Sessão de Pôster
Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental
Quando o amor mata ­ psicopatologia e imputabilidade
Delírio de ciúmes: considerações etiológicas e psicopatológicas
José Eduardo Sant´Anna Porto (1); Arthur Maciel Nunes Gonçalves; Felipe Salles Neves Machado; Maíra Maciel Campomizzi (2).
Sumário:
Delírio, com poucas ou sem alucinações, diferente da esquizofrenia: embora o DSM­
IV apresente um Transtorno Delirante de Ciúmes, a CID­10 não especifica tal subtipo. O seguinte quadro impõe dificuldades na correlação entre psicopatologia e determinação de imputabilidade. Homem, 76 anos, iniciou quadro de ciúmes excessivos em relação à esposa. Provocava discussões e brigas infundadas, acreditando que ela o traía, com desfecho fatal – assassinato da esposa. Preso e depois internado em hospital psiquiátrico, afirmava que não tivera intenção de matar, mas que a morte não fora ruim, pois agira “em nome da honra”. Não apresentava outras alterações psicopatológicas e não havia uso de drogas associado. Após exclusão de doenças orgânicas, recebeu alta com diagnóstico de Transtorno Delirante Persistente (CID­
10 F22) e hoje responde a processo criminal. Mesmo com tratamento, ainda mantém crença inabalável de que fora traído.
Descritores: Delusions/diagnosis, Delusions/psychology, Diagnosis, Differential, Jealousy, Erectile Dysfunction, Alcoholism/psychology, Adult, Male, Humans, Prognosis, Psychopathology, Accountability
1 ­ Psiquiatra pela ABP, assistente e preceptor da Residência Médica do Hospital do Servidor Público Estadual “Francisco Morato Oliveira”.
2 ­ Residentes do segundo ano do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual “Francisco Morato Oliveira”.
1. RELATO DO CASO
Relatamos o caso de um paciente masculino, 76 anos, imigrante. Quadro psicopatológico marcado por ideação delirante de ciúmes. Características pré­
mórbidas de um comportamento impulsivo, com pouca tolerância a contrariedades, irritável e rígido. História de consumo de álcool diário em torno de 1 a 2 doses de destilados desde a adolescência acompanhado de queixa de disfunção erétil desde 2002.
Em 2004, passou a desconfiar da esposa, alegando que o traía. Elegia amantes para ela, especialmente pessoas de sua convivência e familiares. O quadro de ciúmes se agravou com o decorrer do tempo, passando a ter ciúmes dos filhos. Convencido a tratar sua disfunção erétil, foi levado à avaliação urológica. Recebeu prescrição de sildenafil e foi encaminhado ao psiquiatra. Resistente ao tratamento, não fez uso da medicação tampouco fora ao especialista recomendado.
A ideação delirante se mantinha e era atualizada com frequência. Seu comportamento era cada vez mais constrangedor para a família, provocando discussões e brigas infundadas, centradas unicamente no tema de traição.
A situação se agravou com agressões e ameaças de morte, até que no calor de uma briga, atirou contra a esposa, em praça pública, na presença de diversas testemunhas, com desfecho fatal.
Foi preso em flagrante, sem saber que ela havia morrido. Passou alguns dias detido, após os quais foi solto para responder processo em liberdade e receber avaliação psiquiátrica, sendo internado em uma clínica especializada. Continuava sem saber da morte da esposa e alegava sistematicamente que havia sido traído por ela. Após 15 dias de internação soube do óbito. Disse que não pretendia matá­la, mas que a situação estava mesmo insustentável, que sua honra havia sido maculada e que era preciso fazer algo. Mantinha o delírio de ciúmes estruturado e persistente, com irritabilidade, sem outras alterações ao exame psíquico. Ficou internado por 2 meses quando foram excluídas outras doenças orgânicas. Recebeu o diagnóstico de Transtorno Delirante Persistente (CID­10 F22). Atualmente segue em tratamento psiquiátrico regular em uso de neuroléptico (olanzapina 5mg por dia). O delírio, após a morte da esposa, persiste, porém sem atualização, referido ao passado. Quando questionado em relação à traição da esposa, não se esforça em expor ao examinador motivos lógicos para sua crença, mas aceita a medicação para ficar “menos nervoso”. 2. DISCUSSÃO
2.1. As classificações oficiais e o delírio de ciúmes Segundo o DSM­IV­TR (1), no tópico sobre transtorno delirante aparece o tipo ciumento:
"Este subtipo aplica­se quando o tema central do delírio diz respeito a estar sendo traído pelo cônjuge ou parceiro romântico, esta crença é injustificada e esta baseada em inferências incorretas apoiadas por pequenas evidências, que são colecionadas e usadas para justificar o delírio. O individuo com o delírio geralmente confronta seu cônjuge e parceiro e tenta intervir na infidelidade imaginária".
Os critérios diagnósticos para Transtorno Delirante (F22.0 ­ 297.1), onde se inclui o Transtorno Delirante de Ciúme são:
A. Delírios não­bizarros que envolvem situações da vida real, tais como ser seguido, envenenado, infectado, amado a distância, traído por cônjuge ou parceiro romântico ou ter uma doença com duração mínima de 1 mês.
B. O critério A para Esquizofrenia não é satisfeito.
C. Exceto pelo impacto do(s) delírio(s) ou de suas ramificações, o funcionamento sócio­ocupacional não está acentuadamente prejudicado, e o comportamento não é visivelmente esquisito ou bizarro.
D. Se episódios de humor ocorreram durante os delírios, sua duração total foi breve relativamente à duração dos períodos delirantes.
E. A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância, como por exemplo, uma droga de abuso, um medicamento ou não se deve à uma condição médica geral (onde se exclui o ciúme do alcoolista).
Especifica o tipo atribuído com base no tema predominante do delírio:
Tipo Ciumento: delírios de que o parceiro sexual do indivíduo é infiel. Tipo Persecutório: delírios de que o indivíduo ou alguém chegado a ele está sendo, de algum modo, maldosamente tratado.
O ciúme patológico ou mórbido pode se manifestar de diversas formas. Como delírio, ideia supervalorizada, afeto depressivo ou como um estado de ansiedade. O ciúme pode ser identificado como delirante quando a crença do cônjuge ou outros está baseada em evidências delirantes. Tais delírios são resistentes ao tratamento e não mudam com o tempo (2).
2.2. Disfunção sexual A disfunção erétil masculina afeta em torno de 150 milhões de homens em todo o mundo, sendo que a prevalência e a severidade aumentam com a idade. Taxas de 3,9% foram observadas aos 25 anos subindo para 32,3% nos homens com idade entre 50­70 anos (3). Estudos epidemiológicos têm demonstrado inúmeros fatores de risco para disfunção erétil, como idade, variáveis relacionadas ao diabetes, à depressão, à hipertensão e ao tabagismo. A disfunção erétil foi considerada por alguns autores como prenúncio de eventos cardiovasculares. Diante da disfunção endotelial, tem sido levantada a hipótese desta resultar de fatores de risco cardiovascular, que por sua A relação etiológica do álcool e disfunção erétil permanece controversa na literatura. Segundo recente metanálise (4) faltam estudos que comprovem a relação causal do álcool. No entanto, evidências de grandes estudos de coorte indicam que o consumo regular de álcool não é significativamente associado à disfunção erétil (3) e outros ainda apontam o álcool como fator protetor em baixas doses. Estudo indica que o consumo de 8 ou mais drinques por semana reduz significativamente o risco de disfunção (4).
No entanto, anormalidades metabólicas são frequentes em pacientes com cirrose hepática, especialmente em alcoólicos crônicos. Sinais de hipogonadismo com distúrbios reprodutivos e funções do sistema endócrino gonadal são encontrados em homens como em mulheres. Os homens com cirrose alcoólica também pode ser caracterizada por sinais de feminização, que resultam principalmente de um aumento da conversão periférica de andrógenos (6). Outro estudo indica a interferência de fator psicológico na disfunção erétil. Fahrer analisou a prevalência de disfunção sexual em 101 alcoólatras do sexo masculino. Três quartos tinham disfunção erétil, perda de libido e ejaculação precoce ou retardada. Um follow­up foi feito nove meses após o término do tratamento. Não houve diferença significativa na prevalência de disfunção sexual entre os dois pontos de medição hormonal. Todos os pacientes apresentavam níveis normais de testosterona plasmática no início e final do tratamento hospitalar. Estes achados sugerem causas psicológicas para os problemas sexuais e a necessidade de intervenção terapêutica (7).
Autores apontam para um ciclo vicioso entre o uso do álcool e a impotência sexual masculina, onde os dependentes de álcool sofrem de disfunção erétil e, inversamente, os que têm disfunção erétil frequentemente fazem uso de álcool cronicamente. Particularmente aqueles já em abstinência alcoólica, que foram subitamente retirados do álcool, muitas vezes se queixam da impotência e reportam a impotência como uma "causa" para a recaída. Pesquisas mostram que cada vez mais o álcool inibe a função erétil normal e que, por sua vez, pode levar a um maior consumo de álcool como uma tentativa de "auto­tratamento". Assim, o ciclo vicioso de disfunção erétil e o consumo de álcool seria desenvolvido (8).
2.3. Delírio como o rompimento da comunicação lógica Na clínica psiquiátrica, o delírio é um elemento central e intrigante da psicopatologia de alguns pacientes. Antigamente o termo era usado para designar insanidade mental, em geral, associada a febres, intoxicações, traumatismos cranianos (delirium) ou manifestações sine materia. As definições destacam crenças, convicções ou juízos falsos, incorrigíveis, fora dos padrões da realidade e incompatíveis com a sociedade, a cultura, o ambiente. Entretanto, até Jaspers falava de casos nos quais a rigidez das crenças, a imutabilidade delas, não seria absoluta (10). Podem ser consideradas “falsas” certas crenças, por aqueles que não as compartilham, sem que isso signifique que sejam doentias. Os praticantes de movimentos religiosos, como Hare Krishna e Druidas, apresentam condutas parecidas às de delirantes, e no Delusion Inventory, seus escores são semelhantes (9). Contradições desses tipo demonstram que o conceito não tem validade, não é expressivo, sendo incapaz de servir de base para investigações e intervenções consistentes. Encarar o delírio como mudança de mecanismo “das crenças” ou experiência direta do significado, falar da insensibilidade do delirante aos argumentos contrários, não justifica a aplicação dos módulos no estudo problema, nem a ideia de procurar compreender os distúrbio subjacentes ligados à personalidade íntegra, atingida em sua estrutura e seu modo de existir (9). Como também não a justifica a percepção de Binswanger: “O expressivo nunca é o fenômeno isolado”. Os fenômenos devem ser explicados em função da vivência. A lógica pode ser vista como um instrumento de comunicação. A comunicação lógica permite aos interlocutores compreenderem­se reciprocamente, poder julgar, avaliar, tratar o que lhes interessa. Uma comunicação pode ser entendida somente quando é formulada logicamente. Não é a única forma de pensamento, nem é inata, e segundo Piaget é adquirida por volta dos dez anos de idade. O diagnóstico de delírio pode ser feito nos casos caracterizados pela perda da comunicação lógica. As afirmações ilógicas do paciente não devem ser encaradas como um sintoma, mas sim como um modo de organizar seu relacionamento com os outros, em geral, e com o profissional que o examina, em particular. A diferença está no modo de entender as situações, nos significados dados ao que acontece. A rigor, há da parte do delirante, de alguma forma, o abandono da relação com o outro, já que sem uma formulação lógica compartilhada, não há como ser compreendido e compreender.
2.4. Imputabilidade É considerada a capacidade para o agente responder pelas consequências legais da infração cometida. No chamado Direito Penal da culpa, torna­se imprescindível a presença do elemento subjetivo, que, por sua vez, pressupõe a normalidade psíquica e mental. A responsabilidade penal pressupõe culpabilidade, e esta, por seu turno, a imputabilidade (11).
Os indivíduos inimputáveis são caracterizados no Código Penal Brasileiro:
“Art. 26 ­ É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar­se de acordo com esse entendimento.” (12)
3. CONCLUSÃO
Até onde podemos perseguir um único fator, ou mesmo um subgrupo de fatores para explicar, por exemplo, o delírio e a conduta do delirante do caso acima? Podemos, ao considerar a etiopatogenia, fazer diversas perguntas:
­ Seria a causa do delírio a insegurança causada pela impotência? E a causa da impotência? Uma possível aterosclerose? Talvez causada pela hipertensão arterial? Mas tais alterações vasculares não poderiam também estar presentes nos vasos cerebrais, implicando em disfunções no funcionamento cerebral? E o padrão de uso de álcool? Não poderia também estar implicado no comportamento pré­mórbido irritadiço? Na impotência? E as questões culturais, a defesa da honra? Quais seriam as condições do relacionamento conjugal antes da eclosão do delírio? E como seriam influenciadas pelos fatores citados anteriormente? Qual a participação dos neurotransmissores e receptores? Causa ou efeito?
Enfim, o que se conclui é que os fatores podem se autoinfluenciar, em proporções tão múltiplas quanto as subjetividades individuais humanas. O pensamento modular, que tenta explicar o todo pela ação isolada de suas partes, com implicações de causa e efeito simples (por exemplo: “o delírio é causado por uma disfunção dopaminérgica em determinada região cerebral”) não é útil para a linguagem da Psiquiatria. Se, por outro lado, tomarmos a mente como parte de um sistema que engloba cérebro e cultura, como propõe Sonenreich (9), poderemos entender que um colapso nessa estrutura pode se traduzir em delírio, mas com uma temática específica. Entendermos o delírio como perda da capacidade de comunicação lógica nos permite incluir no raciocínio médico todos os fatores que podem secundar nessa perda. Se não, como compreender que o delírio seja de ciúmes e não de outra temática neste caso singular? A história do delirante não pode ser excluída dos mecanismos que originam seu delírio. Mas sozinha também não é capaz de explicá­lo. No caso citado, o modo como o paciente se relaciona com seu interlocutor demonstra que não se preocupa em o convencer, portanto, continua delirante. Embora na ocasião do delito, assim como ainda hoje, demonstrasse compreender com clareza a ilicitude e a gravidade do ato cometido, permanece obscura a real capacidade para se autodeterminar. Resta ao processo médico pericial a resposta a esta questão.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) DSM – IV ­ TR – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Trad. Claudia Dornelles, 4ed. Porto Alegre: Artmed, 2002.
2) SIMS, A. Sintomas da mente: introdução a psicopatologia descritiva. Trad. Dayse Batista e Marcos Guirado. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.
3) MORALES, A.M. et al. Vardenafil for the treatment of erectile dysfunction: an overview of the clinical evidence. Clin Interv Aging, v. 4, p. 463­472, 2009.
4) CHENG, J.Y.W. et al. Alcohol Consumption and Erectile Dysfunction: Meta­Analysis of Population­Based Studies. Res Int J Impot, v. 19, n. 4, p. 343­
352, 2007.
5) FAZIO, B.L. Erectile dysfunction: management update. CMAJ, v. 170, n. 9, p. 1429­1437, 2004.
6) VAN STEENBERGEN, W. Alcohol, liver cirrhosis and disorders in sex hormone metabolism. Acta Clin Belg, v. 48, p. 269–283, 1993.
7) FAHRNER, E.M. Sexual dysfunction in male alcohol addicts: prevalence and treatment. Arch Sex Behav, v. 16, p. 247–257, 1987.
8) PONIZOVSKY, A.M. et al. A Multicenter, Randomized, Open­Labeled, Parallel Group Trial of Sildenafil in Alcohol­Associated Erectile Dysfunction: The Impact on Psychosocial Outcomes. Int J Environ Res Public Health, v. 6, n. 9, p. 2510­25, 2009.
9) SONENREICH, C. ESTEVÃO, G. O que psiquiatras fazem: ensaios. São Paulo: Lemos Casa Editorial, 2007.
10) JASPERS, K. Psicopatologia geral: psicologia compreensiva, explicativa e fenomenologia. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu, 1987.
11) JusBrasil. Definições para imputabilidade. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/295746/imputabilidade. Acesso em: 31 de jul. de 2010.
Download

Quando o amor mata psicopatologia e imputabilidade