, o sistema concede um privilégio para candidatos de classe média arbitrariamente classificados como “negros”. As cotas raciais embutidas no interior de cotas para candidatos de escolas públicas, como aplicadas, entre outras, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), separam os alunos proveniente de famílias com faixas de renda semelhantes em dois grupos “raciais” polares, gerando uma desigualdade “natural” num meio caracterizado pela igualdade social. O seu resultado previsível é oferecer privilégios para candidatos definidos arbitrariamente como “negros” que cursaram escolas públicas de melhor qualidade, em detrimento de seus colegas definidos como “brancos” e de todos os 154 alunos de escolas públicas de pior qualidade. A PNAD de 2006 informa que 9,41 milhões de estudantes cursavam o ensino médio, mas apenas 5,87 milhões freqüentavam o ensino superior, dos quais só uma minoria de 1,44 milhão estavam matriculados em instituições superiores públicas. As leis de cotas raciais não alteram em nada esse quadro e não proporcionam inclusão social. Elas apenas selecionam “vencedores” e “perdedores”, com base num critério altamente subjetivo e intrinsecamente injusto, abrindo cicatrizes profundas na personalidade dos jovens, naquele momento de extrema fragilidade que significa a disputa, ainda imaturos, por uma vaga que lhes garanta o futuro. Queremos um Brasil onde seus cidadãos possam celebrar suas múltiplas origens, que se plasmam na criação de uma cultura nacional aberta e tolerante, no lugar de sermos obrigados a escolher e valorizar uma única ancestralidade em detrimento das outras. O que nos mobiliza não é o combate à doutrina de ações afirmativas, quando entendidas como esforço para cumprir as Declarações Preambulares da Constituição, contribuindo na redução das desigualdades sociais, mas a manipulação dessa doutrina com o propósito de racializar a vida social no país. As leis que oferecem oportunidades de emprego a deficientes físicos e que concedem cotas a mulheres nos partidos políticos são invocadas como precedentes para sustentar a admissibilidade jurídica de leis raciais. Esse segundo sofisma é ainda mais grave, pois conduz à naturalização das raças. Afinal, todos sabemos quem são as mulheres e os deficientes físicos, mas a definição e delimitação de grupos raciais pelo Estado é um empreendimento político que tem como ponto de partida a negação daquilo que nos explicam os cientistas. Raças humanas não existem. A genética comprovou que as diferenças icônicas das chamadas “raças” humanas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano. A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos níveis de radiação ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é expressa em menos de 10 genes! Nas palavras do geneticista Sérgio Pena: “O fato assim cientificamente comprovado da inexistência das ‘raças’ deve ser absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais Uma postura coerente e desejável seria a construção de uma sociedade desracializada, na qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada. Temos de assimilar a noção de que a única divisão biologicamente coerente da espécie humana é em bilhões de indivíduos, e não em um punhado de ‘raças’.” (“Receita para uma humanidade desracializada”, Ciência Hoje Online, setembro de 2006).Não foi a existência de raças que gerou o racismo, mas o racismo que fabricou a crença em raças. O “racismo científico” do século XIX acompanhou a expansão imperial européia na África e na Ásia, erguendo um pilar “científico” de sustentação da ideologia da “missão civilizatória” dos europeus, que foi expressa celebremente como o “fardo do homem branco”. 155 Os poderes coloniais, para separar na lei os colonizadores dos nativos, distinguiram também os nativos entre si e inscreveram essas distinções nos censos. A distribuição de privilégios segundo critérios etno-raciais inculcou a raça nas consciências e na vida política, semeando tensões e gestando conflitos que ainda perduram. Na África do Sul, o sistema do apartheid separou os brancos dos demais e foi adiante, na sua lógica implacável, fragmentando todos os “não-brancos” em grupos étnicos cuidadosamente delimitados. Em Ruanda, no Quênia e em tantos outros lugares, os africanos foram submetidos a meticulosas classificações étnicas, que determinaram acessos diferenciados aos serviços e empregos públicos. A produção política da raça é um ato político que não demanda diferenças de cor da pele. O racismo contamina profundamente as sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial – e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de raça. Nos Estados Unidos, modelo por excelência das políticas de cotas raciais, a abolição da escravidão foi seguida pela produção de leis raciais baseadas na regra da “gota de sangue única”. Essa regra, que é a negação da mestiçagem biológica e cultural, propiciou a divisão da sociedade em guetos legais, sociais, culturais e espaciais. De acordo com ela, as pessoas são, irrevogavelmente, “brancas” ou “negras”. Eis aí a inspiração das leis de cotas raciais no Brasil. Eu tenho o sonho que meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação na qual não serão julgados pela cor da sua pele mas pelo conteúdo de seu caráter”. Há 45 anos, em agosto, Martin Luther King abriu um horizonte alternativo para os norte-americanos, ancorando-o no “sonho americano” e no princípio político da igualdade de todos perante a lei, sobre o qual foi fundada a nação. Mas o desenvolvimento dessa visão pós-racial foi interrompido pelas políticas racialistas que, a pretexto de reparar injustiças, beberam na fonte envenenada da regra da “gota de sangue única”. De lá para cá, como documenta extensamente Thomas Sowell em Ação afirmativa ao redor do mundo: um estudo empírico (Univer Cidade, 2005), as cotas raciais nos Estados Unidos não contribuíram em nada para reduzir desigualdades mas aprofundaram o cisma racial que marca como ferro em brasa a sociedade norte-americana. “É um impasse racial no qual estamos presos há muitos anos”, na constatação do senador Barack Obama, em seu discurso pronunciado a 18 de março, que retoma o fio perdido depois do assassinato de Martin Luther King. O “impasse” não será superado tão cedo, em virtude da lógica intrínseca das leis raciais. Como assinalou Sowell, com base em exemplos de inúmeros países, a distribuição de privilégios segundo critérios etno-raciais tende a retroalimentar as percepções racializadas da sociedade – e em torno dessas percepções articulam-se carreiras políticas e grupos organizados de pressão. Mesmo assim, algo se move nos Estados Unidos. Há pouco, repercutindo um desencanto social bastante generalizado com o racialismo, a Suprema Corte declarou inconstitucionais as políticas 156 educacionais baseadas na aplicação de rótulos raciais às pessoas. No seu argumento, o presidente da Corte, juiz John G. Roberts Jr., escreveu que “o caminho para acabar com a discriminação baseada na raça é acabar com a discriminação baseada na raça”. Há um sentido claro na reiteração: a inversão do sinal da discriminação consagra a raça no domínio da lei, destruindo o princípio da cidadania. Naquele julgamento, o juiz Anthony Kennedy alinhou-se com a maioria, mas proferiu um voto separado que contém o seguinte protesto: “Quem exatamente é branco e quem é não-branco? Ser forçado a viver sob um rótulo racial oficial é inconsistente com a dignidade dos indivíduos na nossa sociedade. E é um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar!”. Nos censos do IBGE, as informações de raça/cor abrigam a mestiçagem e recebem tratamento populacional. As leis raciais no Brasil são algo muito diferente: elas têm o propósito de colar “um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar” e, no caso das cotas em concursos vestibulares, associam nominalmente cada jovem candidato a uma das duas categorias “raciais” polares, impondo-lhes uma irrecorrível identidade oficial. O juiz Kennedy foi adiante e, reconhecendo a diferença entre a doutrina de ações afirmativas e as políticas de cotas raciais, sustentou a legalidade de iniciativas voltadas para a promoção ativa da igualdade que não distinguem os indivíduos segundo rótulos raciais. Reportando-se à realidade norteamericana da persistência dos guetos, ele mencionou, entre outras, a seleção de áreas residenciais racialmente segregadas para os investimentos prioritários em educação pública. No Brasil, difunde-se a promessa sedutora de redução gratuita das desigualdades por meio de cotas raciais para ingresso nas universidades. Nada pode ser mais falso: as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. Há um programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar, que exige políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão geral do ensino mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias urbanas, das favelas e do meio rural. O direcionamento prioritário de novos recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos os tons de pele – e, certamente, uma grande parcela daqueles que se declaram “pardos” e “pretos”. A meta nacional deveria ser proporcionar a todos um ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras de acesso à universidade. Mas há iniciativas a serem adotadas, imediatamente, em favor de jovens de baixa renda de todas as cores que chegam aos umbrais do ensino superior, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação das taxas de inscrição nos exames vestibulares das universidades públicas. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o Programa de Cursinhos Pré-Vestibulares Gratuitos, destinado a alunos egressos de escolas públicas, atendeu em 157 2007 a 3.714 jovens, dos quais 1.050 foram aprovados em concursos vestibulares, sendo 707 em universidades públicas. Medidas como essa, que não distinguem os indivíduos segundo critérios raciais abomináveis, têm endereço social certo e contribuem efetivamente para a amenização das desigualdades. A sociedade brasileira não está livre da chaga do racismo, algo que é evidente no cotidiano das pessoas com tom de pele menos claro, em especial entre os jovens de baixa renda. A cor conta, ilegal e desgraçadamente, em incontáveis processos de admissão de funcionários. A discriminação se manifesta de múltiplas formas, como por exemplo, na hora das incursões policiais em bairros periféricos ou nos padrões de aplicação de ilegais mandados de busca coletivos em áreas de favelas. Por certo existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não é uma nação racista. Depois da Abolição, no lugar da regra da “gota de sangue única”, a nação brasileira elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo. Há sete décadas, a República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões significativa de ódio racial. O preconceito de raça, acuado, refugiou-se em expressões oblíquas envergonhadas, temendo assomar à superfície. A condição subterrânea do preconceito é um atestado de que há algo de muito positivo na identidade nacional brasileira, não uma prova de nosso fracasso histórico. “Quem exatamente é branco e quem é não-branco?” – a indagação do juiz Kennedy provoca algum espanto nos Estados Unidos, onde quase todos imaginam conhecer a identidade “racial” de cada um, mas parece óbvia aos ouvidos dos brasileiros. Entre nós, casamentos inter-raciais não são incomuns e a segregação residencial é um fenômeno basicamente ligado à renda, não à cor da pele. Os brasileiros tendem a borrar as fronteiras “raciais”, tanto na prática da mestiçagem quanto no imaginário da identidade, o que se verifica pelo substancial e progressivo incremento censitário dos “pardos”, que saltaram de 21% no Censo de 1940 para 43% na PNAD de 2006, e pela paralela redução dos “brancos” (de 63% para 49%) ou “pretos” (de 15% para 7%). A percepção da mestiçagem, que impregna profundamente os brasileiros, de certa forma reflete realidades comprovadas pelos estudos genéticos. Uma investigação já célebre sobre a ancestralidade de brasileiros classificados censitariamente como “brancos”, conduzida por Sérgio Pena e sua equipe da Universidade Federal de Minas Gerais, comprovou cientificamente a extensão de nossas miscigenações. “Em resumo, estes estudos filogeográficos com brasileiros brancos revelaram que a imensa maioria das patrilinhagens é européia, enquanto a maioria das matrilinhagens (mais de 60%) é ameríndia ou africana” (PENA, S. “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?”, Estudos Avançados 18 (50), 2004). Especificamente, a análise do DNA mitocondrial, que serve como marcador de ancestralidades maternas mostrou que 33% das linhagens eram de origem ameríndia, 28% de origem africana e 39% de origem européia. 158 Os estudos de marcadores de DNA permitem concluir que, em 2000, existiam cerca de 28 milhões de afrodescendentes entre os 90,6 milhões de brasileiros que se declaravam “brancos” e que, entre os 76,4 milhões que se declaravam “pardos” ou “pretos”, 20% não tinham ancestralidade africana. Não é preciso ir adiante para perceber que não é legítimo associar cores de pele a ancestralidades e que as operações de identificação de “negros” com descendentes de escravos e com “afrodescentes” são meros exercícios da imaginação ideológica. Do mesmo modo, a investigação genética evidencia a violência intelectual praticada pela unificação dos grupos censitários “pretos” e “pardos” num suposto grupo racial “negro”. Mas a violência não se circunscreve à esfera intelectual. As leis de cotas raciais são veículos de uma engenharia política de fabricação ou recriação de raças. Se, individualmente, elas produzem injustiças singulares, socialmente têm o poder de gerar “raças oficiais”, por meio da divisão dos jovens estudantes em duas raças polares. Como, no Brasil, não sabemos quem exatamente é “negro” e quem é “não-negro”, comissões de certificação racial estabelecidas pelas universidades se encarregam de traçar uma fronteira. A linha divisória só se consolida pela validação oficial da autodeclaração dos candidatos, num processo sinistro em que comissões universitárias investigam e deliberam sobre a “raça verdadeira” dos jovens a partir de exames de imagens fotográficas ou de entrevistas identitárias. No fim das contas, isso equivale ao cancelamento do princípio da autodeclaração e sua substituição pela atribuição oficial de identidades raciais. Na UnB, uma comissão de certificação racial composta por professores e militantes do movimento negro chegou a separar dois irmãos gêmeos idênticos pela fronteira da raça. No Maranhão, produziram-se fenômenos semelhantes. Pelo Brasil afora, os mesmos candidatos foram certificados como “negros” em alguma universidade mas descartados como “brancos” em outra. A proliferação das leis de cotas raciais demanda a produção de uma classificação racial geral e uniforme. Esta é a lógica que conduziu o MEC a implantar declarações raciais nominais e obrigatórias no ato de matrícula de todos os alunos do ensino fundamental do país. O horizonte da trajetória de racialização promovida pelo Estado é o estabelecimento de um carimbo racial compulsório nos documentos de identidade de todos os brasileiros. A história está repleta de barbaridades inomináveis cometidas sobre a base de carimbos raciais oficialmente impostos. A propaganda cerrada em favor das cotas raciais assegura-nos que os estudantes universitários cotistas exibem desempenho similar ao dos demais. Os dados concernentes ao tema são esparsos, contraditórios e pouco confiáveis. Mas isso é essencialmente irrelevante, pois a crítica informada dos sistemas de cotas nunca afirmou que estudantes cotistas seriam incapazes de acompanhar os cursos superiores ou que sua presença provocaria queda na qualidade das universidades. As cotas raciais não são um distúrbio no ensino superior, mas a face mais visível de uma racialização oficial das relações sociais que ameaça a coesão nacional. 159 A crença na raça é o artigo de fé do racismo. A fabricação de “raças oficiais” e a distribuição seletiva de privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da sociedade o veneno do racismo, com seu cortejo de rancores e ódios. No Brasil, representaria uma revisão radical de nossa identidade nacional e a renúncia à utopia possível da universalização da cidadania efetiva. Ao julgar as cotas raciais, o STF não estará deliberando sobre um método de ingresso nas universidades, mas sobre o significado da nação e a natureza da Constituição. Leis raciais não ameaçam uma “elite branca”, conforme esbravejam os racialistas, mas passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os ônibus que conduzem as pessoas ao trabalho, as ruas e as casas dos bairros pobres. Neste início de terceiro milênio, um Estado racializado estaria dizendo aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou – e que, no seu lugar, o máximo que podemos almejar é uma trégua sempre provisória entre nações separadas pelo precipício intransponível das identidades raciais. É esse mesmo o futuro que queremos? (Foram suprimidas do texto as páginas de assinaturas) 160 Anexo-H MANIFESTO EM FAVOR DA LEI DE COTAS E DO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL AOS/ÀS DEPUTADOS/AS E SENADORES/AS DO CONGRESSO BRASILEIRO A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas específicas. A Constituição de 1891 facilitou a reprodução do racismo ao decretar uma igualdade puramente formal entre todos os cidadãos. A população negra acabava de ser colocada em uma situação de completa exclusão em termos de acesso à terra, à instrução e ao mercado de trabalho para competir com os brancos diante de uma nova realidade econômica que se instalava no país. Enquanto se dizia que todos eram iguais na letra da lei, várias políticas de incentivo e apoio diferenciado, que hoje podem ser lidas como ações afirmativas, foram aplicadas para estimular a imigração de europeus para o Brasil. Esse mesmo racismo estatal foi reproduzido e intensificado na sociedade brasileira ao longo de todo o século vinte. Uma série de dados oficiais sistematizados pelo IPEA no ano 2001 resume o padrão brasileiro de desigualdade racial: por 4 gerações ininterruptas, pretos e pardos têm contado com menos escolaridade, menos salário, menos acesso à saúde, menor índice de emprego, piores condições de moradia, quando contrastados com os brancos e asiáticos. Estudos desenvolvidos nos últimos anos por outros organismos estatais demonstram claramente que a ascensão social e econômica no país passa necessariamente pelo acesso ao ensino superior. Foi a constatação da extrema exclusão dos jovens negros e indígenas das universidades que impulsionou a atual luta nacional pelas cotas, cujo marco foi a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida, em 20 de novembro de 1995, encampada por uma ampla frente de solidariedade entre acadêmicos negros e brancos, coletivos de estudantes negros, cursinhos pré-vestibulares para afrodescendentes e pobres e movimentos negros da sociedade civil, estudantes e líderes indígenas, além de outros setores solidários, como jornalistas, líderes religiosos e figuras políticas – boa parte dos quais subscreve o presente documento. A justiça e o imperativo moral dessa causa encontraram ressonância nos últimos governos, o que resultou em políticas públicas concretas, dentre elas: a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, de 1995; as primeiras ações afirmativas no âmbito dos Ministérios, em 2001; a criação da Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003; e, finalmente, a proposta dos atuais Projetos de Lei que estabelecem cotas para estudantes negros oriundos da escola pública em todas as universidades federais brasileiras, e o Estatuto da Igualdade Racial. O PL 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos vários instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu, tais como a Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), 161 de 1969, e, mais recentemente, ao Plano de Ação de Durban, resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2001. O Plano de Ação de Durban corrobora a ênfase, já colocada pela CERD, de adoção de ações afirmativas como um mecanismo importante na construção da igualdade étnica e racial e essas medidas já se efetivam em inúmeros países multi-étnicos e multi-raciais semelhantes ao Brasil. Ações afirmativas foram incluídas na Constituição da Índia, em 1949; adotadas pelo Estado da Malásia desde 1968; nos Estados Unidos desde 1972; na África do Sul, em 1994; e desde então no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no México. Existe uma forte expectativa internacional de que o Estado brasileiro finalmente implemente políticas consistentes de ações afirmativas, inclusive porque o país conta com a segunda maior população negra do planeta e deve reparar as assimetrias promovidas pela intervenção do Estado da Primeira República com leis que outorgaram benefícios especiais aos europeus recém chegados, negando explicitamente os mesmos benefícios à população afro-brasileira. Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais extremos do mundo. Para se ter uma idéia da desigualdade racial brasileira, lembremos que, mesmo nos dias do apartheid, os negros da África do Sul contavam com uma escolaridade média maior que a dos negros no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros nas universidades sul-africanas, ainda na época do apartheid, era bem maior que a porcentagem dos professores negros nas nossas universidades públicas nos dias atuais. A porcentagem média de docentes nas universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os negros conformam 45,6 % do total da população. Se os Deputados e Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da sociedade brasileira em políticas de Estado não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto, os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos condenando mais uma geração inteira de secundaristas negros a ficar fora das universidades, pois, segundo estudos do IPEA, serão necessários 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da igualdade racial na educação seja adotada. Para que nossas universidades públicas cumpram verdadeiramente sua função republicana e social em uma sociedade multi-étnica e multi-racial, deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e indígenas do país em todos os graus da hierarquia acadêmica: na graduação, no mestrado, no doutorado, na carreira de docente e na carreira de pesquisador. No caminho da construção dessa igualdade étnica e racial, somente nos últimos 4 anos, mais de 30 universidades e Instituições de Ensino Superior públicas, entre federais e estaduais, já implementaram cotas para estudantes negros, indígenas e alunos da rede pública nos seus vestibulares; e a maioria adotou essa medida após debates no interior dos seus espaços acadêmicos. Outras 15 instituições públicas estão prestes a adotar políticas semelhantes. Todos os estudos de que dispomos já nos permitem afirmar com segurança que o rendimento acadêmico dos cotistas é, 162 em geral, igual ou superior ao rendimento dos alunos que entraram pelo sistema universal. Esse dado é importante porque desmonta um preconceito muito difundido de que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade acadêmica das universidades. Isso simplesmente não se confirmou. Uma vez tida a oportunidade de acesso diferenciado (e insistimos que se trata de cotas de entrada e não de saída), o rendimento dos estudantes negros não se distingue do rendimento dos estudantes brancos. Outro argumento muito comum usado por aqueles que são contra as políticas de inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas é que haveria um acirramento dos conflitos raciais nas universidades. Muito distante desse panorama alarmista, os casos de racismo que têm surgido após a implementação das cotas têm sido enfrentados e resolvidos no interior das comunidades acadêmicas, em geral com transparência e eficácia maiores do que havia antes das cotas. Nesse sentido, a prática das cotas tem contribuído para combater o clima de impunidade diante da discriminação racial no meio universitário. Mais ainda, as múltiplas experiências de cotas em andamento nos últimos 4 anos contribuíram para a formação de uma rede de especialistas e de uma base de dados acumulada que facilitará a implementação, a nível nacional, da Lei de Cotas. Para que tenhamos uma noção da escala de abrangência dessas leis a serem votadas, o PL 73/99, que reserva vagas na graduação, é uma medida ainda tímida: garantirá uma média nacional mínima de 22,5% de vagas nas universidades públicas para um grupo humano que representa 45,6% da população nacional. É preciso, porém, ter clareza do que significam esses 22,5% de cotas no contexto total do ensino de graduação no Brasil. Tomando como base os dados oficiais do INEP, o número de ingressos nas universidades federais em 2004 foi de 123.000 estudantes, enquanto o total de ingressos em todas as universidades (federais, estaduais, municipais e privadas) foi de 1.304.000 estudantes. Se já tivessem existido cotas em todas as universidades federais para esse ano, os estudantes negros contariam com uma reserva de 27.675 vagas (22,5% de 123.000 vagas). Em suma, a Lei de Cotas incidiria em apenas 2% do total de ingressos no ensino superior brasileiro. Devemos concluir que a desigualdade racial continuará sendo a marca do nosso universo acadêmico durante décadas, mesmo com a implementação do PL 73/99. Sem as cotas, porém, já teremos que começar a calcular em séculos a perspectiva de combate ao nosso racismo universitário. Temos esperança de que nossos congressistas aumentem esses índices tão baixos de inclusão! Se a Lei de Cotas visa nivelar o acesso às vagas de ingresso nas universidades públicas entre brancos e negros, o Estatuto da Igualdade Racial complementa esse movimento por justiça. Garante o acesso mínimo dos negros aos cargos públicos e assegura um mínimo de igualdade racial no mercado de trabalho e no usufruto dos serviços públicos de saúde e moradia, entre outros. Nesse sentido, o Estatuto recupera uma medida de igualdade que deveria ter sido incluída na Constituição de 1891, no momento inicial da construção da República no Brasil. Foi sua ausência que aprofundou o fosso da desigualdade racial e da impunidade do racismo contra a população negra ao longo de todo o século XX. Por outro lado, o Estatuto transforma em ação concreta os valores de igualdade plasmados na Constituição de 1988, claramente pró-ativa na sua afirmação de que é necessário 163 adotar mecanismos capazes de viabilizar a igualdade almejada. Enquanto o Estatuto não for aprovado, continuaremos reproduzindo o ciclo de desigualdade racial profunda que tem sido a marca de nossa história republicana até os dias de hoje. Gostaríamos ainda de fazer uma breve menção ao documento contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial enviado recentemente aos nobres parlamentares por um grupo de acadêmicos pertencentes a várias instituições de elite do país. Ao mesmo tempo em que rejeitam frontalmente as duas Leis em discussão, os assinantes do documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de inclusão racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a lei e que é preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a todos os segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios universalistas, feita por membros da elite de uma sociedade multi-étnica e multi-racial com uma história recente de escravismo e genocídio, parece uma reedição, no século XXI, do imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado brasileiro. Essa postergação consciente não é convincente. Diante dos dados oficiais recentes do IBGE e do IPEA, que expressam, sem nenhuma dúvida, a nossa dívida histórica com os negros e os índios, ou adotamos cotas e implementamos o Estatuto, ou seremos coniventes com a perpetuação da nossa desigualdade étnica e racial. Acreditamos que a igualdade universal dentro da República não é um princípio vazio e sim uma meta a ser alcançada. As ações afirmativas, baseadas na discriminação positiva daqueles lesados por processos históricos, são a figura jurídica criada pelas Nações Unidas para alcançar essa meta. Conclamamos, portanto, os nossos ilustres congressistas a que aprovem, com a máxima urgência, a Lei de Cotas (PL 73/1999) e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000). Brasília, 3 de julho de 2006 Subscrevem este manifesto: 2407 professores universitários, estudantes, militantes e trabalhadores. Contatos: [email protected] 164 Apêndice A ROTEIROS DE ENTREVISTA 1. Entrevistas realizadas no Quilombo do Cinzento Entrevista I 1. Quem contou as histórias deste lugar para você? 2. O que você sabe sobre a história do Cinzento? 3. O que significa este lugar para você? E como se sente aqui? 4. Qual o sentido do trabalho na comunidade? Conte de que maneira ele é desenvolvido para sustentar a comunidade? 5. Quais são as reivindicações da comunidade? 6. Fale sobre a questão da água. 7. O que mudou com o certificado de auto- reconhecimento? 8. Como a vizinhança trata a comunidade do Quilombo do Cinzento? 9. O que você diria sobre a relação religiosa no Quilombo do Cinzento? Entrevista II 1. Você sabe alguma coisa sobre escravidão? 2. Quais suas lembranças sobre os antepassados? 3. Você percebe alguma mudança entre a vida comunitária de antes e a de agora? Explique a resposta. 4. Como é o dia-a-dia no Quilombo? 5. Quantas pessoas moram aqui? 6. Existe preconceito contra os quilombolas desta comunidade? 165 Entrevista III 1. Ainda existem ameaças em relação a este lugar? 2. Como é o trabalho dos jovens desta comunidade? Há diferença entre o trabalho desenvolvido pelos homens e o desenvolvido pelas mulheres? O que faz cada um? 3. Muitas mulheres da comunidade usam lenço no cabelo. O que você pensa sobre isso? 4. Comente sobre cabelo e o trabalho com o trançado dentro do Quilombo. 2. Entrevista realizada com militantes de entidades sócio-culturais e pela eqüidade racial a) APN b) CDCN c) CEAFRO d) Os Negões 1. Do passado até os nossos dias, a participação de ONGs de caráter político, social, cultural, a solidariedade e a intervenção de setores do Estado aparecem como instrumentos para a superação da questão do racismo, comprovando a urgência de políticas universais com status local para superação das tensões raciais. Em poucas linhas, faça uma breve reflexão sobre a importância e eficácia das políticas de ações afirmativas. 2. Faça uma reflexão sobre os resultados das políticas de ações afirmativas desenvolvidas por esta instituição. 3. Como esta entidade entende o conceito de Reparação? 4. Quais os efeitos das ações gerais aplicadas por esta entidade? 5. Qual o significado de uma identidade negra? 166 6. Qual o entrelace e conexões entre cabelo afro e as lutas contra o racismo? 7. Quais os desafios para a superação das desigualdades étnico/ raciais? 3. Entrevista realizada com militantes (individual) Nome: (se desejar) 1. Quais as implicações do seu engajamento? 2. Qual o seu conceito de Reparação? 3. Qual o significado de uma identidade negra? 4. Há entrelace e conexões entre cabelo afro e as lutas contra o racismo? Explique. 5. Quais os desafios para a superação das desigualdades étnico-raciais? Se for necessário, o seu nome pode ser citado? Sim ( ) Não ( ) 4. Entrevista realizada com jovens da Associação Cultural Pé de Moleque. 1. Qual o significado de ter um cabelo afro? 2. Você enfrenta preconceitos por assumir este estilo, sim ou não? Comente sua resposta. 3. Para você o que é o racismo e quais as suas propostas para diminuir os seus efeitos? 5. Entrevista realizada com entidade rastafári/ comunidade Nova Flor 1. Qual o significado de ter um cabelo rastafári? 167 2. Qual a origem da “estética” rastafári? 3. Como se apresenta o racismo para esta comunidade e quais as suas propostas para diminuir os seus efeitos? 4. Qual a ligação entre cabelo rastafári, religião e as lutas contra o racismo? 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