22 de Fevereiro de 2014
Vivemos num tempo de grande complexidade, de múltiplas incertezas, de
permanentes interacções e interdependências. A globalização com que somos
diariamente confrontados, nomeadamente pelos poderes instituídos, é, ela própria,
múltipla e contraditória, numa luta constante entre Interesses – o lucro,
prioritariamente – e Valores – a construção de uma cidadania planetária, por
exemplo.
Seria um erro crasso observarmo-nos isolados destas circunstâncias globais. De
facto, somos, conscientemente ou não, participantes activos nessas interacções e
interdependências, nessa luta entre Interesses e Valores.
Por isso, o que a seguir se dirá não esquece este contexto, em que causas e
efeitos ocorrem e produzem-se em duplo sentido, interno e externo.
No entanto, a gravidade das circunstâncias internas impõe uma reflexão sobre o
que somos, de onde viemos, para onde pretendemos ir, que caminhos escolhemos
percorrer. E sendo militares, isto é, detentores de uma força que só pode ser
usada com legitimidade, essa reflexão torna-se urgente.
Não cabe neste curto texto abordar todas as possíveis vertentes de análise da
realidade militar, desde a académica, nos seus diversos aspectos (sociológicos,
religiosos, culturais, tecnológicos, psicológicos, etc.); a política (conquista, defesa,
interdependências, alianças, etc.); a jurídica (leis nacionais, direito internacional, lei
da guerra, etc.); a moral (guerras justas, guerras injustas). A abordagem que se
pretende fazer foca-se num aspecto crucial e fundacional da Condição Militar: em
última instância, os militares morrem e matam.
Ora, se é verdade que a segurança do Estado assenta, como último recurso, no
possível uso da força, esta força só pode ser usada quando devidamente
suportada numa Ordem Constitucional, não inferior nem superior a ela.
De facto, a Constituição estabelece a fundamentação crucial para que as Forças
Armadas, os militares, exerçam as suas acções, isto é, o uso legítimo da força,
quer em caso de conflito armado, quer em caso de estado de emergência.
Mas é também na Constituição que se explicita a necessária protecção dos
militares contra ordens inconstitucionais, por exemplo acções contra protestos
políticos ou envolvimento em acções de reforço de leis de carácter civil.
Sem estas duas vertentes constitucionalmente inscritas, as Forças Armadas não
seriam mais do que uma força armada, de carácter mercenário, ao serviço de
interesses conjunturais e não nacionais, pois o Estado deixaria de ser a
organização política superior de uma Comunidade, a Comunidade que os militares
juram defender, mesmo com sacrifício da própria vida. Juramento que comporta
“Cumprir e fazer cumprir a Constituição”.
Por outro lado, é ainda na Constituição que fica explicitado o dever de neutralidade
política das Forças Armadas e dos militares. Esta neutralidade política –
apartidarismo político – dos militares é, também ele, inscrito no juramento que os
militares fazem, expressando a sua subordinação ao poder político – mas não a
sua submissão: o juramento de que falamos é feito perante a Comunidade, não
perante este ou aquele governo.
Aliás, sendo o juramento militar – se necessário levado até ao limite do sacrifício
da própria vida, relembremos – feito perante toda a Comunidade, é inquestionável
o nível superior da neutralidade e do apartidarismo políticos assim jurados: é o
reconhecimento, assumido solene e publicamente, de todas as diferenças,
individuais e colectivas, existentes no todo que é a Comunidade, sejam elas de
carácter político-ideológico, religioso, de género, racial, profissional, cultural. Não
se resume a aceitar a subordinação da força que detêm ao poder político, mas sim
a colocá-la, sem margem para dúvidas, ao serviço da Comunidade inteira,
independentemente do governo/partido político que estiver em funções.
Não é este o entendimento, nem a prática, do actual governo do País. Desde a sua
tomada de posse ficou claramente perceptível que o governo considera a
Comunidade como uma entidade perfeitamente divisível. E tanto assim é, que
desde o início da sua acção governativa não cessa de a dividir, colocando novos
contra velhos, empregados contra desempregados, trabalhadores do sector
privado contra funcionários públicos, todos contra os professores, militares e
reformados como “excedentes descartáveis”.
Esta hipocrisia política, praticada com afinco, acompanha bem a desonestidade
política de quem venceu eleições livres e democráticas com um programa de
governo que rejeitou logo que tomou posse. E também a cobardia política de tudo
fazer (“custe o que custar”) para cumprir compromissos assumidos com os mais
fortes (internos e externos), enquanto tudo faz para quebrar todos os
compromissos assumidos com os mais fracos (a esmagadora maioria da
Comunidade). E o crime político (não só!) que é o sistemático roubo das pensões
aos reformados e pensionistas.
Para além disso, a prática governativa do actual governo assenta ainda na rejeição
da Constituição que jurou cumprir; na confrontação violenta com outros órgãos de
soberania que lhe não sejam dóceis (Tribunal Constitucional, por exemplo); no
desprezo por qualquer lei que não sirva os seus propósitos imediatos; na assumida
subserviência perante poderes externos (como prova a apatia – senão o aplauso!
– com que assistiu às pressões externas feitas sobre o Tribunal Constitucional).
Assim, as circunstâncias internas e externas que tornam urgente uma reflexão dos
militares sobre si próprios, sobre as Forças Armadas em que se integram para
cumprir o juramento que fazem perante a Comunidade inteira, e sobre o caminho
que deve ser percorrido, são definidas numa única frase: este governo é ilegítimo!
E de um “presidente” da República que, ao escolher ser remunerado pelas suas
pensões de reforma (possibilidade legal) em detrimento do vencimento como
Presidente da República, mais não fez do que afirmar que os seus interesses
pessoais prevalecem sobre o mais alto cargo representativo da Comunidade
inteira, melhor governação não é possível, com realismo, esperar.
De facto, a falta de Ética na acção governativa é evidente. Tal como a pretendida
“funcionalização” das Forças Armadas, que mais não é do que o reconhecimento
da governação da sua incapacidade, ou mesmo rejeição, de corresponder à
extrema Disciplina, e à extrema Lealdade – até ao sacrifício da própria vida –
exigida aos militares, com a extrema exigência Ética do exercício do Poder,
eximindo-se de uma forma soez às suas responsabilidades.
É imperioso relevar que a prática de crimes de guerra e de crimes contra a
Humanidade impõe responsabilidade individual a quem os pratica (sem
possibilidade de se escudar no “cumprimento de ordens”), mas impõe, de igual
modo, responsabilidade acrescida aos superiores hierárquicos, tanto ao nível da
prevenção, como da própria acção, estando o Dever de Tutela indissociado do
Dever de Exemplo. E uma vez que o poder militar está subordinado ao poder
político, é neste que reside o topo da hierarquia, cabendo-lhe, por isso, a
inquestionável obrigação de dar prova da legitimidade e da Ética com que exerce o
Poder que detém.
Neste contexto, cremos serem pertinentes, urgindo respostas claras de cada um
de nós, militares, das Chefias Militares, e, sobretudo, do poder político, perguntas
como estas:
1. Os recursos escassos e os
constrangimentos ou custos Éticos?
constrangimentos
financeiros
justificam
2. Que lições Éticas foram retiradas dos inúmeros conflitos armados dos últimos 20
anos?
3. Como acabar a guerra contra o terror, globalizada, e que dura há mais de 20
anos?
4. O terrorismo financeiro, também ele globalizado, está ou não incluído na
definição geral de terror que vem sendo apresentada como justificação para todos
os conflitos armados e sangrentos? Se não, porquê? E como combatê-lo, se os
seus efeitos são devastadoramente mortíferos?
5. Que requisitos de ordem Ética e Moral devemos exigir a todos os que servem a
Comunidade no Estado (também ele ao serviço da Comunidade), especialmente
os governantes?
6. Devem os militares sentirem-se preocupados e responsáveis não apenas pela
condução da guerra, mas também pelas suas causas e efeitos? *
Serão estas questões tão políticas que os militares deverão abster-se de as
colocar, e sobre elas expressarem as suas opiniões, e as suas opções, enquanto
militares? Deverão deixá-las para momentos e circunstâncias em que possam
“vestir” a sua identidade cidadã? Será dentro da identidade militar que cabe a
identidade cidadã ou, pelo contrário, é, inequivocamente, dentro da identidade
cidadã que cabe a circunstância profissional de ser militar?
Vejamos:
a) O superior nível de apartidarismo que já apontámos é, indubitavelmente, uma
opção política de alto nível;
b) Jurar o sacrifício da própria vida é uma opção incontornavelmente política. Se
não o fosse, os militares seriam apenas masoquistas ou suicidas;
c) E matar outro ser humano, por mais inimigo que seja considerado, só pode ser
uma opção imprescindivelmente política, sob pena de os militares se tornarem
meros mercenários, assassinos a soldo.
É crucial que interiorizemos que a crise que vivemos é, sobretudo, uma crise de
Valores. Sendo as Forças Armadas, e os militares que as integram, o último
sustentáculo do Poder político; e considerando que o actual Poder político arredou
da sua prática quaisquer Valores – a acção governativa tem vindo a provar que se
rege por seleccionados interesses privados, alguns privadíssimos, muitos obscuros
-, é imperioso que estas questões sejam debatidas politicamente. Neste momento
de profunda crise, destrutiva da Comunidade que juramos defender, discutirmos
apenas questões sócio-profissionais é, queira-se ou não, uma opção nitidamente
política. Não será esta uma opção política que se perfila longe do juramento que
fizemos?
Porém, tem que ficar desde já claro, para cada um de nós, para as Chefias
Militares, para o Poder político, que o nosso compromisso para com a Comunidade
a que nos orgulhamos de pertencer, e que defendemos até ao limite do mais
elevado preço – a Vida! – que:
1. Os militares não actuarão, nunca, contra o seu Povo!
2. Uma eventual intrusão de uma qualquer força estrangeira, por mais “anti-motim”
que tenha inscrito como missão atribuída, constituirá um acto de agressão externa
ao qual, por inexorável dever Ético, os militares se oporão!
3. Uma eventual participação das nossas Forças Armadas num qualquer conflito
armado no exterior só poderá acontecer sob mandato claro, preciso e inequívoco,
da Organização das Nações Unidas.
*As perguntas 1, 2, 3, 5 e 6 foram, entre outras, objecto de debate, entre militares,
organizado por militares, dentro de uma unidade militar – Exército dos Estados
Unidos da América, Fort Leavenworth, Kansas, há cerca de 4 meses.
Almeida Moura (Capitão de Mar-e-Guerra)
Download

22 de Fevereiro de 2014