ARMANDO CÔRTES-RODRIGUES, O POETA QUE A ILHA ESCONDEU
Anabela Almeida
Armando Côrtes-Rodrigues, óleo de Victor Câmara
«Recebi uma antologia prefaciada por Eduíno de Jesus, aos poemas de Armando Cortes Rodrigues, que este me
enviou, com dedicatória muito gentil. Confesso-lhe que pouco sabia dele, e era quase tudo em função de Fernando
Pessoa. Agora, que se delineou a meus olhos uma personalidade definida, vejo que ignorava um poeta de
verdade, dos melhores de Orfeu»
Cleonice Berardinelli, carta a Joaquim Montezuma de Carvalho, em 16/7/19561
Armando Côrtes-Rodrigues foi-me apresentado pela professora Teresa Rita Lopes num
seminário de estudos pessoanos de um longínquo mestrado de 1992-1994. Eu e os meus
companheiros desbravávamos os caminhos de Orpheu e, tendo ficado intrigada com a poetisa
da revista, Violante de Cysneiros», e do seu “criador”, Armando Côrtes-Rodrigues, percorri as
livrarias da capital na tentativa de o(s) conhecer. Porém, só consegui um exemplar da antologia
prefaciada e organizada por Eduíno de Jesus, em 1956; de resto, o livro que deu a conhecer o
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Espólio de Côrtes-Rodrigues, corr. 49, citado por Joaquim Montezuma de Carvalho.
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poeta açoriano, nos últimos cinquenta anos, à maioria dos poucos que o conhecem neste lado
de cá do Atlântico e, ouso afirmar, em terras ilhoas.
A razão da ausência do poeta no continente deu-ma um livreiro: «As edições açorianas
não circulam por cá». Mas se não circulam, em Portugal, as edições portuguesas, por onde
circularão elas? Retorqui com esta interrogação retórica que expressava a minha perplexidade.
Afinal, quando eram passados quase vinte anos sobre o 25 de Abril, Açores continuava a ser
distância, a aproximação que a democracia nos trouxera, fragilizava-se nos livros que não
chegavam sequer ao cais. Assim era há vinte anos e, tanto quanto me parece, assim continua a
ser. No entanto, ainda que não existisse este condicionalismo não teria encontrado a maior
parte da obra publicada de Côrtes-Rodrigues e, tão só, porque estava esgotada e assim
continua.
Dirigi-me então às bibliotecas das duas principais Faculdades de Letras de Lisboa e
também aí nada mais encontrei do poeta. A gentileza do Instituto Cultural de Ponta Delgada e
da Livraria Gil fizeram-me chegar a Lisboa o que havia nos Açores e a Biblioteca Nacional
forneceu-me o resto.
A obra publicada é extensa. Três peças de teatro, uma delas, Quando o Mar Galgou a Terra,
adaptada ao cinema; quatro livros de poesia publicados pelo poeta e dois póstumos; uma
antologia organizada e prefaciada por Eduíno de Jesus; dois volumes de “crónicas”, Voz do
Longe; um volume da correspondência com Eduíno de Jesus que inclui a que este poeta lhe
enviou; três volumes do Cancioneiro Geral dos Açores, dois do Adagiário e um do Romanceiro, textos
da Literatura oral, tradicional e popular recolhidos e organizados pelo poeta; prefácios e
posfácios e centenas de outros textos dispersos pela imprensa, - crónicas, ensaio, entrevistas É obra!
Sessenta anos de escrita de um poeta que eclodiu em Orpheu e que, de volta à sua Ilha,
revela um novo aspecto da sua estética com o livro Em Louvor da Humildade, uma poesia de
carácter telúrico que pulsa com o Movimento Autonómico, bem como com os movimentos
culturais portugueses que entre 1910-1915 se afirmaram em Portugal com pendor nacionalista.
Esta heterogeneidade, aspecto fundamental da estética e ética modernista, continua a expressarse em cada novo livro que o poeta açoriano publica, diferente, não oposto, aos demais, Cântico
das Fontes, Cantares da Noite, Horto Fechado e, postumamente, embora organizado pelo poeta,
Planície Inquieta. De resto, é ele quem deste modo de si fala, ainda que seja avesso a falar de si:
De facto, quando atento em tudo o que escrevi, vejo uma irregularidade de linha
evolutiva e que tracei sem descortinar os motivos disso, tão naturalmente ela
brotou de acasos da vida. (…) Se tivesse continuado em Lisboa não teria escrito
“Em Louvor da Humildade” (…) Vim de Orpheu, desci ao Povo, subi a uma fase de
franciscanismo mais intenso em “Cântico das Fontes”, meti-me outra vez a
caminho de Orfeu com “Cantares da Noite” e depois e mais “Horto Fechado” e de
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novo me encontrei surpreendido outra vez na fase inicial, voltado novamente para
a terra no livro que ando a escrever»2
Armando Côrtes-Rodrigues nasceu em Vila Franca do Campo, em S. Miguel, em 1891,
precisamente no mesmo ano e no mesmo espaço em que outro grande poeta, Antero de
Quental, pôs termo à vida. Em 1910, veio estudar para Lisboa e, cinco anos depois, regressa à
sua Ilha onde para sempre se fixará.
«Difícil não é vir, mas ficar. Difícil não é ficar, mas voltar»3. Dirá, em Lisboa, João
Afonso, a propósito do insulamento do poeta açoriano. Com efeito, Côrtes-Rodrigues veio,
ficou, mas voltou. Da Ilha, onde se fez árvore4, tentou erguer pontes por onde circulasse, nos
dois sentidos, a sua arte, estabelecendo correspondência com inúmeras figuras da literatura e
cultura portuguesas e brasileiras, como foram, de entre tantos outros, Fernando Pessoa, Cecília
Meireles, Eduíno de Jesus, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio, Alberto Serpa, José Enes, Luís da
Silva Ribeiro, Hernâni Cidade, Castro Soromenho, Fernando Pires de Lima, Paulo Quintela,
Dante de Laytano, Pedro da Silveira e David Mourão-Ferreira, no entanto, tal como acontecera
com Cleonice Barardinelli, são muitos os que desconhecem “um poeta de verdade”.
Oxalá consigamos, num futuro próximo, que sejam muitos a conhecer o poeta de quem
Fernando Pessoa disse ser «diretamente de Orpheu»5 e sentiu ser ele, de entre todos os que
constituíram a revista do século XX português, aquele que «melhor e mais de dentro»6 o
compreendia. Para tal pretendemos cumprir o desejo do poeta, expresso numa entrevista que
deu a Mário Dias Ramos, poucos meses antes da sua morte física: publicar a sua obra completa
e um «livrinho com as coisas daquele tempo», o Tempo de Orpheu, o tempo que recordou pela
vida fora como o melhor da sua vida7
Armando Côrtes-Rodigues – Eduíno de Jesus, Correspondência, Ponta Delgada, Museu Carlos Machado, 2002, pp.87
e 89.
3 A Vila, Vila franca do Campo, 12/11/1960, p.2.
4 «Sou uma árvore diante /Da paisagem da vida…/Meus sentidos, raízes que se afundam / Mais fundo pela
terra ressequida, /E folhas que se inundam / De sol delirante / E de chuva de dor, que anda caindo, /Em
sobressalto, / A encharcar o mundo…// Mas ao alto, muito ao alto, / Meu coração é uma flor sorrindo
/Para o céu profundo,» Côrtes-Rodrigues, Cantares da Noite – Seguidos de Poemas de Orfeu, Ponta Delgada,
Gráfica Regional Editora, 1942, p.43.
5 Nós os de “Orpheu””, Sudoeste, Lisboa, Nº3, Nov. 1935.
6 “É o Côrtes-Rodrigues quem, de todos, melhor e mais de dentro me compreende. Dizer-lhe isto», Fernando
Pessoa, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, edição e posfácio de Richard Zenith, Lisboa,
Assírio & Alvim, Outubro, 2003, p.149.
7 “Diálogo com o Poeta Armando Côrtes-Rodrigues”, O Primeiro de Janeiro, Porto, 28/10/1953, p.3.
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Armando Côrtes-Rodrigues, O poeta que a ilha escondeu