III ENCONTRO NACIONAL SOBRE HIPERTEXTO
Belo Horizonte, MG – 29 a 31 de outubro de 2009
ENCICLOPÉDIAS CONTEMPORÂNEAS: LEITURAS RETICULARES DA
LITERATURA DE JORGE LUIS BORGES1
Luciana Andrade GOMES (UFMG)2
Resumo
Os livros compêndios foram criados para auxiliar o homem na compreensão do mundo, servindo como
fonte de consulta para a construção e sistematização do conhecimento. Na contemporaneidade, alguns
autores reabrem a ideia de enciclopédia através de um modelo hipertextual, criando obras repletas de
ramificações e oferecendo novas possibilidades de leitura. Assim, a partir do estudo das obras de Jorge
Luis Borges, será possível esquadrinhar e ampliar os questionamentos sobre hipertexto, redes e
rizomas, abrindo espaço para novas reflexões em torno da relação entre autor-texto-leitor na literatura
contemporânea.
Palavras-chave: Enciclopédia; Teoria de redes; Rizoma.
O hipertexto é talvez uma metáfora válida para todas as esferas da realidade
em que significações estejam em jogo.
Pierre Lévy
Italo Calvino destacou a multiplicidade como uma das principais características da literatura
que marcaria a virada do milênio e afirmou que a produção artística seria definida por um
conjunto de redes ou conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo
(CALVINO, 1990, p. 128). Nesse sentido, a literatura contemporânea pode ser concebida a
partir de um cenário híbrido e multifacetado, marcado pelo advento da informática, pela
ruptura de fronteiras e pela demarcação de novas possibilidades de leitura. A partir das noções
de hipertexto e enciclopédia, pretende-se refletir sobre as concepções de texto e discutir a
participação do leitor nesse processo.
Percebe-se que alguns autores, como Jorge Luis Borges, reabrem a ideia de enciclopédia,
construindo obras híbridas e retomando a literatura como uma biblioteca infinita, repleta de
ramificações. Essa enciclopédia passa a ser concebida como uma multiplicidade aberta e
conjetural, podendo, continuamente, reordenar tudo de todas as maneiras possíveis
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Discussão Hipertexto e literatura: por um modelo reticular de leitura, no III
Encontro Nacional sobre Hipertexto, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2009.
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Mestranda em Teoria da Literatura, [email protected]
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(CALVINO, 1990, p. 131). Dessa forma, segundo Olga Pombo (2006), a enciclopédia passa a
incorporar novas facetas, tornando-se descentrada e acentuando o potencial combinatório de
suas entradas, como um hipertexto. Para Umberto Eco, esse processo pode ser denominado
“semiose ilimitada”:
(...) dado que cada um dos seus pontos pode ser ligado a qualquer outro ponto, e o processo de
conexão é também um processo contínuo de correção das conexões; seria sempre ilimitado,
porque a sua estrutura seria sempre diferente da que era um momento antes e cada vez se
poderia percorrê-lo segundo linhas diferentes (ECO, 1991, p. 339).
Pensando na sua capacidade de revelar aproximações, a enciclopédia sempre foi,
espacialmente, o local das relações e das articulações entre os saberes. No entanto, essa
enciclopédia, múltipla e aberta, abandona a estruturação disciplinar e passa a reconhecer que,
hoje, a integração do conhecimento não aceita uma ordem estável e que “qualquer totalidade
só pode ter a forma de uma multiplicidade potencial” (POMBO, 2006, p. 273). Isso acontece
porque, segundo Italo Calvino:
no momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam
setoriais e especialísticas, o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os
diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo
(CALVINO, 1990, p. 127).
No entanto, Eco chama a atenção para a fragilidade desse conceito. Em sua discussão sobre
as noções de dicionário e enciclopédia, o autor afirma que “a ideia de uma enciclopédia nasce
justamente porque o modelo „forte‟ do dicionário se revela não só inadequado, mas
estruturalmente insuportável” (ECO, 1991, p. 336). Isso porque o dicionário pretenderia
alcançar um conhecimento total, fechado, acabado. Porém, o conceito de enciclopédia
também não dá conta desse novo pensamento. Segundo Olga Pombo, a própria ideia de
enciclopédia estaria em dissolução:
O pensamento do labirinto, e da enciclopédia, é fraco enquanto conjetural e contextual, mas é
razoável porque permite um controle intersubjetivo, não desemboca nem na renúncia nem no
solipsismo. É razoável porque não aspira à globalidade; é fraco como é fraco o lutador oriental
que ataca exatamente como o adversário, e inclina-se a ceder, para depois encontrar, na
situação que o outro criou, os modos (conjeturáveis) para reagir vitoriosamente. (...) É forte e
vence, às vezes, porque se contenta em ser razoável (ECO, 1991, p. 341).
Assim, pensar a enciclopédia a partir da multiplicidade parece ser um caminho aceitável para
se debater a abertura do texto literário para outras possibilidades de leitura. Na concepção de
Deleuze e Guattari, o conceito de multiplicidade é apresentado através do dispositivo
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operacional denominado rizoma. Assim como o modelo enciclopédico, o rizoma seria um
espaço múltiplo e essas multiplicidades seriam definidas pela linha de fuga ou
desterritorialização, segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras
(DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 17). Dessa forma, o rizoma poderia ser quebrado em
qualquer lugar e também retomado a partir de novas linhas, explicitando seu caráter não linear
e independente. Segundo Umberto Eco, “o rizoma é desmontável e reversível, sujeito a
modificações; uma rede de árvores espalhadas em todas as direções” (ECO, 1991, p. 339).
Olga Pombo ressalta que a potencialidade máxima da enciclopédia seria uma espécie de
rizoma, uma “rede das redes”, um sistema hipertextual integrado de milhares de subsistemas
interconectados, sem sumários ou palavras-chave, sem limite de extensão e que abrangeria
todo tipo de conhecimento. Essa rede ofereceria várias vias de escolha, que a autora chamou
de “hiperescolha”, apelando “para um jogo infinito de combinatórias, para a participação
activa – interactiva – do navegador” (POMBO, 2006, p. 280):
O hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques,
obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitor uma de suas faces, depois
outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa esquematizada. Ele se redobra e
desdobra à vontade, muda de forma, se multiplica, se corta e se cola outra vez de outra forma.
Não é apenas uma rede de microtextos, mas sim um grande metatexto de geometria variável,
com gavetas, com dobras (LÉVY, 1993, p. 41).
Pierre Lévy (1993, p. 25-6) destaca seis características do hipertexto como forma de preservar
as múltiplas possibilidades de interpretação provenientes de sua estrutura. A primeira está
ligada à metamorfose, pois a rede está em constante construção e renegociação. Sua ordem
está, permanentemente, em jogo, assim como o modelo rizomático. Ele também menciona o
princípio da heterogeneidade, afirmando que vários elementos estão em conexões através da
rede. Seu terceiro ponto é o da multiplicidade e encaixe das escalas, em que o hipertexto pode
ser organizado de modo “fractal”. Em seguida, destaca a exterioridade, pois uma rede
depende do seu diálogo com outras redes. Além disso, o hipertexto está ligado ao princípio da
topologia, funcionando por proximidade, por vizinhança. Por fim, o autor explicita que existe
uma mobilidade dos centros, “saltando de um nó a outro, trazendo ao redor de si uma
ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas” (LÉVY, 1993, p. 26).
Dessa forma, é possível compreender que a literatura é naturalmente hipertextual. Porém, para
Pierre Lévy (1996), a partir da estruturação do pensamento em rede, vislumbra-se também
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uma virtualização do texto. Para o autor, o texto sempre foi aberto às atualizações do leitor,
produzindo novos significados: “A inteligência do leitor levanta por cima das páginas vazias
uma paisagem semântica móvel e acidentada” (LÉVY, 1996, p. 35). Isso já concederia ao
texto um caráter virtual. No entanto, a partir do suporte digital, houve uma mudança na
relação entre leitor e obra, potencializando os processos de leitura:
Ao remontar essa encosta da atualização, a passagem ao hipertexto é uma virtualização. Não
para retornar ao pensamento do autor, mas para fazer do texto atual uma das figuras possíveis
de um campo textual disponível, móvel, reconfigurável à vontade, e até para conectá-lo e fazêlo entrar em composição com outros corpus hipertextuais e diversos instrumentos de auxílio à
interpretação. (...) Então os dispositivos hipertextuais constituem de fato uma espécie de
objetivação, de exteriorização, de virtualização dos processos de leitura (LÉVY, 1996, p. 43).
A história da literatura ocidental, até o século XIX, se define através da vontade de
representação da realidade. Porém, a partir do advento do mundo moderno, tornou-se comum
privilegiar apenas o aspecto performativo, em que o pré-dado não é mais aceito como objeto
de representação, mas sim como material para o desenvolvimento de algo novo. No entanto, o
modelo hipertextual passa a exigir um novo olhar sobre essas questões – “Todo aquele que
participa da estruturação do hipertexto, do traçado pontilhado das possíveis dobras do sentido,
já é um leitor” (LÉVY, 1996, p. 46):
Na hipermídia, a relação entre as palavras, as imagens e os sons se dá por meio de links, ou
seja, através de processos de associação que podem ser múltiplos, probabilísticos ou
modificáveis pelo leitor. Enquanto na prosa expositiva clássica o percurso do pensamento é
quase sempre unívoco, fixo e rigidamente estabelecido pela linearidade das frases e pela lógica
sequencial da argumentação, um aplicativo de hipermídia oferece diferentes formas de
navegação e de associação das unidades, todas igualmente legítimas (MACHADO, 2001, p.
108).
Wolfgang Iser propõe o conceito de jogo sobre a representação, afirmando ser este mais
adequado, pois apresenta vantagens heurísticas: “1. o jogo não se ocupa do que poderia
significar; 2. o jogo não tem de retratar nada fora de si próprio. Ele permite que a inter-relação
autor-texto-leitor seja concebida como uma dinâmica que conduz a um resultado final” (ISER,
2002, p. 107). O texto torna-se, assim, o campo do jogo, sendo resultado de um ato
intencional pelo qual um autor se refere e intervém em um mundo existente, visando algo que
ainda não é acessível. O texto passa a ser composto por um mundo que é esboçado de modo a
incitar o leitor a imaginá-lo.
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Iser ainda explicita que esse jogo seria permeado por características peculiares, sendo o texto
literário descrito em três níveis diversos: o estrutural, o funcional e o interpretativo. O
primeiro tem por objetivo mapear o espaço, o segundo é responsável por explicar sua meta e o
último vai indagar a necessidade e as razões do jogo. No caso do nível estrutural, o espaço do
jogo pode ser determinado através do menor espaço produzido pelo significante fraturado,
invocando algo que não é pré-dado pelo texto, mas engendrado por ele, permitindo ao leitor
dotá-lo de uma forma tangível. Durante o movimento do jogo, esse significante fraturado é
convertido em um “suplemento”. Em seguida, o leitor busca atribuir significação ao
“suplemento”, encerrando o jogo do significante fraturado ao bloqueá-lo com um significado.
O jogo passa, dessa forma, a não ser um espetáculo em que o leitor somente observa, mas
provoca seu envolvimento direto nos procedimentos da encenação. O jogo do texto passa a ser
uma experiência individual que produz “suplementos” também individuais, considerados
como significados do texto. Nesse sentido, o texto é composto por lacunas a serem
preenchidas, ou seja, ele é pensado para que o leitor execute sua parte no próprio trabalho.
Assim, Eco afirma que “um texto é um jogo de estratégias mais ou menos como pode ser a
disposição de um exército para uma batalha” (ECO, 1984, p. 9).
Segundo Iser (2002), esse significado jamais é autenticado pelo texto. Isso porque “cada
significante evoca, de imediato, um horizonte de significados possíveis, dentro do qual se há
de descobrir o significado visado” (STIERLE, 2002, p. 123). Na concepção de Karlheinz
Stierle, para reduzir esse horizonte de significados é necessário estabelecer o contexto,
criando uma significação frasal consistente. Essa significação frasal é uma hipótese e seu
núcleo é definido como o estado de fato, constituindo-se como o primeiro passo da recepção.
E essa posição deve ser sempre reajustada pelo leitor. Nenhum texto se esgota naquilo que
quer dizer, produzindo uma comunicação suplementar e não prevista:
Assim, o jogo do texto não é nem ganho, nem perda, mas sim um processo de transformação
das posições, que dá uma presença dinâmica à ausência e alteridade da diferença. Em
consequência, aquilo que o texto atinge não é algo pré-dado, mas uma transformação do
material pré-dado que contém. Se o texto acentua a transformação, é ele obrigado a ter uma
estrutura de jogo, pois doutro modo a transformação teria de ser subsumida a uma armação
cognitiva, com a destruição de sua própria natureza (ISER, 2002, p. 115).
No caso dos textos hipertextuais, essa transformação, para Iser, chegaria à plena fruição pela
participação imaginativa do leitor nos jogos realizados, pois “quanto mais o leitor é atraído
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pelos procedimentos a jogar os jogos do texto, tanto mais é ele também jogado pelo texto”
(ISER, 2002, p. 115). Para Pierre Lévy, não se trata mais de pensar no autor, mas de pedir ao
texto os subterfúgios necessários: “A interpretação, isto é, a produção de sentido, doravante
não remete mais exclusivamente à interioridade de uma intenção, nem a hierarquias de
significações esotéricas, mas à apropriação sempre singular de um navegador ou de um
surfista” (LÉVY, 1996, p. 49).
Essa abertura para novas possibilidades de leituras pode ser apreendida a partir dos verbetes
insólitos do bestiário O Livro dos Seres Imaginários, uma ampliação do Manual de Zoología
Fantástica, escrito por Jorge Luis Borges, em parceria com Margarita Guerrero. Trata-se de
um compêndio fantástico que incorpora uma lista de 116 seres fabulosos pertencentes às
mitologias e literaturas do mundo todo. Nesse caso, há um rompimento com a classificação
alfabética, caracterizando-se como uma obra ramificada, sem ordem aparente, que induz a
uma leitura não linear. O próprio autor, durante o prólogo, afirma que a leitura deve ser feita
“como quem brinca com as formas cambiantes reveladas por um caleidoscópio” (BORGES e
GUERRERO, 2007, p. 10).
O autor também alerta para o caráter insatisfatório da obra, pois produzir um livro dos seres
imaginários é algo impossível, inalcançável. Isso porque, dentro dessa categoria, seria
perfeitamente possível a inclusão de todo o universo: “Um livro dessa índole é
necessariamente incompleto: cada nova edição é o núcleo de edições futuras, que podem
multiplicar-se ao infinito” (BORGES e GUERRERO, 2007, p. 9).
O bestiário se torna, então, um artifício, uma forma de parodiar a prática sistemática de
classificação do mundo. Com isso, ele estabelece outra forma de conceber os animais
fabulosos na contemporaneidade, diferentemente da tradição da zoologia fantástica ocidental,
colocando, no mesmo espaço, vários elementos vindos de realidades e tempos distintos; uma
possibilidade de “desfazer a ordem do arquivo da tradição e rearranjá-lo em outro
espaço/tempo e sob outra perspectiva” (NASCIMENTO, 2007, p. 66). Da mesma forma,
afirma Virginia Naughton:
En nuestra época, el interés por los bestiarios se ha renovado gracias a las expresiones estéticas
y literarias que lo han tomado por objeto. Entre ellas, la admirable Zoología Fantástica de
Borges, nuestro mayor escritor, y otras contribuciones procedentes de la música, la pintura y la
escultura. Y si bien el hombre medieval la dimensión de “lo maravilloso” formaba parte de lo
cotidiano, en nuestro tiempo lo interrumpe, lo subvierte, para abrir así un espacio misterioso y
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recóndito, y tal vez en ello resida el interés renovado por aquellas descripciones fantásticas
(NAUGHTON, 2005, p. 22).
Nesse contexto, Brandão afirma que “os valores vinculados a certos espaços tendem, de fato,
a se cristalizar, gerando a impressão de que são anteriores a qualquer conceptualização – de
que são, na terminologia bachelardiana, „imagens‟, definidoras da „imaginação poética‟”
(BRANDÃO, 2007, p. 214). Porém, ele também ressalta que essa fenomenologia deve ser
compreendida sob um prisma cultural e semiótico, sendo consideradas as condições que
tornam viável o poder de dadas significações espaciais. Assim, a transposição de espaços do
mundo para o texto “passa a ser vist[a] como interferência, dinamização, provocação,
desestabilização: como ação, portanto, política” (BRANDÃO, 2007, p. 214).
Outro ponto destacado por Brandão é a questão das operações de espaçamento,
especificamente na experiência de leitura, abrindo espaço, na literatura moderna, para o
conceito de obra-em-processo. Isso quer dizer que a espacialidade da obra não é homogênea e
nem fixa, sendo que os sentidos estão em constante deslocamento. Para Derrida, espaçamento
ou distanciamento é o intervalo no qual o presente se relaciona com algo diferente de si. Por
isso, essa operação de espaçamento pode pressupor uma “cronotopização”, “uma maneira de
abordar o texto segundo a variabilidade potencial de suas articulações” (BRANDÃO, 2007, p.
215).
Trata-se, portanto, de buscar quais são os vetores de ordenação e de desordenação textual, de
demarcar os “espaços estriados” (métrico, estruturado) e os “espaços lisos” (não topográfico)
de um texto. Para Deleuze e Guattari o conceito de desterritorialização tem um papel
fundamental nessa demarcação, pois os autores demonstram que existe uma predileção
declarada pelos espaços em que não se identificam fronteiras, os chamados espaços lisos, que
são desprovidos de trajetórias definidas: “Detecta-se a necessidade de desterritorializar-se,
não pertencer a lugar nenhum, estar em trânsito permanente” (BRANDÃO, 2003, p. 82).
Borges, quando desloca os animais e seres fabulosos do seu espaço/tempo, desordena o
imaginário cristalizado pela tradição – entendida aqui como uma forma de memória, um
arquivo de bens culturais (NASCIMENTO, 2001, p. 52). Em seu bestiário existe uma
proliferação de possibilidades de ressignificação, onde “a monstruosidade, portanto, ali
recenseada, abre-se para novas inscrições” (NASCIMENTO, 2007, p. 72):
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Na obra de Jorge Luis Borges, esse modo de elaborar a tradição cultural e literária delineia uma
reflexão crítica sobre a construção de textos do presente, que se articulam com vestígios
culturais do passado e, simultaneamente, uma forma de repensar a tradição canônica, não em
sua unicidade imaginada, mas enquanto um repertório de múltiplas tradições que podem ser
acessadas, adulteradas, reencenadas em outros contextos e trançadas com outras tradições
(NASCIMENTO, 2001, p. 52).
Dessa forma, a cada novo verbete é possível encontrar críticas e incongruências, uma forma
do autor mostrar como são frágeis os sistemas de classificação através de uma leitura
múltipla, reticular. A ficção borgiana se torna uma configuração apta para o uso do
imaginário; uma forma de expressar uma visão mais profunda da realidade, transfigurando-a:
“O fictício então se qualifica como uma específica forma de passagem, que se move entre o
real e o imaginário, com a finalidade de provocar sua mútua complementaridade” (ISER,
2002, p. 983). O espaço literário borgiano se transforma em uma estrutura aberta que visa
desestabilizar os saberes arquivados pela tradição, buscando novas conexões a partir desse
deslocamento, dessa estrutura enciclopédica e hipertextual.
Seguindo a linha da multiplicidade, Italo Calvino desdobra as possibilidades de uma obra
enciclopédica através da proposta de exatidão. No entanto, não se trata de apreender um texto
de forma unívoca ou rígida. Essa exatidão seria uma oposição à inconsistência, abrindo-se
para uma precisão na variabilidade das possibilidades. Esse caráter combinatório se aproxima
muito dos princípios do hipertexto postulados por Pierre Lévy: “A obra literária é uma dessas
mínimas porções nas quais o existente se cristaliza numa forma, adquire um sentido, que não
é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa mobilidade mineral, mas tão vivo quanto um
organismo” (CALVINO, 1990, p. 84).
Da mesma forma, Calvino (1990) afirma que o leitor deve ser capaz de transitar, com
agilidade, sobre as possíveis redes de significações do texto. Para isso, ele recorre às noções
de leveza e rapidez. Na sua visão, a literatura deve ser leve, ágil e dinâmica, recorrendo à
mobilidade e vivacidade da obra. Essas características seriam fundamentais para manter o
campo do jogo, alimentando o desejo do leitor. A leitura, portanto, seria um movimento
fragmentado, de saltos e de novas conexões: “Ao mesmo tempo que o rasgamos pela leitura
ou pela escuta, amarrotamos o texto. Dobramo-lo sobre si mesmo. Relacionamos uma à outra
as passagens que se correspondem” (LÉVY, 1996, p. 35).
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Roland Barthes (2006) concebe o texto como tecido; porém, alerta para o fato desse tecido
não ser sinônimo de um véu todo acabado, compreendendo um sentido final, uma verdade
absoluta. Ao contrário, ele desperta para o fato desse tecido ser um entrelaçamento perpétuo,
um lugar de fruição: “(...) perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual
uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia” (BARTHES,
2006, p. 74-5). Para Barthes, o leitor se torna uma espécie de contra-herói que se entrega a seu
prazer: “O sujeito chega à fruição pela coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado:
o texto de prazer é Babel feliz” (BARTHES, 2006, p. 8).
Assim, o tecido barthesiano volta ao conceito de multiplicidade. O texto hipertextual abre
espaço para novas combinações, para novas vias de leitura, como se fosse um tecido orgânico,
que ganhasse vida. A obra enciclopédica, na contemporaneidade, não tem mais a pretensão de
exaurir o conhecimento do mundo, encerrando-se num círculo: “De qualquer ponto que parta,
o discurso se alarga de modo a compreender horizontes sempre mais vastos e, se pudesse se
desenvolver em todas as direções acabaria por abraçar o universo inteiro” (CALVINO, 1990,
p. 122).
A enciclopédia torna-se dialógica, polifônica, lembrando a Biblioteca de Babel (2007), de
Jorge Luis Borges. De forma crítica, o autor explicita os paradoxos do fechamento do
discurso, criticando o desejo de totalidade e a estabilidade dos saberes. A estrutura da
biblioteca seria montada por galerias hexagonais que se multiplicariam ao infinito e ela seria
detentora de todo o conhecimento humano.
Para Umberto Eco (1991), esse projeto enciclopédico estaria muito próximo do labirinto. No
entanto, o modelo adotado não seria o correspondente ao mito do Minotauro ou ao labirinto
maneirístico. O modelo escolhido seria o de uma rede, em que cada ponto pode ter conexão
com qualquer outro ponto, podendo expandir-se infinitamente. Ela não teria centro, mas
apresentaria uma série de pseudo-árvores que assumiriam o aspecto hipotético de mapas
locais (ECO, 1991, p. 341).
Dessa forma, é possível compreender que a literatura sempre foi potencialmente hipertextual.
No entanto, o deslocamento da verdade absoluta e dos paradigmas trouxe à tona um novo
pensamento, voltado para a abertura dos discursos, para a multidisciplinaridade. Hoje, os
saberes se encontram imbricados, em busca de novas conexões. Esse modelo hipertextual
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torna-se o local do encontro disciplinar, da investigação do conhecimento e das múltiplas
experiências artísticas. Assim, a partir desses questionamentos, é possível ampliar as reflexões
em torno do texto literário, sendo fundamental para se pensar a relação entre autor- textoleitor na contemporaneidade.
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leituras reticulares da literatura de Jorge Luis Borges